Historicamente, o setor de serviços era identificado com atividades alheias à produção de bens materiais. A cobertura era ampla e englobava desde subsetores como comunicações e finanças até saúde e educação. Em geral, o que singularizava esta heterogeneidade, ou, em outros termos, o que possibilitava agregar em um setor uma ampla gama de ofertas era a imaterialidade de seu output. Os serviços tanto podiam ser associados à modernização das sociedades como assumidos, paradoxalmente, como sendo a manifestação de uma sociedade incapaz de completar a transição entre uma sociedade arcaica a uma outra denominada de moderna. O primeiro caso (a crescente importância dos serviços como sinônimo de modernização) se justificava pela elasticidade-renda de sua demanda. Na medida em que os países se desenvolviam, a participação dos bens agrícolas e industriais nos orçamentos das famílias decaía, sendo o espaço ocupado pela demanda dos mais variados serviços (saúde, educação, cultura, alimentação fora de casa, etc..). Contrariamente, sociedades com dificuldades em ingressar no clube das nações desenvolvidas conviviam com uma extensão de espaços periféricos nos quais predominavam ocupações e atividades à margem da legislação, com baixa produtividade, reduzidos rendimentos, etc.. O setor informal é, basicamente, um setor de serviços. À própria heterogeneidade intrínseca à sua definição (oferta de saúde, entretenimento, educação, finanças, etc..) se agregava uma outra, um divisor de águas que segmentava serviços associados à modernização daqueles outros que, marginalizados do desenvolvimento, eram o subproduto de uma modernização truncada.

Muito sinteticamente esta era, até recentemente, a forma usual de caracterizar os serviços, não obstante, certos aspectos foram adquirindo outros contornos. Por exemplo, a oferta de serviços foi assumida como sendo compatível com um crescimento ecologicamente sustentável, uma vez que contribuída a desmaterializar o consumo e, dessa forma, reduzir a pressão sobre os recursos naturais. Dessa forma, a imaterialidade de sua oferta e sua crescente importância podia ser vista como a possibilidade de um futuro compatível com a preservação ambiental.

Nas últimas décadas novas atividades, também incluídas no nome genérico de serviços, foram surgindo, mas desta vez umbilicalmente aparentadas com os setores tradicionais, como agricultura e, especialmente, indústria de transformação. Os serviços incorporados na oferta de bens agrícolas e industriais (pesquisa e desenvolvimento, design, etc.) foram ganhando importância no valor agregado e não obstante o perfil de sua oferta (imaterialidade), a mesma começa a adquirir um caráter comercializável (arquitetura, engenharia, seguros, etc.). Assim, o que antes parecia um contrassenso, uma vez que os serviços pareciam ser a própria definição de uma oferta non-tradable, agora ganha um status de modernização na integração do comércio mundial.

Essa irrupção de novas configurações, agora visceralmente associadas à agricultura e indústria, acabou se sobrepondo às antigas atividades do setor serviços, ampliando a sua heterogeneidade. À antiga convivência de um setor associado à urbanização e modernidade com outro identificado, na visão de cunho mais estruturalista, com um excedente estrutural de mão-de-obra (setor informal) se agrega um outro segmento, está vez vinculado à agricultura/indústria e mesmo capaz de integrar o fluxo internacional de comércio (ver, por exemplo, as estatísticas do comércio internacional de serviços em OCDE). Na antiga dualidade (serviços modernos/informalidade) a questão da produtividade se colocava nos dois polos da mesma. No setor informal, por definição, os ganhos de produtividade eram quase inexistentes, o que alimentava um círculo vicioso de estagnação (baixa produtividade-baixa capacidade de gerar excedentes-reduzida aptidão para incorporar tecnologias e capital-……..). Mesmo no setor moderno, a potencialidade de se obter ganhos de produtividade eram assumidos com ceticismo, possibilidade que deu origem ao conhecido Modelo de Baumol e à inflação via equalização de salários entre setores.

Essa heterogeneidade, prevalecente nas nações em desenvolvimento, foi o berço para um amplo debate sobre a institucionalidade da informalidade. Podia o setor informal, dado o marco legal, preencher as condições requeridas para sua formalização? O arcabouço regulatório, capaz de ser respeitado pelo setor de serviços moderno, excluía toda possibilidade de integração aos serviços com reduzidíssima produtividade e relações de trabalho particulares (familiares, contra-própria, etc.)? Podia a relação trabalhista “típica” (assalariado com carteira) ser a norma em sociedades tão heterogêneas? Não era a informalidade a manifestação da falta de harmonização entre o marco legal/institucional e a estrutura produtiva?

Este debate nunca foi encerrado e, agora, existem elementos para pensar que o desafio se aprofundou, uma vez que o setor serviços parece estar na presença de um novo segmento, elevando ainda mais sua heterogeneidade.

Em um recente artigo na revista Forbes, o midiático Joseph Coughlin levanta a hipótese do nascimento de uma nova forma de consumo, não associada à propriedade. O próprio título do artigo é eloquente: “Having It All, But Owning None of It: welcome to the rentership society” Muito sinteticamente, o argumento dele identifica uma nova etapa nas sociedades modernas, nas quais o consumo deixaria de estar associado à propriedade do objeto consumido. Carros, casas, livros, etc. são alugados. São contratados serviços, seja os “serviços” de uma casa ou de um livro, por exemplo, seja os serviços de um trabalhador, como no caso do ifood, ou uma combinação de ambas as cosas (trabalho e bens), como no caso do Uber (onde é contratado o serviço do carro, um bem de capital e do motorista, trabalho). Os bens seriam majoritariamente propriedades de empresas/indivíduos e os consumidores alugariam os serviços deles. As formas de riqueza se alterariam, sua materialização não seria em bens tangíveis (casas, carros, etc.) adquirindo outro perfil (aplicações financeiras). Nas grandes cidades européias a mobilidade vai crescentemente adquirindo a forma de “assinaturas” a favor de empresas donas de bicicletas, motos, patinetes, etc.. Em outro exemplo bem ilustrativo, já é possível alugar livros na internet por mês, semestre, ano. Ou seja, o consumo de um bem deixa de estar vinculado à sua propriedade em itens e em uma extensão nunca vista. O usufruto de um bem material não é obtido mediante a sua posse, senão através da contratação de um serviço.

Ainda é cedo para saber se essa tendência, que Coughlin coloca como uma nova etapa histórica, ainda vai merecer esse qualificativo ou será simplesmente mais um espaço que conviverá (harmoniosamente ou não) com outros. Por exemplo, os conflitos entre os taxistas tradicionais e o Uber ou entre os hotéis e airbnb evidenciam que a coabitação pode não ser amena. Por outra parte, seria prematuro afirmar que, no longo prazo, uma oferta vai substituir a outra ou conviverão de forma mais ou menos conflitiva.

Contudo, concretamente e no curto prazo, acrescentaríamos ao setor serviços, como já afirmamos, um novo segmento, aprofundando ainda mais sua heterogeneidade. A questão que se coloca está vinculada à institucionalidade/legalidade (ou seja, às formas de regulação) que demanda a irrupção de uma nova forma de oferta e consumo. Vamos colocar como exemplo o mercado de trabalho.

O motorista do Uber é um assalariado da “firma Uber” ou um trabalhador independente e o Uber é simplesmente uma plataforma que permite a conexão entre o trabalhador independente e o cliente? Uber tenta transmitir uma imagem de plataforma de intermediação, inclusive com a última iniciativa de oferecer um espaço para o matching entre trabalhadores e empregadores no caso de trabalho temporário. Uma outra possibilidade consiste em supor que o Uber é uma firma tradicional e, nesse caso, obrigada a “assalariar” todos os motoristas. Neste caso estaríamos assumindo que o assalariado tradicional (assalariado com carteira, com direito a férias, décimo terceiro, FGTS, etc.) é a única forma (ou a desejável) de inserção no mercado de trabalho. Todas as outras formas que um vínculo pode adquirir seriam sinônimo de precarização, retrocesso social, etc. e a legislação que regula os setores tradicionais deve aplicar-se também nas plataformas?

Concorrendo com a perspectiva anterior podemos identificar uma outra, na qual o assalariamento tradicional seria uma forma de inserção econômica e social datada no tempo e não necessariamente uma integração imune ao tempo e ao espaço. Em vários lugares do mundo a justiça está identificando as plataformas como empresas convencionais e, nesse sentido, as obrigam a assumir uma relação tradicional com os trabalhadores que antes eram independentes. Os conflitos em Barcelona, por exemplo, onde o Uber chegou a se retirar do mercado, são um exemplo. O ponto é: o usuário aluga os serviços de um carro com condutor e o Uber é simplesmente o intermediário entre oferta e demanda ou o trabalhador independente é em realidade um assalariado camuflado do Uber? Em termos econômicos, devemos revisitar Coase (1937) e nos voltar a colocar uma questão marginalizada na maioria dos cursos de micro: o que é uma empresa ?

Observemos que o marco regulatório institucional/legal é submetido a um novo estresse. Se antes se debatia se a CLT era um arcabouço adequado para um amplo setor do mercado de trabalho que tinha formas “atípicas” (assalariado em micro-unidades de produção com baixíssima produtividade, autônomos, emprego em unidades familiares de produção,…) agora se agregam novas formas de incorporação produtiva. Paradoxalmente até o momento, a controvérsia girava em torno de formas de emprego em espaços quase arcaicos, de baixa produtividade e tecnologia, agora a polêmica gira em torno de um setor de ponta em termos tecnológicos.

As perguntas que levantam essas novas configurações de firmas e as relações comerciais/trabalhistas que se colocam não são menores. Por exemplo, se o motorista que disponibiliza o seu carro na intermediação realizada pelo Uber, pode estar submetido a um máximo de horas de trabalho, férias, etc. ? Não poderia ele escolher a duração da jornada, o período de férias, etc. em função de seus gostos, necessidades,..? Não pode ele ter escolhido esse tipo de inserção em função, justamente, dessa liberdade de escolhas que a relação com o Uber permite ? O marco regulatório imaginado para os tradicionais vínculos capital/trabalho é funcional às novas formas de produção e consumo ? Qual é a regulação, limites e funcionalidades necessários a estes novos espaços ?

Lembremos que, se fugimos de escolhas ideológicas, uma análise da experiência internacional não permite concluir que os resultados satisfatórios ou não de uma dada institucionalidade/legalidade estão em função de sua intensidade. Países muito regulamentados (países nórdicos, por exemplo) têm balanços em termos de emprego, desemprego, crescimento da produtividade, etc., semelhantes a economias com uma institucionalidade muito reduzida e prevalência da oferta e demanda (países anglo-saxões). A questão que se coloca está vinculada à eficiência de uma dada institucionalidade, não à sua densidade. Assemelhar a inserção econômica e social via as novas plataformas a uma forma de assalariamento tradicional pode ter como corolário tolher o amadurecimento de formas de produção e consumo inéditas e aí podem estar concentrados promissores espaços de crescimento da produtividade. Revestidas de um falso progressismo, perspectivas que associam qualquer nova forma de inserção a um retrocesso em termos civilizatórios ou precarização social das sociedades podem chegar a ser classificados, no futuro, como hoje avaliamos os movimentos ludistas do Século XIX.