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To be or not to be: as concessões aeroportuárias no Brasil e a situação da Infraero

Com o aumento da renda média dos brasileiros ao longo dos anos, houve expansão na demanda por passagens aéreas e na malha aeroviária brasileira. Contudo, os investimentos públicos em infraestrutura aeroportuária não acompanharam o crescimento do número de passageiros transportados, o que resultou na necessidade de concessões, visando uma melhor experiência para os usuários.

A primeira concessão realizada foi a de São Gonçalo do Amarante (RN), seguida da primeira rodada de concessões (Brasília, Guarulhos e Viracopos) e posteriormente outras duas rodadas foram realizadas concedendo os aeroportos de Confins (MG), Galeão (RJ), Eduardo Magalhães (BA), Pinto Martins (CE), Salgado Filho (RS) e Hercílio Luz (SC). Neste ano previa-se a concessão em blocos de 12 aeroportos nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, uma nova experiência em termos de formato de leilão e tamanho de aeroportos leiloados.

O crescimento do setor como um todo está diretamente ligado à demanda por passagens aéreas. O aumento de passageiros na aviação brasileira pode ser explicado pelo aumento de renda do brasileiro (gráfico 1) e a queda no preço das passagens aéreas (gráfico 2), entre outros. Porém, atualmente, as empresas conseguem influenciar a demanda por causa de promoções, diferenciação de tarifas e programas de fidelidade.

Gráfico 1 – Relação PIB per capita Brasil (USD) versus milhões passageiros transportados em voos domésticos,

Fonte: Anuário da Aviação  Civil (ANAC). Elaboração: Própria

Gráfico 2 – Evolução da Tarifa Aérea Média Doméstica Real (Preço real médio da passagem, R$) no 1º trimestre de cada ano, 2009 a 2018.

Fonte: ANAC. Elaboração: Própria.

Pelo lado da oferta, por sua vez, a aviação possui fatores de competitividade que representam fortes barreiras à entrada para companhias que desejam atuar no mercado. As companhias dominantes no mercado possuem hegemonia nas rotas mais rentáveis, por fatores como o maior número de horários disponíveis nos aeroportos para pousos e decolagens (slots). Além disso, os altos custos operacionais são também uma barreira que exige da companhia um poder de capital elevado para sanar os gastos de combustível e a manutenção das aeronaves – que são atrelados ao dólar – e representam mais da metade do custo total das companhias. O caso da Avianca é emblemático. Foi uma companhia que entrou no mercado depois das duas grandes líderes, não conseguiu as melhores rotas por conta dos slots já alocados e, aparentemente, possui menor escala de operação que as demais, dificultando sua inserção e atuação no mercado aéreo brasileiro, o que pode ter contribuído para a sua situação atual de desequilíbrio financeiro.

Trazendo o foco para a próxima rodada de concessões aeroportuárias, temos que essa se torna importante pela disparidade de tamanho entre os aeroportos já concedidos e os que ainda serão leiloados. Tal fato resulta na necessidade de ajustamento do modelo de leilão proposto pelo Governo Federal à realidade da demanda por esses aeroportos, uma vez que a finalidade das concessões não é apenas gerar receitas patrimoniais e aliviar despesas públicas, mas também permitir que as empresas obtenham receita para a execução dos investimentos dentro dos prazos e providenciem melhorias aos usuários, permitindo também a expansão do transporte aéreo.

Dessa forma, o modelo atualmente em pauta foi o de concessão em blocos, que visa o arremate de um conjunto de aeroportos pela mesma concessionária por um único valor de outorga. A ideia é que os aeroportos maiores, de maior rentabilidade, cubram a menor rentabilidade dos aeroportos menores, uma forma de subsídio cruzado entre os aeroportos. Foram, inicialmente (no governo Temer), criados três blocos que englobam os seguintes aeroportos:

  • Bloco Nordeste: Recife, Maceió, João Pessoa, Aracaju, Juazeiro do Norte e Campina Grande;
  • Bloco Sudeste: Vitória e Macaé;
  • Bloco Centro Oeste: Cuiabá, Sinop, Alta Floresta e Rondonópolis.

Existem inúmeras motivações para um Estado optar pela privatização ou venda de seus ativos. Dentre elas, estão: (1) aumentar a receita do Estado, uma vez que, em concessões, o ente privado paga uma taxa pelo direito à exploração e fornecimento de serviços públicos; (2) promover eficiência econômica, por meio da adoção de práticas e processos que reduzam os custos operacionais; (3) reduzir a interferência do Estado na economia, caso isso seja identificado como uma necessidade; (4) ampliar a base acionária do país, permitindo que um maior número de agentes participem de atividades econômicas outrora restritas aos governos; (5) promover condições para a formação de ambientes competitivos, por meio da abertura de mercados a um maior número de concorrentes; (6) submeter as empresas estatais a um ambiente competitivo; e, por fim, (7) desenvolver o mercado doméstico de capitais, com, por exemplo, a atração de investimentos estrangeiros. Acreditamos que alguns destes pontos já apresentaram avanços importantes no setor, após o início do processo de concessões. Para citar um exemplo de avanço recente, atualmente as companhias nacionais já podem ter até 100% de capital estrangeiro em sua composição.

Como o intuito do novo governo eleito é dar continuidade ao processo de concessões e privatizações no país, é fundamental percebermos as falhas e lacunas ocorridas no passado para que possamos aprimorar o modelo para o futuro. Uma das críticas feitas às primeiras rodadas de concessões de aeroportos foi a participação de 49% da Infraero. O intuito da companhia foi não perder participação nos grandes aeroportos brasileiros (que são os mais rentáveis), contudo, isso trouxe uma série de consequências maléficas para o resultado da empresa. A questão mais abordada é a situação dos funcionários que restaram após as concessões. Após a mudança de controle dos aeroportos, os funcionários tiveram a opção de seguir trabalhando no aeroporto como funcionários da Sociedade de Propósito Específico (SPE), entrar em um programa de demissão voluntária, seguir como funcionário da Infraero ou migrar para outra estrutura do Governo Federal. Como os funcionários da Infraero seguem um plano de carreira e o país vivia e ainda vive certa instabilidade econômica, não era racional deixar a companhia. Estima-se que um funcionário da Infraero recém-contratado receba cerca de R$2.000, o que é comparável ao salário pago no setor privado. Contudo, após 20 anos de permanência na companhia, os salários podem atingir R$ 10.000, o que não é pago na iniciativa privada. Assim, devido à expectativa dos aumentos e considerando a situação do país, muitos empregados decidiram permanecer na Infraero.

Observando a situação de forma geral, existe o seguinte panorama: a Infraero concedeu 51% dos seus maiores aeroportos e a totalidade de outros, o que causou redução na sua receita aeroportuária, porém houve recebimento de outorgas. Funcionários não desejam migrar para a iniciativa privada, acreditam que a instituição não vai falir por ser atrelada ao Governo Federal e permanecem recebendo aumentos por tempo de permanência na companhia.

Portanto, o que será da Infraero? Ela continuará existindo nos moldes atuais? Quais seriam as possíveis saídas? A companhia deve abrir capital? Isso poderia trazer aportes financeiros para a empresa. Mas será que, na atual situação dela, do governo, e do país, alguém estaria disposto a comprar ações da Infraero?

O modelo de concessões deve ser mantido (e ao final do contrato os ativos retornam ao governo para novo leilão) ou poderíamos partir pra um modelo de privatização (em que o ativo é de fato comprado e transferido e pertencerá ao ente privado ganhador do leilão)? Diante desta questão da Infraero, a possível vantagem da privatização seria que o passivo trabalhista fruto do processo poderia ser absorvido pela empresa ganhadora do leilão. Com isso, o governo teria uma preocupação a menos, em termos de custos. Por outro lado, precificar esses ativos de forma adequada poderia demandar tempo e também recursos, além de desgastes políticos.

Com a aproximação de novas rodadas de concessão e a situação da Infraero se deteriorando, é necessário um modelo de concessões que alivie o máximo possível as contas públicas e ao mesmo tempo permita rentabilização das operações em bloco. O Presidente Jair Bolsonaro liberou uma prévia dos blocos a serem supostamente concedidos em 2020, como pode ser observado abaixo:

Imagem 1 – Novas concessões previstas

C:\Users\Usuario\Desktop\Monografia\Cap 3 e 4\Novas rodadas de concessão.jpg
Fonte: Valor Econômico.

Os investimentos totalizariam mais de US$ 2,56 bilhões e a concessão contaria com a presença de dois grandes aeroportos brasileiros ainda não concedidos, Congonhas e Santos Dumont. Considerando o grande número de empregados nesses dois aeroportos, seria mais uma situação trabalhista complicada para a Infraero. Estaríamos vivenciando os momentos finais da Infraero? Ser ou deixar de ser, essa é a questão!


Autores:

Bernardo Mafra Mendes, 21 anos, Formado em Economia pela Universidade de Brasília, ex-diretor de projetos da empresa júnior de Economia (Econsult). 

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.

Concessões de Rodovias e Fator-X – PARTE (II)

No post anterior apresentamos o contexto no qual emergiram as primeiras concessões federais para exploração da infraestrutura rodoviária na década de 1990.

Mostramos que o cenário de escassez de recursos que vinha sendo desenhado desde meados da década de 1970 foi definitivo para que se optasse pelas concessões. Tal opção pouco teve a ver com convicções ideológicas ou planejamento de longo prazo para aprimorar a infraestrutura rodoviária nacional. Esse cenário, em parte, justifica a realização das concessões da Primeira Etapa sem ainda existir uma agência reguladora responsável, a qual somente foi criada em 2001.

Falamos também da necessidade de o regulador aprimorar continuamente os contratos de concessão para melhorar a sua gestão, o que deveria redundar em um melhor serviço prestado para os usuários das rodovias.

Entre os mecanismos regulatórios adotados na Terceira Etapa de concessões, consta contratualmente o chamado Fator X. E é sobre ele que trataremos no presente post, entendendo como que esse mecanismo funciona, e qual o provável impacto da sua supressão no contrato da Rodovia de Integração Sul, projeto que será licitado em 01 de novembro de 2018.

Regulação Tarifária e Fator X

A tarifa consiste em uma contraprestação que os usuários praticam em face da utilização da infraestrutura pública disponibilizada pelo concessionário (GUIMARÃES, 2017). Assim, a tarifa se trata de preço arcado pelos usuários na esfera da relação jurídica contratual que trava com o concessionário, mas é também um preço regulado e controlado pelo poder concedente, em vista de sua ligação estreita com os valores intrínsecos ao serviço público. Além disso, também é elemento que integra a equação econômico-financeira do contrato de concessão, a qual pertence à esfera de relação entre concessionário e poder concedente.

De acordo com a Teoria da Regulação Econômica do Interesse Público (POSNER, 2004), uma vez que o mercado funciona de forma ineficiente, a intervenção do Estado se faz desejável, e até necessária. Ao se verificar a existência de uma falha de mercado – um monopólio natural no caso do serviço de exploração da infraestrutura rodoviária – a regulação de preços neste mercado visa a garantir que os usuários não sejam explorados indevidamente pelo concessionário e que a equidade no acesso ao serviço seja assegurada.

Considerando então que os monopólios não regulados tendem a produzir quantidades menores do serviço, e cobram preços maiores que aquele que maximizaria o bem-estar, o governo deve intervir de modo a simular um ambiente competitivo que, inclusive, incentive a realização de investimentos por parte do monopolista (PICOT, 2015).

Tirole e Laffont (1993) afirmam que o regulador deve apoiar-se exclusivamente nas informações contratuais detidas pelas firmas. As limitações informacionais, portanto, comprometem a eficiência da regulação. Esta é a chamada assimetria de informações entre regulador e regulado.

Portanto, os contratos de concessão devem incluir fortes incentivos, como o mecanismo do preço-teto (price cap) que não são indexados aos custos de produção das firmas, como um modo de vencer os problemas de assimetria de informação com os quais o regulador invariavelmente se depara (TIROLE, 2017). Dessa forma, o regulador autoriza uma tarifa máxima, e a firma pode escolher seus preços contanto que estejam abaixo do limite e cubram a totalidade dos seus custos.

O modelo de preço-teto como forma de regulação com alto grau de incentivo pode envolver métodos de reajustamento limitado da tarifa a partir da conjugação de índices de produtividade (GUIMARÃES, Op. Cit.). Uma fórmula prestigiada na experiência britânica pela modalidade price cap é a RPI-X (Retail Price Index menos um fator de produtividade X) ou IPC-X (índices gerais de preços menos um fator de produtividade X). Ou seja, aplica-se à tarifação um reajustamento segundo um índice geral de preços, limitado à evolução do valor-resultado por um fator de produtividade, que lhe subtrai um percentual arbitrado pelo poder concedente regulador.

Agrell e Bogetoft (2013) afirmam que uma das áreas mais proeminentes para aplicação das técnicas de benchmarking é justamente na regulação de monopólios naturais, uma vez que tais técnicas podem informar se determinada regulação produz efeitos econômicos em usuários e firmas reguladas de modo equilibrado.

O benchmarking – comparação do desempenho relativo entre empresas – é uma técnica bastante utilizada por reguladores de diversos países, como Noruega, Áustria, Finlândia, Holanda e Alemanha na regulação dos mais diversos tipos de serviços associados à infraestrutura. O objetivo da técnica é extrair uma métrica de desempenho relativo entre as empresas do setor regulado, de modo que possam ser identificadas aquelas mais eficientes. A eficiência relativa é então convertida em Fator-X, o qual será aplicado na equação tarifária de cada empresa, de modo que aquelas menos eficientes tenham um Fator-X maior, o que resulta no decremento do índice de reajuste tarifário ao qual faria jus.

A ideia é que ao final do próximo ciclo regulatório, aquelas empresas menos eficientes tenham conseguido melhorar o seu desempenho de modo que, na próxima aplicação do Fator-X, possam figurar entre as mais eficientes, para então fazer jus a um maior índice de reajustamento tarifário.

Portanto, o mecanismo tende a equilibrar o ímpeto de maximização da receita pelas empresas reguladas (minimização do Fator-X), com a produção de melhores resultados para os usuários daquele serviço público.

Possíveis impactos da retirada do Fator-X dos contratos de concessão rodoviária

Como brevemente descrito, o Fator-X é apoiado não somente pela teoria econômica, mas também pela experiência internacional. Então, o que justifica a sua supressão do contrato de concessão da Rodovia de Integração Sul (RIS)?

Não detemos informações sobre as razões para a sua retirada, e não gostaríamos de realizar especulações acerca do assunto, pois aos usuários interessam tão somente os possíveis impactos da não existência de mecanismos de regulação por incentivos no contrato.

É importante deixar claro que até hoje, o único contrato de que se detém informações sobre a aplicação do Fator-X é o da BR-101/BA/ES. Nesse contrato, o Fator-X corresponde a uma tabela de aplicação de valores pré-definidos em nada parametrizados com as outras empresas do mercado. Deste modo, conforme os conceitos que expusemos, não se pode afirmar que o Fator-X assim estabelecido possa ser considerado efetivamente um mecanismo de incentivo.

Ao mesmo tempo, que se tenha conhecimento, não foi produzido qualquer normativo sobre o assunto pela ANTT, em que pese terem sido produzidos estudos com propostas para a regulamentação do Fator-X. Sabemos, por outro lado, que os contratos de concessão da Terceira Etapa estabelecem que até o quinto ano da concessão o Fator-X será 0 (zero), portanto, não teria como produzir efeitos nos contratos assinados em 2013.

Mas o fato de o Fator-X não produzir efeitos até o quinto ano da concessão não pode ser considerado justificativa plausível para a omissão regulatória da ANTT, especialmente em um cenário em que as concessões rodoviárias federais vêm sendo sistematicamente criticadas pelo TCU, como pode ser verificado na avaliação técnica do órgão de controle sobre a RIS (TCU, 2018):

52. O estudo da BR-101/290/386/448/RS mesclou premissas contratuais da 1ª, 2ª e 3ª etapas do Programa de Concessões Rodoviárias Federais (Procrofe) . Apesar da esperada evolução regulatória em relação aos contratos anteriores, diversos dispositivos que contribuíram para os problemas enfrentados pelas concessões vigentes permanecem na minuta contratual em tela.

(…)

54. De forma geral, as fiscalizações empreendidas pelo TCU em concessões rodoviárias federais têm constatado significativos níveis de inadimplemento contratual. Apesar disso, as tarifas de pedágio continuam a sofrer aumentos anuais acima da inflação, e isso ocorre em razão da inclusão de relevantes investimentos nos contratos.

(…)

62. O cenário do setor retrata um modelo regulatório e regras contratuais que, apesar das variações ao longo das suas três etapas, incentivam a inexecução das obrigações pelas concessionárias. (…) (grifos nossos)

Notamos que o TCU, ao analisar o contrato de concessão da RIS, afirma que não é possível identificar a esperada evolução regulatória. Ademais, ele aponta que os mecanismos regulatórios existentes nos contratos vigentes, e em grande medida inseridos no contrato da RIS, tampouco são suficientes para garantir a execução das obrigações contratuais pelas concessionárias.

Desse modo, é evidente que a adoção de mecanismos que possam incentivar a melhora no desempenho das concessionárias reguladas pela ANTT é urgente. Não que o Fator-X fosse suficiente para solucionar todos os problemas de inexecução contratual apontados pelo TCU, mas já seria um primeiro passo importante.

Por outro lado, ao mesmo tempo que ANTT erra ao manter determinados mecanismos contratuais que já se demonstraram (no mínimo) ineficazes, suprimir um mecanismo de incentivo do contrato de concessão tampouco parece contribuir para a necessária melhora da regulação dos contratos de concessão de rodovias.

O fato é que não parece haver respaldo teórico e técnico na decisão tomada por aqueles à frente do leilão da RIS quanto à supressão do Fator-X. Sem a necessária evolução dos mecanismos de incentivo neste novo contrato de concessão, não é excesso de ceticismo duvidar que este novo contrato apresente melhores resultados que aqueles até então apresentados pelos contratos em andamento.

Aparentemente, a existência do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e a adoção de outras medidas supostamente “modernizadoras da gestão” da área de infraestrutura, não foram suficientes para promover a melhora efetiva dos projetos de concessão rodoviária, sequer em relação aos ciclos anteriores, quanto mais em relação às melhores práticas internacionais. Isto resultou na persistência de dispositivos contratuais há muito conhecidos e questionados, ao lado da supressão de outros que poderiam promover melhora na regulação.

Como alguém disse certa vez: “A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

AGRELL, P. J.; BOGETOFT, P. Benchmarking and regulation. Core Discussion Paper- Center for Operations Research and Econometrics, Université catholique de Louvain, CORE and Louvain School of Management, B-1348 Louvain-la-Neuve, Belgium, p. 23, 2013.

GUIMARÃES, F. C. V. Concessão de serviço público. [s.l.] Editora Saraiva, 2017.

LAFFONT, J.-J.; TIROLE, J. A theory of incentives in procurement and regulation. [s.l.] MIT press, 1993.

PICOT, A. The Economics of Infrastructure Provisioning: The Changing Role of the State. [s.l.] MIT press, 2015.

POSNER, R. A. Teorias da regulação econômica. Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora, v. 34, p. 49–80, 2004.

TCU. Tribunal de Contas da União. ACÓRDÃO 1174/2018 – PLENÁRIO – Acompanhamento do processo de desestatização do lote rodoviário denominado Rodovia de Integração do Sul (RIS), que compreende trechos das rodovias BR-101/290/386/448/RS. Análise do primeiro estágio. Relator: Ministro Bruno Dantas. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1174%2520ANOACORDAO%253A2018/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 out. 2018.

TIROLE, J. Economics for the common good. [s.l.] Princeton University Press, 2017.

 

Concessões de Rodovias e Fator-X – Parte (I)

O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi criado pela Lei nº 13.334 de 2016, com a finalidade de ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização.

Entre os oito projetos de concessão para exploração da infraestrutura rodoviária qualificados no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, está o projeto de concessão das rodovias BR-101/RS, BR-290/RS, BR- 386/RS e BR-448/RS, no Estado do Rio Grande do Sul – conhecido como Rodovia de Integração Sul (RIS). Foi lançado, em julho de 2018, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em parceria com o Ministério dos Transportes e o PPI, o edital para concessão da RIS, cujo leilão ocorrerá em 01/11/2018 (ANTT, 2018a).

Várias questões emergem a partir da análise detida das opções regulatórias registradas nos documentos licitatórios publicados, porém, neste conjunto de posts, trataremos de uma opção em específico: a supressão do chamado “Fator X” da minuta contratual (ANTT, 2018b).

De modo simples, o que é o Fator X? É uma medida de desempenho, de eficiência do concessionário. A ideia é que o concessionário busque por ganhos de produtividade durante o longo período de vigência de sua concessão, e que parte desse ganho fique retido com a própria concessionária (que teria, portanto, incentivos pra continuar almejando e buscando incorporar novas técnicas e ampliar, com isso, sua produtividade) enquanto outra parte seja revertida em forma de menor tarifa para o usuário do serviço. Ou seja, os ganhos de produtividade seriam repartidos/compartilhados entre a concessionária e o usuário final.

E por que chamamos a atenção para a supressão da cláusula que trata do Fator-X?

A Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões) estabelece em seu art. 6º que toda concessão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, sendo que o serviço adequado é que aquele que satisfaz, dentre outras condições, a eficiência. A mesma lei também imputa ao poder concedente o dever de estimular o aumento da produtividade e incentivar a competitividade dos serviços concedidos.

Para cumprir tais preceitos legais, o regulador deve alterar a estrutura de incentivos ou o conjunto de ações possíveis do concessionário de modo que este, ao maximizar o seu retorno sobre o contrato, acabe também maximizando o bem-estar coletivo, fornecendo assim um serviço adequado aos usuários. Nesse sentido, a teoria econômica e a experiência internacional (AGRELL; BOGETOFT, 2013) tem demonstrado que a aplicação de regulação da tarifa por preço-teto (price cap), associada ao Fator-X, tende a incentivar ganhos de produtividade por parte do setor regulado.

Então, por que suprimir o Fator-X da equação tarifária dos novos contratos de concessão rodoviária?

Infelizmente não temos resposta para essa pergunta. Ao contrário, pretendemos sensibilizar o leitor quanto à necessidade de reguladores brasileiros adotarem técnicas de regulação baseadas em incentivos (como o Fator-X) para promover maior ganho de bem-estar aos usuários.

Para tanto, começaremos falando sobre o contexto das concessões rodoviárias federais brasileiras e como que surgiu o “Fator X” nesses contratos. Já na segunda parte, falaremos sobre o que é, de modo mais formal, o Fator X e discutiremos os possíveis impactos da retirada do referido mecanismo regulatório dos contratos de concessão.

O contexto das concessões para exploração da infraestrutura rodoviária federal

O que antecedeu as primeiras concessões para exploração da malha rodoviária federal na década de 1990 contribuiu para a modelagem dos primeiros contratos de concessão para exploração da infraestrutura rodoviária federal.

Após a forte expansão da malha rodoviária nas décadas de 1960 e 1970, já em 1974, se iniciou o processo de crescente escassez de recursos para investimento em obras e manutenção. Fora os choques externos que contribuíram para o endividamento do Estado brasileiro, até a Constituição Federal de 1988 (CF/88), os investimentos na malha rodoviária contavam com financiamento do Fundo Rodoviário Nacional (FRN), formado com recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes Líquidos e Gasosos (IULCLG). O FRN tinha como objetivo custear os programas de construção, conservação e melhoria das rodovias compreendidas no Plano Rodoviário Nacional (PNV).

Com o advento da CF/88, de todas as alterações tributárias impostas, a que mais afetou o financiamento do PNV foi a proibição de vinculação de receitas tributárias. Ou seja, a partir daquele momento, os investimentos em infraestrutura rodoviária que, até então, contavam com uma fonte exclusiva de custeio, passaram a ter que disputar com outras políticas públicas os recursos advindos das receitas da União. O resultado de tais mudanças foi o estado deplorável em que se encontrava as rodovias federais na década de 1990.

Por outro lado, a CF/88 também trouxe a possibilidade de empresas privadas prestarem serviço de utilidade pública, sempre precedido de procedimento licitatório. Em 1995, foi sancionada a lei das concessões (Lei no 8.987), a qual regula a concessão de serviços públicos à iniciativa privada. Assim, a transferência de rodovias foi a saída encontrada pelo poder público para tentar resolver parcialmente a impossibilidade de realizar os necessários investimentos na expansão, manutenção e conservação da malha rodoviária federal.

As primeiras concessões ocorreram em 1995 ainda sob a tutela do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) em conjunto com o Ministério dos Transportes. Vale destacar que não havia à época agência reguladora. Desta forma, os contratos de concessão assemelhavam-se muito mais a contratos de obras públicas de longo prazo (até 25 anos), cujo foco estava no controle (ainda que parcial) de alguns poucos parâmetros de desempenho e na obrigação de execução de algumas obras pelos contratados. Não é possível então afirmar que havia uma preocupação primordial com a produtividade ou a eficiência das concessionárias.

Somente em 2001 foi criada a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por meio da Lei no 10.233, cuja instalação ocorreu cerca de um ano depois. A ANTT assumiu então a gestão dos contratos em andamento, ao todo 1.315,9 km, denominados Primeira Etapa de Concessões. Posteriormente, em 2008 e 2009, foram licitados e firmados os contratos da Segunda Etapa. Finalmente, em 2013 e 2015, foram firmados os contratos da Terceira Etapa. Ao todo são 9.224 km de rodovias sob responsabilidade da ANTT.

A ANTT, desde o seu início, teve como seu grande desafio na área de concessões rodoviárias, o desenvolvimento de mecanismos regulatórios que incentivassem as concessionárias a entregarem um melhor serviço para os usuários.

É claro que nos contratos da Primeira Etapa a margem de melhoria não era grande, uma vez que os contratos firmados na década de 1990 devem ter o seu equilíbrio econômico-financeiro respeitado. Portanto, restou à ANTT e ao Ministério dos Transportes inserir inovações nos contratos de concessão seguintes.

Nesse contexto, entre uma etapa e outra de concessão, algumas inovações e ajustes foram sendo realizados, no intuito de aprimorar a gestão contratual por parte da ANTT.

Para citarmos um exemplo, em 2007 o Tribunal de Contas da União (TCU) demandou da ANTT ajustes no mecanismo de inclusão de obras então existente nos contratos da Primeira Etapa de Concessões (TCU, 2007). Tal exigência do TCU resultou na Resolução no 3.651/2011, por meio da qual foi estabelecido o chamado Fluxo de Caixa Marginal (FCM). O FCM foi incorporado a todos os contratos de concessão anteriores e posteriores. Hoje, tal mecanismo vem sendo bastante questionado pelo próprio Tribunal de Contas da União, e sua análise pode ser objeto de outro post.

Quanto ao Fator-X, relatório do Banco Mundial de 2010 (Veron e Cellier, 2010) sugeriu “rever custos futuros de manutenção e operação com base num mix de índice de inflação e produtividade, calculado, por exemplo, em função de ganhos de produtividade observados em outras concessões, introduzindo assim um processo semelhante a uma regulação por medição (yardstick regulation). Os ganhos de produtividade esperados poderiam ser estabelecidos para cada período de cinco anos”.

O Fator X nos contratos para exploração da infraestrutura rodoviária federal

Dentre as inovações discutidas com os principais atores envolvidos nos novos projetos de concessão (setor regulado, governo e TCU – este especialmente preocupado quanto aos problemas àquela altura já identificados nos contratos da Primeira Etapa), em 2012, na chamada Terceira Etapa, foi pela primeira vez inserido no contrato de concessão rodoviária o chamado Fator X. De acordo com o contrato da BR-101/BA/ES, o Fator X é o (ANTT, 2012):

(…) redutor do reajuste da Tarifa de Pedágio – calculado na forma da subcláusula 16.3.3, e revisto na forma da subcláusula 16.3.5 – referente ao compartilhamento, com os usuários do Sistema Rodoviário, dos ganhos de produtividade obtidos pela Concessionária.

O Fator X é um redutor no índice de reajustamento para atualização monetária do valor da Tarifa de Pedágio (IRT). No contrato da BR-101/BA/ES, o Fator X é 0 (zero) até o quinto ano da concessão, sendo incrementado de modo pré-definido quinquenalmente, e atingindo no máximo 1% (um porcento) entre o vigésimo primeiro e o vigésimo quinto ano do prazo da concessão. Nos demais contratos da Terceira Etapa, o Fator X foi definido como 0 (zero) até o quinto ano de concessão, sendo revisto quinquenalmente, com base em estudos de mercado realizados pela ANTT, de modo a contemplar a projeção de ganhos de produtividade do setor rodoviário brasileiro.

Ainda, na “Ata de Resposta aos Esclarecimentos (sic)” do processo licitatório da Terceira Etapa (ANTT, 2013), a comissão de outorga assim se pronunciou sobre o Fator X:

O Fator X é o mecanismo que permite o compartilhamento com os usuários dos ganhos de eficiência e produtividade do negócio. Na teoria econômica a Eficiência Econômica é tratada como sendo a associação da eficiência técnica, que é a habilidade da unidade decisória em extrair o maior nível de produto para um dado nível de insumo, com a Eficiência Alocativa, habilidade da unidade decisória em utilizar os insumos na melhor proporção de forma a minimizar os custos. Há também o conceito de Produtividade, que pode ser alterado por quatro fontes de variações: 1) Modificações tecnológicas: alteram a posição da Fronteira da Possibilidade de Produção, isto quer dizer que a produtividade de uma determinada unidade pode melhorar sem que haja aumento em sua eficiência. 2) Modificações na Eficiência: neste caso a unidade se torna mais produtiva por aproveitar melhor os seus insumos. 3) Modificações na escala: a unidade pode ampliar sua produtividade adequando a sua escala de produção de modo a torná-la mais eficiente. 4) Modificações no mix de insumos e produtos: as composições de insumos e/ou produtos podem também afetar a produtividade. Assim, como pode se observar os conceitos de eficiência e produtividade que o Fator X compartilhará com os usuários somente poderão ser mensurados com a operação do negócio e isto somente será compartilhado com o usuário caso haja aumento da produtividade e eficiência (…). (grifos nossos)

Tanto o dispositivo contratual, como a resposta da comissão de outorga deixam bem evidente a intenção dos responsáveis pela elaboração do contrato à época: resumidamente, o Fator X deveria ser um mecanismo que colocaria em evidência a necessidade de considerar eventuais ganhos de produtividade das concessionárias e compartilhá-los com os usuários. Além disso, o Fator X deveria incentivar ganhos de eficiência nas empresas reguladas, pois estas detêm o monopólio na prestação daqueles serviços de expansão, manutenção e conservação da malha rodoviária sob sua responsabilidade e, em regra, os usuários não detêm rotas alternativas.

Então, perguntamos: por que iniciar toda uma discussão a respeito de Fator X no início dessa década, direcionar corpo técnico dentro da agência para formulação de uma proposta metodológica para seu cálculo e, depois de tudo isso, simplesmente suprimir o Fator X do próximo contrato de concessão a ser assinado? É este o melhor caminho?

Na próxima parte deste post exploraremos a teoria econômica e a experiência internacional que justificam a adoção do Fator X como mecanismo de incentivo nos contratos de concessão rodoviária, e quais as possíveis consequências da sua supressão dos contratos que serão licitados daqui para frente.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

AGRELL, P. J.; BOGETOFT, P. Benchmarking and regulation. Core Discussion Paper- Center for Operations Research and Econometrics, Université catholique de Louvain, CORE and Louvain School of Management, B-1348 Louvain-la-Neuve, Belgium, p. 23, 2013.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – 3a Etapa (fase III) – BR-101/ES/BA. Disponível em: <http://3etapaconcessoes.antt.gov.br/index.php/content/view/1169/3__Etapa__fase_III_.html>. Acesso em: 24 out. 2018.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – Concessão da BR-101/290/448/386/RS. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/rodovias/RIS.html>. Acesso em: 24 out. 2018a.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – Ata_de_Respostas_aos_Pedidos_de_Esclarecimentos. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/backend/galeria/arquivos/2018/09/21/Ata_de_Respostas_aos_Pedidos_de_Esclarecimentos.pdf>. Acesso em: 24 out. 2018b.

TCU. Tribunal de Contas da União – Acórdão 2154/2007 TC 026.335/2007-4. Relator: Ministro Ubiratan Aguiar. Disponível em: <https://bit.ly/2ArZEf2>. Acesso em: 24 out. 2018.

VERON, A; CELLIER, J. Participação privada no setor rodoviário no Brasil: Evolução recente e próximos passos. The World Bank Group, Estudo de Transporte, março de 2010.

 

A Rainha Vermelha no Antitruste

Ainda me lembro do tempo em que o Facebook não existia. Também lembro a economia de palavras nas ligações internacionais em que cada segundo tinha peso de ouro. Hoje, Facebook e WhatsApp estão ambos no meu celular, à disposição para facilitar diferentes tipos de interação a quase nenhuma ou mesmo a muitas milhas de distância.

O tema deste post é a junção desses dois gigantes. Ou melhor, do gigante Facebook e do pequeno gigante, WhatsApp, cujo faturamento à época da operação não atingia os patamares de notificação de muitas autoridades antitruste, inclusive do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)[1]. O ano era 2014, ano da fatídica Copa do Mundo no Brasil e da sanção do nosso Marco Civil da Internet. O Facebook anunciara sua intenção de adquirir o WhatsApp em fevereiro e tanto a Federal Trade Commission (FTC) quanto a European Comission (Comissão Europeia), as autoridades antitruste dos Estados Unidos e da União Europeia, respectivamente, aprovaram a operação sem restrições. E o que levou essas duas autoridades a tal decisão?

No caso do FTC, não há documentos públicos que detalhem as motivações da autoridade (salvo melhor juízo ou melhor busca no Google ou no buscador de sua escolha). A Comissão Europeia, por sua vez, explicitou o caminho de análise que a levou a aprovar a operação sem restrições. É esse caminho, ou ao menos parte dele, que convidamos o leitor a trilhar[2]:

A Comissão Europeia avaliou se a operação traria potenciais problemas concorrenciais com foco em 3 mercados:

  1. Comunicação de consumidores (consumer communications services)
  2. Rede sociais (social networking services)
  3. Publicidade online (online advertising services)

Neste post, discutiremos um pouco dos mercados “1” e “3”.

No caso de comunicação de consumidores, um dos focos da autoridade europeia foi definir o mercado relevante para análise em termos de produto. Por exemplo, seriam serviços de comunicação eletrônica tradicionais como SMS, ligações de voz e email substitutos dos aplicativos de comunicação Facebook Messenger e WhatsApp? Seriam estes dois últimos competidores próximos entre si? Quanto menos substitutos para esses serviços, maior a probabilidade de exercício de poder de mercado pelas empresas que se uniam, uma vez que os consumidores “não teriam para onde fugir” em caso de piora dos serviços, por exemplo.

Algumas possíveis segmentações do mercado de comunicação consideradas pela Comissão, mas descartadas, foram por tipo de usuário (consumidor x empresas), funcionalidade (mensagem de texto, mensagem por foto, vídeo etc.) e sistema operacional. Uma segmentação relevante foi a de plataforma, ou seja, se o serviço estava disponível em smartphones, computadores etc. Finalmente, a Comissão preferiu não adotar uma definição precisa do mercado relevante, mas utilizar a visão mais restrita e, portanto, mais conservadora para sua análise: a do mercado de “aplicativos de comunicação para smartphones”.

Para a avaliação dos efeitos da operação sobre esse mercado, três fatores merecem destaque: switching costs; multihoming e efeitos de rede:

Switching costs referem-se a custos de mudança, ou seja, qual o custo que um usuário teria para deixar de usar um aplicativo de comunicação e passar a utilizar outro? Se os serviços do Facebook Messenger ou do WhatsApp se deteriorassem após a operação, qual seria o custo do usuário para migrar para outro aplicativo? Quanto mais altos esses custos, maiores os riscos da operação.

Com base em sua análise, a Comissão entendeu que os switching costs eram baixos, tendo em vista que (i) todos os aplicativos de comunicação eram oferecidos de graça ou a preços muito baixos; (ii) que o download de tais aplicativos era realizável com facilidade em smartphones, e que mais de um aplicativo poderiam coexistir no mesmo aparelho sem tomar muito de sua capacidade; (iii) que, uma vez instalados, os usuários podiam trocar de aplicativo rapidamente; (iv) que a utilização de tais aplicativos requeria custos mínimos de aprendizagem; e (v) que informações e reviews sobre novos aplicativos de comunicação estavam facilmente disponíveis em lojas de aplicativos.

Além disso, a Comissão obteve evidências de que os usuários geralmente realizavam multi-homing, isto é, que os usuários tinham instalado e utilizavam no mesmo aparelho celular diferentes aplicativos de comunicação: entre 80% e 90% dos usuários na Espaço Econômico Europeu usavam mais de um aplicativo de comunicação por mês, enquanto 50% a 60% usavam mais de um desses serviços em base diária.

Outro fator importante na análise da Comissão foi verificar se havia evidência de que o Facebook Messenger ou o WhatsApp viessem pré-instalados em grande parte dos celulares. Caso sim, poderia haver switching costs mais relevantes, tendo em vista o “viés do status quo” associado ao comportamento inercial dos consumidores. Como não houve evidências nesse sentido, a Comissão entendeu que os switching costs eram relativamente baixos.

Por outro lado, a Comissão reconheceu a existência de switching costs associados à necessidade de recriar a rede de contatos em caso de troca de aplicativo de comunicação, isto é, custos associados aos efeitos de rede. Efeitos de rede ocorrem quando o valor de um produto ou serviço aumenta com o número de usuários do produto ou serviço. Quanto mais usuários uma plataforma de comunicação possui, mais interessante ela se torna para os usuários. Qual o valor de um telefone, por exemplo, se não temos a quem ligar? Qual o valor de estar numa rede social, em que nenhum dos nossos contatos está?

A Comissão entendeu que a existência de efeitos de rede de fato gerava switching costs para o usuário e poderia constituir uma barreira à entrada de um concorrente. Contudo, mitigou a importância desse efeito, tendo em vista que o setor era altamente dinâmico, que os outros fatores descritos anteriormente minimizavam os switching costs e que não havia outras barreiras à entrada/expansão significativas. Além disso, nem o Facebook nem o WhatsApp (as ditas Requerentes) detinham controle de alguma parte essencial da rede ou de algum dos sistemas operacionais. Em outras palavras, a Comissão entendeu que os efeitos de rede não eram suficientes para blindar as Requerentes das pressões competitivas advindas de aplicativos concorrentes e de potenciais entrantes.

Em contrapartida, a Comissão também avaliou se a operação poderia aumentar tais efeitos de rede, o que ocorreria se houvesse algum tipo de integração entre o Facebook e o WhatsApp. Uma das possibilidades dessa integração seria a comunicação entre plataformas, que permitisse que usuários do Facebook e do WhatsApp se comunicassem entre si. Contudo, as Requerentes informaram que tal integração enfrentava dificuldades técnicas significativas, tendo em vista dois pontos principais: (i) a necessidade de realizar a correspondência (matching) entre os IDs dos usuários; e (ii) a arquitetura técnica diferente utilizada pelo Facebook e pelo WhatsApp, esta última baseada na nuvem, enquanto aquela não.

Um dos obstáculos associados ao matching era que o identificador do Facebook se baseava em um Facebook ID, enquanto o identificador do WhatsApp se baseava em um número de telefone. Assim, no caso de integração, os usuários teriam que aceitar manualmente esse matching, o que poderia levar parte deles – aqueles insatisfeitos com a integração – a deixar os serviços.

A Comissão avaliou, então, que tal integração parecia improvável, dada sua viabilidade técnica remota e os riscos associados a ela. Além disso, considerou que, mesmo que houvesse integração, o potencial aumento dos efeitos de rede seria mitigado pela sobreposição significativa entre as bases de usuários do Facebook e WhatsApp.

O terceiro mercado analisado foi o de publicidade online. Para essa discussão, é importante introduzir o conceito de plataformas de múltiplos lados. O Facebook, assim como o Google e Uber, são exemplos de plataformas de múltiplos lados. De forma bastante simplificada, isso significa que essas plataformas servem como matchmakers que unem diferentes grupos de usuários.

No caso do Facebook, quando utilizamos as funcionalidades de rede social, somos um dos lados da plataforma. Utilizamos os serviços do Facebook, sem a necessidade de pagar alguma taxa monetária pelo serviço. Mas como qualquer outro negócio, o Facebook precisa se monetizar. Isso é feito no outro lado da plataforma, composto pelos anunciantes que pagam ao Facebook para veicular anúncios para os seus usuários. Portanto, o que o Facebook faz é o match entre nós, usuários, e os anunciantes.

Ora, mas o WhatsApp não tinha e ainda não tem serviços de publicidade. Por que, então, esse lado poderia ter relevância para a análise antitruste? Uma das respostas é justamente a possibilidade de o WhatsApp passar a ter publicidade após a operação. A outra é Big Data. O que torna o Facebook tão competitivo em direcionar anúncios específicos a cada um de nós é que ele conhece (até muito bem) a cada um de nós. Além de todos os dados cadastrais que fornecemos, toda vez que clicamos em algum link no Facebook, ou demoramos um pouco mais num post, revelamos um pouco de nossos interesses e particularidades.

Esses dados associados à utilização de algoritmos permitem à máquina aprender um pouco mais sobre nós (é o tal do machine learning), conseguindo nos direcionar conteúdo e anúncios cada vez mais personalizados. A integração da base de dados do Facebook com a do WhatsApp poderia, portanto, gerar uma vantagem competitiva para o Facebook, que lhe permitiria melhor direcionar anúncios e obter poder de mercado em anúncios online. A detenção de todos esses dados poderia, assim, erguer barreiras à entrada para outros competidores.

A conclusão da Comissão Europeia foi que, mesmo com a integração, continuaria a existir um número significativo de provedores alternativos de anúncios direcionados (pense no Google, por exemplo) e que uma parcela significativa dos dados de usuários úteis para direcionamento de publicidade não era de exclusividade do Facebook, não havendo, portanto, um problema concorrencial.

Assim, já em 2014 a Comissão aprovou a operação e o Facebook adquiriu o WhatsApp. Como apresentado, em sua decisão, a Comissão considerou que não haveria viabilidade técnica de unir as bases de dados do Facebook e do WhatsApp, e que, conforme informado pelas Requerentes, não haveria intenção de o WhatsApp passar a atuar em plataformas de computador.

Como sabemos, hoje os serviços já são integrados e é possível utilizar o WhatsApp pelo computador. Esse foi um dos motivos que levou a Comissão Europeia a aplicar ao Facebook a primeira multa por enganosidade desde a Lei de Fusões de 2004.

Essa multa, de 110 milhões de euros[3], deveu-se ao fato de as Requerentes terem sido enganosas ou negligentes ao afirmar que não seria possível integrar os dados das duas plataformas. O que é interessante também, é que a Comissão não voltou atrás na sua decisão. Isso porque, como explicado, ela já afirmara que, mesmo que fosse possível unir as duas bases, ainda assim a operação não geraria problemas concorrenciais.

Hoje, mais da metade do mercado de anúncios nos Estados Unidos é concentrado nas mãos de Facebook e Google[4]. Isso nos traz algumas questões:

https://contentstorage-nax1.emarketer.com/9dc078228b3f9ba47487e4717565a97a/235954

Fonte: https://www.emarketer.com/content/google-and-facebook-s-digital-dominance-fading-as-rivals-share-grows (Acesso em 09 de outubro de 2018).

A operação terá tornado o Facebook mais apto para rivalizar com o Google pelo lado de anúncios ou terá apenas reforçado um duopólio? Já possuindo uma base de usuários muito grande à época da operação, teria o WhatsApp conseguido expandir seus serviços e tornar-se um novo entrante no mercado de redes sociais para rivalizar com o Facebook, caso não tivesse sido por este adquirido? Qual terá sido o efeito da operação sobre fatores não-preço, como privacidade? O que terá incitado o post de um dos fundadores do WhatsApp, que deixou o Facebook no final de 2017: #deletefacebook?

Fonte: https://www.theguardian.com/technology/2018/mar/20/facebook-cambridge-analytica-whatsapp-delete Acesso em 09 de outubro de 2018.

Outra pergunta que o leitor atento deve estar a se fazer é… e o que tem a Rainha Vermelha a ver com este post? Ao trilhar o caminho da decisão da Comissão Europeia, foi possível nos deparar com novos termos, que só recentemente adentraram o vocabulário antitruste. Switching costs, efeitos de rede, multihoming, big data, todos esses são conceitos que vêm ganhando destaque com o avanço da economia digital e que motivaram a Autoridade de Concorrência alemã, por exemplo, a editar uma emenda[5] à sua legislação antitruste para que esses tópicos sejam levados em consideração na análise de “poder de mercado” em mercados digitais.

Para quem não se recorda da estória, a Rainha Vermelha explicava à maravilhada Alice que era preciso correr tanto quanto possível para permanecer no mesmo lugar[6]. O que vimos é que também no antitruste, essa máxima é válida: para as autoridades da concorrência, escritórios, estudiosos do assunto, você, estimado leitor, e, claro, as próprias empresas de tecnologia.

Patrícia A. Morita Sakowski é técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e exerce a função de Economista-Chefe Adjunta no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Possui mestrado em economia pela Hitotsubashi University (Tóquio-Japão) e gradução em economia pela Universidade de São Paulo (FEA-USP).
  1. “Segundo o artigo 88 da Lei 12.529/2011, com valores atualizados pela Portaria Interministerial 994, de 30 de maio de 2012, devem ser notificados ao Cade os atos de concentração, em qualquer setor da economia, em que pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios total no Brasil, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões, e pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios total no Brasil, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.” (http://www.cade.gov.br/servicos/perguntas-frequentes/perguntas-sobre-atos-de-concentracao-economica Acesso em 09 de outubro de 2018)
  2. Este post traz apenas alguns aspectos da Decisão da Comissão Europeia. Para a análise detalhada, ver http://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m7217_20141003_20310_3962132_EN.pdf
  3. Ver mais detalhes em http://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m8228_493_3.pdf
  4. Fonte: https://www.appnexus.com/sites/default/files/whitepapers/guide-2018stats_2.pdf (slide 49). Acesso em 09 de outubro de 2018.
  5. https://www.clearygottlieb.com/~/media/organize-archive/cgsh/files/2017/publications/alert-memos/2017_06_28-germany-adjusts-arc.pdf(3a) In particular in the case of multi-sided markets and networks, in assessing the market position of an undertaking account shall also be taken of: 1. direct and indirect network effects, 2. the parallel use of services from different providers and the switching costs for users, 3. the undertaking’s economies of scale arising in connection with network effects, 4. the undertaking’s access to data relevant for competition, 5. innovation-driven competitive pressure.http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_gwb/englisch_gwb.html#p0066
  6. http://www.alice-in-wonderland.net/wp-content/uploads/through-the-looking-glass.pdf (“Now, HERE, you see, it takes all the running YOU can do, to keep in the same place.” p. 17)

 

Data-driven economy e seus impactos sobre os direitos de personalidade

A entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados na União Europeia e a recente aprovação pelo Senado brasileiro do projeto de lei sobre proteção de dados pessoais ressaltaram as inquietações que a data driven economy vem gerando sobre os direitos da personalidade. A discussão mais comum e frequente tem ocorrido em torno da privacidade ou do controle sobre os dados pessoais, muitas vezes coletados de forma ilícita, sem a ciência e a autorização informada dos titulares.

A partir de tais dados, que são os verdadeiros insumos da nova economia, algoritmos conseguem transformá-los em informações economicamente úteis, mas que podem provocar verdadeira devassa na vida privada dos usuários. São exemplos os algoritmos que identificam a orientação sexual a partir do reconhecimento facial, os que decifram emoções a partir da medição de ondas cerebrais, os que diagnosticam crises depressivas e outros transtornos antes mesmo da manifestação de qualquer sintoma médico. É assustador imaginar o tipo de destinação que pode ser atribuída a tais recursos caso não haja nenhum tipo de controle, preocupação que é potencializada com o machine learning.

Uma coisa é certa: algoritmos têm assumido o papel de fazer diagnósticos, julgamentos, classificações e rankings a respeito dos usuários que, embora não necessariamente corretos, serão utilizados pelos próprios agentes econômicos que os exploram e também cedidos para os seus parceiros de negócios em uma infinidade de aplicações que estão fora do alcance da imaginação do cidadão comum.

O problema é que esses julgamentos algorítmicos podem ter impactos diretos nas oportunidades e nas opções de vida dos usuários, pois deles dependerá o acesso a empregos, crédito, seguro e uma série de outros serviços. Por essa razão, a utilização dos dados não diz respeito apenas a problema de violação da privacidade, mas envolve outras relevantes discussões, como o direito de não ser julgado ou categorizado para determinados fins ou o direito de não ser julgado ou categorizado com base em determinados critérios.

A gravidade da situação aumenta quando não se tem nem mesmo como avaliar o potencial danoso de algoritmos, que normalmente se baseiam em dados, correlações e critérios de inferência sigilosos e sem qualquer transparência, que podem ser incorretos ou falsos, e que ainda podem ser utilizados para lastrear correlações que não correspondem a causalidades. Mais grave ainda, podem reproduzir correlações que sejam frutos de discriminações e de uma série de injustiças da vida social.

É por esse motivo que Cathy O`Neil[1] refere-se aos algoritmos como armas matemáticas de destruição, na medida em que, longe de serem neutros e objetivos, embutem em seus códigos uma série de decisões e opiniões que não podem ser contestadas, até porque não são conhecidas. Daí o seu potencial de destruição silenciosa, na medida em que podem basear seus julgamentos em preconceitos e padrões passados que automatizam o status quo e ainda podem ser utilizados para toda sorte de discriminações e violações de direitos.

A falta de transparência é reforçada quando se sabe que tais algoritmos são aperfeiçoados a partir da inteligência artificial, por meio da qual, com a aprendizagem de máquina (machine learning) e com as redes neurais artificiais, mais e mais algoritmos se desenvolvem independentemente, aprimorando a si mesmos e aprendendo com os próprios erros. Como bem resume Harari[2], com a inteligência artificial, o algoritmo “segue o próprio caminho e vai aonde humanos nunca foram antes – até onde nenhum humano pode segui-lo”.

Daí o fundado receio de que dados e correlações manejados por algoritmos possam estar sendo utilizados como veículos de manutenção de discriminações e injustiças, preservando os padrões do passado – ainda que equivocados – ao mesmo tempo em que comprometem as possibilidades do futuro.

Logo, além dos riscos à privacidade e ao controle sobre os dados pessoais, é o próprio presente e o futuro das pessoas que pode estar sendo definido pelos algoritmos, sem que se tenha a possibilidade de conhecer e criticar os dados e correlações que alimentam seus processos decisórios.

Sob essa perspectiva, para o adequado endereçamento do problema, talvez não seja suficiente apenas uma lei de proteção de dados, embora esta seja certamente uma das providências mais importantes nessa seara, até para definir o que pode ser considerado dado pessoal. Há que se verificar igualmente a compatibilidade da utilização dos dados diante do Direito Constitucional, do Direito da Concorrência e do Direito do Consumidor, dentre outros.

Mais do que isso, há que se indagar sobre o grau e os mecanismos de transparência e accountability que se exigirão dos agentes empresariais que se utilizam de algoritmos para compreender e categorizar usuários para os mais diversos fins, o que traz impactos para a sua identidade pessoal – já que podem estar sendo definidos e classificados de forma equivocada – bem como para as oportunidades e opções de vida desses usuários, as quais podem estar sendo indevidamente restringidas em razão de diagnósticos apressados ou claramente equivocados.

Ainda há que se analisar outro preocupante efeito da destinação dos dados pessoais: é que todo o conhecimento sobre os usuários ainda pode ser utilizado para, associado ao poder da comunicação e aos estudos da biologia, neurociência e psicologia, manipular as pessoas, bem como tentar modificar suas crenças e opiniões.

Como explica Tim Wu[3], a partir do momento em que atenção se torna comoditizada, o tempo em que as pessoas passam em determinadas plataformas passa a ser importante fator não apenas para sujeita-las à publicidade e à coleta dos seus dados, mas também para sujeitá-las a estratégias que visam influenciar e alterar suas preferências e visões de mundo[4]. É por essa razão que Tim Wu sustenta que o verdadeiro negócio de muitas das indústrias da nova economia é o de influenciar consciências.

Vista a questão por esse ângulo, a tecnologia pode estar sendo utilizada contra aquilo que temos de mais precioso: a nossa individualidade. A partir do momento em que as máquinas conseguem nos conhecer melhor do que nós mesmos, podem utilizar nossas fragilidades para manipular nossas emoções, crenças e opiniões para os mais diversos fins, inclusive políticos. Aliás, as eleições de Donald Trump e do Brexit ilustram bem tal preocupação.

Como bem afirma Castells[5], a forma mais fundamental de poder é a de moldar a mente humana. No mesmo sentido, Martin Moore[6] destaca que as grandes plataformas adquiriram enorme poder de influenciar a ação coletiva e mesmo o voto das pessoas.

Ora, se o mais importante instrumento de poder em uma sociedade tecnológica e informacional é a capacidade de influenciar e manipular as pessoas, é fácil concluir que os principais riscos da nova economia vão muito além da violação à privacidade dos usuários, alcançando a identidade pessoal, a própria liberdade e, consequentemente, a cidadania e a democracia.

Como se procurou demonstrar ao longo do artigo, a coleta de dados e a sua utilização pelos diversos agentes da economia movida a dados vem colocando a personalidade sob um triplo risco: (i) a coleta em si dos dados, o que já seria preocupante do ponto de vista da privacidade e do controle dos dados pessoais; (ii) a utilização dos dados para a construção de julgamentos a respeito dos usuários que, corretos ou não, podem causar diversos danos a estes conforme os fins a que se destinam, limitando o acesso a produtos, serviços e oportunidades de vida e (iii) a utilização dessas informações com o propósito de manipular os próprios usuários, para os fins mais diversos, inclusive políticos.

Logo, o manuseio dos dados enseja preocupações que vão muito além da privacidade e do controle sobre os dados pessoais dos usuários: na verdade, o que está em jogo é a manutenção de valores como a identidade pessoal, a liberdade, as oportunidades e perspectivas do presente e do futuro das pessoas e a própria democracia.

  1. Op.cit.
  2. HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã [edição eletrônica]. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  3. WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get insideour heads. Nova Iorque: Knopf, 2016.
  4. Ver: FRAZÃO, Ana. Prefácio. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA, Henrique Araújo; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Tecnologia jurídica e direito digital. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
  5. CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Tradução Vera Lucia Joyceline. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2015.
  6. MOORE, Martin. Tech Giants and Civic Power. https://www.kcl.ac.uk/sspp/policy-institute/cmcp/tech-giants-and-civic-power.pdf. Acesso em 14.06.2018.
Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília – UnB. Ex-Conselheira do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2012-2015). Ex-Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (2009-2012). Graduada em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, Especialista em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília – UnB e Doutora em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Líder do GECEM – Grupo de Estudos Constituição, Empresa e Mercado.

O cobalto da República Democrática do Congo no vale da “curva sorriso”

Em texto publicado neste blog no fim do ano passado, Renan Abrantes e Jorge Arbache compararam as Grandes Navegações da metade do milênio passado ao que seriam as atuais Grandes Navegações Digitais. Para os autores, tanto nas primeiras quanto nestas últimas, os maiores beneficiários das conexões que se estabeleceram eram os intermediários – mercadores, no primeiro caso, e os atuais donos de grandes plataformas digitais no segundo. A meio caminho entre uma e outra era, os recursos naturais do interior do continente africano entraram na equação.

Sob o recorrente pretexto de levar os valores cristãos e civilidade a “pobres almas” do desconhecido continente, exploradores como o famoso inglês David Livingstone realizaram grandes feitos, como a travessia a pé de costa a costa, em meados do séc. XIX. Anos depois, em nova incursão à África, para tentar dar fim a uma rusga entre exploradores conterrâneos seus acerca de qual seria a verdadeira fonte do Rio Nilo, Livingstone desapareceu. Coube ao ambicioso jornalista americano Henry M. Stanley encontrar o explorador, moribundo, em uma aldeia da Tanzânia. O feito de Stanley chamou a atenção do Rei Leopoldo II da Bélgica, para quem o jornalista contou das abundantes riquezas naturais que encontrou na região do Rio Congo, selando o destino de milhares de vidas.

Leopoldo II nunca pisou naquelas terras – que tornou sua propriedade pessoal -, mas multiplicou sua riqueza com o marfim e a borracha retirados de lá às custas de grande devastação ambiental e de um genocídio. Pela borracha, o Congo Belga se integrava a uma das cadeias produtivas de maior valor da época; porém, a importante matéria prima para produção de pneus da nascente e promissora indústria automobilística não permitiu ao país uma inserção melhor que precária na cadeia global.

A República Democrática do Congo (RDC), atualmente, é fonte de outra matéria prima, crucial para indústrias de tecnologia: 60% do cobalto disponível no mundo encontra-se no solo do país. O metal é utilizado em baterias de celulares a carros elétricos e, conforme relatório da Anistia Internacional, sua exploração é feita de forma artesanal, insalubre e com considerável participação de mão de obra infantil.

A integração da atual República Democrática do Congo à economia mundial, por meio da borracha, permitiu que o único intermediário (o Rei Leopoldo II), se apropriasse de considerável parcela da renda gerada na produção do produto final (pneus). Isto porque esta integração se deu em momento no qual a curva sorriso de produção desse bem encontrava-se menos abaulada, de modo que a etapa da fabricação em si do bem final (pneus) representava importante parcela do valor de venda gerado. O problema de então relacionava-se mais ao total alheamento da mão de obra que coletava o látex em relação aos ganhos auferidos com a sua venda – isso para não mencionar as atrocidades cometidas.

Atualmente, observando-se a inserção da indústria de cobalto da RDC na cadeia global de produção, percebe-se que ela se encontra no vale de uma curva que, ademais, vem se tornando cada vez mais profundo. Ora, com a apropriação de parcela crescente do valor de produção por parte de etapas não produtivas (design, marketing, pós-vendas, pesquisa, desenvolvimento de software etc.), o trecho da produção física de bens com grande conteúdo de serviços agregado torna-se irrisório. Ironicamente, o que se poderia tomar apenas como triste constatação pode vir a ser um alento aos congoleses que vivem de tirar o metal do fundo de poços.

Ocorre que o recente crescimento observado e o previsto da indústria de carros elétricos permite inferir que a dependência do cobalto por parte desse segmento da indústria seguirá alta. Assim, vislumbra-se uma chance interessante de fazer com que mais benefícios da exploração do cobalto sejam destinados aos habitantes de seu país de origem, especialmente àqueles trabalhando nas minas. Ora, se produtos sofisticados tentem a se valorizar pelos serviços neles embarcados, em detrimento do material empregado em sua fabricação, é razoável supor que uma majoração no preço pago pelas matérias primas na etapa de sua produção física em pouco afetará o lucro de empresas como Apple – que admitiu o uso de cobalto vindo do Congo em pelo menos 20% suas baterias -,LG Chem, Amazon ou Samsung.

A mudança depende, no entanto, de que empresas como as citadas monitorem a origem do material utilizado na fabricação de seus produtos e que a regulação estatal na RDC incremente a proteção dos trabalhadores. Com isto, é possível distribuir melhor o quinhão, que atualmente vai para os intermediários da cadeia do metal, compostos principalmente por empresas chinesas atuantes no país.

Ao se confrontar a inserção da RDC como importante player da cadeia global de baterias elétricas (maior ofertante individual de cobalto) com a precariedade das condições em que esse minério é explorado, evidencia-se a importância da regulação e indicam-se soluções para um problema local pela integração entre estratégia de mercado do setor privado com melhorias em condições socioeconômicas. No entanto, trata-se de arena complexa a cuja abordagem deve ser dada mais atenção por parte de nações e mesmo de blocos econômicos.

À medida que se confirmam tendências como a concentração de mercado na economia digital, o avanço da mobilidade como um serviço (MaaS) e o aprofundamento do vale da curva sorriso, a concepção de arranjos regulatórios adequados mostra-se como alternativa apta a trazer ao sistema macroeconômico contrapesos aos malefícios resultantes da necessidade de economias ou setores primário-exportadores (como a RDC e a mineração no Brasil) extraírem recursos com participação decrescente, em termos relativos, na composição do valor de produtos.

No entanto, não se deve esperar que tal regulação – que já é de difícil aplicabilidade – resolva por si só os problemas, mesmo porque a escassez de determinado recurso serve como incentivo ao desenvolvimento de materiais ou de tecnologias alternativas. É preciso, como contrapartida, a efetiva emancipação de economias primárias no sentido de agregarem mais valor à sua produção, o que pode ser possível tanto pela diversificação de seu parque exportador quanto pela agregação de valor a seus produtos. Não é tarefa simples, mas auspiciosa, afinal, é de se esperar que países com a nossa biodiversidade, por exemplo, alcancem melhores níveis de desenvolvimento com a exploração de recursos caros às ciências médicas e à biotecnologia do que com a de minérios no vale de uma curva sorriso cada vez mais profunda.

 

A Desoneração Tributária da Exportação de Serviços e a Possibilidade de Eliminação de Resíduos da Cadeia

Um dos legados da famigerada greve dos caminhoneiros foi a divisão com a sociedade brasileira dos ônus da desoneração tributária do diesel. Ao afetar a meta de arrecadação e sendo pressionado para não aumentar a carga tributária, o governo federal deliberou cobrir o deficit provocado, pela redução ou eliminação, à toque de caixa, de diversos incentivos vigentes, como é o caso do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras -Reintegra.

O art. 21 da Lei nº 13.043/2014, com a disciplina do Decreto nº 9.393, de 30 de maio de 2018, reduziu a alíquota para os créditos do Reintegra de 2% para 0,1%, com vigência imediata, a despeito de a regulamentação anterior determinar que essa alíquota seria mantida até o final do exercício.

O Reintegra permite que empresas que exportam determinados produtos apurem crédito no valor de percentual fixado sobre a receita auferida na operação de exportação. A finalidade da restituição é a devolução de parte dos resíduos tributários da cadeia de produção de bens exportados, em consonância com o princípio de comércio internacional, de que não deverá haver a exportação de tributos. A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 540/2011, convertida, posteriormente, na Lei nº 12.546/2011, discorreu sobre a necessidade de combater as dificuldades das empresas exportadoras brasileiras. Os resíduos tributários existentes na cadeia produtiva de bens manufaturados reduz a competitividade de exportações brasileiras, pois representam de 5% a 10% do custo do produto exportado, a depender de fatores tais como a extensão da cadeia produtiva.

O Reintegra não se aplica aos serviços, apenas a produtos manufaturados. Mas a discussão que veio à baila com as medidas compensatórias decorrentes da greve dos caminhoneiros, trazidos pelos contribuintes exportadores prejudicados, é a indispensabilidade da eliminação dos resíduos tributários das cadeias de bens exportados.

Note-se que se a cumulatividade tributária afeta as mercadorias exportadas, os serviços padecem de uma deficiência na estrutura de tributação muito maior, considerando que a tributação sobre os serviços brasileira não dispõe de técnicas para a eliminação dos resíduos tributários.

A base de cálculo do imposto sobre serviços -ISS é o preço bruto do serviço, com alíquotas máxima de 5%, não se permitindo a dedução de insumos empregados na prestação de serviços, nem o quanto pago nas operações anteriores, de acordo com suas normas gerais, determinadas pela Lei Complementar n. 116/2003. A única exceção é o caso de serviços de construção civil, em relação aos quais há a previsão de dedução do valor de materiais e o das subempreitadas já oneradas pelo imposto.[1]

Em regra, não há a possibilidade de dedução dos materiais empregados para a prestação dos serviços, que já são gravados pelo IPI e pelo ICMS, gerando dupla imposição econômica, situação que não ocorrerá em ordenamentos jurídicos que tributam de forma unificada mercadorias e serviços.

Uma justificativa possível para a estrutura cumulativa do ISS é o fato de sua alíquota ser relativamente baixa, aliada ao fato de sua competência ser disseminada entre 5570 competências tributárias municipais: não oneraria demasiadamente aos contribuintes, ao mesmo passo que não ofereceria maiores dificuldades de fiscalização às administrações tributárias, pela simplicidade de sua estruturação.

Entretanto, sob a perspectiva do comércio exterior, da dificuldade de quantificação da carga tributária, que dependerá da configuração da cadeia de serviços, decorre a violação do princípio da não-discriminação, em desfavor do contribuinte brasileiro, pois o importado será onerado de forma distinta do fornecido internamente, uma vez que não é possível precisar a carga tributária interna.

A despeito de a alíquota máxima do ISS ser relativamente baixa, o que poderia compensar as múltiplas incidências ao longo da cadeia, não promove a neutralidade, vetor a ser perseguido por uma política tributária eficiente. Um dos efeitos de uma tributação cumulativa é a verticalização da cadeia, concentrando-se os diversos prestadores de serviço por razões alheias à eficiência do mercado, mas apenas para fugir à tributação.

Poder-se-ia se argumentar que não é inerente aos serviços a cumulatividade, pois, em geral, esgotam-se em uma única prestação, com algumas exceções, como nas hipóteses serviços de administração de outros serviços. Classicamente, os serviços não se inseririam em uma cadeia, isto é, esgotavam-se em uma única relação jurídica.

Todavia, o perfil das formas de serviços tem se alterado substancialmente em virtude da evolução tecnológica, tornando-se muito mais complexas e atreladas a diversos prestadores. A tendência é que quanto mais sofisticado o serviço, maior será a cadeia de prestadores e maior será o número de subcontratações de serviços, como o caso de serviços de engenharia e de elaboração de softwares.

Acresça-se que, segundo Anita Kon, ao longo do processo de internacionalização produtiva, os serviços, que numa visão tradicional, eram entendidos como não comercializáveis internacionalmente (non tradable), devido à sua intangibilidade e em vista de sua pouca representatividade nas pautas de exportação, mudaram o seu status. As mudanças tecnológicas e a intensificação do processo de globalização produtiva e comercial, incrementaram o fluxo de serviços, especialmente nas áreas de transporte, consultoria, comunicações, de maneira que o seu mercado internacional ampliou-se consideravelmente.[2]

No Brasil, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), baseados no Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio (Siscoserv), as exportações de serviços no Brasil representam pouco, se comparadas às de mercadorias, embora o setor terciário represente pouco mais de 70% (setenta por cento) do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB), como se depreende:

Dos serviços exportados, dentre os mais relevantes estão serviços profissionais, técnicos e gerenciais, de consultoria, financeiros :

A política tributária tem seu papel na contradição desses dados. A cumulatividade do ISS e a “quase-cumulatividade” do PIS e Cofins, incidente sobre a receita das prestações de serviços, que também oferece dificuldades para os contribuintes eliminarem a cumulatividade da cadeia dos bens exportados, são uma das faces desse problema.

Dificuldades adicionais serão encontradas pelos contribuintes para implementar a desoneração nas saídas voltadas às exportações, em virtude da própria dificuldade de aplicação da norma, pela divergência de intepretação pelas administrações tributárias de definições como as de “local de desenvolvimento” e “de consumo” dos serviços.

Todavia, esses obstáculos para desoneração dos serviços exportados, são inconstitucionais. Defende-se que o legislador constitucional optou pela adoção do princípio do destino na tributação das operações de comércio exterior, em detrimento do princípio da origem, como elemento de conexão determinante do exercício da competência tributária. O princípio do destino implica na desoneração da carga tributária nas saídas voltadas à exportação, além da restituição ou creditamento da carga tributária que incidiu na cadeia de produção e distribuição do bem, internamente.

Contrariamente ao que existe no imposto de renda, em que há uma disputa internacional sobre a aplicação do princípio da residência ou fonte, como critério de determinação de competência tributária, há um notável consenso no comércio internacional pela aplicação do princípio do destino, optando as economias mundiais por desonerar as exportações, enquanto que no local de consumo desses bens, recairá a carga tributária.

 

Conforme o saudoso jurista Ricardo Lobo Torres, o princípio do destino está intimamente conectado e harmonizado com o princípio da territorialidade, com a ideia de Justiça e com o princípio da capacidade contributiva, ao estabelecer que os tributos devam ficar no país onde foram consumidos os bens, sendo o vetor para se evitar a dupla tributação no comércio internacional[3]

Nas palavras do também saudoso professor Alberto Xavier[4]:

Os impostos de consumo sobre as transações são geralmente lançados no país do consumidor, revertendo em benefícios dos Estados nos quais são consumidos os bens sobre que incidem. Precisamente por isso, o país de origem, isto é, o país no qual o bem foi produzido, procede normalmente à restituição ou isenção do imposto no momento da exportação; e, por razões simétricas, o país do destino, onde o bem será consumido, institui um encargo compensatório sobre as mercadorias importadas, em ordem de colocá-las ao menos em pé de igualdade com os produtos nacionais.

A Constituição de 1988 adota claramente o princípio do destino no comércio internacional, pois determina que os tributos não incidirão na exportação dos bens. Em diversos dispositivos consolida-se essa opção do legislador constitucional, como o art. 153, §3o, III, que determina que o IPI “não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior”; o art. 155, §2o, X, ‘a’, com a redação da EC n. 42/2003, que determina que o ICMS não incidirá “sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”; o art. 156, §3o, II, que determina, para o ISS, que cabe à lei complementar “excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior”; o art.149, §2o, I, que determina que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico “não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação” (com a redação da EC n. 33/2001) e “incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços” (com a redação da EC n. 42/2003).

Em um ambiente internacional cooperativo de tributação, a escolha pela eficiência econômica e por conseguinte, pelo princípio do destino é inequívoca, pois ao se permitir que um produtor não direcione o seu comportamento por força da tributação de insumos, determinando-se que a carga tributária recaia sobre o consumidor final, incrementa-se a produção e, assim, um governo pode assegurar que parte dessa produção excedente seja capturada pela tributação dos lucros, remanescendo o suficiente para o benefício dos consumidores.

E nesse ponto, retorna-se à ideia lançada no início do texto: o Reintegra, ao possibilitar a redução (não eliminação) dos resíduos tributários oriundos da tributação interna, não é um favor governamental, mas uma obrigação do legislador infraconstitucional. E mais: deve ser estendido aos serviços. Quanto ao ISS o art. 156, §3o, II da Constituição determina que a lei complementar deve excluir a incidência do ISS dos serviços exportados: não apenas a incidência do serviço exportados, como de sua cadeia.

Se no Brasil o princípio do destino tem matriz constitucional, a sua realização não é faculdade do Estado, sendo dever do legislador incluir as imunidades/isenções nas exportações e a constituição de técnicas que viabilizem o aproveitamento de créditos de saídas direcionadas à exportação, na proporção da carga tributária incidente internamente.

A tributação cumulativa traz prejuízos à alocação de recursos e à competitividade dos produtos nacionais, tanto no mercado externo como no doméstico, pois altera de forma incontrolável os preços relativos da economia. No comércio exterior, a realidade da cumulatividade prejudica a competividade das exportações brasileiras. Em relação ao custo dos bens exportados, é difícil a recuperação da carga tributária incidente sobre a cadeia de produção e comercialização, relativa aos insumos, bens de capital e à gestão de negócios.

E se essa discussão ainda necessita amadurecer no comércio exterior de mercadorias, no caso dos serviços, em que as mesmas premissas podem ser aplicadas, a discussão é incipiente.

A não-cumulatividade é técnica expressamente imposta constitucionalmente apenas para o IPI, o ICMS e mais recentemente, para o PIS e Cofins. Portanto, em princípio, não haveria a obrigação da municipalidade de instituir técnicas de implementação de não-cumulatividade para o ISS.

Não obstante, a cumulatividade da tributação dos serviços ofende a diversos preceitos constitucionais. Assim, como justificar que aquele que forneça serviços mais sofisticados e com maior peso econômico, seja mais gravemente tributado? Ademais, ao se estabelecer uma estrutura de tributação que verticalize a cadeia de produção, haverá não só ofensa à neutralidade, como aos vetores constitucionais da Ordem Econômica.

Essas são apenas algumas provocações que apontam para a estrutura anacrônica das técnicas de tributação sobre os serviços, que devem ser repensadas em um contexto econômico em que o setor terciário participa de forma crescente no PIB brasileiro.

  1. Observando-se que do projeto original da Lei Complementar n. 116/2003, foi vetada a possibilidade de dedução dos valores despendidos com terceiros pela prestação de serviços dos hospitais, laboratórios, clínicas, medicamentos, médicos, odontólogos e demais profissionais de saúde, por cooperativas médicas.
  2. KON, Anita. Nova Economia Política dos Serviços, p.53 et seq. São Paulo, Perspectiva, CNPq, 2015.
  3. TORRES, Ricardo Lobo.O Princípio da Não-Cumulatividade e o IVA no Direito Comparado. MARTINS, Ives Grandra da Silva (coord.). Série Pesquisa Tributárias, no 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 161.
  4. Direito Tributário Internacional, 2a ed. Coimbra: Edições Almedina, 2014, p.238-239

Concentração na Economia Digital: Poder de Edição, Círculo Vicioso de Médici e Defesa da Concorrência

  1. Antes de qualquer coisa: o que é uma firma?

As questões fundamentais da ciência econômica são: o quê, como, quanto e para quem produzir. Portanto, seu objeto de estudo é a alocação de recursos escassos para atendimento de necessidades ilimitadas. Há várias formas de se alocar recursos: os mercados e as firmas são algumas delas.

Uma teoria da firma tem como objetivo explicitar as razões para a existência de tal tipo de organização, bem como suas funcionalidades. Não há consenso, mas uma teoria da firma bastante difundida entre economistas é a teoria dos custos de transação (TCT) do Oliver Williamson, laureado com o Nobel de Economia de 2009 (partilhou a premiação com Elinor Ostrom).

A ideia central da TCT é que usar mercado envolve custo. Por exemplo, no sistema de proto-manufatura do tipo putting out, os mercadores barganhavam uma grande quantidade de contratos de fornecimento com diferentes artesãos autônomos, de forma descentralizada e não sincronizada. Barganhar, coordenar e monitorar contratos envolvia (e ainda envolve) custos e riscos elevados.

Trazer todas as máquinas e artesãos para dentro de um mesmo ambiente de trabalho, onde (i) o processo de produção passou a ser controlado e monitorado; (ii) foram estabelecidas condições de subordinação, hierarquia e comando; e (iii) onde os contratos de fornecimento foram substituídos por contratos de trabalho; foi uma forma de alocar recursos com custos menores, ou seja, de forma mais eficiente. Essa solução alocativa foi chamada de firma.

  1. Concentração: por que as firmas crescem?

A trajetória pela qual um produto ou serviço é desenvolvido, concebido, manufaturado e comercializado envolve uma grande quantidade de transações. Essas transações podem ser conduzidas por meio dos mercados. Quando os custos de transação são elevados, a firma pode internalizar tais trocas. Logo, a firma crescerá à medida que o custo de internalizar tarefas for inferior ao custo de se recorrer às trocas de mercado. Portanto, a eficiência da firma em internalizar custos de transação determinará seu tamanho, bem como seus graus de integração vertical e horizontal.

A dimensão concorrencial (a disputa por frações crescentes de mercado) também determina o tamanho das firmas. Alguns bens ou serviços são produzidos com economias de escala, ou seja, quanto maior o tamanho da firma, menor será o custo de se produzir uma unidade adicional daquele bem. Nestas situações encontramos os monopólios naturais. Barreiras à entrada a novos concorrentes, tais como patentes, também constituem formas de alavancar o crescimento das firmas incumbentes (aquelas que já se encontram nos mercados). As firmas também podem crescer de forma não orgânica, ou seja, simplesmente adquirindo outras firmas.

  1. Por que as firmas da economia digital são tão grandes?

A maioria das empresas de tecnologia são plataformas digitais e plataformas eficientes são plataformas grandes. Por exemplo, uma operadora de plano de saúde é um tipo de plataforma (não necessariamente digital) de dois lados, onde de um lado temos os pacientes e do outro temos os médicos, clínicas e hospitais. Uma administradora de cartões de crédito também é uma plataforma.

Numa plataforma eficiente e bem sucedida, os usuários devem desfrutar dos benefícios dos efeitos de rede (network effect). Esse benefício será maior, quanto maior o número de usuários nos dois lados da plataforma. Por exemplo, nenhum paciente ficará feliz em adquirir um plano de saúde com uma rede credenciada reduzida. Os médicos também terão incentivos reduzidos em aceitarem um seguro de saúde que cobre poucos usuários.

Uma rede social é uma plataforma digital, onde as pessoas partilham conteúdo. Tais plataformas podem trazer grande valor para seus usuários, sem que os mesmos necessariamente paguem por partilhar conteúdos. Os usuários também proporcionam grande valor para as plataformas, afinal a circulação massiva de pessoas e organizações naquela infraestrutura a torna uma espécie de “Rua 25 de Março” de proporções globais. Com uma diferença relevante: a plataforma é capaz de coletar informação estratégica (inferência sobre hábitos, costumes, padrão de consumo, capacidade de pagamento, etc.) de cada uma das pessoas daquela multidão. Tais inferências são possíveis por conta dos comportamentos e dos padrões de interação dos usuários na plataforma. O potencial de geração de valor econômico disso é incomensurável e é refletido no enorme valor de mercado de tais corporações.

  1. O poder de edição das plataformas digitais

O poder de edição das plataformas digitais é também conhecido como gatekeeper power. A teoria do gatekeeper power foi originalmente associada ao poder de edição da imprensa e o suposto exercício de noticiar apenas o que os jornalistas assim desejam. Cabe destacar que não há um consenso na teoria do jornalismo se tal poder de edição de fato exista. No caso das plataformas digitais, o poder de edição se daria de forma semelhante, mas não estaria limitado à circulação de notícias, mas também a qualquer forma de conteúdo partilhável, inclusive publicidade e propaganda.

Algumas questões merecem ser endereçadas nesse ponto: as plataformas digitais teriam de fato poder de influenciar preferências e decisões de consumo? Você compraria um produto pelo simples fato do algoritmo inferir isso e divulgá-lo em sua timeline? As corporações que adquirem espaços publicitários nestas plataformas realmente acreditam que vão alavancar vendas? As respostas parecem ser positivas para todas estas perguntas.

Isso também significa que podemos ser potenciais consumidores de um bem ou serviço que sequer sabíamos da existência, mesmo porque tal bem é capaz de suprir uma necessidade que sequer nos incomodava até então. Mito ou realidade, o fato é que os empreendedores são guiados por tal crença, como pode ser constatado nas palavras de Steve Jobs: “a lot of times, people don’t know what they want until you show it to them”.  Se de fato isso for verdadeiro, o poder econômico de edição das plataformas digitais é, mais uma vez, proporcional ao valor de mercado de tais corporações.

  1. O poder de imputar custos a rivais

O poder econômico de uma grande corporação, associado ao poder de edição de veiculação de informações (gatekeeper power) acerca de bens e serviços (que as pessoas não sabiam que desejavam até que tenham sido apresentados e elas), proporciona à plataforma uma capacidade gigantesca de geração de sinergias com novos negócios. Por exemplo, distribuir e comercializar conteúdo digital em geral, tal como notícias, músicas, filmes, softwares, soluções e aplicativos em geral.

Contudo, o mesmo poder de edição pode ser usado para imputar custos aos rivais e a potenciais entrantes nos diferentes mercados explorados pela plataforma, inclusive contra startups provedoras de produtos altamente inovadores e diferenciados. Um suposto uso abusivo do poder de edição teria como efeito a restrição de espaço para divulgação de tais soluções aos potenciais consumidores, de modo que a probabilidade de sucesso na introdução de uma inovação por rivais ficaria, ao menos teoricamente, bastante reduzida. Parece claro que as consequências disso em termos de bem estar da sociedade são bastante negativas, uma vez que limitaria a velocidade com que as inovações são produzidas e difundidas na economia.

  1. A teoria política da firma e o círculo vicioso de Médici

Em artigo publicado em 2017 no prestigioso periódico Journal of Economic Perspectives, Luigi Zingales sugere a construção de uma teoria política da firma. A proposta teórica do artigo, intitulado “Towards a Political Theory of the Firm”, gira em torno da noção do que o autor denomina de círculo vicioso de Médici, em referência ao poder econômico da família de banqueiros e mecenas fiorentinos da Renascença.

Os Médici não apenas acumularam fortuna com seus negócios, mas também tiveram papel fundamental na construção da revolução cultural e científica do Renascentismo. Adicionalmente, obtiveram êxito político extraordinário ao garantirem, por exemplo, que quatro de seus membros exercessem um dos postos políticos mais poderosos e influentes do mundo ocidental: o Papado da Igreja Católica.

Sabemos que o faturamento de muitas das modernas corporações da economia digital supera até mesmo a arrecadação tributária de vários países. Isso significa que tal poder econômico seja capaz de influenciar de forma decisiva as “regras do jogo” que moldam o ambiente de negócios de uma economia capitalista. Portanto, grandes corporações podem usar o poder econômico para obtenção de poder político, de forma a influenciar as “regras do jogo”, garantindo assim mais poder econômico, que proporcionará mais poder político e ainda maior capacidade de influenciar na construção das “regras do jogo” e assim por diante. Cabendo destacar que as “regras do jogo” não se limitam ao âmbito dos Estados Nacionais, mas também as “regras do jogo” dos mercados globais e dos acordos multilaterais.

A lógica da alocação de recursos no interior das firmas não segue, necessariamente, a mesma lógica de alocação de recursos por meio dos mercados. Como foi brevemente descrito na primeira seção deste artigo, segundo a TCT, quando os custos de transação dos mercados são elevados, a firma internalizaria tais trocas. Portanto, a firma seria, sob algumas condições e circunstâncias, um substituto dos mercados. Logo, não faria muito sentido imaginarmos que firmas e mercados seguissem os mesmos padrões de regras alocativas. Neste sentido, fica claro interpretar o argumento de Zingales, quando o mesmo sugere que a extensão do círculo vicioso de Médici depende de vários fatores não relacionados aos mercados.

  1. Política Antitruste e Defesa da Concorrência

Vários países dispõem de legislação antitruste (algumas mais sofisticadas que outras) que busca endereçar alguns dos problemas acima relacionados. O “pacote básico” de política antitruste inclui controle de concentrações (análise de fusões e aquisições) e repressão às condutas unilaterais (abuso de posição dominante) e concertadas (cartéis).

Algumas jurisdições dispõem de relativa riqueza de recursos humanos e materiais para exercer tais tarefas, como são os casos do sistema FTC/DOJ dos EUA e do DG Comp da União Européia. Mesmo em tais jurisdições, há um debate em torno da ideia de que o atual conjunto de ferramentas disponíveis para estas autoridades não seja suficiente para lidar com os novos desafios impostos pela economia digital. Parte disso se deve ao fato de que autoridades da concorrência se guiam em torno da noção de mercados (principalmente a noção de mercados relevantes) e, como já discutido ao longo deste artigo e sugerido por Zingales, os mercados podem ter muito pouco a revelar acerca da real extensão dos círculos viciosos envolvendo poder político e poder econômico.

No caso brasileiro, dispomos do CADE: uma autoridade antitruste que desfruta de excelente reputação internacional, além de agregar um quadro técnico e diretivo bastante qualificado. Contudo, há uma grande heterogeneidade qualitativa na qual o CADE processa casos envolvendo atos de concentração (AC’s), cartéis e condutas unilaterais. No caso dos AC’s e dos cartéis, o CADE consolidou de forma muito satisfatória sua atuação, de modo que seu desempenho não destoa do que é produzido nas melhores jurisdições do mundo. Contudo, no âmbito da análise das condutas unilaterais, com destaque àquelas relacionadas ao abuso de posição dominante, há um caminho longo a ser percorrido. O problema é que a maioria dos potencias efeitos colaterais da concentração da economia digital são refletidas nestas formas de conduta.

A solução não é muito trivial. Eu mesmo exerci a função de economista-chefe do CADE entre os anos de 2014 e 2016. Costumava interagir com os economistas de outras autoridades, principalmente dos EUA e Europa. A diferença de prioridades era nítida. Enquanto eu tinha como tarefa prioritária contribuir na consolidação de um protocolo de análise prévia de AC’s (atualização de Guia e construção de modelos de simulação) e de estimativas de danos de cartéis, meus colegas dos EUA e Europa já haviam superado isso e toda a energia disponível era alocada para análise de condutas unilaterais.

As prioridades eram óbvias. Da nossa parte, estávamos lidando com um cenário de concentração e consolidação de mercados e cadeias produtivas (inclusive estimuladas por políticas públicas) e com o desmantelamento de cartéis por meio de acordos de leniência, por exemplo. Já nossos colegas de Europa e EUA estavam mais preocupados com a atuação de gigantes da economia digital, pois já sentiam de forma mais evidente os efeitos colaterais de seu gigantismo.

Esse amadurecimento da política antitruste no Brasil foi reportado de forma bastante elucidativa por Amanda Athayde, em seu artigo de opinião de 01/11/2017 no Portal JOTA, intitulado “As três ondas do antitruste no Brasil: A Lei 12.529/2011 e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica”. Como bem apontado pela autora, superamos a primeira (análise de AC’s) e segunda onda (cartéis), mas a “terceira onda” ainda está “a ser iniciada no Brasil”.

Espero que sejamos rápidos, para que também possamos construir e aprimorar nossas “regras do jogo”, que busquem priorizar o gênio inovativo e empreendedor de um capitalismo brasileiro que ainda não tivemos a felicidade de construir.

Luiz A. Esteves é Economista Chefe do Banco do Nordeste (BNB) e Professor do Departamento de Economia da UFPR. Foi Economista Chefe do CADE e Chefe Adjunto da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento. Doutor em Economia pela Universidade de Siena, Itália.

O que querem os países nas negociações de e-commerce?

O comércio digital tem crescido rapidamente no mundo todo. De acordo com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as vendas globais de bens e serviços pela internet alcançaram US$ 25,7 trilhões em 2016. Desse valor, 90% foram transações entre empresas (B2B). Como consequência, provisões sobre comércio digital cresceram substancialmente nos âmbitos dos acordos regionais de comércio com o objetivo de remover e evitar barreiras ao livre fluxo de dados e conter o surgimento do chamado “protecionismo digital” ou proteger e resguardar interesses nacionais associados à esta agenda.

Dado mais recente da Organização Mundial do Comércio mostra que 80 dos 305 acordos notificados à instituição têm provisões ou capítulos sobre o tema. Quando se olha apenas os acordos recentemente notificados, o que se vê é que a vasta maioria dos acordos já abarcam temas de e-commerce. Com os vários acordos ora em negociação bilateral e regionalmente, tudo indica que esse número ainda crescerá bastante nos próximos anos.

Em análise feita pela OMC focada em 63 acordos regionais com capítulos específicos sobre comércio eletrônico, entre eles o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CTPP), seriam os países desenvolvidos que estariam a “puxar” aquelas negociações. Estados Unidos, Cingapura, Austrália, Canadá e Coreia do Sul são os países que mais alavancaram o tema de e-commerce em ARCs. Muitos países em desenvolvimento hoje têm acordos com essas provisões à reboque da demanda de países desenvolvidos para fechar negociações.

Os temas que compõem os acordos variam bastante, não apenas em conteúdo, como, também, em profundidade dos compromissos. A maior parte inclui cláusulas de não-tributação de transmissão eletrônica, cooperação, proteção de dados pessoais e do consumidor. Em menor escala, mas também frequente, estão temas de aplicabilidade das regras da OMC ao comércio eletrônico, comércio sem papel, tratamento não-discriminatório de produtos digitais e autenticação eletrônica. Questões mais controversas, como localização de servidores e código-fonte, estão presentes apenas em acordos mais recentes. O formato desses acordos também varia — muitos têm capítulos separados para comércio digital, enquanto outros preferiram deixar o tema no capítulo de serviços.

Acordos ainda em negociação ilustram bem as posições dos países em relação ao tema de comércio digital. Na proposta apresentada na OMC ou nos textos em negociação com México e Chile, já é possível ver com clareza os pontos importantes na negociação para os europeus: a proibição da imposição de impostos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e o banimento de procedimentos de autorização focada apenas em serviços online “por motivos protecionistas” (colocado como princípio de não-autorização prévia), e o aceite de contratos e assinaturas eletrônicas.  O bloco ainda negocia o tema com o Mercosul, e o capítulo de comercio eletrônico ainda requer alguma convergência e a definição de exceções à aplicação das provisões.

O que se vê nesse e em outros acordos recentes é reflexo do avanço da União Europeia na promoção da economia digital no bloco, como o “mercado digital comum”, e na regulação sobre várias questões cruciais para a economia digital, como a proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais (autenticação eletrônica, por exemplo).

Ao colocar a proteção de dados pessoais como “não negociável” em acordos de comércio, por se considerar um direito fundamental, a Comissão Europeia retira o tema de pauta das negociações bilaterais. A regulação sobre proteção de dados europeia (GDPR, na sigla em inglês), que entra em vigor dia 25 de maio, responde à demanda dos cidadãos europeus por mais transparência sobre quem tem seus dados, de onde eles vieram e com quem eles são compartilhados. Ao mesmo tempo, o bloco tem trabalhado em provisões para evitar medidas protecionistas sobre o fluxo de dados entre fronteiras, ao tempo que garantam a proteção e a privacidade dos dados no patamar colocado pelas novas regras no bloco.

Apesar de terem se retirado das negociações do Acordo Transpacífico (originalmente TPP e agora CTPP) como um dos primeiros atos oficiais da administração Donald Trump e de terem apresentado diversas críticas à OMC em relação a comércio eletrônico, os Estados Unidos vêm firmando posição naquela Organização e destacando que o comércio digital segue como essencial para a economia do país, o que está em linha com a condição de sediar muitas das maiores e mais influentes empresas de economia digital, incluindo plataformas de e-commerce.

A posição dos americanos na OMC seguiu em defesa do livre fluxo de informações e de transferência de dados entre fronteiras, não exigência de localização de servidores e proibição do bloqueio de conteúdo online. Advoga-se pela não tributação sobre transmissões eletrônicas, não-discriminação no tratamento de produtos digitais, proteção a código-fonte e não restrição à encriptação. Trata-se de um claro esforço para avançar as discussões sobre comércio eletrônico na Organização e reduzir as possibilidades de barreiras digitais aos fluxos de dados, algo vital para o atual modelo de negócios das empresas super-hegemônicas americanas de tecnologia digital.

Já no continente africano, o tema do comércio eletrônico é dominado por um pequeno grupo de países, entre eles Egito, África do Sul, Gana e Etiópia. A região tem baixíssima participação no comercio digital global (inferior a 1%) muito em virtude dos grandes desafios que a região enfrenta, como acesso à eletricidade, tecnologia da informação e comunicação (TIC), logística, baixo uso de métodos de pagamentos eletrônicos, pouco acesso a cartão de crédito, fraca penetração bancária e falta de conhecimento sobre TI e habilidades ligadas a e-commerce, tanto de empresas como de consumidores.

O tema de comércio eletrônico não está na mesa nos acordos que a região da África está negociando, como é o caso da Zona de Livre Comércio Continental (CFTA, na sigla em inglês). No âmbito multilateral, o Grupo Africano, que não é composto por todos os países do continente, durante as reuniões pré-Ministeriais de Buenos Aires, mostrou grande preocupação com as implicações de novas regras em e-commerce e com a potencial restrição que tais regras colocariam sobre o espaço para políticas industriais digitais voltadas ao desenvolvimento da região. Uma adoção de regras “prematuras” poderiam reduzir ainda mais, na visão do bloco, as possibilidades futuras de catching up de crescimento econômico e tecnológico.

A Índia também está entre os países com ressalvas quanto ao avanço nas negociações em e-commerce na OMC. O país tem tido forte expansão do mercado de comércio eletrônico e da penetração da internet e de smartphones e tem receio de que as novas regras multilaterais prejudiquem o crescimento das plataformas de e-commerce nacionais. No último documento circulado pelo país na OMC, posicionaram-se contra o avanço nas negociações de regras em comércio eletrônico, tal como o Grupo Africano. O país assinou apenas um acordo que cobre o tema de comércio eletrônico, provavelmente por demanda da contraparte cingapuriana.

Em lado oposto, não há região mais promissora no comércio eletrônico que o leste da Ásia. A região já tem alguns dos gigantes globais da internet e do e-commerce e ao menos 1 de cada 3 novos unicórnios são daquela região. A região tem um mercado digital pujante, com forte aumento anual no número de consumidores. A China, sozinha, é, hoje, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo, respondendo por 40% das transações globais. Nessa condição, a região tem uma postura diferente da de outros países em desenvolvimento. Afinal, a região se posiciona para ser parte do mainstream da indústria global do e-commerce e da economia digital. Ainda que o tema não se reflita em números de acordos assinados, já é possível ver apontando no horizonte as demandas que o país tem para seguir avançando na provisão de bens e serviços digitais para os mais diversos mercados.

Já o Brasil segue negociando acordos com União Europeia, Chile, México, Índia, Canadá e Associação Europeia de Livre Comércio (EEFTA) e tem mandato negociador já aprovado para negociações com a Coreia do Sul e conversas ainda preliminares com Cingapura. O país segue com participação ativa nas negociações na OMC, seguindo o indicado na Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico. Com o crescimento do interesse de países desenvolvidos por provisões em comércio eletrônico, alguns desses acordos passam a repercutir aqueles anseios. Na condição de país essencialmente “usuário” das tecnologias digitais, o Brasil tem sido cauteloso nas negociações de forma a resguardar espaço de política. O país tem colocado na mesa a necessidade de associar o e-commerce a preocupações de desenvolvimento econômico. Afinal, tem ficado cada vez mais evidente a tendência de concentração do mercado de e-commerce em nível global em torno de um pequeno punhado de grandes plataformas, bem como a distinção entre os benefícios de se “usar” e-commerce e os benefícios de se “desenvolver, distribuir e gerenciar” plataformas de e-commerce, o que é prevalecente para alguns poucos países. De fato, já se identificam evidências de que o hiato entre esses dois grupos de benefícios poderá ser a fonte fundamental de aumento da desigualdade de renda entre países.

Pela análise dos acordos em andamento, já é possível ver convergência para alguns temas centrais, que devem acabar sendo os principais assuntos a terem resultados em um eventual acordo multilateral sobre o tema. A grande presença do comércio digital em acordos regionais e bilaterais é uma clara resposta à ânsia dos países em avançar na agenda antes que mais barreiras ao comércio digital e ao fluxo de dados sejam aprovadas em nível doméstico.

Os países que têm maior receio quanto ao avanço da economia digital e do poder das mega-empresas digitais sobre as suas economias muitas vezes têm dificuldades em colocar a sua posição sobre um tema cujo alcance ainda não está claro. Acordos de comércio apresentam inúmeras frentes de negociação, sendo difícil consolidar posição em economia digital frente às demandas prementes e bem mapeadas em bens,  investimentos, regras de origem e compras públicas, por exemplo.

Orquestrar todos os interesses é matéria difícil quando se tem maior conhecimento e tactibilidade nos efeitos das provisões para o comércio entre os potenciais parceiros em temas tradicionais. Todavia, cada vez mais, os países atentam-se para a importância de se olhar com cautela para o que os capítulos de comércio eletrônico contemplam, o que torna ainda mais importante o engajamento em fóruns multilaterais de forma a manter espaço suficiente para políticas públicas digitais que permitam aos países, em especial os em desenvolvimento, otimizar os benefícios da revolução digital.

Prestação de serviços de Ensino Superior: desafios concorrenciais

O acesso à educação superior é o sonho de muitas famílias brasileiras. Se, no passado, ter um diploma era um objetivo distante, restrito a poucos abastados, observa-se que esta não é mais a regra (apesar do grande número de jovens ainda fora do sistema educacional). A maior demanda por esse serviço, combinado às políticas públicas de acesso ao ensino superior, acabou resultando em um cenário perfeito para um lucrativo mercado. Tão rentável que, mesmo após a decisão do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em impedir a compra da Estácio pela Kroton, esta anunciou lucro recorde em 2017.

As preocupações concorrenciais nesse setor ficaram claras nos pareceres do Cade e nos votos dos Conselheiros durante o julgamento do caso. Ambas instituições possuem a maior quantidade de alunos matriculados no ensino superior privado no país. Paralelamente, considerou-se a área de influência de cada instituição de ensino, já que o deslocamento, principalmente no ensino presencial, é item importante na escolha do estudante. Durante a proposta da compra da Estácio pela Kroton, foram analisados os municípios onde cada uma atuava e observou-se que a fusão criaria uma empresa presente em 109 municípios, sendo que em 15 haveria sobreposição física. Em adicional, haveria sobreposição em 125 cursos, como direito, administração, ciências contábeis, entre outros.

O parecer da Superintendência Geral do Cade [1] ressaltou que, além das sobreposições destacadas, haveria uma excessiva concentração nos cursos de graduação à distância, cujo número de alunos tem aumentado gradativamente. Em alguns municípios, a nova empresa seria a única provedora desse serviço e colocaria a Kroton em posição de líder incontestável, com quase 50% do mercado nacional, bem distante dos demais concorrentes.

O tamanho de uma empresa é sempre motivo de discussão entre especialistas. Se, por um lado, ele pode ser resultante natural de inovações e de eficiências, não se descarta a hipótese de que a mesma, com grande poder de mercado, use isso como vantagem para abusar de sua posição dominante. Desse modo, são considerados fatores como probabilidade de entrada de outros concorrentes e quais seriam as barreiras que estes enfrentariam, em um exercício conjectural.

No mercado de ensino superior, o parecer do Departamento de Estudos Econômicos do Cade apontou a relevância da marca na comercialização dos cursos, principalmente na modalidade à distância. Isso colocaria a nova empresa, com duas marcas nacionais fortes, em vantagem em relação às demais concorrentes. Novas entrantes nesse mercado deveriam, desde o início, considerar custos com publicidade e propaganda para tornar sua marca tão conhecida como Kroton e Estácio, o que já seria uma barreira importante para novos centros de ensino.

A dificuldade de entrada aliada aos desafios que outras instituições teriam para competir criariam uma situação em que seria alta a possibilidade de práticas abusivas, como aumento nos preços das mensalidades, exclusão de marcas, combinação de preços ou de aquisição de serviços com outros competidores menores. Um ponto que diferencia esse caso de outros, todavia, foi a preocupação com a manutenção da qualidade do ensino a ser prestado. Destacou-se que haveria um risco de homogeneização da educação superior em patamares de qualidade que, apesar da conformidade com a regulação atual, poderia provocar prejuízos à educação superior como um todo e à própria economia do país, dada a importância desse setor para a formação de mão-de-obra. Como levantado pela Associação Brasileira de Ensino à Distância, citando obra da Hoper Educação:

Um dos efeitos sociais negativos dessa concentração de mercado é a concentração de conteúdos educacionais, já que os mesmos materiais didáticos acabam sendo utilizados por uma quantidade cada vez maior de alunos. A dominação do conteúdo por grandes grupos consolidadores nos ameaça com o risco de um cenário de McDonalds ou Blockbusters de conteúdo educacional, que tendem a provocar uma homogeneização cultural, apagando valores e formas de comunicação locais.” (PRESSE, 2016, p. 43). [2]

Assim, considerando os efeitos perversos de uma possível concentração nesse mercado, é importante que as autoridades reguladoras mantenham-se atentas à qualidade do serviço de ensino superior a ser prestado por grandes empresas, para que o sonho de muitos brasileiros não acabe se tornando um pesadelo.

Simone Cuiabano é Pós-doutora em Economia na Toulouse School of Economics (TSE). Foi Economista-chefe adjunta do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre 2014 e 2016. É Auditora de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro Nacional desde 2007.

 

Referências:

[1]Ato de Concentração Ordinário, 8700.006185/2016-56 (Cade 31 de 08 de 2016). Fonte: Cade.

[2]Presse, P. (2016). Análise Setorial da Educação Superior Privada — Brasil. Foz do Iguaçu: Hoper Educação.

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