Enquanto a tensão aumenta nas negociações comerciais entre grandes potências globais, pautada pela discussão focada em tarifas de importação e no comércio de bens, mudanças estruturais na forma de se gerar valor nas economias, e sua repercussão real no comércio global, figuram como marginais na mesa de discussão.
Como já exposto anteriormente neste blog e por Arbache (2018), a transformação digital modificou e ainda modificará sobremaneira o funcionamento das economias em suas diversas esferas, entre elas, a do comércio internacional. A digitalização gera novas formas de produzir e de se transacionar bens e serviços, o que explica a nítida redução no comércio global de bens, e o crescimento no fluxo internacional de serviços e de dados.
A importância tanto do comércio de serviços como dos fluxos internacionais de dados para a geração de valor na era digital foi o que motivou economias avançadas a trazer os desafios regulatórios que enfrentam quando tentam operar em outros países para dentro das negociações comerciais. O caminho escolhido foi o de reativar as discussões já existentes sobre comércio eletrônico e repaginá-las, respondendo, dessa forma, à necessidade das empresas de navegarem por regulações domésticas muitas vezes inexistentes em setores novos, de superarem entraves para suas transações e de impedir que novas políticas e normativos refreiem seus objetivos de crescimento em novos mercados.
Antes de se entender a dinâmica das negociações em andamento em comércio eletrônico, é preciso entender alguns conceitos, que apresentaremos a seguir.
O que é comércio eletrônico no âmbito dos acordos comerciais?
Quando falamos de comércio eletrônico, o que imediatamente nos alcança o imaginário é um grande fluxo de pacotes viajando pelo país ou pelo mundo; sites e plataformas para a venda de mercadorias, de origem própria ou bens de terceiros, de produtos novos ou usados.
Essa face do comércio eletrônico que conseguimos enxergar corresponde a parcela considerável no boom no crescimento do comercio doméstico e internacional de bens, sendo um diferencial importante no faturamento e no desempenho de muitas micro e pequenas empresas. Também explica surgimento de importantes players e plataformas conectando os lados do mercado (da oferta e da demanda). Além disso, há um ganho claro para o consumidor, oriundo da maior variedade e oferta de bens a sua disposição.
O que essa ótica não contempla são três premissas fundamentais sobre o comércio eletrônico atualmente. O e-commerce:
- É muito mais um comércio de serviços do que de bens.
- É muito mais um comércio entre empresas do que entre consumidores e empresas.
- No mundo das negociações comerciais, é um debate sobre regulamentação da economia digital, e não (apenas) sobre pacotes transacionados globalmente.
Discutiremos cada uma dessas questões a seguir.
- O e-commerce é muito mais um comércio de serviços
Com pouco esforço, conseguimos pensar em uma série de serviços, gratuitos ou pagos, convencionais ou modernos, que obtemos pela internet. As diversas compras associadas a viagens, como cotação e reserva de passagens, hospedagens, passeios e seguro viagem são serviços fornecidos via comércio eletrônico. Pensando um pouco mais, chegamos na ampla oferta de serviços via plataformas de música, filmes, seriados, games, entrega de mercadorias, delivery de refeições, compras de supermercado e farmácia, atividade física, serviços financeiros como cartão de crédito, entre diversos outros.
Indo um pouco além, chegamos a uma série de serviços digitais que hoje são basilares para a nossa interação na internet. É o caso dos serviços de nuvem, que estão na base do armazenamento de informações não apenas direta (via upload de fotos e documentos em uma nuvem paga ou gratuita), mas indiretamente. Hoje em dia nenhuma informação, seja ela trocada por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas ou aplicativos no geral, sai de um dispositivo para outro sem passar por uma nuvem. Invisível e fundamental também para esse mundo novo das transações digitais são os serviços de pagamentos online, que costumam envolver empresas terceiras, como é o caso daqueles feitos via Ebanx, por exemplo. O que parece uma simples transação entre comprador e plataforma é na verdade um serviço permeado por estritas regulamentações internacionais, que na verdade arrecada seu pagamento, seja ele via cartão ou boleto (modalidade esta que na verdade só existe no Brasil) e transfere para o site da compra. Com isso, a empresa brasileira Ebanx faz com que se consiga realizar uma compra na China com a facilidade de uma compra nacional.
Por fim, temos uma gama de serviços digitais gratuitos e que, por não envolverem transação eletrônica, ficam em tese de fora da definição mais usual de comércio eletrônico. São atividades cotidianas como pesquisas no Google, uso de mapas online, aplicativos gratuitos, redes sociais, entre uma infinidade de atividades. Na terceira parte deste post explicaremos que, diferente do que se acredita, esses aplicativos estão totalmente envolvidos nos debates sobre comércio eletrônico, que, como veremos, envolve muito mais do que a transação via plataforma, mas sim uma relação intrínseca com o fluxo de dados e com a economia digital.
Há tendência observada há décadas pelos economistas de que, com o aumento da renda média, o consumo das famílias tende a evoluir no sentido dos serviços, e não de bens. Aliando-se a isso a expansão da internet, tem-se então um aumento no consumo cada vez mais direcionado ao comércio eletrônico de serviços. Por fim, temos uma grande transformação na produção global, nas cadeias globais de valor, que hoje operam em rede e utilizam cada vez mais insumos de serviços e vendem cada vez mais serviços, pelo processo já descrito no blog de servicificação. Isso explica porque o comércio internacional de serviços cresce 60% mais rapidamente que o comércio de bens desde 2007, de acordo com o relatório da Mcksinsey. Também explica porque, em termos de valor adicionado, serviços já são 50% do valor de um bem exportado para a média dos países da OCDE.
Isso não significa que o comércio eletrônico de bens não seja importante ou relevante do ponto de vista econômico. É por meio de plataformas como Mercado Livre e Alibaba que diversos micro e pequenos empreendedores adquirem, às vezes, a maior parte do seu faturamento, rompendo barreiras geográficas para atendimento ao consumidor, o qual ocorre de forma rápida, conveniente e personalizada. Não por outro motivo, toda a agenda importantíssima para destravar esse comércio precisa e deve ser atacada. Aqui entra a tradicional e tortuosa agenda da infraestrutura, logística e distribuição, aliada a agenda dura de tributação e de regulamentação de pagamentos online. Com as melhorias nas “condições de base” do comércio eletrônico, será possível observar ganhos não apenas para as empresas que se beneficiam dessa fonte de faturamento como também para a produtividade do setor, que é historicamente baixa, em linha com aquela registrada no setor de comércio e varejo, como já exposto pelo blog em diversas oportunidades.
Todavia, os grandes resultados econômicos em e-commerce atingidos por países como China não são atrelados apenas a existência de uma agenda facilitadora ou “habilitadora” da expansão do e-commerce (enabling environment, no jargão em inglês, referindo se a políticas de infraestrutura digital e conectividade, acesso a estrutura de TI, banda larga, entre outras) mas sim de uma política nacional de desenvolvimento, de inserção da produção chinesa na direção dos mercados globais. O que se depreende dessa e de outras iniciativas de sucesso em promover o e-commerce é a existência de uma estratégia sólida e de crescimento e de desenvolvimento econômico, e uma resposta consistente, implementada por meio de políticas públicas bem orientadas, sobre o papel do comércio eletrônico para atingir esses objetivos. Dito de outra forma: a promoção do e-commerce não é – e não deve ser – um fim em si, mas uma forma de ampliar a inserção doméstica e internacional dos distintos portes de empresa de forma a colocar esse “segmento” dentro de uma política macroeconômica maior, de ganhos de produtividade e escala das empresas de comércio, físico ou online.
- O e-commerce é muito mais um comércio entre empresas do que entre consumidores e empresas.
Empresas são grandes consumidoras de serviços. Como já mostrado por Arbache (2014) e também por este blog, empresas dos mais diversos setores como manufatura, agricultura e serviços, consomem cada vez mais serviços como insumos, além de também produzirem serviços. Com a emergência da economia digital e o crescimento da servicificação, parte dessas aquisições de serviços são feitas por meio do comércio eletrônico. É o caso dos serviços de TI, marketing, serviços jurídicos, consultorias, armazenamento de dados, pós – venda, entre diversos outros. Nem todas as empresas compram de forma online todos esses serviços, mas a tendência trazida pela economia digital é, de fato, a digitalização cada vez maior de serviços e a criação de novos serviços, em operações entre empresas. O caso da Amazon é um bom exemplo: a empresa mais conhecida do mundo em e-commerce tem a maior parte do seu faturamento oriundo dos serviços de nuvem oferecidos, majoritariamente para… empresas.
Outro caso interessante são as compras de serviços de marketing. A velha contratação de empresas para definição de público-alvo e posterior campanha é somada o targeting ou focalização de determinados grupos de pessoas em redes sociais como o Instagram, que tem informação precisa e instantânea sobre quais pessoas estão à procura de determinados produtos, informação esta formada a partir da interação dos usuários com a plataforma. A simples visualização ou interação feita por milhares de pessoas o tempo todo gera um mapa da preferência de consumidores que é posteriormente vendido como marketing pelo Instagram para empresas que fazem comércio eletrônico.
Dito tudo isso, quando estamos discutindo o que precisa ser feito para alavancar o e-commerce, também estamos falando sobre como facilitar o acesso e a produção de serviços pelas empresas. Mais importante ainda, estamos discutindo o que pode ser feito para gerar inovações nesses serviços e capacidade nas empresas para que, a partir dos dados que possuem e dos serviços aos quais têm acesso, possam servicificar seus produtos e criar novos serviços.
- O e-commerce, no mundo das negociações comerciais, é um debate sobre regulamentação da economia digital
As duas constatações apresentadas acima têm uma consequência – chave tanto no âmbito doméstico quanto internacional, que é a importância de se criar e se de manter regulação capaz de promover a inovação, o comércio e o crescimento econômico.
Parcela significativa do comércio eletrônico B2B descrito acima é internacional, isto é, feito a partir de operações entre (empresas) residentes e (empresas) não residentes de um país. A Unctad estimou que 90% do comércio eletrônico internacional ocorre entre empresas, o que corresponde a algo próximo a 26 bilhões de dólares. Não por outro motivo, o tema de e-commerce ganhou proeminência no âmbito dos acordos regionais de comércio, sendo hoje o motor de debates intensos na Organização Mundial do Comércio (OMC).
A simples leitura de um capítulo de comércio eletrônico em um acordo de comércio mostra que ele se trata muito mais de dados, regulação e serviços do que de bens. No grupo plurilateral da OMC que está atualmente discutindo o tema de e-commerce, lançado em janeiro de 2019, alguns documentos são emblemáticos sobre o que de fato está em discussão e em jogo: de um lado, países avançados buscam manter o status quo de suas empresas de tecnologia rompendo barreiras ao crescimento destas em mercados importantes. De outro, países que buscam manter seu espaço para políticas públicas e seu direito a regular tecnologias novas e conseguir de alguma forma usufruir dos benefícios de uma entrada mais qualificada na transformação digital pela qual passam as economias. Um maior detalhamento sobre as principais disciplinas em debate atualmente na OMC será alvo de post futuro.
O caminho que as discussões seguirão ainda não está claro. Foram definidos temas que o acordo deverá cobrir, como fluxo de dados, confiança no ambiente digital, localização de servidores, comércio cross-border de bens, segurança cibernética, proteção ao consumidor, contratos eletrônicos, assinaturas eletrônicas, restrição a possibilidade de cobrança de imposto de importação sobre transmissão eletrônica De forma geral, os temas foram influenciados pelos acordos bilaterais e regionais já fechados ou em recente negociação. Todavia, a dinâmica da negociação plurilateral com certeza será distinta, tendo em vista, por exemplo, o aceite da China de participar das discussões, e o documento apresentado pelo Brasil, que, entre outras questões, coloca em voga aspectos espinhosos, como concorrência na era digital e tributação de plataformas.
A participação da China deixa um grande ponto de interrogação, pois a abordagem do país a economia digital – com sua grande “muralha digital”, a dificuldade da penetração de players internacionais e grande controle sobre o fluxo de dados – demonstra que o país deverá prosseguir buscando exceções fortes que permitam a continuidade do controle atualmente exercido sobre as empresas e os dados que fluem entre usuários e plataformas. A decisão chinesa de entrar nas discussões passou provavelmente pelo debate entre os prós e contras de estar fora de um processo de decisão tão caro para a atual estratégia de desenvolvimento econômico chinês, imbrincada ao desenvolvimento de novas tecnologias e o usufruto do gigantesco volume de dados de indivíduos e empresas para alavancar esse objetivo. Estar fora significaria não participar da principal arena atual de rule making em comércio digital. Provavelmente estaremos olhando para exceções marcantes de soberania e segurança nacional num futuro acordo na OMC, o que, ao passo em que permitem um acordo de maior representatividade, podem acabar não alterando o status quo de baixo acesso de empresas estrangeiras ao mercado digital chinês. Todavia, garantirão uma arena mais livre para a atuação de plataformas de países desenvolvidos no restante do mundo, o que é algo não-negligenciável.
Conclusões
A maior parte dos países já entendeu que há uma mudança tecnológica ocorrendo tanto na forma de produzir como de comercializar bens e serviços. Diversas políticas foram implementadas ou estão sendo desenvolvidas na tentativa de gerar benefícios dessa digitalização para as economias. Enquanto alguns países miram em desenvolver uma agricultura ou manufatura mais digitalizada, outros buscam promover o comércio eletrônico de bens, mas poucos de fato se mostram atentos à necessidade de promover políticas ativas para entrada mais qualificada e de usufruto dos benefícios de longo prazo que podem ser gerados pelo desenvolvimento digital. Não é automático que países ganharão mais por terem mais empresas, setores e indivíduos conectados: a digitalização não é um maná que cairá do céu e gerará novas possibilidades de negócios uma vez que as condições básicas (de infraestrutura e conectividade) estiverem implantadas. Os países claramente a frente na corrida digital tem não apenas um setor privado ávido por desenvolver e aplicar novas tecnologias, como um governo pavimentando a jornada, como é o caso da China com o Plano tornar o país uma referência em inteligência artificial até 2030, como a estratégia para I.A de Donald Trump.
A saída, com certeza, envolve políticas e regulações que promovam o acesso a tecnologias digitais e que induzam o desenvolvimento de tecnologias digitais capazes de responder aos desafios do desenvolvimento econômico de cada país. Ou seja, é preciso promover a entrada dos agentes econômicos – cidadãos, empresas e governo – na era digital e abrir o caminho para que estes também sejam agentes dessa transformação digital, transformação essa que trabalhe em prol de uma agenda de desenvolvimento, redução de desigualdades e aumento de produtividade, no caso brasileiro. Mas, antes disso, é preciso ter um diagnóstico correto sobre quais as principais tendências na produção e no consumo que emergiram a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais, sobre quais tecnologias são mais importantes, sobre o papel dos dados nessa jornada e sobre quais os temas espinhosos que devem ser enfrentados para que os países possam encontrar seu espaço na arena digital.
Sobre o autor:
Vanessa Carvalho
É Analista de Comércio Exterior do Ministério da Economia e doutoranda em Economia na Universidade de Brasília.
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