Em “Por que mais recursos, leis, dados, e peritos não significam melhores serviços ou políticas públicas?” o Professor Bernardo Mueller apresenta sua explicação para o fato de as políticas públicas sempre darem errado. Segundo Mueller, “Todas as fases de concepção, projeção, implementação e operação destes projetos e políticas públicas são permeadas de incompetência, ignorância, corrupção, interesse próprio e custos de transação”. Além desses problemas, Mueller também apresenta argumentos no sentido de que pelo fato de que as políticas públicas “se dão em contextos de sistemas complexos, que por sua natureza não podem ser controlados nem previstos”.

É a partir dessa referência do Prof. Mueller que pretendo aqui trazer uma breve análise de um caso concreto de política pública que falhou miseravelmente: o Programa Nacional de Banda Larga – PNBL.

Em 2010 o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu, por meio do Decreto nº 7.175, o Programa nacional de Banda Larga – PNBL. Esse programa, ainda vigente, tem objetivos muito nobres e acima de qualquer suspeita, como por exemplo, “massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga”; “reduzir as desigualdades social e regional” e “promover a geração de emprego e renda”.

Entretanto, entre a nobreza das intenções e a realidade dos fatos, o PNBL foi um exemplo de como não se construir uma política pública. Seja pelos erros de diagnósticos, seja pelos erros de execução, posso dizer com absoluta certeza que o PNBL, até hoje, continua a me surpreender com a sua ineficácia e desperdício de recursos públicos.

Antes de entrar nos detalhes dessa malfadada empreitada estatal convém explicar ao leitor a principal estratégia de execução desse programa.

Para alcançar os nobríssimos objetivos estabelecidos no art. 1º do referido Decreto o PNBL “ressuscitou”[1] uma antiga estatal supostamente privatizada em 29 de julho de 1998, a famigerada Telebrás.

A idéia central por trás do PNBL foi a de reestabelecer a Telebrás para a criação de uma rede nacional sob controle estatal que iria competir com as redes dos agentes privados no mercado de oferta de capacidade de transporte[2], de forma a indiretamente reduzir os preços dos serviços de banda larga ao consumidor final; além de criar uma rede privativa para o Governo, que estaria assim protegido de vulnerabilidades no mundo cibernético.

Ou seja, a refundação da Telebrás para consecução dos objetivos previstos no art. 1º do Decreto nº 7.175 se fundamentou num misto de intervenção estatal na economia para fomentar a competição e de ufanismo nacionalista. Assim, com o PNBL o Estado brasileiro teria uma rede nacional própria de telecomunicações, que garantiria a segurança nas comunicações do governo e ainda poderia concorrer com os agentes privados no mercado de banda larga.

A lógica econômica era a seguinte: como a Telebrás é uma empresa do Estado ela não objetivaria o lucro, mas sim a maximização do bem-estar social, de tal forma que sua estratégia ótima seria estabelecer o preço da rede de transporte exatamente igual ao custo incremental de longo prazo. Logo, se a Telebrás tivesse reduzindo drasticamente os preços, então os agentes privados também teriam que reduzir os preços para manter suas parcelas de mercado. Assim, o governo esperava “regular” o preço do mercado por meio da Telebrás.

O que deu errado então?

Erro nº 1 – Premissas de estrutura de mercado

Primeiramente precisamos entender um pouco sobre a cadeia produtiva do serviço de banda larga, que é dividida, grosso modo, em duas redes: rede de acesso e rede de transmissão.

A rede de acesso é aquela que chega na casa do consumidor, análoga à rede de distribuição no mercado de energia elétrica. No Brasil existem milhares empresas que ofertam acesso à internet por meio da banda larga, de tal forma que, em geral, este não é um mercado altamente concentrado. A rede de acesso é contratada diretamente pelo consumidor final, por isso dizemos que é um serviço de varejo.

Já a rede de transmissão, assim como na transmissão de energia elétrica, é constituída de elementos de rede que garantem capacidade para transmitir todo o conteúdo que trafega nas redes de acesso, conectando o consumidor com o resto do mundo. Diferentemente do mercado de acesso à banda larga, o mercado de transmissão é mais concentrado, contando com poucas empresas com capilaridade nacional. A rede de transmissão é contratada por redes de acesso, por isso dizemos que é um serviço de atacado.

A justificativa para a estratégia do PNBL ser fundamentada na atuação da Telebrás no mercado de transmissão de telecomunicações (atacado) era basicamente a alta concentração desse mercado. Já a premissa por trás dessa estratégia era de que a estrutura concorrencial desse mercado era de uma concorrência por preços, tipo Bertrand.

Em “Uma Nota Sobre a Oferta de EILD e Fechamento Vertical[3] utilizei informações sobre o mercado de oferta de capacidade de transmissão de banda larga para avaliar qual a estrutura desse mercado. Os resultados indicaram uma estrutura de Cournot, ou seja, uma concorrência por quantidade (capacidade) e não por preços.

Com esse resultado, já fica claro o primeiro erro de concepção do PNBL, qual seja, a premissa sobre a estrutura de mercado. Ora, se temos uma politica pública que tem como estratégia principal o uso de uma empresa estatal para regular um mercado privado, o mínimo que se espera do policy maker é pelo menos um conhecimento básico de como esse mercado funciona. Infelizmente, no caso concreto do PNBL, o Governo Federal não tinha conhecimento nenhum sobre como funciona o mercado de oferta de capacidade de transmissão de banda larga.

Erro nº 2 – Execução desastrosa

Não só bastasse o erro de concepção do PNBL a execução da construção da rede estatal também foi marcada por erros crassos.

No afã de apresentar resultados imediatos para a sociedade a Telebrás iniciou a construção de sua rede em regiões de alta densidade populacional e com atratividade econômica. Como podemos ver no Gráfico abaixo, a presença regional da Telebrás era muito maior nas regiões Sudeste e centro-oeste do Brasil.

Fonte: Anatel in A Estrutura Concorrencial do Mercado de Redes de Transporte de Telecomunicações e os Impactos de Políticas de Massificação da Banda Larga no Brasil”[4].

Conforme resultados apresentados em “Stimulating Broadband Adoption: State-Owned Companies versus Tax Exemptions – The Brazilian Case” [5], a elasticidade-preço da demanda é muito maior nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Ou seja, não só o Governo Federal errou na avaliação e na concepção da política pública, como a Telebrás errou desastrosamente na execução dessa política.

Erro nº 3 – Mudança de prioridade

Além das trapalhadas da Telebrás na execução do PNBL, a recriada estatal decidiu também se aventurar no espaço sideral, construindo e lançando seu próprio satélite, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC).

Depois de vários anos e após gastar R$ 2,8 bilhões com a construção do SGDC, finalmente o SGDC foi colocado em órbita no dia 4 de maio de 2017. Apesar da grande celebração feita pelo Governo Federal quando do lançamento do satélite, até o momento o SGDC, pelo menos na sua parte civil, tem acumulado frustrações.

Ora, a praxe do mercado privado é a de vender a capacidade satelital por meio de contratos de longo prazo. Somente após à celebração desses contratos é que as companhias iniciam a construção do satélite. Ou seja, toda a capacidade do satélite é vendida ANTES da construção e lançamento do satélite.

Infelizmente as regras de mercado muitas vezes não se aplicam às empresas estatais. No caso da Telebrás e do SGDC não foi diferente. Somente após o lançamento do satélite, quando esse já estava em órbita geoestacionária, é que a Telebrás iniciou os estudos para definir o modelo de negocio de exploração do satélite. Ou seja, construíram o satélite, lançaram o satélite e quando este já estava em órbita é que os geniais burocratas se perguntaram “e agora? O que fazemos?”.

A celeridade e a qualidade nas decisões empresariais infelizmente também não são pontos fortes na gestão estatal. Assim, o plano de negócio da Telebrás para o SGDC foi definido e até hoje é contestado judicialmente. Como resultado dessa execução desastrosa da política pública, até hoje a parte civil do SGDC ainda não está operacional.

Conclusão

Desenhar e executar políticas públicas são atividades extremamente desafiadoras justamente pelo fato de se darem em sistemas complexos. Assim, muitos dos efeitos das intervenções do Estado na economia não são controlados ou previsíveis.

Quando a esse desafio se somam a incompetência, a ignorância e o interesse próprio do policy maker temos uma tempestade perfeita para o desperdício de recursos públicos.

No caso do PNBL não poderia ser diferente. Uma política pública que tem erros crassos desde sua concepção até a sua execução não tem a mínima chance de ser eficaz e efetiva para a sociedade. Talvez exista esperança ainda para que as políticas públicas de banda larga do Brasil sejam revistas, construídas e executadas com objetivos mais realistas e menos demagógicos.

Carlos Baigorri atua no setor de telecomunicações há mais de 12 anos. É especialista em regulação dos quadros da Anatel desde 2009, tendo sido aprovado em primeiro lugar em concurso público. Na Anatel já atuou como chefe da assessoria técnica (2 anos); superintendente de competição (3 anos) e superintendente executivo (2 anos), sendo atualmente o superintendente de controle de obrigações. Doutor em economia, foi ganhador em 2009 de prêmio do Conselho Federal de Economia pela melhor dissertação de mestrado do Brasil. Em 2014 ganhou o premio do Ministério da Fazenda pela melhor tese de doutorado do Brasil na área de regulação. Atuou também como professor universitário, colunista no portalLivecoins.com.br sobre criptoeconomia e é diplomado em Política e Estratégia pela Escola Superior de Guerra (ESG).
  1. A Telebrás nunca chegou a ser extinta, mas desde a privatização do sistema estatal em 1998 a empresa apenas fazia a gestão dos seus passivos judiciais e gestão dos funcionários realocados em outros órgãos do Governo Federal.

  2. Capacidade de transporte é o jargão setorial utilizado para se referir à rede de alta capacidade que interliga as redes de distribuição de acesso à internet.

  3. “Uma Nota Sobre a Oferta de EILD e Fechamento Vertical do Mercado de Banda Larga no Brasil”, Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 69, n. 4, p. 489-502, dez. 2015. ISSN 0034-7140.

  4. Disponível em: http://esaf.fazenda.gov.br/assuntos/pesquisas-e-premios/premio-seae/9o-premio-seae-2014/9o-premio-seae-2014/monografias-premiadas-seae-2014/tema-2-1o-lugar-carlos-manuel

  5. “Stimulating Broadband Adoption: State-Owned Companies versus Tax Exemptions – The Brazilian Case” Journal of Economic Studies, Vol. 45 Issue: 4, pp.738-759, https://doi.org/10.1108/JES-05-2016-0113