Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Breno Teixeira

O cobalto da República Democrática do Congo no vale da “curva sorriso”

Em texto publicado neste blog no fim do ano passado, Renan Abrantes e Jorge Arbache compararam as Grandes Navegações da metade do milênio passado ao que seriam as atuais Grandes Navegações Digitais. Para os autores, tanto nas primeiras quanto nestas últimas, os maiores beneficiários das conexões que se estabeleceram eram os intermediários – mercadores, no primeiro caso, e os atuais donos de grandes plataformas digitais no segundo. A meio caminho entre uma e outra era, os recursos naturais do interior do continente africano entraram na equação.

Sob o recorrente pretexto de levar os valores cristãos e civilidade a “pobres almas” do desconhecido continente, exploradores como o famoso inglês David Livingstone realizaram grandes feitos, como a travessia a pé de costa a costa, em meados do séc. XIX. Anos depois, em nova incursão à África, para tentar dar fim a uma rusga entre exploradores conterrâneos seus acerca de qual seria a verdadeira fonte do Rio Nilo, Livingstone desapareceu. Coube ao ambicioso jornalista americano Henry M. Stanley encontrar o explorador, moribundo, em uma aldeia da Tanzânia. O feito de Stanley chamou a atenção do Rei Leopoldo II da Bélgica, para quem o jornalista contou das abundantes riquezas naturais que encontrou na região do Rio Congo, selando o destino de milhares de vidas.

Leopoldo II nunca pisou naquelas terras – que tornou sua propriedade pessoal -, mas multiplicou sua riqueza com o marfim e a borracha retirados de lá às custas de grande devastação ambiental e de um genocídio. Pela borracha, o Congo Belga se integrava a uma das cadeias produtivas de maior valor da época; porém, a importante matéria prima para produção de pneus da nascente e promissora indústria automobilística não permitiu ao país uma inserção melhor que precária na cadeia global.

A República Democrática do Congo (RDC), atualmente, é fonte de outra matéria prima, crucial para indústrias de tecnologia: 60% do cobalto disponível no mundo encontra-se no solo do país. O metal é utilizado em baterias de celulares a carros elétricos e, conforme relatório da Anistia Internacional, sua exploração é feita de forma artesanal, insalubre e com considerável participação de mão de obra infantil.

A integração da atual República Democrática do Congo à economia mundial, por meio da borracha, permitiu que o único intermediário (o Rei Leopoldo II), se apropriasse de considerável parcela da renda gerada na produção do produto final (pneus). Isto porque esta integração se deu em momento no qual a curva sorriso de produção desse bem encontrava-se menos abaulada, de modo que a etapa da fabricação em si do bem final (pneus) representava importante parcela do valor de venda gerado. O problema de então relacionava-se mais ao total alheamento da mão de obra que coletava o látex em relação aos ganhos auferidos com a sua venda – isso para não mencionar as atrocidades cometidas.

Atualmente, observando-se a inserção da indústria de cobalto da RDC na cadeia global de produção, percebe-se que ela se encontra no vale de uma curva que, ademais, vem se tornando cada vez mais profundo. Ora, com a apropriação de parcela crescente do valor de produção por parte de etapas não produtivas (design, marketing, pós-vendas, pesquisa, desenvolvimento de software etc.), o trecho da produção física de bens com grande conteúdo de serviços agregado torna-se irrisório. Ironicamente, o que se poderia tomar apenas como triste constatação pode vir a ser um alento aos congoleses que vivem de tirar o metal do fundo de poços.

Ocorre que o recente crescimento observado e o previsto da indústria de carros elétricos permite inferir que a dependência do cobalto por parte desse segmento da indústria seguirá alta. Assim, vislumbra-se uma chance interessante de fazer com que mais benefícios da exploração do cobalto sejam destinados aos habitantes de seu país de origem, especialmente àqueles trabalhando nas minas. Ora, se produtos sofisticados tentem a se valorizar pelos serviços neles embarcados, em detrimento do material empregado em sua fabricação, é razoável supor que uma majoração no preço pago pelas matérias primas na etapa de sua produção física em pouco afetará o lucro de empresas como Apple – que admitiu o uso de cobalto vindo do Congo em pelo menos 20% suas baterias -,LG Chem, Amazon ou Samsung.

A mudança depende, no entanto, de que empresas como as citadas monitorem a origem do material utilizado na fabricação de seus produtos e que a regulação estatal na RDC incremente a proteção dos trabalhadores. Com isto, é possível distribuir melhor o quinhão, que atualmente vai para os intermediários da cadeia do metal, compostos principalmente por empresas chinesas atuantes no país.

Ao se confrontar a inserção da RDC como importante player da cadeia global de baterias elétricas (maior ofertante individual de cobalto) com a precariedade das condições em que esse minério é explorado, evidencia-se a importância da regulação e indicam-se soluções para um problema local pela integração entre estratégia de mercado do setor privado com melhorias em condições socioeconômicas. No entanto, trata-se de arena complexa a cuja abordagem deve ser dada mais atenção por parte de nações e mesmo de blocos econômicos.

À medida que se confirmam tendências como a concentração de mercado na economia digital, o avanço da mobilidade como um serviço (MaaS) e o aprofundamento do vale da curva sorriso, a concepção de arranjos regulatórios adequados mostra-se como alternativa apta a trazer ao sistema macroeconômico contrapesos aos malefícios resultantes da necessidade de economias ou setores primário-exportadores (como a RDC e a mineração no Brasil) extraírem recursos com participação decrescente, em termos relativos, na composição do valor de produtos.

No entanto, não se deve esperar que tal regulação – que já é de difícil aplicabilidade – resolva por si só os problemas, mesmo porque a escassez de determinado recurso serve como incentivo ao desenvolvimento de materiais ou de tecnologias alternativas. É preciso, como contrapartida, a efetiva emancipação de economias primárias no sentido de agregarem mais valor à sua produção, o que pode ser possível tanto pela diversificação de seu parque exportador quanto pela agregação de valor a seus produtos. Não é tarefa simples, mas auspiciosa, afinal, é de se esperar que países com a nossa biodiversidade, por exemplo, alcancem melhores níveis de desenvolvimento com a exploração de recursos caros às ciências médicas e à biotecnologia do que com a de minérios no vale de uma curva sorriso cada vez mais profunda.

 

Brasil: líder e (ainda) perdedor no mercado de café

Em outubro deste ano, o jornalista Mauro Zafalon observou, em texto publicado pela Folha de São Paulo, que, apesar de figurar como líder mundial de produção e exportação de café, o Brasil se distanciava cada vez mais das receitas mundiais geradas pelo comércio do produto. Isto porque, segundo ele, a “industrialização e a geração de ‘blends’ (misturas) para a bebida com cafés de diferentes regiões do mundo são o que interessam hoje ao mercado internacional.”.

Tradicionalmente, empresas de torrefação, grandes distribuidores e marcas de produtos encontrados em prateleiras dos mercados consumidores capturavam a maior parcela de valor gerado neste subsetor de alimentos e também ditavam padrões de qualidade e de produção ao restante da indústria (os produtores, grosso modo). No entanto, esta dinâmica veio sofrendo drástica alteração nas últimas décadas, deslocando a percepção do consumo do produto café para o consumo do café com conteúdo social. Assim, diferem-se os segmentos consumidores de café: convencional, diferenciado e aquele consumido como experiência – também chamados, em relatório recém-publicado da World Intelectual Property Organization (WIPO), respectivamente, de café da primeira, segunda e terceira ondas (ou gerações) – e que se diferenciam em termos de público-alvo, de nuances do produto e, claro, de preço.

A figura abaixo, retirada do referido relatório (World Intelectual Property Organization Report 2017), permite visualizar essa inflexão, causada pela crescente incorporação de capital intangível na cadeia de valor do café consumido mundialmente e que permitiu aos países consumidores capturarem parcela cada vez maior da renda gerada no setor em ritmo que se acentuou a partir de fins da década de 1970.

Gráfico – Participação dos países exportadores e importadores na renda total gerada pela venda de café – 1965-2013

Fonte: World Intelectual Property Organization Report 2017.

Os consumidores tradicionais de café, que correspondem à primeira onda, eram atendidos por cerca de 65 a 80% da quantidade total de café produzida mundialmente, o que, no entanto, corresponde a apenas 45% do valor total de mercado. Por si só, esta informação já reflete o alto valor pago pelos consumidores da segunda onda – que passaram a levar em conta padrões voluntários de sustentabilidade – e da terceira onda, composta por demandantes dispostos a pagar um preço premium para terem peculiaridades de gosto atendidas por um produto que considerarem superior ao das demais ondas.

A sofisticação da demanda por café ao longo dessas décadas não só incrementou a parcela da renda capturada pelos países que mais gastam com seu consumo final. Ainda que em menor medida, os produtores de café cujo preço acompanhou a elevação dos padrões de produção – em termos de melhorias tecnológicas ou de aspectos socioambientais – também tiveram sua renda elevada. O mesmo relatório atesta que, enquanto países produtores de café da primeira geração faziam jus a US$3 por quilo do produto, os da segunda e terceira gerações o vendiam a cerca de US$6 e US$11 respectivamente. Neste sentido, é fácil inferir que a política pública ideal em um grande país produtor procuraria incrementar os ganhos “nas duas pontas”: promovendo o consumo de segunda e terceira geração por meio de táticas como o branding, para elevar o dispêndio do consumidor final local e externamente e, ao mesmo tempo, redistribuindo ao menos parte dos ganhos adicionais para segmentos de inovação (inclusive em termos de aumento da variabilidade de grãos) e padrões sustentáveis de produção (ambientais e sociais).

O relatório cita ao menos dois países que lograram melhorar sua inserção no mercado mundial de café ao perceber e promover políticas neste sentido, a ponto de terem suas marcas indissociáveis de suas nacionalidades: o café colombiano Juan Valdez e o jamaicano Blue Mountain. É digno de nota que nossos vizinhos sul-americanos contavam, ao final de 2016, com 371 cafeterias no “formato Starbucks”, das quais 120 fora da Colômbia. Ao fechar as portas para esse tipo de industrialização, o Brasil se consolida como líder em quantidade produzida, e, ao mesmo tempo, como o grande perdedor, pois não pode se orgulhar da marca, se os verdadeiros vencedores estão levando quase tudo em termos da renda total gerada.

Espera-se, no entanto, que iniciativa do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), na região das montanhas do Caparaó (entre Minas Gerais e o Espírito Santo), consolide caminho alternativo à cafeicultura nacional. Agricultores visitados por seus técnicos vêm conseguindo capturar parcela crescente do que antes seguia para atores intermediários. Isto foi possível por meio de qualificação técnica, alterações importantes em processos (principalmente pós-colheita) e aquisição de novos maquinários, como beneficiadoras. Assim, em 2016, conforme informa a Associação Brasileira de Cafés de Especialidade (BSCA), “a produção de cafés brasileiros de qualidade superior chegou a 8 milhões de sacas, 54% a mais que em 2015”.

Esta inflexão foi noticiada também na Folha de São Paulo pouco mais de 2 meses após a publicação do artigo de Zafalon, ao qual é importante contraponto. De todo modo, assim como para o café, deve-se ter em conta que mudanças de rumo como as promovidas pela Incaper devem servir de referência para outras culturas, como a soja, de modo que se contorne obstáculos como os impostos por oligopsônios (haja vista as implicações negativas da predominância do consumo chinês deste nosso grão – vide artigo de Zafalon) e ainda gerar mais renda por peso da produção. Assim, torna-se possível não somente remunerar melhor nossa produção, como garantir melhores condições de trabalho a produtores e de preservação de recursos naturais.

Breno Simonini Teixeira é economista formado pela Universidade de Brasília e mestre em Gestão Econômica do Meio Ambiente pelo Centro de Estudos em Economia, Meio Ambiente e Agricultura (CEEMA), vinculado ao Departamento de Economia da UnB. Atualmente, trabalha na Superintendência de Meio Ambiente na VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias.