Economia de Serviços

um espaço para debate

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Políticas Públicas e Eficiência Alocativa na Educação

Nas últimas décadas, a educação foi sendo paulatinamente assumida como um verdadeiro mantra em termos de políticas públicas e prioridades. Melhores níveis de educação da população em geral e da força de trabalho em particular ampliariam as possibilidades de crescimento (ver, a título de exemplo da extensa literatura, Gemmell (1996), Toppel (1999), Lucas (1988)), seriam cruciais para combater a pobreza, constituiria uma variável chave para explicar o perfil distributivo das sociedades (ver, por exemplo, Mincer (1958), Langoni (1972), Acemoglou (2012), (2002), etc.) e ajudaria a explicar os indicadores de felicidade auto-declarados dos indivíduos. Esses nexos teóricos e empíricos parecem bem sedimentados na literatura, ainda que não possam deixar de ser considerados argumentos que relativizem essa importância, especialmente no tocante à relevância da suposta relação de causalidade entre educação e crescimento e aos diferenciais de níveis auto-declarados de felicidade entre indivíduos e sua relação com os patamares de escolaridade atingidos.

Em geral, a educação, seguindo a tradição inaugurada por Becker, Mincer, etc., é identificada com a acumulação de conhecimentos, habilidades, etc. que tem impacto sobre a produtividade e, na medida em que esta está associada ao crescimento e aos salários, acaba tendo desdobramentos positivos sobre os níveis de renda da sociedade e dos indivíduos.

Se, diferentemente desta perspectiva, a educação é assumida como sendo a acumulação de sinais ou credenciais para se diferenciar dos concorrentes na disputa por vagas (posicionamento relativo no mercado de trabalho), os ganhos sociais (não individuais) dos investimentos em educação podem ser questionados. Neste caso, o Estado deveria prescindir de alocar recursos públicos na área, uma vez que as credenciais não teriam uma correspondente contrapartida em conhecimentos/competências/habilidades sócio-emocionais. Logicamente, a dicotomia acumulação de capital humano/acumulação de sinais pode não ser bipolar no conjunto. Existem fortes elementos teóricos e empíricos que induzem a pensar que a educação pode ser uma mistura (em diferentes proporções, segundo os países, períodos históricos ou segmentos do sistema educativo) de acumulação de conhecimentos/habilidades e da procura por agregação de credenciais.

Uma vez que o nosso objetivo consiste em refletir sobre uma suposta conveniência de intervenção estatal a fim de tornar os investimentos públicos e privados na acumulação de capital humano mais eficientes, vamos admitir que a educação, na sua totalidade ou parcialmente, consiste em atividades que contribuem para acrescentar conhecimentos/habilidades/competências, sejam eles cognitivos ou sócio-emocionais.

Dada a hipótese da educação pós-compulsória ser identificada como uma atividade que, no futuro, vai se traduzir em maior produtividade/salários, acompanhando princípios básicos da Teoria do Capital Humano, a freqüência escolar deve ser reconhecida como um investimento e não pode fugir dos banais critérios que determinam se uma aplicação financeira deve ou não ser realizada: o valor presente do fluxo de benefícios (objetivos, como salários, ou subjetivos, como status social) devem ser superiores aos custos (financeiros diretos, de oportunidades, de sacrifício por abrir mão de lazer, etc.). O balanço dessa relação depende de diversos fatores (taxa de desconto, por exemplo) e a sua concretização pode estar em função da existência ou não de restrições de crédito. Além de olhares meramente econômicos, a intervenção pública associada a essas duas variáveis (taxa de desconto e restrições de crédito) podem dizer respeito a aspectos de justiça ou igualdade de oportunidades.

Contudo, associando a educação a um investimento (abrimos mão do consumo hoje para elevar o valor presente do fluxo de renda futura), a utilização dos habituais instrumentos metodológicos que pautam a viabilidade de uma aplicação financeira é cabível. Mais especificamente, é incontornável estar familiarizado com dados sobre o presente e tentar esboçar o porvir. Observemos que o investimento em educação é uma atividade que deve levar em consideração horizontes temporais que podem se aproximar ao meio século. A quase trivial escolha de um curso em uma universidade pauta custos futuros (por exemplo, a probabilidade de ficar desempregado por longos períodos na sua vida ativa) e retornos vindouros (evolução dos rendimentos nos próximos quarenta anos) que, ex-post, quer seja desde uma perspectiva individual ou social, podem não ter sido as melhores escolhas.

Concretamente, os critérios econômicos para a escolha de um investimento em educação (um curso) exige conhecer os salários relativos de cada uma das alternativas factíveis, as possibilidades de emprego, as eventuais trajetórias profissionais, os possíveis cenários em termos de demanda futura devido, por exemplo, a choques tecnológicos, etc.. Os gostos e as facilidades de cada indivíduo em cada área devem logicamente ser variáveis levadas em consideração, especialmente no tocante aos custos individuais. Contudo, os gostos, vocações, etc. deveriam ser somente um dos aspectos a entrarem no cálculo, que podem ou não ser compensados pelas outras variáveis (futuros rendimentos, por exemplo).

Se imaginarmos um processo no qual o mercado alocaria de forma eficiente os recursos investidos na educação, além dos usuais supostos sobre a racionalidade do “agente” (neste caso o processo de escolha entre estudar ou não e o quê e o quanto estudar), o arranjo ótimo requereria (como no modelo de Arrow-Debreu) que o indivíduo tenha à sua disposição um conjunto amplo de informações sobre o presente (salários relativos, taxas de ocupação, taxas de desemprego, etc..), os cenários futuros e a flexibilidade ou graus de liberdade que cada escolha lhe proporcionará amanhã. Mesmo deixando de lado externalidades (que podem determinar que os custos/benefícios individuais sejam diferentes dos sociais) ou a pouco crível hipótese da “probabilização” das alternativas nas próximas décadas, não existem elementos que nos permitam concluir que, em cada momento do tempo, as pessoas possuam ou estimem esses parâmetros e, mesmo estando dispostos a pagar por eles, que exista um mercado específico para esses dados.

Logicamente, se poderia arguir que “mercado”, em cada momento do tempo, proporciona livremente (sem custos) parte desses sinais. Os salários relativos podem estar sugerindo que profissões estão sendo mais demandas que outras. As taxas de desemprego podem revelar com que conhecimentos/habilidades/competências é mais fácil encontrar emprego ou, em outros termos, os conhecimentos/habilidades/competências requeridas pelas vagas que são abertas e a quantidade de vagas vis-à-vis a oferta. Mas mesmo na suposição otimista que um indivíduo antes de sua decisão de escolher seu curso esteja de posse dessas informações, dificilmente a mesma configuração vá prevalecer pelos próximos 40/50 anos. Ele teria que ser capaz de prospectar (e, se somos mais sofisticados, “probabilizar” possibilidades).

Nada garante que todo esse conjunto de hipóteses se cumpra. Aliás, realisticamente podemos supor que muito poucas delas prevalecem no dia-a-dia. A tomada de decisões talvez obedeça a outros parâmetros: expectativas e tradição familiar, informações de amigos/colegas, disponibilidade de cursos, gostos, capacidades inatas, valores do entorno social, etc.. Parte desses parâmetros podem ser considerados como fazendo parte do modelo canônico. Os gostos e as habilidades inatas podem reduzir os custos (objetivos e subjetivos) do projeto de investimento em educação. Contudo, em outros casos (ambiente familiar/social, amigos, etc.) a fonte de informações pode não ser robusta ou estar viesada ou simplesmente não existir.

Essas limitações, nos processos individuais que pautam as escolhas de investimento em capital humano, tem custos, tanto privados quanto sociais. Por exemplo, a falta de aderência entre o perfil profissional requerido pelas vagas disponíveis e o contorno das habilidades/competências da oferta de trabalho tem como corolário uma alocação ineficiente da mão-de-obra e/ou sua subutilização (desemprego). Em termos técnicos, essa disfunção (mismatching) é usualmente mesurada através da posição da denominada Curva de Beveridge. Uma conseqüência seria, por exemplo, a sobrequalificação dos empregados, um fenômeno usual nas economias maduras.

Uma situação análoga à que estamos descrevendo pode ser observada no caso das políticas de emprego. O Sistema Público de Emprego proporciona aos beneficiários do seguro-desemprego informações sobre profissões/setores/áreas geográficas nas quais ele tem maiores possibilidades de ser contratado e, nesse sentido, pauta as ações (cursos oferecidos, intermediação, etc.) que tem como alvo cada desocupado. Ou seja, assume-se que os sinais de mercado (salários relativos, diferenciais geográficos nas taxas de desemprego, etc.) demoram ou sua disseminação é imperfeita. Nesse sentido, a intervenção pública ajudaria (“azeitaria”) o matching entre oferta e demanda.

Na educação, diversos passos foram dados nessa direção nas últimas décadas, especialmente a implementação e ampla divulgação de sistemas de avaliação, que proporcionaria informações sobre a qualidade dos cursos. Teoricamente, a qualidade de um curso teria impacto sobre o capital humano dos alunos e, via produtividade, nos salários no transcurso de sua vida profissional. Existem evidências que dão robustez empírica a essa suposta correlação. Ou seja, os alunos teriam informações sobre a qualidade do curso de um estabelecimento, referência que ajudaria na tomada de decisões.

Contudo, ganhos de eficiência macro seriam dilatados e frustrações individuais seriam reduzidas no caso de outros arranjos legais ampliarem o leque de informações públicas de fácil acesso. Por exemplo, os estabelecimentos poderiam divulgar os salários de seus egressos, as taxas de desemprego, as firmas/instituições nos quais foram empregados, etc.. Se o processo educativo é reduzido à dimensão econômica, sendo a educação assumida como investimento com custos e retornos, nada mais próximo a essa perspectiva que os MBA’s, cursos identificados como sendo um trampolim para melhores empregos ou para turbinar a progressão funcional. Geralmente pagos e muito caros, muitas instituições divulgam salários e tipos de ocupação de seus antigos alunos como forma de “vender” seu produto no mercado (ver, por exemplo, aqui, aqui ou aqui).

Essa maior disponibilidade de informações poderia ser crucial na hora da tomada de decisões, redundando em maior eficiência alocativa macro e maiores retornos individuais. Se a educação é definida como um investimento, as escolhas devem estar pautadas pelos usuais critérios que norteiam qualquer investimento e, nesse sentido, a disponibilidade de informações é vital. Nesse contexto, o Estado deveria assegurar esses referenciais, obrigando ou induzindo às instituições a divulgarem dados (salários de seus egressos, firmas ou setores onde foram empregados, tempo para encontrar uma ocupação, etc.) que subsidiem as escolhas. Seria conveniente que a eleição de um curso deixe de ser, exclusivamente, pautada por informações subjetivas de amigos/parentes, tradições, supostas vocações, etc.. Em um ambiente no qual o objetivo em elevar a produtividade parece ter se tornado prioridade absoluta, avanços nesse sentido complementariam outras iniciativas.

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

To be or not to be: as concessões aeroportuárias no Brasil e a situação da Infraero

Com o aumento da renda média dos brasileiros ao longo dos anos, houve expansão na demanda por passagens aéreas e na malha aeroviária brasileira. Contudo, os investimentos públicos em infraestrutura aeroportuária não acompanharam o crescimento do número de passageiros transportados, o que resultou na necessidade de concessões, visando uma melhor experiência para os usuários.

A primeira concessão realizada foi a de São Gonçalo do Amarante (RN), seguida da primeira rodada de concessões (Brasília, Guarulhos e Viracopos) e posteriormente outras duas rodadas foram realizadas concedendo os aeroportos de Confins (MG), Galeão (RJ), Eduardo Magalhães (BA), Pinto Martins (CE), Salgado Filho (RS) e Hercílio Luz (SC). Neste ano previa-se a concessão em blocos de 12 aeroportos nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, uma nova experiência em termos de formato de leilão e tamanho de aeroportos leiloados.

O crescimento do setor como um todo está diretamente ligado à demanda por passagens aéreas. O aumento de passageiros na aviação brasileira pode ser explicado pelo aumento de renda do brasileiro (gráfico 1) e a queda no preço das passagens aéreas (gráfico 2), entre outros. Porém, atualmente, as empresas conseguem influenciar a demanda por causa de promoções, diferenciação de tarifas e programas de fidelidade.

Gráfico 1 – Relação PIB per capita Brasil (USD) versus milhões passageiros transportados em voos domésticos,

Fonte: Anuário da Aviação  Civil (ANAC). Elaboração: Própria

Gráfico 2 – Evolução da Tarifa Aérea Média Doméstica Real (Preço real médio da passagem, R$) no 1º trimestre de cada ano, 2009 a 2018.

Fonte: ANAC. Elaboração: Própria.

Pelo lado da oferta, por sua vez, a aviação possui fatores de competitividade que representam fortes barreiras à entrada para companhias que desejam atuar no mercado. As companhias dominantes no mercado possuem hegemonia nas rotas mais rentáveis, por fatores como o maior número de horários disponíveis nos aeroportos para pousos e decolagens (slots). Além disso, os altos custos operacionais são também uma barreira que exige da companhia um poder de capital elevado para sanar os gastos de combustível e a manutenção das aeronaves – que são atrelados ao dólar – e representam mais da metade do custo total das companhias. O caso da Avianca é emblemático. Foi uma companhia que entrou no mercado depois das duas grandes líderes, não conseguiu as melhores rotas por conta dos slots já alocados e, aparentemente, possui menor escala de operação que as demais, dificultando sua inserção e atuação no mercado aéreo brasileiro, o que pode ter contribuído para a sua situação atual de desequilíbrio financeiro.

Trazendo o foco para a próxima rodada de concessões aeroportuárias, temos que essa se torna importante pela disparidade de tamanho entre os aeroportos já concedidos e os que ainda serão leiloados. Tal fato resulta na necessidade de ajustamento do modelo de leilão proposto pelo Governo Federal à realidade da demanda por esses aeroportos, uma vez que a finalidade das concessões não é apenas gerar receitas patrimoniais e aliviar despesas públicas, mas também permitir que as empresas obtenham receita para a execução dos investimentos dentro dos prazos e providenciem melhorias aos usuários, permitindo também a expansão do transporte aéreo.

Dessa forma, o modelo atualmente em pauta foi o de concessão em blocos, que visa o arremate de um conjunto de aeroportos pela mesma concessionária por um único valor de outorga. A ideia é que os aeroportos maiores, de maior rentabilidade, cubram a menor rentabilidade dos aeroportos menores, uma forma de subsídio cruzado entre os aeroportos. Foram, inicialmente (no governo Temer), criados três blocos que englobam os seguintes aeroportos:

  • Bloco Nordeste: Recife, Maceió, João Pessoa, Aracaju, Juazeiro do Norte e Campina Grande;
  • Bloco Sudeste: Vitória e Macaé;
  • Bloco Centro Oeste: Cuiabá, Sinop, Alta Floresta e Rondonópolis.

Existem inúmeras motivações para um Estado optar pela privatização ou venda de seus ativos. Dentre elas, estão: (1) aumentar a receita do Estado, uma vez que, em concessões, o ente privado paga uma taxa pelo direito à exploração e fornecimento de serviços públicos; (2) promover eficiência econômica, por meio da adoção de práticas e processos que reduzam os custos operacionais; (3) reduzir a interferência do Estado na economia, caso isso seja identificado como uma necessidade; (4) ampliar a base acionária do país, permitindo que um maior número de agentes participem de atividades econômicas outrora restritas aos governos; (5) promover condições para a formação de ambientes competitivos, por meio da abertura de mercados a um maior número de concorrentes; (6) submeter as empresas estatais a um ambiente competitivo; e, por fim, (7) desenvolver o mercado doméstico de capitais, com, por exemplo, a atração de investimentos estrangeiros. Acreditamos que alguns destes pontos já apresentaram avanços importantes no setor, após o início do processo de concessões. Para citar um exemplo de avanço recente, atualmente as companhias nacionais já podem ter até 100% de capital estrangeiro em sua composição.

Como o intuito do novo governo eleito é dar continuidade ao processo de concessões e privatizações no país, é fundamental percebermos as falhas e lacunas ocorridas no passado para que possamos aprimorar o modelo para o futuro. Uma das críticas feitas às primeiras rodadas de concessões de aeroportos foi a participação de 49% da Infraero. O intuito da companhia foi não perder participação nos grandes aeroportos brasileiros (que são os mais rentáveis), contudo, isso trouxe uma série de consequências maléficas para o resultado da empresa. A questão mais abordada é a situação dos funcionários que restaram após as concessões. Após a mudança de controle dos aeroportos, os funcionários tiveram a opção de seguir trabalhando no aeroporto como funcionários da Sociedade de Propósito Específico (SPE), entrar em um programa de demissão voluntária, seguir como funcionário da Infraero ou migrar para outra estrutura do Governo Federal. Como os funcionários da Infraero seguem um plano de carreira e o país vivia e ainda vive certa instabilidade econômica, não era racional deixar a companhia. Estima-se que um funcionário da Infraero recém-contratado receba cerca de R$2.000, o que é comparável ao salário pago no setor privado. Contudo, após 20 anos de permanência na companhia, os salários podem atingir R$ 10.000, o que não é pago na iniciativa privada. Assim, devido à expectativa dos aumentos e considerando a situação do país, muitos empregados decidiram permanecer na Infraero.

Observando a situação de forma geral, existe o seguinte panorama: a Infraero concedeu 51% dos seus maiores aeroportos e a totalidade de outros, o que causou redução na sua receita aeroportuária, porém houve recebimento de outorgas. Funcionários não desejam migrar para a iniciativa privada, acreditam que a instituição não vai falir por ser atrelada ao Governo Federal e permanecem recebendo aumentos por tempo de permanência na companhia.

Portanto, o que será da Infraero? Ela continuará existindo nos moldes atuais? Quais seriam as possíveis saídas? A companhia deve abrir capital? Isso poderia trazer aportes financeiros para a empresa. Mas será que, na atual situação dela, do governo, e do país, alguém estaria disposto a comprar ações da Infraero?

O modelo de concessões deve ser mantido (e ao final do contrato os ativos retornam ao governo para novo leilão) ou poderíamos partir pra um modelo de privatização (em que o ativo é de fato comprado e transferido e pertencerá ao ente privado ganhador do leilão)? Diante desta questão da Infraero, a possível vantagem da privatização seria que o passivo trabalhista fruto do processo poderia ser absorvido pela empresa ganhadora do leilão. Com isso, o governo teria uma preocupação a menos, em termos de custos. Por outro lado, precificar esses ativos de forma adequada poderia demandar tempo e também recursos, além de desgastes políticos.

Com a aproximação de novas rodadas de concessão e a situação da Infraero se deteriorando, é necessário um modelo de concessões que alivie o máximo possível as contas públicas e ao mesmo tempo permita rentabilização das operações em bloco. O Presidente Jair Bolsonaro liberou uma prévia dos blocos a serem supostamente concedidos em 2020, como pode ser observado abaixo:

Imagem 1 – Novas concessões previstas

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Fonte: Valor Econômico.

Os investimentos totalizariam mais de US$ 2,56 bilhões e a concessão contaria com a presença de dois grandes aeroportos brasileiros ainda não concedidos, Congonhas e Santos Dumont. Considerando o grande número de empregados nesses dois aeroportos, seria mais uma situação trabalhista complicada para a Infraero. Estaríamos vivenciando os momentos finais da Infraero? Ser ou deixar de ser, essa é a questão!


Autores:

Bernardo Mafra Mendes, 21 anos, Formado em Economia pela Universidade de Brasília, ex-diretor de projetos da empresa júnior de Economia (Econsult). 

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.

O Desafio de Acemoglu e Robinson

Em 2012 James Robinson e Daron Acemoglu lançaram o livro Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity and Poverty que foi um sucesso imediato, não só no mercado acadêmico, mas também no mercado editorial geral. A hipótese central do livro é que instituições, e não cultura, geografia, ou sorte, são a causa fundamental do crescimento econômico de longo prazo. Era essencialmente a mesma mensagem que algumas décadas de literatura da nova economia das instituições já havia desenvolvido (Douglass North, Ronald Coase, Oliver Williamson e Elinor Ostrom): que instituições abertas e inclusivas, caraterizadas por impessoalidade e rule-of-law e acompanhadas por freios e contrapesos sobre o poder do Estado, são imprescindíveis para que um país se torne verdadeiramente desenvolvido. Eles mostram através de inúmeros exemplos históricos e dados comparativos que somente um pequeno grupo de países em todo mundo conseguiu atingir este tipo de desenvolvimento, enquanto a grande maioria, onde prevalecem instituições extrativas e acesso limitado a mercados econômicos e políticos, falharam.

Com o sucesso do livro os autores foram convidados a dar palestras e apresentações em vários lugares diferentes. Na época, eu devo ter ouvido mais de uma dezenas de palestras via podcasts ou no Youtube. Dado o nível dos autores e sua segurança na exposição de seus argumentos, sempre havia a sensação de que o público estava convencido. Mas inevitavelmente, quando o moderador abria o microfone para a sessão de perguntas do público, vinha a mesma pergunta avassaladora que fazia muitos reconsiderar sua posição: “Mas então como vocês explicam a China? É uma ditadura, com instituições fechadas, extrativas e excludentes, e, no entanto, é o país que mais cresce no mundo há muito tempo e logo será o país mais rico do mundo.” Os autores sempre davam a mesma resposta, na linha desta argumentação em seu Why Nations Fail Blog:

When economic institutions take steps towards greater inclusivity — which has happened many times in history and is exactly what happened in China starting in 1978 — this can usher a rapid period of economic growth. Where political institutions come in is that inclusive economic institutions can emerge and encourage growth in the short run but cannot survive in the long run under extractive political institutions. It is for this reason that the rapid growth of China over the last three decades isn’t an exception to our theory.

E eles seguem com o seguinte desafio: Se a China continuar a crescer por mais várias décadas e chegar a níveis de PIB per capita comparáveis aos dos EUA e da Alemanha, mantendo o tempo todo o mesmo tipo de instituições políticas autoritárias e extrativas, então isto refutaria a sua teoria. É assim que deve ser a ciência, sujeita à falsificação pelas evidências. No entanto, naquelas palestras esta resposta dos autores não parecia convencer muitas pessoas. Afinal a China não parava de crescer e de deslumbrar o mundo com sua capacidade de exceder todas as expectativas. Talvez instituições sejam importantes, mas a China seja um caso especial que desafia as explicações convencionais.

Este ainda não é o momento de tirar a prova e ver quem vence o desafio. A transição da China ainda está se processando e não é possível ainda tirar conclusões definitivas. A China já está alcançando os EUA em termos de PIB nominal, mas ainda está mais ou menos no mesmo nível do Brasil em termos per capita. Como diz o desafio, trata-se de uma questão de longo prazo (várias décadas) e não de conjuntura. No entanto, pode ser interessante ver como estão evoluindo algumas variáveis da economia e sociedade chinesa para termos uma ideia de como vai a contenda até agora.

Não é preciso fazer muito esforço para argumentar que a trajetória ascendente da China continua forte. Sua economia continua crescendo a altas taxas independente de crises mundiais. Em janeiro deste ano um artigo de capa da The Economist explica How China Could Dominate Science. No mesmo mês uma nave Chinesa foi a primeira a aterrissar no lado escuro da lua. Dos 20 prédios mais altos do mundo 10 estão na China (11 se contar um em Taiwan). As companhias de tecnologia da informação da China já rivalizam as ocidentais, com o trio BAT (Baidu, Alibaba e Tencent) valendo atualmente acima de um trilhão de dólares.

Em novembro, de 2017 eu estive na China pela primeira vez, para uma conferência em Shenzhen. Nesta cidade, mais jovem do que Brasília, porém já com uma população de mais de 12 milhões de pessoas, eu quase me convenci de que Acemoglu e Robinson estavam errados. A cidade era imensa, moderna, agradável e bonita. Além disto, os anfitriões nos levaram para visitar o moderníssimo trem-bala que estavam prestes a inaugurar, ligando à cidade a Guangzhou em menos de 50 minutos (em vez de duas horas) Um país que tinha a capacidade de fazer cidades e infraestrutura assim certamente tornar-se-ia em pouco tempo um país desenvolvido.

Mas apesar de todo este deslumbre, havia alguma coisa errada. Demorou até que eu conseguisse perceber o que era, mas logo ficou claro: onde estão os pobres? Embora a China tenha bolsões de prosperidade, como Shenzhen, ainda é um país predominantemente pobre. O fato de não haver pobres em Shenzhen não era algo natural. Cidades de países pobres costumam ser feias e sujas exatamente por que os pobres migram para as cidades em busca de melhores oportunidades e serviços públicos. Se não havia mendigos ou favelas em Shenzhen não era por que eles não quisessem estar lá, mas por que lá há acesso limitado às cidades, algo que só pode ser mantido com mão de ferro. Da mesma forma, as ferrovias, hidroelétricas e prédios não deviam tanto à engenharia chinesa como à capacidade de construir sem ter que se preocupar com questões de direitos de propriedade, direitos humanos e maio ambiente.

Estas questões ilustram por que é tão difícil prever quem está vencendo o desafio. Por um lado, há diversas evidências de progresso, crescimento e prosperidade. Por outro, há desigualdade, exclusão e acesso limitado. Sempre é possível imaginar que um dos lados eventualmente irá prevalecer, extinguindo o outro. Talvez seja preciso primeiro crescer para depois redistribuir como afirmava Delfim Neto na década de 1970 e Ronald Reagan na de 1980 com trickle-down economics. Pode ser que democracia e direitos humanos sejam bens de luxo, cujo consumo só aumenta à medida que a renda suba suficientemente. Sob esta perspectiva, à medida que a população chinesa enriquecesse, surgiria uma grande classe média que demandaria voz, participação e rule-of-law.

Um artigo recente no The Economist nota que a mesma dúvida sobre a trajetória futura da China já existiu com relação à União Soviética. Nas décadas de 1950 e 1960 muitos observadores ocidentais, inclusive o eminente economista Paul Samuelson, achavam que a União Soviética estava mostrando uma forma superior de organizar a economia e que estava fadada a dominar o mundo. Assim como a China, a União Soviética atingiu maiores taxas de produtividade e de crescimento transferindo pessoas do campo para as cidades. Porém lá, este tipo de crescimento eventualmente se esgotou, e o efeito das instituições fechadas e extrativas foi exatamente o que as teorias institucionalista previam.

Seria a China diferente? Certamente há bastante diferenças. A China possui uma economia essencialmente capitalista e está integrada na economia global. Sabemos muito mais sobre a China hoje do que sabíamos sobre a União Soviética. Mas, e quanto às instituições políticas? Existe alguma evidência de alguma abertura política ou na direção de mais voz, inclusão e participação da população? Estes são os elementos chave na teoria do Acemoglu e Robinson, sem os quais, segundo eles, a China não poderia sustentar o crescimento recente.

Em um post não é possível considerar toda a evidência que seria necessário para resolver esta questão. Vejamos, no entanto, quatro fatos sobre a evolução recente das instituições políticas Chinesas, escolhidos, admitidamente, com um certo viés de confirmação. São todos elementos que refletem mudanças recentes nas instituições políticas Chinesas:

  1. Em Fevereiro de 2015 o Partido Comunista Chinês eliminou a regra que limitava o Presidente a um mandato único. Isto permitirá a Xi Jinping permanecer indefinidamente no poder. Como a China já era uma ditadura, pode não parecer uma mudança particularmente importante. Outras mudanças simultâneas, porém, sugerem uma centralização e endurecimento contrários à aparente abertura que muitos desejavam ver. Em outubro de 2017, a Constituição do Partido Comunista adicionou um novo princípio aos 23 já existentes. O novo princípio estabelece o conjunto de normas de comportamento e crenças conhecido por Xi Thought, como guia para o socialismo com características chinesas para a nova era. Já existe um instituto de Xi Jinping Thought com o objetivo de desaminar este conhecimento nas universidades e entre a juventude. Four legs good, two legs bad! Four legs good, two legs bad!
  2. Hoje o setor privado é responsável por 80% da produção industrial chinesa. Embora o Presidente Xi costume enaltecer este setor em seu discurso, tem havido uma clara tendência de aumento da interferência e usurpação do Estado em firmas privadas, muitas vezes para favorecer as grandes empresas estatais. Isto inclui desde interferência política nas decisões das firmas, pressão para incluir membros do Partido Comunista nas diretorias e até a compra forçada da empresa. O fenômeno é tão prevalecente que tem até um nome; guojin mintui, ou seja, ‘o Estado avança enquanto o setor privado se retraí’. Está certo que isto costuma acontecer em vários países. O Brasil, por exemplo, tem sua própria versão de guojin mintui tupiniquim. A questão de quão nocivo isto possa ser para a eficiência, investimento e inovação no longo prazo talvez dependa da existência de salvaguardas e freios e contrapesos que os empresários e investidores possuam para recorrer contra abusos e injustiças (Levy and Spiller, 1996). No Brasil existe um judiciário independente, uma imprensa livre, um ministério público atuante, uma sociedade civil organizada e participante, e eleições periódicas. Na China não há nada disso.
  3. O crescimento econômico chinês gera prosperidade e confortos, mas naturalmente tem os seus descontentes. O Partido Comunista permite protestos de massa, e eles existem em grande número. Não se tem números muito claros pois o Ministério da Segurança Pública parou de divulgar dados e vários pesquisadores e ONGs que tentam documentar os protestos costumam ser presos ou reprimidos. Em geral, os protestos permitidos são aqueles que não são percebidos como ameaça, em particular protestos que não tem alcance nacional. O Partido Comunista até encoraja protestos locais – muitas vezes relacionados à propriedade da terra, poluição ou escolas – como uma forma de controlar e monitorar políticos locais.
  4. A China construiu mais arranha-céus em 2018 do que qualquer outro lugar no mundo ou da história de acordo com o Council of Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH). São 88 prédios de mais de 200 metros. Isto pode parecer uma coisa boa. Existe porém uma maldição dos arranha-céus (skyscraper effect) segundo a qual a construção de arranha-céus em um país costuma levar a recessão. Esta regularidade empírica foi notada primeiro pelo economista Andrew Lawrence em 1999. Não se trata de superstição ou mandinga. O efeito atua através de distorções nos mercados de crédito, capital, terra e trabalho, além do gasto público, assim como a realização de Olimpíadas costuma deixar um contra-intuitivo legado negativo nos países hospedes.

Possivelmente, daqui a cinco ou dez anos iremos olhar para trás e estes quatro pontos terão sido pequenos percalços eventualmente superados por uma China próspera, dominante e democrática. Se este for o caso, Acemoglu e Robinson não terão sido refutados. As instituições políticas terão mudado e permitido que um crescimento de curto prazo se tornasse desenvolvimento de longo prazo. Se, porém, estes quatro indícios recrudescerem e forem seguidos de outros desenvolvimentos semelhantes, e isto provar ser um empecilho à transição chinesa, mantendo o país em uma armadilha da renda média (middle-income trap), eles não terão sido refutados. Façam as suas apostas.

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Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

Monopoly Digital

Todos conhecem o Monopoly, um dos jogos de tabuleiro mais famosos no mundo, no qual o objetivo é obter o monopólio das propriedades. Também é de conhecimento geral o fato de as tecnologias estarem transformando o planeta. Nesse contexto, é importante evidenciar a concentração nos mercados digitais, nos quais tem-se observado o surgimento de um monopólio (ou melhor, um oligopólio) digital.

Uma pergunta que surge é por quê esses mercados estão sujeitos à concentração. Essa é uma questão delicada, sendo difícil dar respostas concretas. No entanto, existem algumas evidências que podem ajudar a explicar o alto grau de oligopolização.

A própria estrutura dos mercados digitais pode fornecer insights para se responder a esta pergunta. Isso porque muitos dos modelos de negócios presentes na Economia Digital se dão na forma de plataformas, isto é, as empresas atuam como matchmakers entre diferentes grupos de usuários. O mecanismo de busca do Google, por exemplo, possui dois tipos diferentes de usuários: aqueles que procuram, os “pesquisadores”, e aqueles que anunciam, os anunciantes. Assim, o algoritmo do Google seleciona para você os anúncios que ele entende que serão do seu gosto.

Mas o que isso tem a ver com concentração? Em se tratando de plataformas, há uma forte influência do chamado efeito-rede. Pense no Monopoly e no Banco Imobiliário, dois jogos de tabuleiro similares. Se você pode jogar os dois, é possível que você seja indiferente entre um e outro. Entretanto, se seus amigos estão jogando Monopoly, você também escolherá jogar este jogo, pois você não quer ficar sozinho (e não existe um modo solo). O efeito-rede atua de maneira similar ao modo em que a escolha do jogo foi feita. Quanto mais pessoas estão presentes em uma plataforma, mais capacidade ela tem de atrair novos usuários, além do que, estas ficam numa posição melhor quando o número de participantes na plataforma aumenta.

Voltemos para o caso do Google. Quanto mais pessoas pesquisando, mais felizes ficam os anunciantes, pois assim eles atingirão um maior público. E, pelo outro lado, quanto mais anunciantes, mais felizes ficam os “pesquisadores”, pois mais específicos serão os anúncios a eles mostrados. Então por que você usaria o Bing? Viu, o efeito-rede é real!

Outra possível explicação para a concentração nos mercados digitais se dá pela presença de economias de escala. A estrutura de custos de empresas como o Google e Facebook, por exemplo, possui uma proporção de custos fixos muito superior à proporção de custos variáveis, já que esta envolve principalmente sistemas de armazenamento e gerenciamento de dados, servidores, redes privadas super-rápidas, além de datasets, sendo pequeno o custo marginal associado à entrada de um novo usuário na rede. Isso acaba dificultando a entrada nesses mercados, pois apenas o investimento inicial para se obter todos esses recursos seria altíssimo.

Um fator fundamental para as plataformas digitais são os dados, o insumo básico desse mercado. O custo de se obter dados para iniciar um novo empreendimento na Economia Digital é muito alto: ou você, de alguma maneira, atrai um imenso número de usuários para a sua plataforma, conseguindo, então, os preciosos dados, ou você tenta comprar esses dados de outras plataformas, que podem acabar negando a venda, ou então cobrar (muito) caro.

As firmas dominantes desse mercado usam suas gigantescas quantidades de dados a seu favor. Isso se dá pelo fato de muitos dos competidores prospectivos operarem dentro das grandes plataformas, gerando, então, dados que são processados pelos sistemas daquelas empresas. Assim sendo, os gigantes podem dotar-se de seus instrumentos para oportunamente tomar ações preemptivas de modo a evitar a competição, seja criando um produto ou serviço similar, seja comprando o concorrente (por isso, é notória a quantidade de fusões e aquisições na Economia Digital).

Outra razão para a concentração se dá pelo alto custo de mudança entre plataformas. Digamos que você esteja jogando Monopoly e já é dono de uma quantidade considerável de propriedades. De repente, você deseja jogar Banco Imobiliário. O problema surge quando você percebe que não é possível transferir suas propriedades de um jogo para o outro. O mesmo ocorre quando se vai realizar a mudança entre plataformas. Se você deseja se mudar do Facebook para uma nova rede social, você não mais terá os seus amigos, fotos nem posts, o que acaba desincentivando essa transição.

Assim como no Monopoly, na economia também existem regras a serem seguidas. Por ser uma área relativamente nova e altamente dinâmica, a Economia Digital carece de regulamentação e intervenção por parte das autoridades competentes. Somente nos últimos anos esforços maiores têm sido empreendidos a fim de se estabelecer maior controle sobre esses mercados (veja o GDPR na Europa, por exemplo). Como, por muito tempo, houve um enorme vácuo normativo e regulatório, as grandes firmas puderam estabelecer as regras do jogo, imputando padrões privados e dificultando, assim, a participação de novos players.

Aqui foram citados alguns dos possíveis motivos que levam à concentração em mercados digitais. Como as causas já foram elencadas, pode-se, então, apontar para os órgãos reguladores medidas com potencial para estimular a competição, de modo a reduzir as perdas que são trazidas à sociedade e à economia devido à presença de oligopólios digitais. Entretanto, este assunto ficará para um futuro post.

 João Pedro Arbache é estudante de Economia na UnB. É membro do PET (Programa de Educação Tutorial) – Economia, e ocupa o cargo de Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento na Econsult.

A economia do Distrito Federal de acordo com o PIB

O Distrito Federal possui um perfil econômico diferente do resto do país, por ser capital federal, por ser unidade federativa e município ao mesmo tempo (Brasília). O reflexo na economia dessa condição institucional pode ser observado em diversas informações e estatísticas, entre elas o Produto Interno Bruto (PIB) da região. O texto abaixo tem por objetivo expor algumas características econômicas do Distrito Federal, a partir da análise da evolução de seu PIB – estimado, todos anos, pelo IBGE em parceria com a CODEPLAN.

A partir da comparação da evolução do PIB do Distrito Federal com o PIB brasileiro ao longo do tempo é possível identificar um padrão de comportamento da economia regional: o Distrito Federal se mostra menos reativo[1], tendo maior crescimento quando a economia nacional desacelera ou entra em recessão. Um dos resultados dessa maior estabilidade é que o PIB do DF, entre 2002 e 2016 teve uma variação acumulada maior, de 57,4% (média de 3,3% a.a.), frente a do país, de 40,6% (média de 2,5% a.a.).

Para compreender um pouco melhor esse menor dinamismo da economia distrital frente à nacional, pode-se decompor a variação anual do PIB do DF em grandes setores de atividade econômica. Para tanto, se utilizou o Valor Adicionado Bruto (VAB) dos setores e a análise gráfica permite inferir que há diferenças substanciais entre os grandes setores em termos de comportamento.

Em números, enquanto a série de variação percentual do VAB do setor de Serviços de 2003 a 2016 registrou um desvio-padrão relativo de 0,6, a da Indústria registrou 3,9, e a da Agropecuária, 6,7[2]. E, assim como no caso anterior, o PIB que apresentou maior estabilidade foi o que mais cresceu. Desta forma, o setor de Serviços acumulou, em 14 anos, variação de 57,6% no período, a Indústria, 25,3% e a Agropecuária, 15,9%.

Esse resultado aponta para o setor de Serviços como responsável pelo desempenho do Distrito Federal. Fato que é comprovado pela sua participação, de 94,9%, no VAB do DF. A análise gráfica faz um comparativo da composição dos grandes setores no VAB entre DF e Brasil, revelando as diferenças do perfil econômico do DF em relação ao perfil nacional.

Há uma pequena participação da Agropecuária, devido ao seu pequeno território, de forma que Brasília é abastecida em boa parte de seu consumo alimentício, por alguns municípios do entorno da região.

Já a participação da Administração Pública no DF, de 44,6%, advém de seu caráter de capital federal do Brasil, sendo sede do governo central, os ministérios e todos os organismos supremos da administração do Estado. Uma consequência de ser uma região construída para ser um centro provedor de serviços públicos é possuir uma economia de serviços que atua de forma direta ou indireta na complementaridade desses serviços. Este é um dos motivos pelo qual o setor continua a ser preponderante na economia, com 50,3% de participação, mesmo quando se exclui o VAB da Administração Pública.

Pode-se, por exemplo, observar que a participação dos segmentos privados do setor de Serviços ao longo do tempo cresceu 2,4pp em 2016 frente a 2010[3]. Os principais segmentos que auxiliaram o avanço do setor privado de Serviços foram atividades financeiras, de seguro e serviços relacionados, que aumentaram em 2,5pp sua participação na economia distrital, e o educação e saúde privadas, com incremento de 1,9pp, quase dobrando sua fatia.

No primeiro caso, uma explicação está na obrigatoriedade da consolidação de uma gama de operações bancárias ser feita na sede dos bancos, e, sendo DF a capital do país, alguns bancos federais são sediados em Brasília, inclusive o próprio Banco Central. No caso da Educação e saúde privadas, cabe a menção de que o segmento mostrou avanço ao longo de todos os anos, até mesmo no ano de 2015, quando o DF registrou a primeira variação em volume negativa desde que seu PIB é estimado. Isto é, o segmento mostrou uma variação em volume acumulada, entre 2010 e 2016, de 45,2%, enquanto o VAB de serviços do DF acumulou no mesmo período de sete anos crescimento de 10,3%.

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De outro lado, enquanto o setor de Serviços vem crescendo em importância na economia distrital, a Indústria apresentando contração. No DF, a Indústria se caracteriza por forte presença da Construção e por Indústrias de transformação de bens finais. Entre 2010 e 2016, a Indústria perdeu 2,9pp de participação no VAB do DF. Somente a Construção perdeu 2,0pp, sendo um dos principais fatores do encolhimento da Indústria no DF.

Por fim, uma análise que também se faz interessante é olhar para o PIB pela ótica da renda. Isto é, a análise do PIB que mostra como o valor adicionado é apropriado pelo fator trabalho (remunerações), pelo governo (impostos sobre a produção) ou se é transformado em excedente operacional das empresas.

No quadro comparativo com o PIB brasileiro, o que se percebe é que mais da metade do PIB do DF é apropriado por meio de remunerações, sendo que o excedente operacional bruto equivale a somente 30% do PIB distrital. Este é um reflexo direto do perfil econômico da capital, principalmente, da alta participação do setor público.

Diante das características únicas que o Distrito Federal possui quando comparado ao país, a outras unidades da federação ou municípios, faz-se importante para lançar luz sobre sua região e sua economia. Desta forma, há ainda muitos outros estudos estruturais e de acompanhamento da economia do Distrito Federal que foram e/ou serão realizados pela CODEPLAN.

Com o objetivo principal de reunir em apenas um sítio todas as informações e análises do Distrito Federal que a equipe da CODEPLAN produz e dissemina, a Companhia lançou o Blog de Conjuntura Econômica do DF. Assim, caso tenha interesse em saber mais sobre a economia do Distrito Federal, ou acompanhar seu desempenho econômico, acesse:

www.economia.codeplan.df.gov.br

ou

www.conjunturaeconomica.codeplan.df.gov.br

    1. O desvio-padrão relativo (coeficiente de variância) da série de variação percentual ano sobre ano do PIB Brasil foi de 3,3, enquanto para o PIB do DF o número é de 2.4.
    1. A agricultura local é desenvolvida em pequenas áreas, dada a dimensão territorial do Distrito Federal. Qualquer fator que atinja as áreas de cultivo, como efeito climático, infestação de pragas ou aplicação de novas tecnologias gera impactos de grande magnitude na produção agropecuária.
  1. Com a mudança de referência metodológica em 2015, a série de PIB com segmentos mais desagregados foi estimada de 2010 em diante. De 2010 a 2002, a série foi apenas retropolada, não sendo possível usar a série histórica para analisar algumas das desagregações do setor de serviços.
O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é 39445943484_fdb43a6c82_b-1024x683.jpgClarissa Jahns Schlabitz é bacharel em ciências econômicas pela UnB, mestre e doutora em economia pela UFRGS. Atua como Gerente de Contas e Estudos Setoriais da DIEPS/CODEPLAN desde 2017. Possui experiência com assessoria econômica,  análise econômica e de conjuntura setorial e regional.

O Valor e a Medida do que não se Embrulha

O jornalista Elio Gaspari, na sua coluna na Folha de São Paulo do 2 de dezembro, criticando a falta de nomes ligados à produção na equipe de Paulo Guedes, apela a uma suposta definição do banqueiro Gastão Vidigal: “Produto é aquilo que se pode embrulhar. Pregos, por exemplo”. No parágrafo seguinte menciona uma exceção, um nome oriundo do setor privado (Salim Mattar), fundador da Localiza, empresa especializada (nas palavras do próprio Elio Gaspari) no serviço de locação de carros. A crítica de Gaspari está dirigida ao suposto predomínio, na equipe de Guedes, de funcionários procedentes do Setor Público (Mansueto Almeida, Waldery Rodriguez, etc.) sobre indivíduos ligados à oferta de bens que se “embrulham”. A dúvida fica por conta da inclusão de Salim Mattar, que não tem como berço o setor público mas, contudo, a oferta da firma que criou (serviços de locação de carros) não se “embrulha”.

Gaspari, subliminarmente, parece outorgar uma certa superioridade valorativa à oferta daquilo que se “embrulha”. Curiosa essa hierarquia, uma vez que hoje os países, na medida de suas possibilidades (disponibilidade de recursos humanos, tecnologia, capital, etc.) tendem a fugir da produção de “pregos”. As fronteiras, em termos de bem-estar material, se encontram em economias que, justamente, geram e exportam uma oferta de bens que não se “embrulham” e tendem a importar coisas que sim se “embrulham”, como pregos.

Contudo, a oferta composta por coisas que não se “embrulham” reintroduz um desafio já velho na economia: a questão da medição e valoração. O desafio não é novo e não está colocado, exclusivamente, na oferta intangível ou não-embrulhável (como é a quase maioria no caso dos serviços). Lembremos que o quesito da medição era o cerne da denominada “Controvérsia do Capital” ou “Controvérsia das duas Cambridges” no tocante à agregação dos bens de capital e a remuneração desse fator em função da sua produtividade marginal. Muito sinteticamente, o eixo da controvérsia era (e é): como adicionar um trator e um computador ? Simplesmente pelos seus preços de mercado, seria a resposta mais óbvia. Dada essa agregação, a contribuição marginal dessa magnitude seria sua retribuição (∂Q/∂K = r). Ocorre que o valor de K não pode ser seu custo, depende do retorno estimado. Mas se K (como agregado) depende de seu retorno, não podemos estimar a produtividade marginal para estimar o retorno: estamos diante de um referencial auto-circular. O debate não foi conclusivo, está em aberto. Em termos históricos (com Joan Robinson à frente), a Cambridge (UK) questionava o próprio conceito de função de produção e a Cambridge (US), especialmente Samuelson, propunha abordagens alternativas que mantinham o modelo canônico em pé.

Se a questão da medição e agregação é, no caso particular dos bens de capital que se podem “embrulhar”, polêmica, demanda amplos espaços de reflexão teórica e metodológica, o desafio é ainda maior quando estamos lidando com uma oferta que “não se embrulha”, como seria o caso da utilização do conhecimento na produção, de melhoras organizativas, de imagem, etc., ou seja, ativos intangíveis. Percebamos a magnitude do desafio. No caso de um trator temos uma dimensão física, concreta, que devemos quantificar monetariamente. Quando estamos em uma dimensão não tangível, devemos lidar com a reputação de uma firma, o prestígio de uma marca, uma forma de organização, etc. que devemos mesurar em termos de magnitudes de potenciais trocas. O ponto é: como medimos e como é remunerado essa dimensão não tangível?

A questão da medição é crucial uma vez que, se a principal alavanca para transitar de um país de “classe média” (como é o Brasil hoje) rumo ao clube das nações avançadas passa por quesitos não tangíveis (que não se “embrulham”, como educação, formas de organização, incentivos, I+D, etc.), se torna necessário algum tipo de indicador para avaliar e direcionar políticas públicas. Por exemplo, hoje a relação entre investimento e PIB é assumida como um parâmetro crucial para determinar o crescimento potencial. Contudo, nesse investimento só é considerada a oferta que se pode “embrulhar”. Como contabilizar o conhecimento incorporado nas máquinas, na organização das firmas, nos processos, na conduta dos trabalhadores, etc.? Como medir o conhecimento acumulado em firmas e instituições? Como medimos e contabilizamos o capital humano que os assalariados acumulam nos seus anos de experiência nos seus empregos?

A tentação é assumir que a medição/valoração da oferta não-embrulhável pode ser realizada com os mesmos instrumentos metodológicos que o capital físico. Lembremos que uma boa e consensual definição de investimento consiste em determinar quanto abrimos mão do consumo presente para expandir o consumo futuro. Nesse sentido, reduzir o trabalho de jovens hoje para possibilitar a freqüência ao sistema escolar, a fim de elevar sua produtividade no futuro, deve ser considerado um investimento que mereceria receber o mesmo status que a construção de um porto. Contudo, o problema pode ser mais complexo quando, por exemplo, em um país (como é o caso do Japão) os vínculos trabalhistas são mais estáveis (menor rotatividade) e essa característica permite elevar a qualidade (produtividade) da mão-de-obra. O desempenho da PEA (População Economicamente Ativa) pode ser mensurado, não unicamente pela quantidade e qualidade da educação recebida no sistema escolar, senão que, também, pela qualidade das trajetórias profissionais. Os contornos institucionais das firmas em cada país (práticas, processos, formas de remuneração e incentivos, valor das marcas, etc.) parecem constituir fontes de capital intangível com desdobramentos nos níveis de produtividade (ver, por exemplo, os artigos de Cummins; e Lev & Radhakrishnan). Aqui estamos diante das mais diversas nuances que são difíceis de delimitar, medir, valorar. Por exemplo, uma firma pode comprar um novo equipamento, mais desenvolvido tecnologicamente. O provedor pode incluir, no pacote, os serviços de formação dos assalariados da firma compradora, sendo este último um capital intangível e de difícil medição. Outras vezes, a valoração pode utilizar metodologias mais clássicas. Por exemplo, um investimento em I&D pode ser valorado seja pelo seu custo seja pelo valor presente do fluxo futuro de benefícios. Neste último caso, porém, se vai requerer a definição de um horizonte temporal, tarefa não trivial.

Contudo, as dificuldades de medição nos “não embrulháveis” estão no próprio DNA. Como contabilizar, nas Contas Nacionais, o investimento realizado para elevar o valor da marca de um produto? A valoração deste tipo de bens (não tangíveis) já merece esforços de reflexão no âmbito do paradigma mainstream. Ou seja, não é um programa de pesquisa que deva, necessariamente, fazer jus a um carimbo de “heterodoxo”. Existem elementos para afirmar que, em certas economias (EUA, por exemplo) o investimento em intangíveis supera o investimento tradicional. Em geral, quanto maior a importância dos intangíveis no investimento total maior será a importância do capital humano, da inovação, da produtividade, etc. na explicação da performance de uma economia e, nas modernas abordagens, esses parecem ser os nutrientes que permitem fugir de um cenário de estagnação secular no longo prazo.

Estes problemas se agregam a desafios mais antigos e que já receberam amplo tratamento na literatura. Por exemplo, os serviços de saúde. Se uma operação de ponte de safena hoje tem uma taxa de sobrevivência de mais de 90% e uma excelente qualidade de vida posterior, como comparar esse “serviço” (não embrulhável) com a mesma operação feita há 50 anos, quando a taxa de sobrevivência era de 20% (exemplo hipotético) e a qualidade de vida no pós-operatório sofrível. Estamos falando do mesmo produto (operação hoje e há 50 anos)? Neste post direcionamos a nossa atenção ao investimento, uma vez que existe consenso sobre uma das diversas restrições que dificultam a retomada do crescimento no Brasil. Limitar a nossa atenção à clássica relação investimento de “embrulháveis”/PIB, com certeza, deixa fora uma série de fatores que talvez sejam tão ou mais importantes que os tangíveis. Quiçá essa seja uma tarefa inglória e a contribuição dos não embrulháveis continue sendo contabilizada como sendo a PTF (Produtividade Total dos Fatores, denominada, adequadamente, como sendo o tamanho de nossa ignorância) pela nossa incapacidade de dar valor a singularidades tão vagas como capital social, instituições, valor de uma marca, etc. Contudo, seria bom sermos conscientes de nossas limitações.

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Seinfeld e a Economia de Serviços

Muitos leitores deste blog devem conhecer a série de comédia Seinfeld, que foi ao ar entre 1989 e 1998. Segundo a Wikipedia, esta série é considerada “uma das melhores e mais influentes sitcoms jamais produzidas, tendo sida ranqueada entre os melhores programas de televisão de todos os tempos por publicações como a Entertainment Weekly, Rolling Stone, e TV Guide.” A Guilda de Escritores da América escolheu a série como a segunda mais bem-escrita de todos os tempos (após The Sopranos). Uma rápida pesquisa no IMDb, site de dados e informação sobre filmes, televisão, vídeo e games, que permite que os usuários criem suas próprias listas de melhores programas de todos os tempos, mostra o impacto que a série teve na cultura popular mundial.

Mas o que isto tem a ver com a Economia de Serviços? A série é conhecida por ser ‘um programa sobre nada’. Os personagens basicamente se encontram no apartamento em Nova Iorque do protagonista Jerry Seinfeld e conversam sobre trivialidades do dia-a-dia ou seguem suas rotinas diárias onde nada de particularmente importante parece acontecer. Nenhum dos personagens tem características ou personalidades fora da média: não são particularmente feios ou bonitos, amáveis ou deploráveis, e são medianamente hedonistas, preguiçosos e centrados em si mesmos como a maioria das pessoas. Então novamente a pergunta: o que uma comédia sobre nada, ou sobre as miudezas da vida diária tem a ver com este blog?

Talvez um breve resumo de alguns dos episódios mais memoráveis trará algumas dicas.

No episódio ‘Soup Nazi’ (S07E06) os personagens vão à uma loja de sopas extremamente popular, com filas na porta, mas onde o proprietário é autoritário e impaciente, capaz de se negar a vender a sopa caso o cliente não sega à risca a peculiar etiqueta: manter a fila em ordem, não fazer perguntas, não falar desnecessariamente, não elogiar ou criar qualquer outra comoção. No episódio ‘The Alternate Side’ (S03E10) Jerry está na locadora de veículos onde, embora ele tenha reservado um carro médio, a loja está sem carros médios e querem lhe dar um compacto. Em ‘The Understudy’ (S09E24) Elaine (amiga do Jerry) acha que as manicures Coreanas estão falando mal dela quando conversam entre si em coreano (e sim elas estão). Em ‘The Pothole’ (S08E16) Elaine quer encomendar um delivery de um restaurante Chinês especial, mas seu apartamento fica uma rua além da fronteira para a qual eles entregam, obrigando-a a fingir ser a faxineira do prédio da frente para enganar o entregador. Em ‘The Smelly Car’ (S04E21) um valet com odor corporal extremo deixa o carro do Jerry fedendo tanto que nem lavagens especiais resolvem. Com certeza leitores se lembrarão de vários outros exemplos.

O que todos estes episódios têm em comum é o papel central de relações entre provedores de serviços e os clientes que estão sendo servidos. Não é coincidência que uma série que trata da rotina diária de pessoas comuns nas grandes cidades acabe sendo também uma série sobre a ubiquidade de relações entre provedores e clientes. Dado o elevado nível de especialização na sociedade moderna, cada indivíduo acaba se engajando diretamente em um conjunto de ocupações e tarefas cada vez mais estreito e se volta a outros indivíduos e firmas para obter a variada gama de outros bens e serviços de que precisa, tais como sopa, locação de veículos, manicure, comida chinesa, e estacionamento. Sob esta perspectiva, seria quase impossível fazer uma serie sobre a vida contemporânea sem que esta estivesse, assim como Seinfeld, totalmente embrenhada por relações de serviços.

No entanto, os escritores de Seinfeld tiveram a sensibilidade de perceber uma sutileza sobre estas relações que pode não ser imediatamente óbvia para a maioria dos espectadores. As situações apresentadas na série não se limitam a retratar superficialmente serviços sendo demandados e ofertados pelos personagens. Em vez, o foco é, de maneira bastante perspicaz, serem essas relações frequentemente envoltas em conflito, decepções e frustrações. Existe uma tensão latente em cada transação de serviço. Quando Jerry e Elaine são convidados para um jantar e passam em uma confeitaria para comprar um bolo de presente, eles esquecem de pegar uma senha e acabam perdendo o último babka de chocolate¸ levando a desgosto e arrependimento (The Dinner Party S05E13). No banheiro de um restaurante Jerry vê que o cozinheiro não lavou as mãos e depois, constrangedoramente se recusa a experimentar a pizza especialmente preparada para a sua mesa (The Pie S05E15). Em uma livraria George, amigo de Jerry, leva um livro para o banheiro e é depois obrigado a comprar o livro (The Bookstore S09E14).

Após assistir algumas temporadas de Seinfeld o espectador se convence que toda relação de serviços é uma potencial fonte de atrito. Uma forma econômica de entender este fenômeno está na percepção de que estas trocas necessariamente envolvem custos de transação e direitos de propriedade incompletos. Para adquirir um serviço, há todo um processo de busca, avaliação, negociação, matching, feedback, etc. que é repleto de incertezas e assimetrias de informação. Por mais que existam intermediários, reguladores e apps dedicados a resolver estes dilemas, alinhar expectativas, e dirimir conflitos, a relação envolve contratos incompletos e continua sujeita a surpresas e consequências não-intencionadas. Um cliente em uma mercearia tem o direito de experimentar uma uva? E se forem dez uvas? Pode-se apertar os tomates? Até que nível de força é aceitável? Por mais que se estabeleça normas formais e informais, alguns direitos de propriedade sempre estarão mal especificados e, portanto, no domínio público. Tudo isto é fonte de conflitos, pendengas e discussões, levando às situações típicas de Seinfeld.

Outra ótica pela qual se pode analisar a questão é pela psicologia social. A relação de serviço é muito mais que uma mera transação comercial. Ela envolve expectativas que costumam não ser atendidas, não somente com relação ao serviço em si, mas principalmente sobre o que o comportamento do outro revela sobre como somos percebidos e avaliados pelos outros. Um sorriso amarelo, uma má escolha de palavras, ou um olhar de canto de olho podem estar carregados de sentimentos de desprezo, desdém ou apequenamento. É como se cada transação fosse um julgamento de seu pertencimento e valor. Seu desconforto quando o garçom demora para trazer sua bebida não é tanto devido à sede, e sim ao que este comportamento lhe diz sobre a importância que o garçom lhe atribui relativo aos outros clientes. Afinal, aquele outro casal chegou depois e já está com suas bebidas. O episódio The Chinese Restaurant (S02E11) se passa inteiramente na entrada de um restaurante chinês enquanto Jerry, Elaine e George se desesperam na suspeita de que estão sendo passados para trás na lista de espera.

Adam Smith já havia intuído no século 18 que não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que devemos esperar o nosso jantar, e sim do seu interesse próprio. Seinfeld nos mostra que a realidade é até pior. A nossa dependência de uma gama variada de serviços não só não pode contar com benevolência dos provedores, mas ainda deve aturar o seu desdém, menosprezo e antipatia. Ou seja, o que Hamlet de Shakespeare (no monólogo “Ser ou não ser”, ao considerar se matar devido a este estado de coisa) classificou como the whips and scorns of times, ou seja, todas as humilhações da vida:[1]

For who would bear the whips and scorns of times

Th’ oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,

The pangs of despised love, the law’s delay,

The insolence of office, and the spurns

That patient merit of th’ unworthy takes …

A beleza do mercado é que apesar de tudo isto, as coisas ainda funcionam bem e no final das contas podemos ser felizes, contanto que encaremos com naturalidade os atritos inevitáveis das relações de serviço.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

  1. Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
    O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
    Toda a lancinação do mal-prezado amor,
    A insolência oficial, as dilações da lei,
    Os doestos que dos nulos têm de suportar
    O mérito paciente, quem o sofreria,
    Quando alcançasse a mais perfeita quitação
    Com a ponta de um punhal?

    https://www.pensador.com/frase/NTcxODg2/

Produtividade nos Serviços, Emprego e Desigualdade

Existe o consenso segundo o qual, sob uma perspectiva de longo prazo, reverter a quase estagnação, nos últimos 30 anos, da renda per capita no Brasil passa por materializar aumentos de produtividade sem os quais a retomada do crescimento seria efêmera ou circunstancial.

Dentro desse contexto muito geral, a produtividade nos serviços ocupa, por diversos motivos, um lugar particular e mais polêmico. Várias são as circunstâncias que nutrem essa singularidade. Talvez a mais abordada na literatura diga respeito às potencialidades (ou ausência de potencialidades) do setor serviços, por características intrínsecas ao mesmo, em incrementar sua produtividade. No caso de assumir uma hipótese pessimista, o desfecho natural seria a denominada “doença de Baumol”, circunstâncias nas quais os salários setoriais se elevariam sem a correspondente elevação na produtividade, com desdobramentos nos preços relativos, inflação, etc. Já abordamos em outro post deste blog (https://bit.ly/2MWI36M) o caráter simplista e reducionista desta interpretação, uma vez que a sua construção requer assumir que os ganhos de produtividade estão concentrados, exclusivamente, na indústria de transformação. Abstraindo esta possibilidade, a questão da produtividade nos serviços volta a recolocar-se e integra um dos quesitos a ser pesquisado dentro do debate que tenta identificar os gargalos a serem superados para a retomada do crescimento. Nesse sentido, a literatura no Brasil é ampla e consensual (podemos citar, a título de exemplo, Arbache (2015), Veloso; Cavalcanti; Matos; Pereira Coelho (2016)): a produtividade dos serviços no Brasil acompanha a estagnação da produtividade da economia em geral e está situada em um nível bem distante do patamar dos países mais desenvolvidos e mesmo de nações com desenvolvimento mais próximo.

Contudo, a questão da produtividade nos Serviços não está, exclusivamente, associada às questões que dizem respeito ao longo prazo. Aspectos pertinentes ao ciclo de curto prazo também não estão dissociados das possibilidades de o setor de serviços elevar sua oferta mediante a utilização mais eficiente dos insumos. No recente ciclo inflacionário (2010-2016) uma particular atenção foi dada à alteração dos preços relativos em favor dos serviços e, na evolução de seus preços, era identificada uma das fontes do não cumprimento das metas inflacionárias (Arbache (2016)). A questão é complexa e não pode estar restrita a uma suposta inelasticidade da oferta no curto prazo.

Contudo, matizes estruturais e conjunturais podiam estar se agregando (Menezes Filho (2013)). A primeira década dos anos 2000, com suas especificidades (um ciclo histórico no qual o aquecimento era dinamizado pelo aumento do consumo, dos salários, especialmente os próximos ao salário mínimo, e dos benefícios sociais), pode ter tido um particular impacto sobre a demanda por serviços (Matos dos Santos et. al. (2018)). Lembremos, por outra parte, que uma elevada elasticidade renda da demanda de serviços seria uma característica do crescimento, independentemente da estratégia ser ou não wage-led growth (Clark (1957)).

Dessa forma, a questão da produtividade nos serviços se coloca tanto a partir de uma perspectiva de longo prazo (objetivo de elevar a renda per capita potencial) como de curto prazo (administrar um aquecimento do nível de atividade com mínimos impactos sobre os patamares de inflação). Inclusive, com a crescente incorporação na oferta da indústria de transformação de componentes oriundos dos serviços, a própria produtividade do setor industrial dependeria da eficiência do terciário (no mínimo de uma parte dele, aquele que o complementa).

Dentro desse contexto geral, um recente documento do Departamento de Pesquisas do Banco de Investimento Natixis (https://bit.ly/2EGniYu) introduz uma perspectiva original, uma vez que relaciona a produtividade do setor serviços com desemprego da força de trabalho com pouca qualificação e os indicadores de desigualdade. O referencial para a reflexão são dois países (Japão e França), dois modelos diferentes, sendo que em um (Japão) a produtividade dos serviços seria baixa e no outro (França) elevada.

No caso do Japão, a produtividade na indústria de transformação seria tão elevada que sua competitividade não seria afetada pelo fraco desempenho dos serviços. Essa competitividade do setor secundário fica evidente quando o referencial é o indicador de saldo (positivo) do comércio de bens industriais com o mundo, que atinge 4,5% do PIB. O emprego industrial pode ser caracterizado como residual (15% dos ocupados), mas sua produtividade é crucial no equilíbrio do setor externo. Os salários do setor industrial são, em média, 20% superiores aos observados nos serviços.[1] Aqui, porém, temos uma hipótese não explícita na análise dos pesquisadores do Natixis: essa diferenciação entre rendimentos requer assumir que ou o mercado de trabalho é segmentado (hipótese plausível dada a forma de gerenciamento dos recursos humanos nas grandes firmas japonesas) ou estamos falando de qualidades de mão-de-obra diferentes (escolaridade/qualificação). A análise do banco sugere (implicitamente) que estamos diante de trabalhadores com capitais humanos diferentes, prevalecendo nos serviços um assalariado com baixa qualificação e, portanto, baixa produtividade. Assim, o setor de serviços seria intensivo em trabalho pouco qualificado ou sem experiência e, nessa perspectiva, as atividades terciárias se assemelhariam a “esponja”, absorvendo mão-de-obra não requerida pelo setor industrial e que poderia ser potencialmente vítima do desemprego. Os indicadores são, nesse sentido, eloquentes. A taxa de desemprego da PEA com 15 a 24 é de apenas 4,6% no Japão. Na França a mesma estatística assume um valor de 21,6%.[2]

Na medida em que, no país asiático, teríamos um mercado de trabalho diferenciado entre um espaço com bons empregos e elevada produtividade (indústria de transformação) e um outro com empregos de pouca remuneração e baixa produtividade, a dispersão de salários seria elevada. No Japão os assalariados com baixos rendimentos seriam quase 13% dos ocupados, na França 9%. [3] Esse fenômeno se aprofundaria no tempo na medida em que temos um setor com ganhos de produtividade dos quais se beneficiariam seus assalariados e um outro espaço com produtividade estagnada e fértil na geração de empregos.

Em termos mais gerais, a ineficiência nos serviços seria um “preço a ser pago” (um “imposto”) pela indústria de transformação para que a sociedade conviva com uma taxa de desemprego baixa ou, alternativamente, o “preço a ser pago” pelo setor industrial para a sociedade poder ofertar empregos que, não obstante serem de baixa produtividade, são aqueles que possibilitam absorver mão-de-obra com pouca qualificação. Uma vez que a produtividade na indústria de transformação japonesa é elevadíssima e crescente, sua competitividade externa (nos mercados mundiais) não estaria comprometida pelos custos a que é submetida.

No caso da França a lógica de funcionamento seria contrária: um setor de serviços muito eficiente, que não onera a indústria de transformação senão que complementa sua produtividade, sendo o custo uma elevadíssima taxa de desocupação daquelas pessoas com pouca qualificação. O percentual da força de trabalho francesa com menos de segundo grau completo que procura mas não acha um emprego é de 15,1% (2017), sendo de 10,8% a média dos países da OCDE. No caso dos indivíduos com ensino superior completo, a taxa de desemprego é de 4,7% (França) e 4,1% (média da OCDE). [4] Temos, assim, uma economia com elevada produtividade em todos os seus setores e que absorve mão-de-obra muito educada, sendo o ajuste realizado via taxa de desemprego da força de trabalho pouco qualificada.

Nesses casos, a desigualdade se alimenta pela qualidade do emprego (serviços), no caso do Japão, e pelo desemprego, no caso francês.

Essa discussão merece ser levada em consideração, no caso do Brasil, uma vez que, se as iniciativas para elevar a produtividade nos serviços chegam a se traduzir em resultados concretos, desdobramentos sobre a estrutura das taxas de desemprego e as desigualdades podem não ser desprezíveis. Logicamente, como sempre, seria interessante abrir o heterogêneo setor serviços entre aqueles nichos modernos, articulados com a indústria de transformação, integrantes dos circuitos mundiais de comércio, factíveis de incorporar as novas tecnologias, etc. daqueles subsetores associados a atividades para os quais as possibilidades de potenciais ganhos de produtividade são bem mais reduzidos e absorvem mão-de-obra com pouca qualificação. Seria interessante tentar identificar se nosso bom e velho trade-off entre equidade e eficiência não vai se insinuar por insólitas fendas.

Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

Bibliografia Citada.

Arbache, J., Produtividade no Setor Serviços, in De Neri; Cavalcanti (2015)

………………, O Problema de Inflação de Serviços. Blog Economia de Serviços. 14/01/2016. (Disponível em: https://bit.ly/2LuIu49; consultado em dezembro de 2018)

Clark, C.,The Conditions of Economic Progress. London: Macmillian. 1957.

Fernanda De Negri, F.; Cavalcante, L.R., (Org), Produtividade no Brasil: desempenho e determinantes . Determinantes. v. 2. Brasília: IPEA. 2015.

Matos dos Santos, D.H., et.al. A natureza da inflação de serviços no Brasil: 1999-2014 Economia e Sociedade. v. 27, n. 1. p.199-231. 2018.

Menezes Filho, N., Educação, produtividade e inflação. Valor Econômico. 19/04/2013. (Disponível em: https://bit.ly/2rLNB7j; consultado em dezembro de 2018).

Veloso, F.; Cavalcanti, P.; Matos, S.; Pereira Coelho, P., “Produtividade do Setor de Serviços no Brasil: Um Estudo Comparativo”. FGV. 2016. (Disponível em: https://bit.ly/2T3IECo; consultado em dezembro de 2018).

  1.  Fonte: Natixis/OCDE.
  2.  Fonte: Employment Outlook. OCDE. 2018. Os dados por nível de educação não são contabilizados para o Japão, uma vez que sua classificação (em termos de níveis de estudo) é particular e não possibilita uma comparação com os outros países da OCDE. Assim, utilizamos as faixas etárias para fins de confrontação e estamos supondo que as menores faixas etárias têm uma qualificação (dada pela experiência) menor.
  3. Fonte: Employment Outlook. OCDE. 2018. Esses dados correspondem ao ano de 2016. Segundo a classificação da OCDE, os baixos salários são definidos como sendo aqueles que correspondem a 2/3 do salário mediano.
  4.  Fonte: OCDE.

Blog de Conjuntura Econômica do DF

No dia 14 de dezembro a Companhia de Planejamento do Distrito Federal – CODEPLAN lançou o Blog de Conjuntura Econômica do DF. O Blog foi criado com o objetivo principal de reunir em apenas um sítio todas as informações e análises que a equipe da CODEPLAN produz e dissemina a respeito da conjuntura econômica do Distrito Federal.

A ideia é que o blog facilite o acesso do público alvo às informações econômicas que a CODEPLAN produz e/ou acompanha. A partir da maior flexibilidade que uma ferramenta como um blog oferece, espera-se incorporar dinamismo com informações e estatísticas que dizem respeito especificamente à economia do Distrito Federal, utilizando-se de elementos gráficos atualizados de maneira automática e instantânea.

Uma interface como a do Blog de Conjuntura Econômica do Distrito Federal permite reunir, por meio da criação e manutenção de uma lista de e-mails (mailing), profissionais interessados especificamente com os trabalhos de fundo econômico da CODEPLAN. Pode-se assim, disseminar informações, divulgar publicações e análises de maneira mais direta e efetiva.

Desta forma, caso tenha interesse em saber mais sobre a economia do Distrito Federal ou acompanhar seu desempenho ao longo do tempo, basta acessar:www.economia.codeplan.df.gov.br.


Clarissa Jahns Schlabitz é bacharel em ciências econômicas pela UnB, mestre e doutora em economia pela UFRGS. Atua como Gerente de Contas e Estudos Setoriais da DIEPS/CODEPLAN desde 2017. Possui experiência com assessoria econômica,  análise econômica e de conjuntura setorial e regional.

Programa Nacional de Banda Larga – Uma tragédia previsível

Em “Por que mais recursos, leis, dados, e peritos não significam melhores serviços ou políticas públicas?” o Professor Bernardo Mueller apresenta sua explicação para o fato de as políticas públicas sempre darem errado. Segundo Mueller, “Todas as fases de concepção, projeção, implementação e operação destes projetos e políticas públicas são permeadas de incompetência, ignorância, corrupção, interesse próprio e custos de transação”. Além desses problemas, Mueller também apresenta argumentos no sentido de que pelo fato de que as políticas públicas “se dão em contextos de sistemas complexos, que por sua natureza não podem ser controlados nem previstos”.

É a partir dessa referência do Prof. Mueller que pretendo aqui trazer uma breve análise de um caso concreto de política pública que falhou miseravelmente: o Programa Nacional de Banda Larga – PNBL.

Em 2010 o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu, por meio do Decreto nº 7.175, o Programa nacional de Banda Larga – PNBL. Esse programa, ainda vigente, tem objetivos muito nobres e acima de qualquer suspeita, como por exemplo, “massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga”; “reduzir as desigualdades social e regional” e “promover a geração de emprego e renda”.

Entretanto, entre a nobreza das intenções e a realidade dos fatos, o PNBL foi um exemplo de como não se construir uma política pública. Seja pelos erros de diagnósticos, seja pelos erros de execução, posso dizer com absoluta certeza que o PNBL, até hoje, continua a me surpreender com a sua ineficácia e desperdício de recursos públicos.

Antes de entrar nos detalhes dessa malfadada empreitada estatal convém explicar ao leitor a principal estratégia de execução desse programa.

Para alcançar os nobríssimos objetivos estabelecidos no art. 1º do referido Decreto o PNBL “ressuscitou”[1] uma antiga estatal supostamente privatizada em 29 de julho de 1998, a famigerada Telebrás.

A idéia central por trás do PNBL foi a de reestabelecer a Telebrás para a criação de uma rede nacional sob controle estatal que iria competir com as redes dos agentes privados no mercado de oferta de capacidade de transporte[2], de forma a indiretamente reduzir os preços dos serviços de banda larga ao consumidor final; além de criar uma rede privativa para o Governo, que estaria assim protegido de vulnerabilidades no mundo cibernético.

Ou seja, a refundação da Telebrás para consecução dos objetivos previstos no art. 1º do Decreto nº 7.175 se fundamentou num misto de intervenção estatal na economia para fomentar a competição e de ufanismo nacionalista. Assim, com o PNBL o Estado brasileiro teria uma rede nacional própria de telecomunicações, que garantiria a segurança nas comunicações do governo e ainda poderia concorrer com os agentes privados no mercado de banda larga.

A lógica econômica era a seguinte: como a Telebrás é uma empresa do Estado ela não objetivaria o lucro, mas sim a maximização do bem-estar social, de tal forma que sua estratégia ótima seria estabelecer o preço da rede de transporte exatamente igual ao custo incremental de longo prazo. Logo, se a Telebrás tivesse reduzindo drasticamente os preços, então os agentes privados também teriam que reduzir os preços para manter suas parcelas de mercado. Assim, o governo esperava “regular” o preço do mercado por meio da Telebrás.

O que deu errado então?

Erro nº 1 – Premissas de estrutura de mercado

Primeiramente precisamos entender um pouco sobre a cadeia produtiva do serviço de banda larga, que é dividida, grosso modo, em duas redes: rede de acesso e rede de transmissão.

A rede de acesso é aquela que chega na casa do consumidor, análoga à rede de distribuição no mercado de energia elétrica. No Brasil existem milhares empresas que ofertam acesso à internet por meio da banda larga, de tal forma que, em geral, este não é um mercado altamente concentrado. A rede de acesso é contratada diretamente pelo consumidor final, por isso dizemos que é um serviço de varejo.

Já a rede de transmissão, assim como na transmissão de energia elétrica, é constituída de elementos de rede que garantem capacidade para transmitir todo o conteúdo que trafega nas redes de acesso, conectando o consumidor com o resto do mundo. Diferentemente do mercado de acesso à banda larga, o mercado de transmissão é mais concentrado, contando com poucas empresas com capilaridade nacional. A rede de transmissão é contratada por redes de acesso, por isso dizemos que é um serviço de atacado.

A justificativa para a estratégia do PNBL ser fundamentada na atuação da Telebrás no mercado de transmissão de telecomunicações (atacado) era basicamente a alta concentração desse mercado. Já a premissa por trás dessa estratégia era de que a estrutura concorrencial desse mercado era de uma concorrência por preços, tipo Bertrand.

Em “Uma Nota Sobre a Oferta de EILD e Fechamento Vertical[3] utilizei informações sobre o mercado de oferta de capacidade de transmissão de banda larga para avaliar qual a estrutura desse mercado. Os resultados indicaram uma estrutura de Cournot, ou seja, uma concorrência por quantidade (capacidade) e não por preços.

Com esse resultado, já fica claro o primeiro erro de concepção do PNBL, qual seja, a premissa sobre a estrutura de mercado. Ora, se temos uma politica pública que tem como estratégia principal o uso de uma empresa estatal para regular um mercado privado, o mínimo que se espera do policy maker é pelo menos um conhecimento básico de como esse mercado funciona. Infelizmente, no caso concreto do PNBL, o Governo Federal não tinha conhecimento nenhum sobre como funciona o mercado de oferta de capacidade de transmissão de banda larga.

Erro nº 2 – Execução desastrosa

Não só bastasse o erro de concepção do PNBL a execução da construção da rede estatal também foi marcada por erros crassos.

No afã de apresentar resultados imediatos para a sociedade a Telebrás iniciou a construção de sua rede em regiões de alta densidade populacional e com atratividade econômica. Como podemos ver no Gráfico abaixo, a presença regional da Telebrás era muito maior nas regiões Sudeste e centro-oeste do Brasil.

Fonte: Anatel in A Estrutura Concorrencial do Mercado de Redes de Transporte de Telecomunicações e os Impactos de Políticas de Massificação da Banda Larga no Brasil”[4].

Conforme resultados apresentados em “Stimulating Broadband Adoption: State-Owned Companies versus Tax Exemptions – The Brazilian Case” [5], a elasticidade-preço da demanda é muito maior nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Ou seja, não só o Governo Federal errou na avaliação e na concepção da política pública, como a Telebrás errou desastrosamente na execução dessa política.

Erro nº 3 – Mudança de prioridade

Além das trapalhadas da Telebrás na execução do PNBL, a recriada estatal decidiu também se aventurar no espaço sideral, construindo e lançando seu próprio satélite, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC).

Depois de vários anos e após gastar R$ 2,8 bilhões com a construção do SGDC, finalmente o SGDC foi colocado em órbita no dia 4 de maio de 2017. Apesar da grande celebração feita pelo Governo Federal quando do lançamento do satélite, até o momento o SGDC, pelo menos na sua parte civil, tem acumulado frustrações.

Ora, a praxe do mercado privado é a de vender a capacidade satelital por meio de contratos de longo prazo. Somente após à celebração desses contratos é que as companhias iniciam a construção do satélite. Ou seja, toda a capacidade do satélite é vendida ANTES da construção e lançamento do satélite.

Infelizmente as regras de mercado muitas vezes não se aplicam às empresas estatais. No caso da Telebrás e do SGDC não foi diferente. Somente após o lançamento do satélite, quando esse já estava em órbita geoestacionária, é que a Telebrás iniciou os estudos para definir o modelo de negocio de exploração do satélite. Ou seja, construíram o satélite, lançaram o satélite e quando este já estava em órbita é que os geniais burocratas se perguntaram “e agora? O que fazemos?”.

A celeridade e a qualidade nas decisões empresariais infelizmente também não são pontos fortes na gestão estatal. Assim, o plano de negócio da Telebrás para o SGDC foi definido e até hoje é contestado judicialmente. Como resultado dessa execução desastrosa da política pública, até hoje a parte civil do SGDC ainda não está operacional.

Conclusão

Desenhar e executar políticas públicas são atividades extremamente desafiadoras justamente pelo fato de se darem em sistemas complexos. Assim, muitos dos efeitos das intervenções do Estado na economia não são controlados ou previsíveis.

Quando a esse desafio se somam a incompetência, a ignorância e o interesse próprio do policy maker temos uma tempestade perfeita para o desperdício de recursos públicos.

No caso do PNBL não poderia ser diferente. Uma política pública que tem erros crassos desde sua concepção até a sua execução não tem a mínima chance de ser eficaz e efetiva para a sociedade. Talvez exista esperança ainda para que as políticas públicas de banda larga do Brasil sejam revistas, construídas e executadas com objetivos mais realistas e menos demagógicos.

Carlos Baigorri atua no setor de telecomunicações há mais de 12 anos. É especialista em regulação dos quadros da Anatel desde 2009, tendo sido aprovado em primeiro lugar em concurso público. Na Anatel já atuou como chefe da assessoria técnica (2 anos); superintendente de competição (3 anos) e superintendente executivo (2 anos), sendo atualmente o superintendente de controle de obrigações. Doutor em economia, foi ganhador em 2009 de prêmio do Conselho Federal de Economia pela melhor dissertação de mestrado do Brasil. Em 2014 ganhou o premio do Ministério da Fazenda pela melhor tese de doutorado do Brasil na área de regulação. Atuou também como professor universitário, colunista no portalLivecoins.com.br sobre criptoeconomia e é diplomado em Política e Estratégia pela Escola Superior de Guerra (ESG).
  1. A Telebrás nunca chegou a ser extinta, mas desde a privatização do sistema estatal em 1998 a empresa apenas fazia a gestão dos seus passivos judiciais e gestão dos funcionários realocados em outros órgãos do Governo Federal.

  2. Capacidade de transporte é o jargão setorial utilizado para se referir à rede de alta capacidade que interliga as redes de distribuição de acesso à internet.

  3. “Uma Nota Sobre a Oferta de EILD e Fechamento Vertical do Mercado de Banda Larga no Brasil”, Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 69, n. 4, p. 489-502, dez. 2015. ISSN 0034-7140.

  4. Disponível em: http://esaf.fazenda.gov.br/assuntos/pesquisas-e-premios/premio-seae/9o-premio-seae-2014/9o-premio-seae-2014/monografias-premiadas-seae-2014/tema-2-1o-lugar-carlos-manuel

  5. “Stimulating Broadband Adoption: State-Owned Companies versus Tax Exemptions – The Brazilian Case” Journal of Economic Studies, Vol. 45 Issue: 4, pp.738-759, https://doi.org/10.1108/JES-05-2016-0113

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