Em nossa política contemporânea, muito se tem falado sobre o estado atual do debate político. Para muitos, esse espaço para discussão de ideias tem se tornado um verdadeiro campo de guerra. Em diferentes países onde se impera a democracia, um grande número de políticos tem se enfrentado em intensos conflitos sobre temas como aborto, imigração, controle de armas e impostos. Muito destas disputas vêm acendendo uma luz de preocupação sobre esse mesmo modelo de Estado adotado pelos principais países ocidentais. Assim, não furtamos de nos questionar: a democracia está falhando?

Em seu recente livro, Levitsky & Ziblatt (2018) argumentam que os políticos agora tratam seus adversários como inimigos, intimidam a imprensa livre, e ameaçam rejeitar os resultados das eleições. Eles ainda notam que os políticos têm tentado enfraquecer os principais alicerces da democracia, incluindo os tribunais e os serviços de inteligência. Certamente, um sintoma claro dessa crise atual é o crescimento da polarização – muitas vezes manifestado na forma de disputas ideológicas. Recentes pesquisas vêm demonstrando o crescimento da polarização política nas últimas décadas, como exposto nos trabalhos de Gentzkow et al. (2019) e Hare & Poole (2014).

Em seu mais recente livro, Harari (2018) aponta como um importante ponto de inflexão o ano de 2016, onde houve a primeira votação do Brexit no Reino Unido, e também o surgimento arrebatador de Donald Trump nos Estados Unidos. Tais acontecimentos, segundo ele, foram essenciais para criar mais tensões entre os campos ideológicos. Colocando, assim, nossa democracia em cheque.

Não muito longe disso, tivemos aqui no Brasil um recente processo de impeachment de uma presidente deliberadamente de esquerda. Seguido por uma eleição bem acalorada, na qual saiu vencedor contra esse mesmo partido o ex-deputado de extrema direita, Jair Bolsonaro. Isto tudo tem somado para construir um cenário de disputa política extremamente belicoso em nosso país.

Desta maneira, mensurar e compreender ideologia se tornou um exercício extremamente importante, pois já que embates ideológicos estão guiando a maioria destes conflitos, compreendê-los nos possibilitará entender melhor nossa realidade política atual.

Não obstante isso, sabemos que a mensuração da ideologia é um exercício muito complicado. Principalmente porque ela não pode ser diretamente observada. Na literatura, os trabalhos mais seminais que tratam este problema são de Poole & Rosenthal. Desde a década de 80 eles vêm se baseando em dados de voto aberto para construir um modelo de posicionamento político dos parlamentares americanos. No Brasil, destaca-se o trabalho de Power & Zucco (2009) no qual partem de dados de voto aberto e também do Survey Eleitoral Brasileiro com o objetivo de estimar o posicionamento dos partidos nacionais. Esses trabalhos tratam o posicionamento político como um conceito discreto (muitas vezes os representando em um espaço unidimensional) e são amplamente utilizados na ciência política para se estudar, por exemplo, comportamento legislativo, política intrapartidária, e competição eleitoral.

Mesmo com sua vasta utilidade, esta modelagem muitas vezes esconde informações que são extremamente preciosas para analisarmos o contexto de disputa ideológicas. Pois, mesmo que modelagens com base em dados de voto aberto nos expressem mais de 80% do comportamento dos parlamentares, ainda nos faltam mais características (ou, dimensões) a fim de compreender melhor o que se passa dentro de cada ideologia. Caso seja possível levantar essas informações, seremos capazes de analisar num contexto intertemporal toda dinâmica ideológica no parlamento.

Neste caso, agora nos é importante encontrar dados que consigam imprimir o conteúdo ideológico dos partidos com um grande número de características. Por sorte, sabemos que a linguagem é uma das maiores fontes de alta dimensionalidade – neste caso, para cada palavra teremos uma respectiva dimensão. Com base nos padrões construídos através da frequência de palavras, conseguimos classificar um discurso ou um texto em distintas categorias. Subjacente a esse modelo, está a hipótese de que a ideologia funciona como uma grande restrição sobre nós. Ou seja, ao saber que um político é de direita e que, por exemplo, defende baixos tributos e mais liberdade econômica, provavelmente este mesmo político será favorável a medidas menos restritivas ao uso de armas de fogo e também será provavelmente contrário a políticas afirmativas. Assim, esperamos que um político que seja de direita utilize palavras do vocabulário conservador com uma maior frequência, manifestando através da combinação de palavras em seus discursos o conteúdo ideológico da sua posição política.

Com o recente avanço da capacidade computacional, as técnicas de machine learning têm se tornado uma ferramenta simples e bastante acessível para se trabalhar com dados na forma de texto. Desta maneira, a partir de um estudo produzido no Departamento de Economia da Universidade de Brasília contando com a colaboração dos professores Bernardo Mueller e Daniel Cajueiro, baseamo-nos nesse conjunto de algoritmos e também em todas representações taquigráficas dos discursos dos Senadores da 50ª até a 55ª legislatura (1995-2018) – aproximadamente 80.000 discursos – a fim de criar um modelo de classificação para cada ideologia partindo das frequências das palavras utilizadas por cada senador. Os resultados estão detalhados na minha dissertação de mestrado, que logo será publicada na forma de um artigo acadêmico.

Dividimos todos os partidos políticos entre três possíveis ideologias: esquerda, centro e direita. Para tal pré-classificação, utilizamos os dados de posicionamento político de Power & Zucco (2009).

Nosso classificador, na média, obteve 73% de acurácia entre as legislaturas. Ou seja, após aprendermos os padrões utilizados por cada categoria ideológica a partir dos discursos políticos, somos capazes de classificar — a partir desta ‘generalização’ — novos discursos com 73% de acurácia em média.

Dado que nosso classificador apresenta uma boa performance, podemos abrir o conteúdo de cada ideologia e observar as palavras que possuem as frequências mais elevadas – ou seja, as palavras que são mais importantes para defini-las.

A partir disto, observamos que, em geral, os senadores tratam de temas comuns entre eles. Embora, ao entrar em determinado debate temático, cada senador possuí um rol de palavras que é mais apropriado à sua ideologia. Por exemplo, nas duas primeiras legislaturas (as quais compõem os dois governos FHC) ao se debater o tema da reforma agrária, parlamentares de esquerda geralmente utilizam palavras como direitos, agrária, terra e trabalho. Enquanto parlamentares de direita abordam tais discussões a partir de palavras como produção, agricultura, mercado, produtores, agrícola e capital. Isso é muito interessante, pois nos revela que de fato um ‘sistema de crenças’ parece estar enraizado em cada parlamentar: desde aquelas crenças formadas a priori, como aquelas carregadas pela própria representação institucional de seu partido.

Um resultado curioso se dá na 52ª legislatura (cujo período é simbolizado pela chegada do PT ao poder.) Observamos que a esquerda, representada agora pelo partido incumbente, ligou-se a debates tidos como mais conservadores. Passando a empregar em seu vocabulário com maior frequência palavras como previdência e tributária. A tendência geral é que ambas as categorias (direita e esquerda) se mudaram marcadamente para a direita enquanto no governo e para a esquerda, enquanto na oposição.

Notamos ainda nesta legislatura, o surgimento de um vocabulário da direita mais ligado as suas tradições conservadoras: como o emprego das palavras homem, Deus, família, polícia e segurança. Observando as próximas legislaturas, constatamos que esse novo padrão ‘mais conservador’ da direita se mostra perene. Isso nos leva a hipótese de Timothy Power acerca da existência de uma ‘direita envergonhada’, onde os políticos de direita teriam uma certa resistência em se ligar a bandeiras evidentemente conservadoras – isso seria um comportamento com fins de não carregar a herança política da ditadura. Power & Zucco (2009) apontam que o ressurgimento dessa direita estaria ligado as defesas das defesas neoliberais dos governos FHC. Embora, os nossos dados sugerem que essa nova direita está muito mais ligada a valores morais do que a uma defesa firme de pautas econômicas liberais.

Analisando mais a fundo a dinâmica intertemporal das ideologias, observamos que a direita está ligada antes mesmo do que a esquerda ao debate da educação superior – observamos isso através da alta frequência no emprego de palavras como cultura, conhecimento e universidade. Isso de certa forma representa um paradoxo, já que nosso senso comum aponta para a esquerda como a grande precursora dos debates acerca da educação superior no país. Embora, nas legislaturas seguintes nos torna claro a importância da discussão da educação superior para a esquerda.

Notamos que a bandeira de defesa das mulheres e das crianças é algo bastante caro a esquerda. Nossa análise entre as legislaturas evidencia um crescimento da importância dessas palavras para este espectro ideológico. Isto também mostra que cada vez mais debates acerca dos direitos das mulheres e das crianças têm se tornado mais relevantes no Senado.

Outro fato que observamos é que a temática em volta da questão ética, ou precisamente ligada a atos irregulares, carrega muito da tônica polarizadora no Senado. Os senadores apresentam uma alta frequência para palavras relacionadas a essa questão. Por exemplo, desde nossa primeira amostra (50ª legislatura) a palavra CPI apresenta uma grande importância, e isso é acentuado e permanece até nossa última amostra (55ª legislatura.) Talvez os dois pontos que mais nos chamem a atenção estão ligados aos episódios do Mensalão e da Lava Jato, 52ª-53ª e 54ª-55ª legislaturas respectivamente. A partir destes pontos, observamos o crescimento do uso de palavras como respeito, tribunal e corrupção. Isso nos sugere que a partir dos desdobramentos destas investigações, a polarização ganhou uma força a mais no Senado – reafirmando a disputa entre oposição e governo, e também ecoando as disputas eleitorais.

A nossa última legislação é interessante, pois houve um ponto de quebra durante seu período através do episódio do impeachment. Observamos que os senadores estão claramente voltados ao processo de impedimento da presidente, e também à grave crise econômica que o país tem enfrentado. Isso é demonstrado através da alta frequência para a esquerda das palavras resistência, luta e golpe. Enquanto, para a direita há uma alta frequência para as palavras tributária, fiscal e previdência. Notamos também que o centro (que tem o PSDB como um dos principais representantes) e a esquerda possuem coeficientes bem próximos para a palavra socialismo, o que nos evidencia que essa temática mais histórica da ideia geral que temos de conflito ideológico aprofundou-se na nossa última legislatura.

Especificamente sobre o centro, notamos que ele apresenta uma espécie de ‘coloração cinzenta’. Ora apresenta um vocabulário que apontaríamos como conservador, ora apresenta um vocabulário mais tradicional aos valores da esquerda. É importante notar que o PSDB, um dos maiores representantes da categoria centro em nossa análise, é reconhecido por ter estabelecido uma grande polarização contra os governos petistas e o próprio PT nos últimos anos. O que nossos dados apontam é que essa polarização, como afirmado anteriormente, é muito mais voltada a questões ligadas a corrupção do que uma disputa ideológica per se.

Grosso modo, podemos afirmar que os espectros políticos no Brasil vêm adotando um vocabulário mais ligado aos seus valores, sejam eles conservadores ou progressistas. Esses novos padrões nos possibilitam classificar melhor ‘quem é quem’ no Senado — a partir da análise textual dos discursos. É claro também para nós que essa guerra campal que vem se formando na política está muito ligada a disputas em questões morais.

Durante todo nosso período de análise, percebemos que a polarização manifestada no Senado é muito menos efusiva do que a manifestada em outros meios, como as próprias redes sociais.

Autor:

Felipe Carneiro é Graduado em Economia pela Universidade Federal de São Paulo e Mestre em Economia pela Universidade de Brasília.