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Economia da Corrupção (I)

Conforme as pesquisas de opinião, a corrução é vista pelos brasileiros como um dos três principais problemas do país, superando em alguns levantamentos a saúde e segurança. Em outro levantamento, somente é ultrapassada pela saúde e violência, igualando-se ao desemprego e situando-se bem longe de aspectos sociais como a fome e a desigualdade. Esta não é uma singularidade do Brasil e, em maior ou medida, é um fenômeno mundial, podendo ser identificada como uma das fontes que alimentam a atual onda de populismo que está abalando até países com longa tradição democrática.  A maioria das outras dimensões que fazem parte das apreensões dos indivíduos (como desemprego, educação, saúde, segurança, etc.) mereceu uma particular atenção na academia e na ciência econômica, chegando a uma agregação de conhecimentos e trabalhos técnicos que, em maior ou menor medida, pautam o debate cotidiano e norteiam a formatação de políticas públicas. 

No caso específico da corrupção, não obstante a relevância identificada nas pesquisas de opinião, esse cenário “ideal” (qualificativo que procede uma vez que o debate público e a formatação de políticas estariam ancorados em arcabouços teóricos e pesquisas empíricas) não parece ter-se realizado.  As polêmicas e sugestões de política estão pautadas, quase que exclusivamente, por aspectos legais quando não morais/éticos.  Não podemos negar a relevância dessas dimensões, especialmente pela idiossincrasia do tema.  Contudo, uma disciplina como a economia, que chega a dar “palpites” em áreas que parecem situadas longe dos cálculos financeiros (custos/benefícios), como família, matrimônio, número de filhos, aborto etc., não poderia ficar indiferente a esse tema.  Em realidade, existe uma ampla literatura abordando o tópico (corrupção) usando a perspectiva e as ferramentas usuais no modelo canônico (agentes maximizando uma função objetivo – no caso das firmas, maximizando lucros líquidos de propinas; incentivos, mercado concorrenciais ou não, etc.) e, como não poderia deixar de ser, esse prisma é questionado por paradigmas concorrentes.  Porém, essa profusão de contribuições parece confinada a uma especialidade nos ambientes acadêmicos, com pouca transcendência fora desses círculos restritos.  Pautas éticas/morais e conseguintes recomendações de penalidades legais parecem moldar os discursos.   

No caso específico do Brasil, a “lava jato” se desenvolveu e adquiriu popularidade em um contexto no qual observamos uma notória incapacidade de os resultados da reflexão teórica e empírica na área de economia permear o debate público. Essa segmentação (reflexões acadêmicas na área de economia/debate público) nutre-se de diversas raízes e tem indubitáveis custos.  Vamos começar por estes últimos.

Em termos de custos, a ausência de algum referencial da literatura econômica no debate público que aborda o tema faz com que aspectos éticos/morais/legais monopolizem as posições, enquanto temas complexos (como o próprio processo do desenvolvimento ou a retomada do crescimento, no caso do Brasil) estão sendo colocados em termos de um reducionismo quase absurdo.  Assim, “solucionado o problema da corrupção” o país poderá decolar ou, a mesma proposição em outros termos, o “problema do Brasil é a corrupção”. Nas palavras de Moises Naim: “Corruption has too easily become the universal diagnosis for a nation’s ills. If we could only curtail the culture of graft and greed, we are told, many other intractable problems would easily be solved. Although it is true that corruption can be crippling, putting an end to the bribes, kickbacks, and payoffs will not necessarily solve any of the deeper problems that afflict societies”.  Esse reducionismo foi também alimentado por algumas posições de certos organismos multilaterais os quais, nas últimas décadas, direcionaram seus olhares ao tema da corrupção.  Por exemplo, para o Banco Mundial “Corruption is the single greatest obstacle to economic and social development”. Esta relevância outorgada a um fenômeno que (como veremos nos próximos posts) é extraordinariamente difícil se medir, induz no debate público vieses que chegam a alterar as prioridades e confundir magnitudes.  Por exemplo, a esdrúxula afirmação segundo a qual combatendo a corrupção se poderia reverter o déficit da previdência.  Como bem salientou Pedro Nery, nessa alegação se estão confundindo milhões com trilhões.

Ou seja, um dos custos da monopolização das atenções no combate à corrupção está vinculado ao reducionismo/simplificação de um processo complexo (como a retomada do crescimento e o processo de desenvolvimento em geral), que envolve diversas variáveis (investimento/poupança, educação, abertura ao exterior, etc.) em prol de uma dimensão que, não obstante a sua significância ética/moral, dificilmente possa ser identificada como a  condição  que permita transmudar os obstáculos que o Brasil enfrenta hoje para retomar uma senda de progresso econômico e social.

Contudo, abordar de forma mais rigorosa esse tema não é simples pela própria essência do objeto, fato que justifica o descolamento entre a produção acadêmica na área e sua utilização no debate público. Nos próximos parágrafos vamos detalhar várias dessas complexidades, e mesmo perplexidades, que nos depara o tema mesmo quando abordado a partir do olhar pretensamente rigoroso do modelo econômico corriqueiro. 

Um pré-requisito elementar para iniciar qualquer reflexão consiste em definir o objeto.  Em outros termos, de que estamos falando quando estamos debatendo a “corrupção”?  Essa definição e os corolários que dela se deduzem não são triviais.  Por exemplo, Jain (2001) afirma que: “Although it is difficult to agree with a precise definition there is consensus that corruption refers to acts in which the power of public office is used for personal gains in a manner that contravenes the rules of the game”. Treisman (2000) define a corrupção como “the misuse of public office for private gain”.  Esta definição, que parece ir ao encontro do zeitgeist hoje no Brasil, tem profundos corolários, uma vez que assume que a corrupção é monopólio do setor público, de seus funcionários ou da interação destes com o setor privado.  Não existiria corrupção na interação entre agentes do próprio setor privado.  Nas palavras de Gary Becker: “To Root Out Corruption, Boot Out Big Government”.  Nesta perspectiva, uma das alternativas para reduzir a corrupção seria ampliar os espaços mercantis, nos quais deveriam prevalecer as condições mais próximas à livre concorrência. Em recentes pleitos eleitorais no Brasil, foi utilizada um consigna segundo a qual, se a Petrobrás tivesse sido privatizada, não existiria o denominado Petrolão.  Ainda que os que fantasiaram com essa frase não soubessem, eles eram tributários de Gary Becker.

Essa definição, ao se circunscrever ao setor público, a seus agentes e à interação destes com o setor privado tem imprevistos desdobramentos.  Vamos nos deter em alguns deles, sejam porque são polêmicos seja porque denotam uma extrema fragilidade com a história recente.

Percebamos que restringir a corrupção ao setor público é uma delimitação que deixaria fora do escopo da análise episódios como o da Enron e várias das peripécias da crise da sub-prime nos EUA (AIG, Merrill Lynch, etc.).  Excluir, pela própria definição de corrupção, interações dentro do próprio setor privado do escopo de pesquisas pode induzir a qualificar a essa perspectiva algum matiz ideológico, especialmente porque as recomendações de política que dela se deduzem sempre irão no sentido de que a melhor forma de se combater a corrupção será reduzir o Estado e elevar o grau de concorrência nos mercados. Mais ainda, estender o raciocínio leva a adjetivar a corrupção. Vejamos.

Dessa abordagem decorrem diversas recomendações de política que podem, em princípio, serem vistas como hostis ao próprio senso comum que acompanha a palavra “corrupção”. Por exemplo, é famosa a afirmação de Huntington (1968) segundo a qual “In terms of economic growth, the only thing worse than a society with a rigid, over-centralized, dishonest bureaucracy is one with a rigid, over-centralized and honest bureaucracy”. Ou seja, existiriam situações nas quais, em termos econômicos, um setor público corrupto seria preferível a uma burocracia honesta. Gary Becker afirma que “…some of the corruption in totalitarian systems like the Soviet Union may be of the good kind because the laws are so bad”.

Mas não unicamente teríamos situações nas quais a corrupção seria preferível ou teria impactos positivos.  Segundo a perspectiva que estamos apresentando, ainda em situações menos extremas, como era o caso da União Soviética, as medidas anticorrupção teriam que ser submetidas aos normais critérios de custo/benefício.  Em outros termos, reduzir ou acabar com a corrupção poderia ter custos que superam os benefícios. Uma sociedade que pretendesse acabar completamente com a corrupção poderia incorrer em tais custos que, pelo ângulo dos custos/benefícios, não seria interessante. Assim, da perspectiva legal ou mesmo ética/moral a corrupção constitui uma atividade que sempre e em qualquer circunstância mereceria reprovação e castigo, e se tomarmos o paradigma dominante veremos uma tensão entre essas distintas perspectivas.  O mercado e a livre concorrência seriam um antídoto natural contra a mesma e em uma sociedade imaginária na qual sua forma de regulação estivesse inteiramente pautada pelas forças da oferta e demanda a existência de corrupção seria um contrassenso.  Mas, por outro lado, a mesma lógica de sopesar custos e benefícios pode levar a diagnosticar corrupções “boas” ou “justificáveis” e “níveis ótimos de corrupção”, a partir dos quais os benefícios de reduzir as ilegalidades são inferiores aos custos.  

Por outro lado, a racionalidade econômica que pauta o modelo canônico pode levar a situações paradoxais, próprias daqueles exercícios de laboratório que estão alimentando a popularidade da denominada Economia Comportamental. Lembremos que, no paradigma dominante, os agentes reagem a incentivos e penalidades, com castigos e recompensas que induzem atitudes.  Por exemplo, antecipa-se que a elevação de uma penalidade desincentive o comportamento que se está pretendendo reprimir.  Um estudo de campo ilustrado por Gneezy e Rustichini (2000) manifesta a possibilidade de um resultado que está nas antípodas do esperado.  Nos parece ilustrativo relatar o desfecho dessa experiência uma vez que ela nos pode auxiliar como parâmetro para debater o desenho de políticas anticorrupção.  Em uma escola, os pais retiravam seus filhos depois da hora de fechamento, cuja sequela era docentes e os próprios alunos cansados e entediados na espera.  Foi imaginada uma forma de reduzir essa espera mediante a introdução de uma multa para os pais em atraso, medida que se imaginava moderar o tempo de espera, uma vez que penalizava financeiramente essa conduta.  O resultado foi o contrário: os atrasos aumentaram.  Radicalmente distinto do esperado, os pais viam as multas por atraso como um preço a pagar por sua atitude, sendo um direito ultrapassar a hora na medida em que pagavam por isso.  Vamos agora para o caso da corrupção.  Se a mesma é assumida como estando submetida à racionalidade própria do Homo-Economicus, pretender reduzir a corrupção mediante penalidades maiores ou fiscalizações mais eficientes pode ter como corolário, devido a que o risco se eleva, não uma queda nas práticas senão uma elevação das propinas.

Assim, abordar a questão da corrupção desde a perspectiva do modelo canônico mais elementar, para o qual existiria uma identificação entre Estado e sua burocracia e essas práticas, tem diversos desfechos: o setor privado seria angelical, os mercados, uma maior concorrência e uma maior abertura comercial seriam o antídoto primário contra essas práticas, existiria uma corrupção boa e uma má, o cálculo custo/benefício pode não redundar no objetivo “zero corrupção” e o mecanismo de incentivos (penalidades e recompensas) não necessariamente vai desaguar nos resultados esperados.

Em próximos posts vamos nos concentrar com maior detalhe diversos aspectos que colocamos nos parágrafos anteriores.  Por exemplo, existe um claro problema no tocante à medição do fenômeno.  Nesse sentido, afirmações que identificam na corrupção o “principal obstáculo ao desenvolvimento” tem uma fragilidade intrínseca, uma vez que se podemos ter uma medida mais ou menos exata de outros indicadores (educação da força de trabalho, poupança/investimento, abertura ao exterior, etc.) os esforços para nos aproximar quantitativamente da corrupção partem de levantamentos de percepção da população, que pode não ser uma boa manifestação de fenômenos reais.  Por outra parte, o modelo canônico sofisticou e diversificou abordagens, chegando a uma verdadeira multidão de modelos.  Por último, as correlações entre desenvolvimento e corrupção (à margem das restrições associadas à sua medição, que acabamos de mencionar) são ricas em resultados, mas não deixam de estar abertas a interrogações (por exemplo, a relação de causalidade). 

 

Redistribuição dos recursos da Educação Básica

O ensino público concentra pouco mais de 80% das matrículas da Educação Básica[1]: são aproximadamente 40 milhões de matrículas e 1,8 milhão de professores distribuídos em uma rede de 145 mil escolas[2]. O tamanho da rede torna ainda mais evidente a importância de políticas públicas em educação e o estudo dos mecanismos de redistribuição de recursos, especialmente em um país tão desigual como o Brasil.

Como os recursos da educação são distribuídos?

A Constituição de 1988 estabeleceu que estados e municípios devem alocar, no mínimo, 25% da receita proveniente de impostos e transferências em educação. Essa estrutura acabou aumentando a desigualdade entre as redes de ensino, já que estados e municípios ricos possuíam muito mais recursos a serem alocados nas suas redes de ensino. Consequentemente, durante a década de 90, houve aumento da heterogeneidade entre as escolas públicas de municípios ricos e pobres e entre as redes estaduais e municipais. Os sistemas estaduais eram muito maiores do que os municipais e, ao contar com maior montante de recursos e com maior capacitação das secretarias estaduais de educação, as escolas estaduais apresentavam maior proporção de insumos e indicadores educacionais mais elevados.

Um mecanismo de redistribuição de recursos foi implementado 1996 com a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF)[3]. Entre os objetivos do fundo estava o de promover a adequação entre o gasto e o número de matrículas das redes de ensino, de modo a garantir maior equidade na redistribuição dos recursos educacionais. Foram criados 27 fundos estaduais e cada um deles era constituído por 15% do Fundo de Participação dos Estado (FPE), 15% do Fundo de Participação dos Municípios e 15% do ICMS[4] e do IPI[5]. Inicialmente tais recursos eram direcionados aos fundos estaduais e posteriormente redistribuídos entre a rede estadual e as respectivas redes municipais de acordo com o número de alunos matriculados no ensino fundamental regular[6].

Dessa forma, criou-se um mecanismo de redistribuição de recursos dentro de cada estado, em que os estados redistribuíam recursos aos seus respectivos municípios e municípios ricos redistribuíam recursos aos municípios pobres[7]. O FUNDEF promoveu a diminuição da desigualdade do gasto por aluno, o estreitamento da brecha salarial entre professores das redes estaduais e municipais e criou incentivos para que os municípios absorvessem mais alunos[8], já que o recebimento de recursos estava condicionado ao tamanho da rede. Em 2007, o FUNDEF foi substituído pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB)[9], que passou a abranger toda a Educação Básica (Ensino Infantil, Fundamental e Médio) e cuja vigência é até 2020.

Em vez de 15%, estados e municípios passaram a alocar 20%[10] de uma cesta de impostos aos respectivos fundos estaduais. Além disso, de modo a garantir um gasto mínimo por aluno, o Governo Federal realiza a complementação de recursos. Em 2017, por exemplo, os fundos estaduais totalizaram R$ 132 bilhões e a União realizou uma complementação de R$ 12,7 bilhões.

O fundo possui uma característica equalizadora que contribui para diminuição da desigualdade de aplicação dos recursos educacionais. A Figura 1 apresenta a distribuição do gasto por aluno atual versus a de um cenário em que é simulada a ausência desse mecanismo de redistribuição. Observa-se que, na ausência do FUNDEB, a dispersão do gasto seria significativamente maior.

Figura 1

Fonte: Estimativa própria com base nos dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FNDE), no Relatório Resumo de Execução Orçamentária (RREO) e no Censo Escolar. Redes Municipais.

No entanto, ainda há uma dispersão considerável entre o gasto das redes de ensino. Embora o gasto médio por aluno da rede pública com educação básica seja de R$ 6.000, o menor gasto é de R$ 2.642 enquanto o maior é de R$ 43.942[11], uma diferença superior a 16 vezes.

Como promover maior equidade?

Atualmente a complementação da União é realizada diretamente aos fundos estaduais, que, por sua vez, redistribuem esses recursos conforme o número de alunos matriculados nas redes de ensino. Em 2016, os 9 estados do nordeste foram beneficiados com os recursos do Governo Federal. No entanto, esse mecanismo, ao alocar os recursos nos fundos estaduais em vez de diretamente aos municípios, favorece municípios ricos em estados pobres em detrimento de municípios pobres em estados mais ricos. Por exemplo, capitais como Salvador, Recife, João Pessoa e São Luís, que na ausência de complementação da União já apresentariam gasto por aluno superior à média nacional, são beneficiados com recursos do Governo Federal. Por outro lado, municípios pobres de estados que não recebem complementação acabam sem receber recursos adicionais da União.

Se a complementação da União fosse realizada diretamente aos municípios seria possível garantir maior equidade na distribuição do gasto por aluno. Nesse cenário, o gasto mínimo por aluno passaria de R$ 2.642 para R$ 4.626 (Figura 2) e 1.704 municípios de todas as regiões do país seriam beneficiados.

Figura 2

Fonte: Estimativa própria com base nos dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FNDE), no Relatório Resumo de Execução Orçamentária (RREO) e no Censo Escolar. Redes Municipais.

A vigência do FUNDEB até 2020 abre uma janela de oportunidade para a adoção de um mecanismo de redistribuição da complementação da União diretamente aos municípios, favorecendo a equidade do gasto em educação do país.

  1. 47,5% em escolas municipais, 33,4% em estaduais e 0,8% em federais e 18,3% na rede privada. Censo Escolar de 2017.

  2. 39,6 milhões de matrículas e 145.190 escolas. Censo Escolar de 2017.

  3. Lei n. 9.424 de 24 de dezembro de 1996. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9424.htm

  4. Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços.

  5. Imposto sobre produtos industrializados.

  6. A partir de 2000, os recursos passaram a ser redistribuídos de acordo com o total de matrículas do ensino fundamental regular e especial. Alguns estados também recebiam complementação da União se não conseguissem atingir determinado nível de gasto por aluno (cujo valor é determinado nacionalmente).

  7. Não há redistribuição entre os estados, por exemplo, recursos de São Paulo não são redistribuídos no Rio de Janeiro.

  8. Houve aumento da proporção de crianças em idade escolar matriculadas na escola e incentivos a descentralização, processo em que alunos são transferidos da rede estadual para a municipal.

  9. Lei n. 11.494 de 20 de junho de 2007. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11494.htm

  10. A cesta de impostos dos estados é constituída pelo FPE, IPI, Lei Kandir, ICMS, IPVA, IOF e ITCMD; já a cesta dos municípios é formada por FPM, IPI, Lei Kandir, ICMS, IPVA e ITR.

  11. Dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FNDE) referentes ao ano de 2016. O menor gasto é em Patos/PB e o maior em Douradoquara/MG.

Autora:

Vivian Amorim possui graduação e mestrado pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Atualmente cursa doutorado em Economia na Universidade de Brasília (UNB) e trabalha como consultora das Global Practices de Educação e Governança do Banco Mundial. 

Cidades Inteligentes

O desenvolvimento das cidades se dá pelo acúmulo no espaço dos resultados sucessivos decorrentes de múltiplos e heterogêneos agentes que interagem entre si e com o seu meio. Nessas interações, indivíduos e empresas decidem estrategicamente suas ações mediando suas expectativas de pay-off com o conjunto de informações que os mesmos extraem do contexto onde estão inseridos.

Tais informações podem ser referentes às características e comportamentos dos demais agentes, à disponibilidade de recursos e as condições para acessá-los visando o alcance dos resultados desejados, às instituições (formais e informais) que regulam as relações sociais e econômicas da sociedade, às restrições impostas pelo meio físico (natural e construído), às forças políticas que atuam no ambiente, etc. Todas esses pedaços de informação se juntam formando um todo que configura um determinado espaço.

Uma característica dos agentes é que nas suas múltiplas rodadas de interação eles aprendem com a experiência, adquirem novas informações e modificam e adaptam suas estratégias e suas ações, o que produzirá cumulativamente no espaço novos resultados e novas informações, as quais, por sua vez, deverão ser processadas pelos agentes. Assim, na medida em que as cidades crescem, mais complexo se torna o ambiente, como nas regiões metropolitanas, ficando cada vez mais difícil o conhecimento e o processamento de todas as informações que o ambiente está constantemente produzindo.

Considerando a limitada capacidade do ser humano para processar quantidades gigantescas de informação, esse processamento é muito difícil também para aqueles que atuam no planejamento e na gestão das cidades, haja visto que elas podem evoluir tais como organismos vivos, muitas vezes sofrendo mutações no meio do caminho e mudando o curso do que foi planejado. Informação incompleta e planejamento baseado em tendências do passado que não necessariamente irão continuar no futuro muitas vezes produzem políticas públicas insuficientes ou inócuas para garantir um desenvolvimento urbano sustentável. Mudanças repentinas de rumo, em geral, não são bem aceitas pelos planejadores.

Ferramentas e sistemas digitalizados já são utilizados há algum tempo para tentar lidar com as informações relativas ao espaço urbano, cruzando dados georreferenciados, sobrepondo mapas, localizando infraestruturas, etc.; de modo a orientar a tomada de decisão no planejamento e na gestão das cidades. No entanto, as novas tecnologias digitais (internet das coisas, computação em nuvem, conectividade entre equipamentos, big data, inteligência artificial, internet de alta velocidade, etc.), tem oferecido um novo conjunto de soluções para lidar com a dinâmica da vida nas cidades, manejando um conjunto crescente de informações e elevando a um novo patamar o planejamento das cidades e a gestão na prestação de serviços públicos.

Por exemplo, o monitoramento em tempo real de atividades nas áreas públicas, de funcionamento de serviços públicos e o cruzamento simultâneo de informações de diversas fontes em bases territoriais oferecem a oportunidade para que o gestor público responda com mais agilidade a eventos fortuitos, tomando decisões mais seguras e rápidas.

Essas mudanças caracterizam, grosso modo, o surgimento das Cidades Inteligentes (Smart Cities) que, basicamente, podem ser descritas como cidades nas quais o aumento da capacidade de integração de dados e processamento de informações nos processos de planejamento e gestão das políticas públicas permitidas pelas tecnologias digitais, aumenta a eficiência e a eficácia na prestação de serviços à população e promove um desenvolvimento urbano mais sustentável. Certamente, o foco não é no uso da tecnologia em si, mas na utilidade que o seu uso gera para o cidadão, ao permitir que o poder público atenda as diversas demandas da sociedade com a utilização mais racional e eficiente dos recursos disponíveis, resultando na melhoria da qualidade de vida urbana.

O conceito de Cidades Inteligentes envolve mais elementos do que o simples uso de tecnologias digitais, desde que incorpora também noções de desenvolvimento sustentável, criatividade e inovação, cooperação e engajamento coletivo, participação social, parcerias público-privadas, difusão de conhecimento e co-criação em redes, novas abordagens de ensino e aprendizagem, ganhos de produtividade, clusters tecnológicos integrando indústrias e universidades, transparência e políticas de dados abertos, start-ups, etc. Por trás disso tudo está a organização do espaço físico e virtual tendo o conhecimento e o fluxo de informações como fatores de integração.

A incorporação de ferramentas tecnológicas digitais que permitem a utilização cada vez mais intensa das informações produzidas no dia-a-dia da vida urbana para atacar os principais problemas das cidades já é uma realidade em vários países, e cada vez mais intensa no Brasil.

No mercado já existem tecnologias digitais para transportes e mobilidade urbana, mitigação de congestionamentos com informação de tráfego e navegação em tempo real, semaforização inteligente, cobrança eletrônica de pedágios, sistemas de compartilhamento de veículos, geração de energia renovável e eficiência energética, iluminação pública inteligente, sistemas inteligentes e automatizados de distribuição de energia, abastecimento de água, detecção de perdas e furtos do sistema de abastecimento de água, monitoramento da qualidade da água, monitoramento digital do descarte de lixo, otimização de rotas e coleta seletiva de resíduos sólidos, resiliência e segurança em espaços públicos, mapeamento de crime em tempo real, detecção sonora de disparos de armas de fogo, sistemas avançados de vigilância e reconhecimento facial, sistemas de alertas de emergência de eventos climáticos extremos, aplicativos de alerta pessoais e domésticos, engajamento comunitário e participação social, monitoramento ambiental (temperatura, emissão e redução de gases, umidade relativa, precipitação), dentre outras soluções.

A promoção das cidades inteligentes no Brasil tem crescido atraindo diversos players para o desenvolvimento de soluções para as cidades, o que exige mais investimentos na melhoria da infraestrutura de telecomunicações e internet de alta velocidade no país. Exige também, novas estruturas organizacionais e de governança no setor público. Pouco adiantará soluções tecnológicas integradas se ainda estiverem atreladas a ideias e instituições obsoletas, como a lógica organizacional hierárquica baseada em processos verticais excessivamente formais e burocratizados. Organizações constituídas de unidades autônomas organizadas em redes, adotando processos horizontais, mais ágeis e flexíveis, e soluções integradas por meio do compartilhamento de informações podem garantir melhores resultados na utilização das novas tecnologias digitais.

Cada vez mais o crescimento econômico estará atrelado ao acesso e utilização de informações nos processos produtivos. Indivíduos, empresas e o próprio setor público tomarão suas decisões a partir do processamento de uma quantidade quase infinita de informações o que demanda, além da mencionada melhoria da infraestrutura de IC, investimentos em capacitação.

A capacitação de pessoas já é estratégica, considerando o conhecimento necessário para utilização das novas tecnologias digitais, como utilizar as informações produzidas, a mão-de-obra disponível mais e mais envelhecida e o desaparecimento de algumas profissões com o surgimento de outras novas. Isso será fundamental para não ampliar ainda mais as desigualdades sociais, em especial nas áreas urbanizadas onde a maior parte do PIB é produzida e onde se encontra grande parte da pobreza, comprometendo o próprio desenvolvimento do país. A implementação de cidades inteligentes, no seu conceito mais amplo, será um imperativo cada vez mais forte para a atração de investimentos e mão-de-obra qualificada, para garantir uma maior qualidade de vida nas cidades e para a promoção do desenvolvimento sustentável.

Paulo Ávila é arquiteto e mestre em planejamento urbano pela Universidade de Brasília. Atua profissionalmente na área de planejamento urbano e regional, com ênfase em aspectos econômicos do espaço urbano. Foi professor no Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade Católica de Brasília. Atualmente é Analista de Infraestrutura lotado na Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) do Ministério das Cidades onde coordena o Programa Nacional de Capacitação das Cidades.

Teoria, Ciência e Avaliação de Políticas Públicas

Em um recente e excelente artigo publicado neste Blog (Aprendizado e Tempo na Escola), Rafael Terra e Luis Felipe Oliveira avaliam, para o caso do Brasil, em que medida ampliar o tempo de permanência na escola melhoraria os indicadores de resultado do processo educacional. As conclusões do artigo são pessimistas: essa alternativa de política não teria os resultados que a intuição supõe uma vez que a relação custo/benefício seria francamente desfavorável a esse tipo de iniciativa.

Contudo, nosso objetivo neste post não consiste em comentar ou debater esse artigo específico ou esse resultado particular senão utilizar o mesmo para induzir uma reflexão sobre os nexos entre matrizes teóricas, o conceito de ciência e as propostas de avaliação de políticas públicas. Como bem sustentam Rafael e Luis Felipe no post, elevar a eficiência e eficácia dos recursos públicos alocados em programas e projetos passa pela sua avaliação de impacto. Essa avaliação deveria acompanhar, em termos metodológicos, um savoir-faire já amplamente consolidado em áreas como a medicina, veterinária, agronomia, etc.. A efetividade de um tratamento ou política teria que ser mensurado comparando a evolução e o desfecho de dois grupos escolhidos de forma aleatória: aquele sobre o qual foi aplicado o “tratamento” (a política ou a intervenção) e um outro não submetido ao tratamento (ou sobre o qual foi utilizado um placebo), denominado de grupo de controle. Na sua forma mais pura, este experimento teria que se singularizar por ser “duplo cego”, premissa segundo a qual nem os técnicos que realizam o experimento nem os integrantes dos grupos sabem que unidades fazem parte do grupo de tratamento ou do grupo de controle. Além desses aspectos pouco aplicáveis ao campo das ciências sociais (como a economia), podemos agregar outros. Por exemplo, questões éticas (um grupo social não é escolhido para participar de um programa simplesmente para servir de grupo de controle). Um outro exemplo da limitação de estender esta metodologia a áreas alheias à medicina, veterinária, etc. está vinculado à possibilidade mesma de realizar um experimento. Dada essa dificuldade, nas últimas décadas, na medida em que esta alternativa de pesquisa empírica foi se sedimentando como uma boa possibilidade de aproximar a economia às ciências denominadas de “duras”, os economistas tentam identificar fenômenos que se aproximem do mundo ideal “experimental”. Por exemplo, um caso pioneiro e talvez o mais conhecido, foi a utilização, por Card e Krueger (1994), do aumento, em 1992, do salário mínimo em New Jersey. Na medida em que no vizinho Estado de Pennsylvania o valor não foi alterado, a comparação da evolução do emprego em ambos Estados podia ser utilizado como uma proxy de uma avaliação experimental do impacto na variação do patamar mínimo de salários sobre o emprego no segmento de mão-de-obra não qualificada (mais especificamente, na ocupação nos fast-foods). Na medida em que, no modelo canônico, uma elevação do mínimo impacta negativamente na demanda de mão-de-obra, a identificação desse conjunto não afetado pela política é utilizado como contra-factual[2]. Ou seja, basicamente se estaria tentando responder a esta pergunta: que teria acontecido senão houvesse passado o que passou? Dessa forma, estaríamos ambicionando amoldar uma metodologia (RTC- Randomized Controlled Trial) utilizada em certas ciências para as ciências sociais (economia entre elas) e, mais especificamente, para a avaliação do desenho de políticas (Evidence-Based Policy).

Ao levar esse tipo de abordagem para a economia, a aspiração seria concretizar uma antiga pretensão dos economistas: distinguir seu nicho das ciências sociais em geral, uma vez que suas hipóteses ou modelos teriam que passar pelo crivo de uma metodologia de avaliação (Evidence-Based) que prove sua pertinência, metodologia similar à utilizada por outras ciências denominadas de “duras”. Nesse sentido, a afirmação de Rafael e Luis Felipe é ilustrativa:

“Infelizmente, a criação e as reformulações dos programas no Brasil não levam em conta a necessidade de avaliação. É um problema recorrente. O novo governo faria muito bem às finanças públicas se buscasse incorporar desenhos experimentais ou quase-experimentais para avaliar os programas implementados”

Esse tipo de perspectiva tem no J-PAL (Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab), do MIT, um referencial acadêmico que ancora sua pertinência. A tarefa realizada no âmbito do J-PAL consiste, basicamente, em utilizar a metodologia que sintetizamos nos parágrafos anteriores para avaliar políticas, programas e projetos na área social ao redor do mundo. Assim, podem ser encontrados resultados de avaliação de impacto da construção de escolas sobre salários e escolarização em Indonésia (Duflo (2001)), o resultado da informação do vírus HIV sobre as práticas sexuais dos adolescentes em Quênia (Dupas (2011)) ou o desdobramento da distribuição de uniformes nos alunos, também em Quênia, avaliação na qual se chega à conclusão que essa disponibilidade reduz o absentismo em 38% (Evans, Kremer and Ngatia (2008)). Poderíamos estender os exemplos. Nos seus primeiros dez anos (foi criado em 2005), o J-Pal realizou mais de 400 avaliações experimentais em mais de 50 países.

Neste artigo pretendemos discutir três aspectos: qual é o referencial teórico que pauta cada uma dessas avaliações ? Qual a contribuição que cada uma delas (cada avaliação) realiza para consolidar ou alterar o modelo canônico ou algum outro paradigma? Qual é o status da teoria nessa nova cultura de avaliação?

Comecemos pelo primeiro aspecto. Qual é o referencial teórico que norteia as pesquisas? A resposta é mais ou menos óbvia: nenhum. Um modelo de referência foi substituído pelo bom senso, pela intuição, pelo feeling, etc.. Distribuir uniformes nas escolas, tem impacto positivo sobre os resultados do processo educativo? Pode ter, pode não ter, talvez tenha. A intuição nos diz que pode ser relevante, mas nada garante. A participação e engajamento da comunidade na escola, pode melhorar a qualidade dos resultados? Pode, o bom senso nos diz que sim, mas depende de que tipo de engajamento, não todos (Pradhan et al. (2012)). Por outra parte, essa ambivalência no resultado encontrado por Pradhan et al. pode ser válido para Indonésia, lugar onde a avaliação experimental foi realizada, mas não podemos generalizar.

Ou seja, não precisamos de teoria ou marco conceitual para pautar uma avaliação. O bom senso pode induzir um experimento ou, alternativamente, o objetivo pode consistir na avaliação de um programa do governo ou a proposta de um candidato.

Mas não estaremos diante um processo de produção de conhecimentos eminentemente indutivo? Em outros termos, conclusões de caráter universal podem ser acumuladas para nutrir ou testar um marco conceitual existente ou outro a ser construído? A resposta volta a ser negativa por dois motivos. Primeiro que não existe um modelo teórico prévio que está sendo testado e, nesse sentido, não existe um marco conceitual já existente a ser validado empiricamente ou sofisticado ou consolidado. Simplesmente não existe teoria pré-existente. Por outra parte, a avaliação experimental, ao não ter um arcabouço analítico que a fundamente, fica limitada ao entorno temporal e geográfico no qual foi implementada. A distribuição de uniformes escolares reduz o absentismo em Quênia. Podemos concluir que a distribuição de uniformes reduz o absentismo em todo lugar? Óbvio que não. Reduz em Quênia e o resultado está circunscrito ao espaço no qual foi realizada essa avaliação dentro desse país. Vejamos o caso do Brasil. Se no Rio Grande do Sul realizamos uma avaliação experimental e o resultado nos diz que a merenda escolar eleva o rendimento dos alunos, podemos sustentar que em Roraima esse resultado é válido? Evidente que não. Na ausência de um modelo referencial, quantas validações experimentais são necessárias para que a relação de causalidade encontrada (ou não encontrada) possa adquirir uma singularidade universal ? É impossível saber e sempre pairará a dúvida se os resultados achados em dado espaço geográfico e temporal manifestam um correlação universal ou não.

Assim, não estamos diante um processo de pesquisa indutivo. A vocação da literatura na área, é preciso reconhecer, não tem essa pretensão. Nesse sentido, essa opção metodológica (avaliação experimental ou quase experimental) foi adotada pelo mainstream na tentativa de tornar mais próxima a economia das ciências duras. Contudo, paradoxalmente, o processo leva a tornar mas longínqua a possibilidade de um paralelo. Tomemos o caso da evidence-based medicine. Se um dado experimento determina que um coquetel de drogas inibe o avanço do vírus HIV, esse resultado será válido para Suíça, Burkina-Faso e Japão. Os resultados de Dupas (2011) sugerem que as condutas sexuais dos adolescentes quenianos parecem sensíveis às informações sobre AIDS, com impactos nas taxas de gravidez. Mas será que os adolescentes de Honduras terão a mesma resposta ? Não sabemos. Em outros temos: fica em aberto a questão da validação externa.

Essa impossibilidade de generalização fica mais evidente em certos papers. Tomemos o caso do artigo de Evans, Kremer and Ngatia (2008) que pretende quantificar o impacto da distribuição de uniformes escolares sobre indicadores educacionais. O resultado parece positivo. Mas isso na média. Concretamente, a sensibilidade vai depender se o aluno é do sexo masculino ou feminino, da faixa etária, depende se já tinha uniforme ou não, entre outros aspectos. Não se tem um modelo que dê sentido ao experimento e não se pretende universalizar: “cada caso é um caso”. Bem longe da física, da medicina, etc..

Assim, paradoxalmente, temos que a tentativa de aproximar a economia das ciências ditas duras evidencia de forma nítida as particularidades das ciências sociais em geral e da economia em particular.

Mas a questão agora é: qual é o status da teoria nesse contexto?

A condição atual dessa tendência a privilegiar a avaliação de impacto (seja ela experimental ou quase-experimental) parece nos aproximar a uma espécie de esquizofrenia. Temos os modelos teóricos, cada vez mais sofisticados e, sem diálogo com eles, se tornam corriqueiros crescentes esforços de avaliação, também cada vez mais refinados estatisticamente e com uma cada vez maior disponibilidade de amplos bancos de dados.

Nesse contexto, a teoria parece um exercício de lógica quase teológico ou, nas palavras de Romer (2015, p. 93), é um “entretenimento”. Vamos reproduzir suas palavras:

“…empirical work is science; theory is entertainment”

Essa falta de diálogo entre teoria e experimento fica evidente entre a prática cotidiana de um economista hoje e os cursos teóricos oferecidos na sua formação. O salário real é igual à produtividade marginal do trabalho, se ensina em Micro e Macro. Segundo o paradigma hegemônico, e descartando certos descompassos que podem ser provocados por algum grau de monopólio por parte dos empregadores, uma elevação do salário mínimo deveria gerar desemprego. Mas se uma avaliação como a realizada por Card e Krueger (1994) não identifica esse impacto, o modelo canônico é desqualificado? Não, uma vez que podemos realizar outras avaliações e esse paradigma poderia ser confirmado. Ou, alternativamente, surge uma polêmica sobre as ferramentas estatísticas utilizadas, a consistência dos dados utilizados, etc.[3] Os resultados encontrados alimentam a construção de algum outro paradigma? Também não.

Nos encontramos, assim, diante de uma segmentação entre teoria e práticas empíricas. Por uma parte se apela à necessidade de avaliações para atestar a eficácia e eficiência dos recursos aplicados, um objetivo louvável. Contudo, dado o empiricismo que permeia essa abordagem, os resultados ficam restritos a um determinado projeto/programa/política, a uma determinada área geográfica e a um dado momento do tempo. A agregação de conhecimentos e sua universalização ficam comprometidas dada a ausência de marcos analíticos de referência. A aspiração de nos assemelhar às ciências duras ainda constitui uma utopia.

Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação na Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

Bibliografia Citada

Card, D.; Krueger, A.L., Minimum Wages and Employment: A Case Study of the Fast-Food Industry in New Jersey and Pennsylvania” American Economic Review. 84(4). p. 772-793. 1994.

Duflo, E., “Schooling and Labor Market Consequences of School Construction in Indonesia: Evidence from an Unusual Policy Experiment” American Economic Review. 91(4). p. 795-813. 2001.

Dupas, P., “Do Teenagers Respond to HIV Risk Information? Evidence from a Field Experiment in Kenya” American Economic Journal. Applied Economics. 1(3) p. 1-34. 2011

Evans, D., Kremer, M. and Ngatia, M. “The Impact of Distributing School Uniforms on Children’s Education in Kenya” Working Paper. World Bank. 2008. (Disponível em: https://bit.ly/2SfGI9d; consultado em novembro de 2018).

Pradhan, M. et al., Improving Educational Quality through Enhancing Community Participation: Results from a Randomized Field Experiment in Indonesia. Working Paper. World Bank. 2012.

Romer, P.M., “Mathiness in the Theory of Economic Growth” American Economic Review: Papers & Proceedings. V. 105. p. 89–93. 2015

 

 

  1. / Professor do Departamento de Economia, UnB.
  2. / No caso específico do exercício de Card e Krueger (1994), o impacto negativo da elevação do salário mínimo sobre o emprego não foi identificado. Esse artigo deu margem a uma ampla polêmica cuja resenha está fora de nossos objetivos neste post.
  3. / Justamente, isso foi o que sucedeu com o artigo em questão que abriu uma ampla polêmica técnica/estatística, mas o paradigma teórico ficou incólume.

 

Saneamento básico: o serviço essencial que não é prioridade no Brasil

O setor de saneamento básico, apesar do seu caráter essencial, é o setor de infraestrutura menos desenvolvido no Brasil. Desde a década de 1970, o país tem elaborado planos nacionais para universalizar o acesso a essa infraestrutura. Em geral, são planos de médio e longo prazo. O problema é que já se passaram várias décadas e muitos planos já foram elaborados sem que tivessem cumprido as suas metas (Araújo, 2016). A falta de prioridade para essa agenda faz com que o Brasil, embora seja a nona economia do mundo, esteja em 112o lugar no ranking das infraestruturas de saneamento (Benevides e Ribeiro, 2014).

Esse setor é estratégico para o desenvolvimento de longo prazo do país, uma vez que o saneamento, além de garantir o direito humano à água potável, gera uma série de externalidades positivas para a saúde pública, o meio ambiente, a qualidade de vida e a geração de renda (Scriptore e Toneto Júnior, 2012). Uma série de benefícios pode ser gerada com a expansão desses serviços. Freitas et al (2014) quantifica alguns dos benefícios que podem ser obtidos com a universalização do saneamento no Brasil:

  • Queda no número de internações, gerando uma economia de R$ 27,3 milhões anuais;
  • Redução de 15,5% na mortalidade por infecções gastrointestinais;
  • Redução do número de afastamentos do trabalho, evitando uma perda de R$ 258 milhões por ano;
  • Ganho na massa salarial, resultando em crescimento da folha de pagamentos de R$ 105,5 bilhões anuais;
  • Aumento no longo prazo da massa salarial em torno de R$ 31,6 bilhões anuais, em decorrência de melhoria na produtividade, devido à diminuição no atraso na educação;
  • Valorização dos imóveis em torno de R$ 178,3 bilhões;
  • Elevação do número de trabalhadores no setor de turismo, gerando R$ 7,2 bilhões por ano em salários.

Investir em saneamento não se restringe apenas a garantir um direito humano reconhecido pelas Nações Unidas e a evitar a poluição dos corpos hídricos. Investir em saneamento é uma escolha racional tendo em vista a escassez tanto de recursos naturais como de recursos financeiros. Hutton (2013) buscou mensurar a relação custo-benefício global do saneamento. Ao avaliar 136 países, o pesquisador observou que a cada US$ 1 investido em saneamento básico, gera-se um retorno econômico de US$ 4,3 em benefícios. Os benefícios mensurados se referem a ganhos relativos à saúde e à produtividade do trabalho. Se fossem considerados outros ganhos, como aqueles relacionados ao meio ambiente, à educação e ao turismo, os benefícios seriam ainda maiores.

Embora tenha havido avanços no abastecimento de água, no que tange à coleta e ao tratamento de esgoto, o Brasil está muito distante da universalização. De acordo com o último relatório do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em torno de 83,3% da população têm acesso ao abastecimento de água, mas somente 44,9% da população tem acesso ao tratamento de esgoto sanitário. A região Norte é a que apresenta menor acesso ao tratamento do esgoto gerado, com apenas 18,3% da sua população com acesso a esse serviço. A região Centro-Oeste é a que apresenta a melhor taxa, mas ainda assim baixa, com 52,6% da população urbana com acesso ao tratamento do esgoto gerado (Brasil, 2016).

A época de maior investimento e expansão dos serviços de saneamento no Brasil foi a década de 1970, quando foi implantado o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Esse plano pode ser considerado como a única política articulada para financiamento e modernização do saneamento no país. As políticas que o sucederam, em geral, foram pontuais e com baixa articulação entre os entes federativos (Turolla, 2002). Conforme pode ser observado no gráfico 1, os investimentos nessa década foram proporcionalmente muito maiores do que nas décadas seguintes.

Gráfico 1 – Investimentos em saneamento básico no Brasil (1971 – 2016) em % do PIB.

Gráfico

Fontes: Sainani e Toneto Júnior (2010) e SNIS 2006 – 2016 (Brasil, 2016).

Após a extinção do Planasa, em 1992, houve um vácuo institucional de quinze anos até a aprovação da Lei do Saneamento Básico (Lei no 11.445/2007). No processo de discussão e aprovação dessa lei, Sousa e Costa (2013) destacam que se perpetuou uma relação autoritária dos estados para com os municípios e a capacidade de coordenação federal foi fragilizada. Essa lei já completou mais de uma década, houve pouca evolução da infraestrutura de saneamento no país nesse período e o setor continua à margem. Nos últimos anos inclusive, observa-se uma queda dos investimentos em saneamento, conforme pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1 – Investimento realizado no setor de saneamento básico em R$ milhões.

Ano Investimento realizado
2011 8.378,2
2012 9.753,70
2013 10.485,2
2014 12.197,7
2015 12.175,1
2016 11.511,0

Fonte: SNIS 2011-2016 (Brasil, 2016).

Do total de investimentos realizados em 2016, a maior parte corresponde a recursos próprios das empresas de saneamento (55,7%) e o restante se divide em recursos onerosos (32,%) e recursos não onerosos (11,7%). A maioria dos investimentos foi feita pelos prestadores de serviços regionais (79,0%). Os prestadores de serviços locais investiram 20,3% do total e os microrregionais investiram apenas 0,7% do valor total. Essa distribuição de investimentos está diretamente relacionada ao tamanho do público atendido por esses três tipos de prestadores de serviços. A tabela 2 representa a distribuição da população urbana atendida por essas empresas.

Tabela 2 – Distribuição dos prestadores de serviços participantes do SNIS em 2016, segundo a abrangência de atendimento.

Prestador de Serviço Quantidade de municípios atendidos População urbana dos municípios % da população urbana atendida
Abrangência No Água Esgoto Água Esgoto Água Esgoto
Regional 28 4.033 1.351 128.953.667 103.434.498 74,6% 66,6%
Microrregional 6 17 15 701.041 692.992 0,4% 0,4%
Local 1.607 1.141 1.149 43.094.101 51.087.784 25% 33%
Brasil 1.641 5.191 2.515 172.748.809 155.215.274 100% 100%

Fonte: SNIS, 2016 (Brasil, 2016).

Conforme pode ser observado na tabela 2, os prestadores de serviços regionais, aos quais correspondem às empresas estaduais de saneamento, respondem pela maior parte dos serviços de saneamento no país. Araújo e Bertussi (2016) avaliaram a situação econômico-financeira de 20 empresas estaduais de saneamento, bem como as suas estruturas tarifárias. Os resultados encontrados demonstram a baixa capacidade de geração de recursos financeiros por essas empresas para realizar os investimentos necessários. A maior parte das empresas apresentou baixa liquidez, baixa margem líquida e baixa taxa de retorno do investimento. Em 2015, quase metade das empresas apresentaram lucros líquidos negativos e três delas não apresentavam mais nenhum patrimônio líquido e tinham taxas de endividamento acima de 200%.

A baixa capacidade econômico-financeira dessas empresas estaduais de saneamento pode estar ligada à falta de uma regulação efetiva que não tem assegurado estruturas tarifárias de acordo com a Lei 11.445/2007. Conforme o inciso IV do artigo 22 dessa lei, um dos objetivos da regulação é “definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade”. Há, portanto, uma necessidade de aprimoramento da regulação dos serviços de saneamento nos níveis estaduais e municipais e há também a necessidade de estabelecer um regulador em âmbito nacional. O setor de saneamento é o único setor de infraestrutura que não tem um agente regulador em nível federal (Araújo e Bertussi, 2016).

Recentemente, em 06 de julho de 2018, o governo federal editou a Medida Provisória 844 que atualiza o marco legal do saneamento (Lei 11.445/2007) e modifica a Lei 9.984/2000 e a Lei 10.768/2003 para tornar a Agência Nacional de Águas (ANA) responsável pela instituição de normas nacionais para a regulação dos serviços de saneamento. Essas normas nacionais deverão tratar de cinco temas principais: 1) padrões de qualidade e eficiência dos sistemas de saneamento; 2) regulação tarifária dos serviços; 3) padronização dos instrumentos de negociação; 4) critérios para a contabilidade regulatória e 5) redução progressiva da perda de água. Para tanto, essas normas deverão estimular e promover:

  • Livre concorrência, competitividade, eficiência e sustentabilidade econômica;
  • Cooperação entre os entes federados;
  • Prestação adequada dos serviços de saneamento;
  • Adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais (Brasil, 2018).

Essa medida provisória cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), com a finalidade de assegurar a implantação da Política Federal de Saneamento Básico e articular as ações de alocação dos recursos financeiros da União. Além disso, essa nova legislação condiciona o recebimento de recursos públicos federais onerosos e não onerosos ao cumprimento por parte dos municípios e estados das normas nacionais a serem elaboradas pela ANA. O objetivo da MP 844/2018 é aperfeiçoar a legislação de gestão de recursos hídricos e o marco legal de saneamento para promover melhor interação entre as duas políticas, bem como buscar a garantia de maior segurança jurídica aos investimentos no setor. Nesse sentido, a MP busca corrigir três problemas que têm dificultado a implantação da infraestrutura de saneamento: 1) a baixa capacidade regulatória; 2) a limitada coordenação e racionalização das ações federais e 3) o desajuste das regras de consórcios públicos ao setor de saneamento (Brasil, 2018).

A aprovação da MP 844 tem encontrado muitas barreiras no Congresso Nacional. A Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), a Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar) e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) se uniram contra a medida provisória. De acordo com essas entidades, a MP conduzirá ao sucateamento dos serviços públicos de saneamento e ao aumento da privatização do setor, gerando aumento das tarifas e exclusão da população de baixa renda (Brasil, 2018a).

O governo, por outro lado, afirma que para expandir os investimentos no setor é necessário ampliar a participação do capital privado e para tanto precisa haver a segurança jurídica garantida pela aprovação da MP. Os investimentos atuais estão aquém do previsto para o cumprimento das metas de universalização propostas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasab). Os investimentos anuais deveriam estar na ordem de R$ 15 bilhões, mas atualmente giram em torno de R$ 10 bilhões (Brasil, 2018a).

O enfretamento dessas entidades tem interposto barreiras à aprovação da MP que teve seu prazo prorrogado e está próxima de perder a sua validade. A data limite para a votação é o dia 19 de novembro. Apenas no dia 30 de outubro, foi eleito o presidente da Comissão Mista de análise da MP (Brasil, 2018b) e no dia seguinte a medida provisória foi aprovada por esta comissão. A MP ainda terá que passar pelos Plenários da Câmara e do Senado (Brasil, 2018c). Os próximos dias serão decisivos para o setor de saneamento no país. É imprescindível que haja algum avanço na regulamentação do setor e que a União possa ter melhores condições para coordenar a política de saneamento.

Algum avanço na institucionalização do papel da União na promoção dos serviços de saneamento é fundamental para evitar retrocessos maiores. O presidente eleito Jair Bolsonaro já deu sinais de que o setor de saneamento não receberá tanta atenção da União. Além do seu plano de governo não conter qualquer menção ao setor de saneamento (Brasil, 2018d), ele declarou durante a campanha que pretende extinguir o Ministério das Cidades e que os recursos para moradia e saneamento irão diretamente para as prefeituras (G1, 2018). Como se dará esse processo de transferência para os municípios e o quanto será investido é incerto. Entretanto, tendo em vista a complexidade e o histórico do setor, dificilmente se conseguirão avanços sem uma política integrada entre os entes federativos. Por isso, é preciso que pelo menos parte da MP seja aprovada para que haja garantias legais de que algum órgão federal continuará a atuar efetivamente no setor de saneamento.

 

Flávia Camargo de Araújo é Economista, Engenheira Agrônoma e Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisas nas áreas de Economia da Infraestrutura e Meio Ambiente.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, F. C. de. Estrutura tarifária e investimento em saneamento básico no Brasil. 2016. 75 p. Monografia (Bacharelado em Ciências Econômicas). Orientador: Geovana Lorena Bertussi. Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

ARAÚJO, F. C. de. BERTUSSI, G. L. Empresas estaduais de saneamento: estrutura tarifária e situação econômico-financeira. In: 2o Congresso UnB de Contabilidade e Governança, Brasília, 2016.

BENEVIDES, C.; RIBEIRO, E. Saneamento: Brasil ocupa 112a posição em ranking de 200 países. O Globo, 19 mar. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/tHpC9Z>. Acesso em: 28 set. 2018.

BRASIL. Sistema Nacional de Saneamento Básico (SNIS). Diagnósticos dos serviços de água e esgotos. 2006 a 2016. Brasília. Disponível em: <https://goo.gl/fXR4r5>. Acesso em: 30 out. 2018.

BRASIL. Senado Federal. Sumário Executivo da Medida Provisória n. 844, de 2018. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/133867 Acesso em: 29 out. 2018.

BRASIL. Agência Senado. MP do Saneamento é prorrogada, mas enfrenta resistência no Congresso. 14/09/2018. Senado Federal. 2018a. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/09/14/mp-do-saneamento-e-prorrogada-mas-enfrenta-resistencia-no-congresso Acesso em: 29 out. 2018.

BRASIL. Agência Senado. Hildo Rocha é eleito presidente da comissão mista de MP do marco legal do saneamento. 30/10/2018. Senado Federal. 2018b. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/10/30/hildo-rocha-e-eleito-presidente-da-comissao-mista-de-mp-do-marco-legal-do-saneamento Acesso em: 30 out. 2018.

BRASIL. Agência Senado. Comissão mista aprova MP do saneamento básico. 31/10/2018. Senado Federal. 2018c. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/10/31/comissao-mista-aprova-mp-do-saneamento-basico Acesso em: 01 nov. 2018.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Propostas de Governo dos candidatos ao cargo de Presidente da República. 2018d. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos Acesso em: 15 out. 2018.

FREITAS, F. G. et al. Benefícios econômicos da expansão do saneamento. Relatório de pesquisa produzido para o Instituto Trata Brasil e o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Ex Ante Consultoria Econômica, 2014.

G1. Bolsonaro diz que se eleito extinguirá o Ministério das Cidades e mandará dinheiro dietamente para prefeituras. 28/08/2018. Brasília. Disponível em:

https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/08/28/bolsonaro-diz-que-se-eleito-extinguira-ministerio-das-cidades-e-mandara-dinheiro-diretamente-para-prefeituras.ghtml Acesso em: 29 out. 2018.

HUTTON, G. Global costs and benefits of reaching universal coverage of sanitation and drinking-water supply. Journal of water and Health, 11(1), 1-12. 2013

SAIANI, C. C. S.; TONETO JÚNIOR, R. Evolução do acesso a serviços de saneamento básico no Brasil (1970 a 2004). Economia e Sociedade, v. 19, n. 1 (38), p. 79-106, abr. 2010.

SCRIPTORE, J. S.; TONETO JÚNIOR, R. A estrutura de provisão dos serviços de saneamento básico no Brasil: uma análise comparativa do desempenho dos provedores públicos e privados. Revista de Administração Pública, v. 46, n. 6, p. 1479-1504, nov./dez. 2012.

SOUSA, A. C. A., COSTA, N. R. Incerteza e dissenso: os limites institucionais da política de saneamento brasileira. Revista de Administração Pública, v. 47, n. 3, p. 587-599, maio/jun. 2013.

TUROLLA, F. A. Política de saneamento básico: avanços recentes e opções futuras de políticas públicas. Textos para Discussão, n. 922. Brasília: Ipea, 2002.

Aprendizado e tempo na escola

A ampliação do tempo de educação dos alunos é uma solução frequentemente apontada por políticos de diversos países – desenvolvidos ou em desenvolvimento – para a melhoria da qualidade da educação básica. Dentre as cinco maiores economias da América Latina em 2018, Brasil, México, Argentina e Colômbia têm incumbentes ou candidatos a presidente que defendem a necessidade da ampliação da jornada escolar em algum acordo, projeto de lei ou programa eleitoral de governo.[1] Entretanto, os benefícios da ampliação do tempo são incertos (KRAFTS, 2015), o tempo adicional pode ser desperdiçado em coisas irrelevantes para o aprendizado[2], e os alunos podem reduzir o esforço em resposta ao aumento do tempo (LEVIN; TSANG, 1987). Ademais, o custo de ampliação do tempo para o aprendizado pode ser muito alto, chegando a 70% adicionais (DECICCA, 2007).

Há diversas formas de aumentar o tempo do aluno engajado no aprendizado, e a ampliação da jornada escolar de meio período para período integral é a política mais estudada nesse sentido. Decicca (2007) e Robin et al (2006) observam efeitos positivos da jornada em tempo integral já na primeira infância. Em coortes mais velhas de alunos, com idade para cursar o Ensino Fundamental, também são observados ganhos de desempenho devido ao ensino integral, maiores para meninas, alunos de baixo status socioeconômico e em escolas menos socialmente heterogêneas (LAVY, 2012). Mas estes efeitos parecem menos expressivos do que na primeira infância, com resultados às vezes não significativos (MEYER; VANKLAVEREN, 2013), ou significativos somente para matemática (DOBBIE; FRYER, 2012). Por fim, em coortes com idade para cursar o Ensino Médio os efeitos são, em geral, positivos (PIRES; URZUA, 2015, LAVY, 2015, BELLEI, 2009), mais fortes entre imigrantes, pobres, mulheres e em países com mais accountability e menores entre os países em desenvolvimento (LAVY, 2015). Há, ainda, evidências de resultados mais fortes entre alunos de escolas rurais, que frequentavam escolas públicas e com melhores desempenhos (BELLEI, 2009, BATISTIN; MERONI, 2016).

Programas de reforço escolar fora do horário regular de aula constituem formas alternativas de ampliar o tempo de instrução. Nesses programas são realizadas sessões de lição de casa, atividades acadêmicas, recreação e enriquecimento com artes plásticas e cênicas. Os programas podem ser realizados pela própria escola, por bibliotecas, igrejas, museus e centros de recreação, após a aula ou durante o verão. Tais programas são bastante diferentes entre si, o que justifica as evidências mistas. Programas de educação suplementar oferecidos em centros comunitários apresentam tanto resultados positivos (ZIMMER ET AL, 2010), quanto não significativos, e até alguma piora comportamental (JAMES-BURDUMY ET AL, 2005). Já programas de reforço com educação tutorial apresentam mais resultados positivos (ZIMMER ET AL, 2010, BANERJEE ET AL, 2007, KRAFTS, 2015). Cursos de verão também parecem ter um efeito positivo sobre o desempenho de matemática e leitura na educação básica (MATSUDAIRA, 2007), e podem ter efeitos inclusive de redução de abandono e conclusão de créditos no ensino superior (DEPAOLA; SCOPPA, 2014).

Em países que já implantaram a educação integral, o número de dias letivos costuma ser apontado como uma alternativa para melhorar a educação. No entanto, há uma grande variação na duração do ano letivo entre países e até mesmo entre distritos escolares de um país, sem que isso implique necessariamente em diferenças no desempenho dos alunos (LAVY, 2015). Vários estudos verificam a relação entre a duração do ano letivo e o sucesso escolar medido em termos de queda na reprovação e abandono ao fim do ensino fundamental (PISCHKE, 2007), aumento do desempenho do aluno (FITZPATRICK ET AL, 2011)[3], aumento da escolaridade, aumento da empregabilidade no setor formal e aumento dos salários (PARINDURI, 2014)[4].

Aumentar o tempo de escolaridade obrigatória por meio de leis que instituem obrigatoriedade do ensino já na primeira infância, e a extensão da idade limite além do início da adolescência, também pode contribuir para reduzir o abandono e aumentar a escolaridade, especialmente para crianças jovens de background mais vulnerável (Angrist; Krueger, 1991, Oreopoulos, 2006).

Por fim, a efetividade do tempo na escola não diz respeito somente à quantidade, mas ao uso do tempo ao longo do dia e à alocação do conteúdo no tempo. Carrel et al (2011) verificam uma relação entre o ritmo circadiano e o desempenho dos alunos. Segundo o autor, além de necessitarem mais horas de sono do que os adultos, os jovens tendem a ficar menos despertos ao longo do dia devido ao atraso natural na produção de melatonina e ao sono interrompido precocemente para ir a escola. Por outro lado, Pope (2016) avalia o efeito do horário das aulas de matemática e leitura sobre o desempenho dos alunos. O autor encontra resultados que indicam que estudantes aprendem mais pela manhã. Pires & Urzua (2015) também encontram evidências de que o horário do dia que os alunos estudam é mais importante que o montante de aulas.

Experiência no Brasil

No Brasil tivemos uma experiência recente de ampliação do tempo dos alunos na escola. O Programa Mais Educação (PME) se iniciou em 2008 e buscava ampliar o tempo de aprendizado oferecendo atividades pedagógicas fora do turno regular do aluno, de modo que os alunos participantes ficassem, no mínimo, sete horas por dia na escola. O custo do programa chegou a seu maior valor em 2013, quando alcançou 1,5 bilhões de reais em valores atuais. O programa definia uma série de atividades com materiais e ementas padronizadas a serem usadas nas escolas, mas apresentava grande flexibilidade na formatação final, pois dentre as diversas atividades oferecidas, cada escola podia escolher a combinação que melhor se adequasse à sua realidade. As escolas podiam optar por quatro áreas para trabalhar com os alunos dentre onze áreas existentes. A área denominada acompanhamento pedagógico era obrigatória e contemplava aulas em matemática, línguas, ciências, história, geografia e língua estrangeira. Ao menos uma destas atividades devia ser abordada no tempo destinado a acompanhamento pedagógico. A escola podia escolher dedicar todo o seu tempo para o acompanhamento (em várias disciplinas, ou em uma disciplina específica), ou dedicar apenas o tempo mínimo, e o restante a outras atividades como esporte, música, etc.[5]

Um dia típico do Programa Mais Educação para estudantes do turno da manhã começava com o turno regular de ensino, por volta de 7:30. As aulas do turno regular costumam durar 50 minutos, e normalmente há um intervalo por volta de 9:30 para lanches e recreação. Ao final do período matutino, por volta de 12:00, os alunos participantes do PME almoçavam na escola antes do início das atividades do contra-turno, por volta de 13:00. A atividade de acompanhamento pedagógico tinha obrigatoriedade diária, e duração mínima de uma hora a uma hora e meia. Eram realizados intervalos de recreação e outras atividades como esporte, música, danças, etc. O encerramento das atividades se dava, no mínimo, a partir das 15:00– dependendo do número de atividades que a escola decidiu desenvolver.[6]

As turmas do PME eram compostas por no mínimo 20 e no máximo 30 alunos. Os alunos eram recepcionados na sala de aula pelo monitor responsável pela atividade. Esse monitor podia ser um estudante universitário, um estudante de magistério ou um voluntário qualificado. Estes recebiam uma ajuda de custo de até R$300/mês nas escolas públicas urbanas ou até R$600/mês nas escolas públicas rurais (MEC, 2016, p. 12). Os kits padronizados usados durante as aulas, as refeições e as bolsas de monitoria eram custeadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Almeida et al (2015) e Oliveira & Terra (2018) realizaram avaliações do PME. Os últimos exploraram um experimento natural que em 2012 estabelecia como prioritárias as escolas com mais de 50% dos alunos no Programa Bolsa Família. Ambos os estudos avaliaram os efeitos do PME sobre diversos indicadores educacionais, como Ideb, desempenho na Prova Brasil em Leitura e Matemática, abandono e reprovação. Resende et al (2018) avaliou o efeito do programa sobre a oferta de trabalho infantil e sobre a oferta de trabalho dos pais. Em geral, o programa parece não ter surtido efeito sobre nenhum dos indicadores. Assim, propostas de candidatos de universalizar o ensino integral podem até ser prejudiciais, uma vez que o impacto orçamentário seria imenso (cerca de 4% do PIB) para os benefícios esperados.

Por que o Mais Educação não apresenta resultados?

Uma explicação plausível para o programa não ter dado resultado foi o formato adotado, que dava muita liberdade para a escola escolher quais atividades desenvolver dentre uma gama muito grande de opções. Essa política pressupõe que as escolas tenham perfeito conhecimento de quais são suas principais deficiências e das melhores estratégias para superá-las, o que é claramente incorreto, pois se fosse verdade a qualidade da educação seria melhor. Como o formato do programa era muito aberto, dando muita autonomia às escolas, estas podem ter simplesmente reproduzido no contra-turno as metodologias que já não davam certo antes.

Outra crítica se refere à qualificação dos monitores responsáveis pelas atividades do programa no contra-turno escolar. O programa prevê remuneração simbólica, para custear somente transporte e alimentação. Desse modo, não consegue atrair profissionais qualificados, mas somente aqueles em início de carreira ou que se dispõem a serem voluntários em áreas de acompanhamento pedagógico distintas daquelas que os alunos mais precisam.

O caráter voluntário da participação dos alunos no contra-turno também pode explicar a falta de resultados do programa. Não há um controle sobre o perfil socioeconômico dos alunos participantes, mas é possível que o público que potencialmente mais se beneficiaria do programa tenha ficado de fora do programa.

O governo federal reconheceu problemas com o programa e em 2016 reformulou o programa sob o nome de Novo Mais Educação. Nesse novo formato, Português e Matemática passaram a ter uma carga horária mínima, o que não ocorria no formato antigo. Mas os monitores ainda são contratados da mesma forma.

Os critérios de escolas prioritárias do Novo Mais Educação também mudaram. Com isso, estudos quase-experimentais como em Oliveira & Terra (2018) e Resende et al (2018) não podem mais ser realizados para o programa atual a fim de verificar se as mudanças realizadas surtiram efeitos.

Infelizmente, a criação e as reformulações dos programas no Brasil não levam em conta a necessidade de avaliação. É um problema recorrente. O novo governo faria muito bem às finanças públicas se buscasse incorporar desenhos experimentais ou quase-experimentais para avaliar os programas implementados. Deveria iniciar programas em pequena escala para não colocar muitos recursos públicos em uma aposta arriscada, e ampliar o programa somente quando ficasse comprovada a eficácia do mesmo. Esse seria um grande avanço na gestão dos recursos públicos.

Rafael Terra é professor do Departamento de Economia da UnB. É Doutor em Economia pela EESP-FGV. Desenvolve trabalhos em economia da educação, avaliação de políticas públicas e economia do setor público.

 

Luis Felipe B. Oliveira é técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. É Doutor em Economia pela UnB. Realiza estudos sobre educação, políticas públicas, desigualdade e pobreza.


Referências Bibliográficas

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  1. Informação para a Colômbia recuperada do programa de governo de Ivan Duque Márquez. Informação para o Brasil recuperada na portaria do Ministério da Educação n. 1.144 de 2016 e nos programas de governo dos candidatos a eleição de 2018. Informação sobre o México recuperada do Diário Oficial de la Federación de 26 de fevereiro de 2013. Informação para Argentina recuperada da Declaración de Purmamarca de 12 de fevereiro de 2016.
  2. Por exemplo, em uma amostra de 36 turmas distribuídas em 18 escolas, pesquisadores fizeram pesquisa in loco para saber como era usado o tempo na sala de aula. Os pesquisadores concluíram que após descontar interrupções por indisciplina, faltas de alunos e professores, organização da turma, e tentativas de fazer os alunos prestarem atenção, o total de horas em aula era de apenas duas horas – de cinco horas oficiais (IBOPE, 2011).
  3. Hansen (2008), Marcotte & Helmet (2008), Sims (2008) e Fitzpatrick, et al (2011) usam variações exógenas na data de exame ou fechamento das escolas por condições climáticas ruins sobre o tempo de escola em também encontram ganhos de performance por dias adicionais de escola.
  4. Pischke (2007), por sua vez, não encontra efeitos sobre salários ou empregabilidade, corroborando os resultados observacionais de (CARD; KRUEGER, 1992, HECKMAN ET AL, 1996).
  5. Ver manual do PME publicado por MEC (2012).
  6. Para alunos do turno vespertino, as atividades costumam se iniciar até as 10:00 am, dependendo da escola.

 

Concessões de Rodovias e Fator-X – PARTE (II)

No post anterior apresentamos o contexto no qual emergiram as primeiras concessões federais para exploração da infraestrutura rodoviária na década de 1990.

Mostramos que o cenário de escassez de recursos que vinha sendo desenhado desde meados da década de 1970 foi definitivo para que se optasse pelas concessões. Tal opção pouco teve a ver com convicções ideológicas ou planejamento de longo prazo para aprimorar a infraestrutura rodoviária nacional. Esse cenário, em parte, justifica a realização das concessões da Primeira Etapa sem ainda existir uma agência reguladora responsável, a qual somente foi criada em 2001.

Falamos também da necessidade de o regulador aprimorar continuamente os contratos de concessão para melhorar a sua gestão, o que deveria redundar em um melhor serviço prestado para os usuários das rodovias.

Entre os mecanismos regulatórios adotados na Terceira Etapa de concessões, consta contratualmente o chamado Fator X. E é sobre ele que trataremos no presente post, entendendo como que esse mecanismo funciona, e qual o provável impacto da sua supressão no contrato da Rodovia de Integração Sul, projeto que será licitado em 01 de novembro de 2018.

Regulação Tarifária e Fator X

A tarifa consiste em uma contraprestação que os usuários praticam em face da utilização da infraestrutura pública disponibilizada pelo concessionário (GUIMARÃES, 2017). Assim, a tarifa se trata de preço arcado pelos usuários na esfera da relação jurídica contratual que trava com o concessionário, mas é também um preço regulado e controlado pelo poder concedente, em vista de sua ligação estreita com os valores intrínsecos ao serviço público. Além disso, também é elemento que integra a equação econômico-financeira do contrato de concessão, a qual pertence à esfera de relação entre concessionário e poder concedente.

De acordo com a Teoria da Regulação Econômica do Interesse Público (POSNER, 2004), uma vez que o mercado funciona de forma ineficiente, a intervenção do Estado se faz desejável, e até necessária. Ao se verificar a existência de uma falha de mercado – um monopólio natural no caso do serviço de exploração da infraestrutura rodoviária – a regulação de preços neste mercado visa a garantir que os usuários não sejam explorados indevidamente pelo concessionário e que a equidade no acesso ao serviço seja assegurada.

Considerando então que os monopólios não regulados tendem a produzir quantidades menores do serviço, e cobram preços maiores que aquele que maximizaria o bem-estar, o governo deve intervir de modo a simular um ambiente competitivo que, inclusive, incentive a realização de investimentos por parte do monopolista (PICOT, 2015).

Tirole e Laffont (1993) afirmam que o regulador deve apoiar-se exclusivamente nas informações contratuais detidas pelas firmas. As limitações informacionais, portanto, comprometem a eficiência da regulação. Esta é a chamada assimetria de informações entre regulador e regulado.

Portanto, os contratos de concessão devem incluir fortes incentivos, como o mecanismo do preço-teto (price cap) que não são indexados aos custos de produção das firmas, como um modo de vencer os problemas de assimetria de informação com os quais o regulador invariavelmente se depara (TIROLE, 2017). Dessa forma, o regulador autoriza uma tarifa máxima, e a firma pode escolher seus preços contanto que estejam abaixo do limite e cubram a totalidade dos seus custos.

O modelo de preço-teto como forma de regulação com alto grau de incentivo pode envolver métodos de reajustamento limitado da tarifa a partir da conjugação de índices de produtividade (GUIMARÃES, Op. Cit.). Uma fórmula prestigiada na experiência britânica pela modalidade price cap é a RPI-X (Retail Price Index menos um fator de produtividade X) ou IPC-X (índices gerais de preços menos um fator de produtividade X). Ou seja, aplica-se à tarifação um reajustamento segundo um índice geral de preços, limitado à evolução do valor-resultado por um fator de produtividade, que lhe subtrai um percentual arbitrado pelo poder concedente regulador.

Agrell e Bogetoft (2013) afirmam que uma das áreas mais proeminentes para aplicação das técnicas de benchmarking é justamente na regulação de monopólios naturais, uma vez que tais técnicas podem informar se determinada regulação produz efeitos econômicos em usuários e firmas reguladas de modo equilibrado.

O benchmarking – comparação do desempenho relativo entre empresas – é uma técnica bastante utilizada por reguladores de diversos países, como Noruega, Áustria, Finlândia, Holanda e Alemanha na regulação dos mais diversos tipos de serviços associados à infraestrutura. O objetivo da técnica é extrair uma métrica de desempenho relativo entre as empresas do setor regulado, de modo que possam ser identificadas aquelas mais eficientes. A eficiência relativa é então convertida em Fator-X, o qual será aplicado na equação tarifária de cada empresa, de modo que aquelas menos eficientes tenham um Fator-X maior, o que resulta no decremento do índice de reajuste tarifário ao qual faria jus.

A ideia é que ao final do próximo ciclo regulatório, aquelas empresas menos eficientes tenham conseguido melhorar o seu desempenho de modo que, na próxima aplicação do Fator-X, possam figurar entre as mais eficientes, para então fazer jus a um maior índice de reajustamento tarifário.

Portanto, o mecanismo tende a equilibrar o ímpeto de maximização da receita pelas empresas reguladas (minimização do Fator-X), com a produção de melhores resultados para os usuários daquele serviço público.

Possíveis impactos da retirada do Fator-X dos contratos de concessão rodoviária

Como brevemente descrito, o Fator-X é apoiado não somente pela teoria econômica, mas também pela experiência internacional. Então, o que justifica a sua supressão do contrato de concessão da Rodovia de Integração Sul (RIS)?

Não detemos informações sobre as razões para a sua retirada, e não gostaríamos de realizar especulações acerca do assunto, pois aos usuários interessam tão somente os possíveis impactos da não existência de mecanismos de regulação por incentivos no contrato.

É importante deixar claro que até hoje, o único contrato de que se detém informações sobre a aplicação do Fator-X é o da BR-101/BA/ES. Nesse contrato, o Fator-X corresponde a uma tabela de aplicação de valores pré-definidos em nada parametrizados com as outras empresas do mercado. Deste modo, conforme os conceitos que expusemos, não se pode afirmar que o Fator-X assim estabelecido possa ser considerado efetivamente um mecanismo de incentivo.

Ao mesmo tempo, que se tenha conhecimento, não foi produzido qualquer normativo sobre o assunto pela ANTT, em que pese terem sido produzidos estudos com propostas para a regulamentação do Fator-X. Sabemos, por outro lado, que os contratos de concessão da Terceira Etapa estabelecem que até o quinto ano da concessão o Fator-X será 0 (zero), portanto, não teria como produzir efeitos nos contratos assinados em 2013.

Mas o fato de o Fator-X não produzir efeitos até o quinto ano da concessão não pode ser considerado justificativa plausível para a omissão regulatória da ANTT, especialmente em um cenário em que as concessões rodoviárias federais vêm sendo sistematicamente criticadas pelo TCU, como pode ser verificado na avaliação técnica do órgão de controle sobre a RIS (TCU, 2018):

52. O estudo da BR-101/290/386/448/RS mesclou premissas contratuais da 1ª, 2ª e 3ª etapas do Programa de Concessões Rodoviárias Federais (Procrofe) . Apesar da esperada evolução regulatória em relação aos contratos anteriores, diversos dispositivos que contribuíram para os problemas enfrentados pelas concessões vigentes permanecem na minuta contratual em tela.

(…)

54. De forma geral, as fiscalizações empreendidas pelo TCU em concessões rodoviárias federais têm constatado significativos níveis de inadimplemento contratual. Apesar disso, as tarifas de pedágio continuam a sofrer aumentos anuais acima da inflação, e isso ocorre em razão da inclusão de relevantes investimentos nos contratos.

(…)

62. O cenário do setor retrata um modelo regulatório e regras contratuais que, apesar das variações ao longo das suas três etapas, incentivam a inexecução das obrigações pelas concessionárias. (…) (grifos nossos)

Notamos que o TCU, ao analisar o contrato de concessão da RIS, afirma que não é possível identificar a esperada evolução regulatória. Ademais, ele aponta que os mecanismos regulatórios existentes nos contratos vigentes, e em grande medida inseridos no contrato da RIS, tampouco são suficientes para garantir a execução das obrigações contratuais pelas concessionárias.

Desse modo, é evidente que a adoção de mecanismos que possam incentivar a melhora no desempenho das concessionárias reguladas pela ANTT é urgente. Não que o Fator-X fosse suficiente para solucionar todos os problemas de inexecução contratual apontados pelo TCU, mas já seria um primeiro passo importante.

Por outro lado, ao mesmo tempo que ANTT erra ao manter determinados mecanismos contratuais que já se demonstraram (no mínimo) ineficazes, suprimir um mecanismo de incentivo do contrato de concessão tampouco parece contribuir para a necessária melhora da regulação dos contratos de concessão de rodovias.

O fato é que não parece haver respaldo teórico e técnico na decisão tomada por aqueles à frente do leilão da RIS quanto à supressão do Fator-X. Sem a necessária evolução dos mecanismos de incentivo neste novo contrato de concessão, não é excesso de ceticismo duvidar que este novo contrato apresente melhores resultados que aqueles até então apresentados pelos contratos em andamento.

Aparentemente, a existência do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e a adoção de outras medidas supostamente “modernizadoras da gestão” da área de infraestrutura, não foram suficientes para promover a melhora efetiva dos projetos de concessão rodoviária, sequer em relação aos ciclos anteriores, quanto mais em relação às melhores práticas internacionais. Isto resultou na persistência de dispositivos contratuais há muito conhecidos e questionados, ao lado da supressão de outros que poderiam promover melhora na regulação.

Como alguém disse certa vez: “A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

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GUIMARÃES, F. C. V. Concessão de serviço público. [s.l.] Editora Saraiva, 2017.

LAFFONT, J.-J.; TIROLE, J. A theory of incentives in procurement and regulation. [s.l.] MIT press, 1993.

PICOT, A. The Economics of Infrastructure Provisioning: The Changing Role of the State. [s.l.] MIT press, 2015.

POSNER, R. A. Teorias da regulação econômica. Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora, v. 34, p. 49–80, 2004.

TCU. Tribunal de Contas da União. ACÓRDÃO 1174/2018 – PLENÁRIO – Acompanhamento do processo de desestatização do lote rodoviário denominado Rodovia de Integração do Sul (RIS), que compreende trechos das rodovias BR-101/290/386/448/RS. Análise do primeiro estágio. Relator: Ministro Bruno Dantas. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1174%2520ANOACORDAO%253A2018/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 out. 2018.

TIROLE, J. Economics for the common good. [s.l.] Princeton University Press, 2017.

 

Concessões de Rodovias e Fator-X – Parte (I)

O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi criado pela Lei nº 13.334 de 2016, com a finalidade de ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização.

Entre os oito projetos de concessão para exploração da infraestrutura rodoviária qualificados no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, está o projeto de concessão das rodovias BR-101/RS, BR-290/RS, BR- 386/RS e BR-448/RS, no Estado do Rio Grande do Sul – conhecido como Rodovia de Integração Sul (RIS). Foi lançado, em julho de 2018, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em parceria com o Ministério dos Transportes e o PPI, o edital para concessão da RIS, cujo leilão ocorrerá em 01/11/2018 (ANTT, 2018a).

Várias questões emergem a partir da análise detida das opções regulatórias registradas nos documentos licitatórios publicados, porém, neste conjunto de posts, trataremos de uma opção em específico: a supressão do chamado “Fator X” da minuta contratual (ANTT, 2018b).

De modo simples, o que é o Fator X? É uma medida de desempenho, de eficiência do concessionário. A ideia é que o concessionário busque por ganhos de produtividade durante o longo período de vigência de sua concessão, e que parte desse ganho fique retido com a própria concessionária (que teria, portanto, incentivos pra continuar almejando e buscando incorporar novas técnicas e ampliar, com isso, sua produtividade) enquanto outra parte seja revertida em forma de menor tarifa para o usuário do serviço. Ou seja, os ganhos de produtividade seriam repartidos/compartilhados entre a concessionária e o usuário final.

E por que chamamos a atenção para a supressão da cláusula que trata do Fator-X?

A Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões) estabelece em seu art. 6º que toda concessão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, sendo que o serviço adequado é que aquele que satisfaz, dentre outras condições, a eficiência. A mesma lei também imputa ao poder concedente o dever de estimular o aumento da produtividade e incentivar a competitividade dos serviços concedidos.

Para cumprir tais preceitos legais, o regulador deve alterar a estrutura de incentivos ou o conjunto de ações possíveis do concessionário de modo que este, ao maximizar o seu retorno sobre o contrato, acabe também maximizando o bem-estar coletivo, fornecendo assim um serviço adequado aos usuários. Nesse sentido, a teoria econômica e a experiência internacional (AGRELL; BOGETOFT, 2013) tem demonstrado que a aplicação de regulação da tarifa por preço-teto (price cap), associada ao Fator-X, tende a incentivar ganhos de produtividade por parte do setor regulado.

Então, por que suprimir o Fator-X da equação tarifária dos novos contratos de concessão rodoviária?

Infelizmente não temos resposta para essa pergunta. Ao contrário, pretendemos sensibilizar o leitor quanto à necessidade de reguladores brasileiros adotarem técnicas de regulação baseadas em incentivos (como o Fator-X) para promover maior ganho de bem-estar aos usuários.

Para tanto, começaremos falando sobre o contexto das concessões rodoviárias federais brasileiras e como que surgiu o “Fator X” nesses contratos. Já na segunda parte, falaremos sobre o que é, de modo mais formal, o Fator X e discutiremos os possíveis impactos da retirada do referido mecanismo regulatório dos contratos de concessão.

O contexto das concessões para exploração da infraestrutura rodoviária federal

O que antecedeu as primeiras concessões para exploração da malha rodoviária federal na década de 1990 contribuiu para a modelagem dos primeiros contratos de concessão para exploração da infraestrutura rodoviária federal.

Após a forte expansão da malha rodoviária nas décadas de 1960 e 1970, já em 1974, se iniciou o processo de crescente escassez de recursos para investimento em obras e manutenção. Fora os choques externos que contribuíram para o endividamento do Estado brasileiro, até a Constituição Federal de 1988 (CF/88), os investimentos na malha rodoviária contavam com financiamento do Fundo Rodoviário Nacional (FRN), formado com recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes Líquidos e Gasosos (IULCLG). O FRN tinha como objetivo custear os programas de construção, conservação e melhoria das rodovias compreendidas no Plano Rodoviário Nacional (PNV).

Com o advento da CF/88, de todas as alterações tributárias impostas, a que mais afetou o financiamento do PNV foi a proibição de vinculação de receitas tributárias. Ou seja, a partir daquele momento, os investimentos em infraestrutura rodoviária que, até então, contavam com uma fonte exclusiva de custeio, passaram a ter que disputar com outras políticas públicas os recursos advindos das receitas da União. O resultado de tais mudanças foi o estado deplorável em que se encontrava as rodovias federais na década de 1990.

Por outro lado, a CF/88 também trouxe a possibilidade de empresas privadas prestarem serviço de utilidade pública, sempre precedido de procedimento licitatório. Em 1995, foi sancionada a lei das concessões (Lei no 8.987), a qual regula a concessão de serviços públicos à iniciativa privada. Assim, a transferência de rodovias foi a saída encontrada pelo poder público para tentar resolver parcialmente a impossibilidade de realizar os necessários investimentos na expansão, manutenção e conservação da malha rodoviária federal.

As primeiras concessões ocorreram em 1995 ainda sob a tutela do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) em conjunto com o Ministério dos Transportes. Vale destacar que não havia à época agência reguladora. Desta forma, os contratos de concessão assemelhavam-se muito mais a contratos de obras públicas de longo prazo (até 25 anos), cujo foco estava no controle (ainda que parcial) de alguns poucos parâmetros de desempenho e na obrigação de execução de algumas obras pelos contratados. Não é possível então afirmar que havia uma preocupação primordial com a produtividade ou a eficiência das concessionárias.

Somente em 2001 foi criada a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por meio da Lei no 10.233, cuja instalação ocorreu cerca de um ano depois. A ANTT assumiu então a gestão dos contratos em andamento, ao todo 1.315,9 km, denominados Primeira Etapa de Concessões. Posteriormente, em 2008 e 2009, foram licitados e firmados os contratos da Segunda Etapa. Finalmente, em 2013 e 2015, foram firmados os contratos da Terceira Etapa. Ao todo são 9.224 km de rodovias sob responsabilidade da ANTT.

A ANTT, desde o seu início, teve como seu grande desafio na área de concessões rodoviárias, o desenvolvimento de mecanismos regulatórios que incentivassem as concessionárias a entregarem um melhor serviço para os usuários.

É claro que nos contratos da Primeira Etapa a margem de melhoria não era grande, uma vez que os contratos firmados na década de 1990 devem ter o seu equilíbrio econômico-financeiro respeitado. Portanto, restou à ANTT e ao Ministério dos Transportes inserir inovações nos contratos de concessão seguintes.

Nesse contexto, entre uma etapa e outra de concessão, algumas inovações e ajustes foram sendo realizados, no intuito de aprimorar a gestão contratual por parte da ANTT.

Para citarmos um exemplo, em 2007 o Tribunal de Contas da União (TCU) demandou da ANTT ajustes no mecanismo de inclusão de obras então existente nos contratos da Primeira Etapa de Concessões (TCU, 2007). Tal exigência do TCU resultou na Resolução no 3.651/2011, por meio da qual foi estabelecido o chamado Fluxo de Caixa Marginal (FCM). O FCM foi incorporado a todos os contratos de concessão anteriores e posteriores. Hoje, tal mecanismo vem sendo bastante questionado pelo próprio Tribunal de Contas da União, e sua análise pode ser objeto de outro post.

Quanto ao Fator-X, relatório do Banco Mundial de 2010 (Veron e Cellier, 2010) sugeriu “rever custos futuros de manutenção e operação com base num mix de índice de inflação e produtividade, calculado, por exemplo, em função de ganhos de produtividade observados em outras concessões, introduzindo assim um processo semelhante a uma regulação por medição (yardstick regulation). Os ganhos de produtividade esperados poderiam ser estabelecidos para cada período de cinco anos”.

O Fator X nos contratos para exploração da infraestrutura rodoviária federal

Dentre as inovações discutidas com os principais atores envolvidos nos novos projetos de concessão (setor regulado, governo e TCU – este especialmente preocupado quanto aos problemas àquela altura já identificados nos contratos da Primeira Etapa), em 2012, na chamada Terceira Etapa, foi pela primeira vez inserido no contrato de concessão rodoviária o chamado Fator X. De acordo com o contrato da BR-101/BA/ES, o Fator X é o (ANTT, 2012):

(…) redutor do reajuste da Tarifa de Pedágio – calculado na forma da subcláusula 16.3.3, e revisto na forma da subcláusula 16.3.5 – referente ao compartilhamento, com os usuários do Sistema Rodoviário, dos ganhos de produtividade obtidos pela Concessionária.

O Fator X é um redutor no índice de reajustamento para atualização monetária do valor da Tarifa de Pedágio (IRT). No contrato da BR-101/BA/ES, o Fator X é 0 (zero) até o quinto ano da concessão, sendo incrementado de modo pré-definido quinquenalmente, e atingindo no máximo 1% (um porcento) entre o vigésimo primeiro e o vigésimo quinto ano do prazo da concessão. Nos demais contratos da Terceira Etapa, o Fator X foi definido como 0 (zero) até o quinto ano de concessão, sendo revisto quinquenalmente, com base em estudos de mercado realizados pela ANTT, de modo a contemplar a projeção de ganhos de produtividade do setor rodoviário brasileiro.

Ainda, na “Ata de Resposta aos Esclarecimentos (sic)” do processo licitatório da Terceira Etapa (ANTT, 2013), a comissão de outorga assim se pronunciou sobre o Fator X:

O Fator X é o mecanismo que permite o compartilhamento com os usuários dos ganhos de eficiência e produtividade do negócio. Na teoria econômica a Eficiência Econômica é tratada como sendo a associação da eficiência técnica, que é a habilidade da unidade decisória em extrair o maior nível de produto para um dado nível de insumo, com a Eficiência Alocativa, habilidade da unidade decisória em utilizar os insumos na melhor proporção de forma a minimizar os custos. Há também o conceito de Produtividade, que pode ser alterado por quatro fontes de variações: 1) Modificações tecnológicas: alteram a posição da Fronteira da Possibilidade de Produção, isto quer dizer que a produtividade de uma determinada unidade pode melhorar sem que haja aumento em sua eficiência. 2) Modificações na Eficiência: neste caso a unidade se torna mais produtiva por aproveitar melhor os seus insumos. 3) Modificações na escala: a unidade pode ampliar sua produtividade adequando a sua escala de produção de modo a torná-la mais eficiente. 4) Modificações no mix de insumos e produtos: as composições de insumos e/ou produtos podem também afetar a produtividade. Assim, como pode se observar os conceitos de eficiência e produtividade que o Fator X compartilhará com os usuários somente poderão ser mensurados com a operação do negócio e isto somente será compartilhado com o usuário caso haja aumento da produtividade e eficiência (…). (grifos nossos)

Tanto o dispositivo contratual, como a resposta da comissão de outorga deixam bem evidente a intenção dos responsáveis pela elaboração do contrato à época: resumidamente, o Fator X deveria ser um mecanismo que colocaria em evidência a necessidade de considerar eventuais ganhos de produtividade das concessionárias e compartilhá-los com os usuários. Além disso, o Fator X deveria incentivar ganhos de eficiência nas empresas reguladas, pois estas detêm o monopólio na prestação daqueles serviços de expansão, manutenção e conservação da malha rodoviária sob sua responsabilidade e, em regra, os usuários não detêm rotas alternativas.

Então, perguntamos: por que iniciar toda uma discussão a respeito de Fator X no início dessa década, direcionar corpo técnico dentro da agência para formulação de uma proposta metodológica para seu cálculo e, depois de tudo isso, simplesmente suprimir o Fator X do próximo contrato de concessão a ser assinado? É este o melhor caminho?

Na próxima parte deste post exploraremos a teoria econômica e a experiência internacional que justificam a adoção do Fator X como mecanismo de incentivo nos contratos de concessão rodoviária, e quais as possíveis consequências da sua supressão dos contratos que serão licitados daqui para frente.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

AGRELL, P. J.; BOGETOFT, P. Benchmarking and regulation. Core Discussion Paper- Center for Operations Research and Econometrics, Université catholique de Louvain, CORE and Louvain School of Management, B-1348 Louvain-la-Neuve, Belgium, p. 23, 2013.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – 3a Etapa (fase III) – BR-101/ES/BA. Disponível em: <http://3etapaconcessoes.antt.gov.br/index.php/content/view/1169/3__Etapa__fase_III_.html>. Acesso em: 24 out. 2018.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – Concessão da BR-101/290/448/386/RS. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/rodovias/RIS.html>. Acesso em: 24 out. 2018a.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – Ata_de_Respostas_aos_Pedidos_de_Esclarecimentos. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/backend/galeria/arquivos/2018/09/21/Ata_de_Respostas_aos_Pedidos_de_Esclarecimentos.pdf>. Acesso em: 24 out. 2018b.

TCU. Tribunal de Contas da União – Acórdão 2154/2007 TC 026.335/2007-4. Relator: Ministro Ubiratan Aguiar. Disponível em: <https://bit.ly/2ArZEf2>. Acesso em: 24 out. 2018.

VERON, A; CELLIER, J. Participação privada no setor rodoviário no Brasil: Evolução recente e próximos passos. The World Bank Group, Estudo de Transporte, março de 2010.

 

O desafio da governança regulatória

Em fevereiro deste ano, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou relatório econômico sobre o Brasil e uma das principais recomendações continuou sendo “aperfeiçoar a governança e reduzir a corrupção”, engrossando o coro de outras instituições e da academia no sentido de que é preciso reforçar o papel da governança regulatória no país.

Antes de falarmos sobre o que é governança regulatória e porque ela aparece com frequência nas recomendações de relatórios ou análises sobre a economia brasileira, é importante entender como surgiu a necessidade de se olhar para esse conceito. Na esteira das crises econômicas enfrentadas por boa parte dos países em desenvolvimento na década de 1980, o Estado se rendeu ao inevitável movimento de conceder à iniciativa privada a prestação de alguns serviços públicos. A teoria econômica deu suporte a esse movimento ao prever que essa relação público-privada seria benéfica para o bem-estar da população, para a sustentabilidade do investimento privado e também para a eficiência e qualidade do serviço prestado.

No entanto, segundo Correa et al. (2006), a transferência de ativos para a iniciativa privada pode não gerar as melhorias de bem-estar previstas na teoria econômica, caso não seja combinada com uma estrutura legal robusta, contratos apropriados e boa governança regulatória.

Então, o que é governança regulatória e por que ela é importante? Como o termo é amplo e, de certa forma, etéreo, são inúmeras as definições. Em comum é possível identificar a sua finalidade: garantir que a regulação seja bem concebida, implementada e que tenha enforcement. Como a governança pode alcançar esses objetivos? Para a OCDE (2012), ela precisa estar presente em todo o ciclo da política regulatória. Essa abordagem integrada implica em fortalecimento da coordenação, da comunicação, da consulta e da cooperação ao longo do ciclo da política pública.

No entanto, essas atividades não são necessárias apenas dentro de uma determinada agência reguladora, mas também entre diferentes instituições e esferas de governo. Quanto mais complexo o sistema, mais difícil de identificar os papeis de cada agente e fazê-los se comunicar e cooperar (a exemplo do caso brasileiro, no qual se tem agências reguladoras estabelecidas em diferentes níveis federativos e com competências superpostas).

De forma caricata e simplista, a situação é quase um problema de ação coletiva, no qual se sabe que a possibilidade de se obter um benefício para um grupo não é suficiente para gerar a ação coletiva necessária para o alcance desse benefício. Cada agência busca a melhor solução para os seus desafios regulatórios. Todavia, a falta de coordenação e cooperação pode gerar resultados ruins para a população.

E qual é a consequência de não se ter uma boa regulação? Quais são os custos associados à bad regulation e, consequentemente, quais são os benefícios de se investir em governança regulatória? Um cenário de alto risco regulatório eleva o custo do capital, o que resulta em um menor potencial de investimento e desenvolvimento tecnológico da economia. Com isso, projetos socialmente desejáveis não conseguem se financiar, tendo em vista o elevado retorno do capital exigido para compensar o risco regulatório e, além disso, o ambiente de negócios se torna pouco atrativo em razão da insegurança jurídica e do potencial de litígio que dela decorre.

Nessa linha, para melhorar o desempenho organizacional, reduzir conflitos, alinhar ações e trazer mais segurança para consumidores e investidores, os formuladores de política pública, a academia e demais órgãos de pesquisa se voltaram para o estudo e o desenvolvimento de estruturas de governança que maximizassem o benefício social esperado da regulação. De acordo com o Banco Mundial (2008), há um certo consenso de que governança importa para o desenvolvimento. Tal consenso é fruto, mesmo que não exclusivamente, do interesse em se trazer para a discussão evidências empíricas de que a boa governança está ligada ao desenvolvimento econômico.

Um dos exemplos mais bem sucedidos é o dos Indicadores de Governança Mundial (WGI) do Banco Mundial, que, ao fornecerem ferramentas para medir a governança e monitorar as alterações na sua qualidade (entre países e ao longo dos anos), servem de subsídio para orientar como as reformas de governança são projetadas, implementadas e avaliadas.

Observando a tendência do Brasil e da América Latina no item “qualidade regulatória” do WGI, é possível perceber que o país apresenta um desempenho, na média, inferior àquele da América Latina e do Caribe considerados de forma agregada. Desde 2013, o Brasil obteve resultados aquém daqueles alcançados em anos anteriores e aquém daqueles obtidos por países semelhantes. Esse desempenho, provavelmente, é reflexo da instabilidade política e do momento econômico pelo qual o país passa desde as eleições de 2014.

Entendido o papel da governança, vamos desconfiar de soluções “fáceis” ou “universais”, o que, às vezes, parece ser o caso associado à uma parte da literatura sobre o tema. A governança, per si, não é solução de todos os problemas, em especial para a corrupção, para os incentivos perversos das regras do serviço público e para os desafios intrínsecos à qualquer atividade regulatória.

Em julho deste ano, o IPEA publicou uma Nota Técnica que traz uma reflexão importante sobre essa questão. Em alguns casos, as recomendações de diversos órgãos ignoram gargalos e problemas estruturais do Estado. Os autores reforçam a impossibilidade de se “manter uma visão restrita de que a governança é apenas o resultado de um pacote de reformas e mudanças predefinidas e impostas de forma exógena por agentes que não consideram as particularidades do contexto político-institucional de atuação de cada organização do governo federal”. (IPEA, 2018)

Como dizia Descartes, não há solução fácil para um problema difícil. É fundamental compreender o sistema político-institucional dentro do qual os órgãos se inserem para que se construam soluções aplicáveis a cada contexto e para que a implementação de práticas de boa governança tenha como resultado uma política regulatória mais eficiente, trazendo de volta a confiança da iniciativa privada nas instituições e os resultados benéficos dessa relação público-privada.

Bruna de L. Araújo Souza é doutoranda em Economia na Universidade de Brasília (UnB). Mestre e Bacharel em Economia com interesse em regulação e parcerias público-privadas, em especial no setor de infraestrutura. Atualmente, é MSc candidate in Public Policy and Administration na London School of Economics and Political Science (LSE).

Fontes:

CORREA, P. et al. (2006). Regulatory governance in infrastructure industries: assessment and measurement of Brazilian regulators. Washington DC: The World Bank.

EBERHARD, A. (2007). Infrastructure regulation in developing countries: an exploration of hybrid and transitional models. In: Public-Private Infrastructure Advisory Facility (PPIAF) Working Paper no. 4. Washington, DC: World Bank.

IPEA. (2018). Governança pública: construção de capacidades para a efetividade da ação governamental. Nota Técnica n. 24. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8581/1/NT_24_Diest_Governan%C3%A7a.pdf

OECD. (2012). Recommendation of the council on regulatory policy and governance. Paris. Disponível em: http://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/2012-recommendation.htm

OECD (2018). Relatórios Econômicos OCDE – Brasil. Disponível em: https://www.oecd.org/eco/surveys/Brazil-2018-OECD-economic-survey-overview-Portuguese.pdf

WORLD BANK (2008). Governance Matters 2008. Disponível em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/pdf/WBI_GovInd08-5a.pdf

WORLD BANK (2018). Worldwide Governance Indicators. Disponível em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/index.aspx#home

A Desoneração Tributária da Exportação de Serviços e a Possibilidade de Eliminação de Resíduos da Cadeia

Um dos legados da famigerada greve dos caminhoneiros foi a divisão com a sociedade brasileira dos ônus da desoneração tributária do diesel. Ao afetar a meta de arrecadação e sendo pressionado para não aumentar a carga tributária, o governo federal deliberou cobrir o deficit provocado, pela redução ou eliminação, à toque de caixa, de diversos incentivos vigentes, como é o caso do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras -Reintegra.

O art. 21 da Lei nº 13.043/2014, com a disciplina do Decreto nº 9.393, de 30 de maio de 2018, reduziu a alíquota para os créditos do Reintegra de 2% para 0,1%, com vigência imediata, a despeito de a regulamentação anterior determinar que essa alíquota seria mantida até o final do exercício.

O Reintegra permite que empresas que exportam determinados produtos apurem crédito no valor de percentual fixado sobre a receita auferida na operação de exportação. A finalidade da restituição é a devolução de parte dos resíduos tributários da cadeia de produção de bens exportados, em consonância com o princípio de comércio internacional, de que não deverá haver a exportação de tributos. A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 540/2011, convertida, posteriormente, na Lei nº 12.546/2011, discorreu sobre a necessidade de combater as dificuldades das empresas exportadoras brasileiras. Os resíduos tributários existentes na cadeia produtiva de bens manufaturados reduz a competitividade de exportações brasileiras, pois representam de 5% a 10% do custo do produto exportado, a depender de fatores tais como a extensão da cadeia produtiva.

O Reintegra não se aplica aos serviços, apenas a produtos manufaturados. Mas a discussão que veio à baila com as medidas compensatórias decorrentes da greve dos caminhoneiros, trazidos pelos contribuintes exportadores prejudicados, é a indispensabilidade da eliminação dos resíduos tributários das cadeias de bens exportados.

Note-se que se a cumulatividade tributária afeta as mercadorias exportadas, os serviços padecem de uma deficiência na estrutura de tributação muito maior, considerando que a tributação sobre os serviços brasileira não dispõe de técnicas para a eliminação dos resíduos tributários.

A base de cálculo do imposto sobre serviços -ISS é o preço bruto do serviço, com alíquotas máxima de 5%, não se permitindo a dedução de insumos empregados na prestação de serviços, nem o quanto pago nas operações anteriores, de acordo com suas normas gerais, determinadas pela Lei Complementar n. 116/2003. A única exceção é o caso de serviços de construção civil, em relação aos quais há a previsão de dedução do valor de materiais e o das subempreitadas já oneradas pelo imposto.[1]

Em regra, não há a possibilidade de dedução dos materiais empregados para a prestação dos serviços, que já são gravados pelo IPI e pelo ICMS, gerando dupla imposição econômica, situação que não ocorrerá em ordenamentos jurídicos que tributam de forma unificada mercadorias e serviços.

Uma justificativa possível para a estrutura cumulativa do ISS é o fato de sua alíquota ser relativamente baixa, aliada ao fato de sua competência ser disseminada entre 5570 competências tributárias municipais: não oneraria demasiadamente aos contribuintes, ao mesmo passo que não ofereceria maiores dificuldades de fiscalização às administrações tributárias, pela simplicidade de sua estruturação.

Entretanto, sob a perspectiva do comércio exterior, da dificuldade de quantificação da carga tributária, que dependerá da configuração da cadeia de serviços, decorre a violação do princípio da não-discriminação, em desfavor do contribuinte brasileiro, pois o importado será onerado de forma distinta do fornecido internamente, uma vez que não é possível precisar a carga tributária interna.

A despeito de a alíquota máxima do ISS ser relativamente baixa, o que poderia compensar as múltiplas incidências ao longo da cadeia, não promove a neutralidade, vetor a ser perseguido por uma política tributária eficiente. Um dos efeitos de uma tributação cumulativa é a verticalização da cadeia, concentrando-se os diversos prestadores de serviço por razões alheias à eficiência do mercado, mas apenas para fugir à tributação.

Poder-se-ia se argumentar que não é inerente aos serviços a cumulatividade, pois, em geral, esgotam-se em uma única prestação, com algumas exceções, como nas hipóteses serviços de administração de outros serviços. Classicamente, os serviços não se inseririam em uma cadeia, isto é, esgotavam-se em uma única relação jurídica.

Todavia, o perfil das formas de serviços tem se alterado substancialmente em virtude da evolução tecnológica, tornando-se muito mais complexas e atreladas a diversos prestadores. A tendência é que quanto mais sofisticado o serviço, maior será a cadeia de prestadores e maior será o número de subcontratações de serviços, como o caso de serviços de engenharia e de elaboração de softwares.

Acresça-se que, segundo Anita Kon, ao longo do processo de internacionalização produtiva, os serviços, que numa visão tradicional, eram entendidos como não comercializáveis internacionalmente (non tradable), devido à sua intangibilidade e em vista de sua pouca representatividade nas pautas de exportação, mudaram o seu status. As mudanças tecnológicas e a intensificação do processo de globalização produtiva e comercial, incrementaram o fluxo de serviços, especialmente nas áreas de transporte, consultoria, comunicações, de maneira que o seu mercado internacional ampliou-se consideravelmente.[2]

No Brasil, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), baseados no Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio (Siscoserv), as exportações de serviços no Brasil representam pouco, se comparadas às de mercadorias, embora o setor terciário represente pouco mais de 70% (setenta por cento) do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB), como se depreende:

Dos serviços exportados, dentre os mais relevantes estão serviços profissionais, técnicos e gerenciais, de consultoria, financeiros :

A política tributária tem seu papel na contradição desses dados. A cumulatividade do ISS e a “quase-cumulatividade” do PIS e Cofins, incidente sobre a receita das prestações de serviços, que também oferece dificuldades para os contribuintes eliminarem a cumulatividade da cadeia dos bens exportados, são uma das faces desse problema.

Dificuldades adicionais serão encontradas pelos contribuintes para implementar a desoneração nas saídas voltadas às exportações, em virtude da própria dificuldade de aplicação da norma, pela divergência de intepretação pelas administrações tributárias de definições como as de “local de desenvolvimento” e “de consumo” dos serviços.

Todavia, esses obstáculos para desoneração dos serviços exportados, são inconstitucionais. Defende-se que o legislador constitucional optou pela adoção do princípio do destino na tributação das operações de comércio exterior, em detrimento do princípio da origem, como elemento de conexão determinante do exercício da competência tributária. O princípio do destino implica na desoneração da carga tributária nas saídas voltadas à exportação, além da restituição ou creditamento da carga tributária que incidiu na cadeia de produção e distribuição do bem, internamente.

Contrariamente ao que existe no imposto de renda, em que há uma disputa internacional sobre a aplicação do princípio da residência ou fonte, como critério de determinação de competência tributária, há um notável consenso no comércio internacional pela aplicação do princípio do destino, optando as economias mundiais por desonerar as exportações, enquanto que no local de consumo desses bens, recairá a carga tributária.

 

Conforme o saudoso jurista Ricardo Lobo Torres, o princípio do destino está intimamente conectado e harmonizado com o princípio da territorialidade, com a ideia de Justiça e com o princípio da capacidade contributiva, ao estabelecer que os tributos devam ficar no país onde foram consumidos os bens, sendo o vetor para se evitar a dupla tributação no comércio internacional[3]

Nas palavras do também saudoso professor Alberto Xavier[4]:

Os impostos de consumo sobre as transações são geralmente lançados no país do consumidor, revertendo em benefícios dos Estados nos quais são consumidos os bens sobre que incidem. Precisamente por isso, o país de origem, isto é, o país no qual o bem foi produzido, procede normalmente à restituição ou isenção do imposto no momento da exportação; e, por razões simétricas, o país do destino, onde o bem será consumido, institui um encargo compensatório sobre as mercadorias importadas, em ordem de colocá-las ao menos em pé de igualdade com os produtos nacionais.

A Constituição de 1988 adota claramente o princípio do destino no comércio internacional, pois determina que os tributos não incidirão na exportação dos bens. Em diversos dispositivos consolida-se essa opção do legislador constitucional, como o art. 153, §3o, III, que determina que o IPI “não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior”; o art. 155, §2o, X, ‘a’, com a redação da EC n. 42/2003, que determina que o ICMS não incidirá “sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”; o art. 156, §3o, II, que determina, para o ISS, que cabe à lei complementar “excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior”; o art.149, §2o, I, que determina que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico “não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação” (com a redação da EC n. 33/2001) e “incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços” (com a redação da EC n. 42/2003).

Em um ambiente internacional cooperativo de tributação, a escolha pela eficiência econômica e por conseguinte, pelo princípio do destino é inequívoca, pois ao se permitir que um produtor não direcione o seu comportamento por força da tributação de insumos, determinando-se que a carga tributária recaia sobre o consumidor final, incrementa-se a produção e, assim, um governo pode assegurar que parte dessa produção excedente seja capturada pela tributação dos lucros, remanescendo o suficiente para o benefício dos consumidores.

E nesse ponto, retorna-se à ideia lançada no início do texto: o Reintegra, ao possibilitar a redução (não eliminação) dos resíduos tributários oriundos da tributação interna, não é um favor governamental, mas uma obrigação do legislador infraconstitucional. E mais: deve ser estendido aos serviços. Quanto ao ISS o art. 156, §3o, II da Constituição determina que a lei complementar deve excluir a incidência do ISS dos serviços exportados: não apenas a incidência do serviço exportados, como de sua cadeia.

Se no Brasil o princípio do destino tem matriz constitucional, a sua realização não é faculdade do Estado, sendo dever do legislador incluir as imunidades/isenções nas exportações e a constituição de técnicas que viabilizem o aproveitamento de créditos de saídas direcionadas à exportação, na proporção da carga tributária incidente internamente.

A tributação cumulativa traz prejuízos à alocação de recursos e à competitividade dos produtos nacionais, tanto no mercado externo como no doméstico, pois altera de forma incontrolável os preços relativos da economia. No comércio exterior, a realidade da cumulatividade prejudica a competividade das exportações brasileiras. Em relação ao custo dos bens exportados, é difícil a recuperação da carga tributária incidente sobre a cadeia de produção e comercialização, relativa aos insumos, bens de capital e à gestão de negócios.

E se essa discussão ainda necessita amadurecer no comércio exterior de mercadorias, no caso dos serviços, em que as mesmas premissas podem ser aplicadas, a discussão é incipiente.

A não-cumulatividade é técnica expressamente imposta constitucionalmente apenas para o IPI, o ICMS e mais recentemente, para o PIS e Cofins. Portanto, em princípio, não haveria a obrigação da municipalidade de instituir técnicas de implementação de não-cumulatividade para o ISS.

Não obstante, a cumulatividade da tributação dos serviços ofende a diversos preceitos constitucionais. Assim, como justificar que aquele que forneça serviços mais sofisticados e com maior peso econômico, seja mais gravemente tributado? Ademais, ao se estabelecer uma estrutura de tributação que verticalize a cadeia de produção, haverá não só ofensa à neutralidade, como aos vetores constitucionais da Ordem Econômica.

Essas são apenas algumas provocações que apontam para a estrutura anacrônica das técnicas de tributação sobre os serviços, que devem ser repensadas em um contexto econômico em que o setor terciário participa de forma crescente no PIB brasileiro.

  1. Observando-se que do projeto original da Lei Complementar n. 116/2003, foi vetada a possibilidade de dedução dos valores despendidos com terceiros pela prestação de serviços dos hospitais, laboratórios, clínicas, medicamentos, médicos, odontólogos e demais profissionais de saúde, por cooperativas médicas.
  2. KON, Anita. Nova Economia Política dos Serviços, p.53 et seq. São Paulo, Perspectiva, CNPq, 2015.
  3. TORRES, Ricardo Lobo.O Princípio da Não-Cumulatividade e o IVA no Direito Comparado. MARTINS, Ives Grandra da Silva (coord.). Série Pesquisa Tributárias, no 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 161.
  4. Direito Tributário Internacional, 2a ed. Coimbra: Edições Almedina, 2014, p.238-239
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