O setor de saneamento básico, apesar do seu caráter essencial, é o setor de infraestrutura menos desenvolvido no Brasil. Desde a década de 1970, o país tem elaborado planos nacionais para universalizar o acesso a essa infraestrutura. Em geral, são planos de médio e longo prazo. O problema é que já se passaram várias décadas e muitos planos já foram elaborados sem que tivessem cumprido as suas metas (Araújo, 2016). A falta de prioridade para essa agenda faz com que o Brasil, embora seja a nona economia do mundo, esteja em 112o lugar no ranking das infraestruturas de saneamento (Benevides e Ribeiro, 2014).

Esse setor é estratégico para o desenvolvimento de longo prazo do país, uma vez que o saneamento, além de garantir o direito humano à água potável, gera uma série de externalidades positivas para a saúde pública, o meio ambiente, a qualidade de vida e a geração de renda (Scriptore e Toneto Júnior, 2012). Uma série de benefícios pode ser gerada com a expansão desses serviços. Freitas et al (2014) quantifica alguns dos benefícios que podem ser obtidos com a universalização do saneamento no Brasil:

  • Queda no número de internações, gerando uma economia de R$ 27,3 milhões anuais;
  • Redução de 15,5% na mortalidade por infecções gastrointestinais;
  • Redução do número de afastamentos do trabalho, evitando uma perda de R$ 258 milhões por ano;
  • Ganho na massa salarial, resultando em crescimento da folha de pagamentos de R$ 105,5 bilhões anuais;
  • Aumento no longo prazo da massa salarial em torno de R$ 31,6 bilhões anuais, em decorrência de melhoria na produtividade, devido à diminuição no atraso na educação;
  • Valorização dos imóveis em torno de R$ 178,3 bilhões;
  • Elevação do número de trabalhadores no setor de turismo, gerando R$ 7,2 bilhões por ano em salários.

Investir em saneamento não se restringe apenas a garantir um direito humano reconhecido pelas Nações Unidas e a evitar a poluição dos corpos hídricos. Investir em saneamento é uma escolha racional tendo em vista a escassez tanto de recursos naturais como de recursos financeiros. Hutton (2013) buscou mensurar a relação custo-benefício global do saneamento. Ao avaliar 136 países, o pesquisador observou que a cada US$ 1 investido em saneamento básico, gera-se um retorno econômico de US$ 4,3 em benefícios. Os benefícios mensurados se referem a ganhos relativos à saúde e à produtividade do trabalho. Se fossem considerados outros ganhos, como aqueles relacionados ao meio ambiente, à educação e ao turismo, os benefícios seriam ainda maiores.

Embora tenha havido avanços no abastecimento de água, no que tange à coleta e ao tratamento de esgoto, o Brasil está muito distante da universalização. De acordo com o último relatório do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em torno de 83,3% da população têm acesso ao abastecimento de água, mas somente 44,9% da população tem acesso ao tratamento de esgoto sanitário. A região Norte é a que apresenta menor acesso ao tratamento do esgoto gerado, com apenas 18,3% da sua população com acesso a esse serviço. A região Centro-Oeste é a que apresenta a melhor taxa, mas ainda assim baixa, com 52,6% da população urbana com acesso ao tratamento do esgoto gerado (Brasil, 2016).

A época de maior investimento e expansão dos serviços de saneamento no Brasil foi a década de 1970, quando foi implantado o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Esse plano pode ser considerado como a única política articulada para financiamento e modernização do saneamento no país. As políticas que o sucederam, em geral, foram pontuais e com baixa articulação entre os entes federativos (Turolla, 2002). Conforme pode ser observado no gráfico 1, os investimentos nessa década foram proporcionalmente muito maiores do que nas décadas seguintes.

Gráfico 1 – Investimentos em saneamento básico no Brasil (1971 – 2016) em % do PIB.

Gráfico

Fontes: Sainani e Toneto Júnior (2010) e SNIS 2006 – 2016 (Brasil, 2016).

Após a extinção do Planasa, em 1992, houve um vácuo institucional de quinze anos até a aprovação da Lei do Saneamento Básico (Lei no 11.445/2007). No processo de discussão e aprovação dessa lei, Sousa e Costa (2013) destacam que se perpetuou uma relação autoritária dos estados para com os municípios e a capacidade de coordenação federal foi fragilizada. Essa lei já completou mais de uma década, houve pouca evolução da infraestrutura de saneamento no país nesse período e o setor continua à margem. Nos últimos anos inclusive, observa-se uma queda dos investimentos em saneamento, conforme pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1 – Investimento realizado no setor de saneamento básico em R$ milhões.

Ano Investimento realizado
2011 8.378,2
2012 9.753,70
2013 10.485,2
2014 12.197,7
2015 12.175,1
2016 11.511,0

Fonte: SNIS 2011-2016 (Brasil, 2016).

Do total de investimentos realizados em 2016, a maior parte corresponde a recursos próprios das empresas de saneamento (55,7%) e o restante se divide em recursos onerosos (32,%) e recursos não onerosos (11,7%). A maioria dos investimentos foi feita pelos prestadores de serviços regionais (79,0%). Os prestadores de serviços locais investiram 20,3% do total e os microrregionais investiram apenas 0,7% do valor total. Essa distribuição de investimentos está diretamente relacionada ao tamanho do público atendido por esses três tipos de prestadores de serviços. A tabela 2 representa a distribuição da população urbana atendida por essas empresas.

Tabela 2 – Distribuição dos prestadores de serviços participantes do SNIS em 2016, segundo a abrangência de atendimento.

Prestador de Serviço Quantidade de municípios atendidos População urbana dos municípios % da população urbana atendida
Abrangência No Água Esgoto Água Esgoto Água Esgoto
Regional 28 4.033 1.351 128.953.667 103.434.498 74,6% 66,6%
Microrregional 6 17 15 701.041 692.992 0,4% 0,4%
Local 1.607 1.141 1.149 43.094.101 51.087.784 25% 33%
Brasil 1.641 5.191 2.515 172.748.809 155.215.274 100% 100%

Fonte: SNIS, 2016 (Brasil, 2016).

Conforme pode ser observado na tabela 2, os prestadores de serviços regionais, aos quais correspondem às empresas estaduais de saneamento, respondem pela maior parte dos serviços de saneamento no país. Araújo e Bertussi (2016) avaliaram a situação econômico-financeira de 20 empresas estaduais de saneamento, bem como as suas estruturas tarifárias. Os resultados encontrados demonstram a baixa capacidade de geração de recursos financeiros por essas empresas para realizar os investimentos necessários. A maior parte das empresas apresentou baixa liquidez, baixa margem líquida e baixa taxa de retorno do investimento. Em 2015, quase metade das empresas apresentaram lucros líquidos negativos e três delas não apresentavam mais nenhum patrimônio líquido e tinham taxas de endividamento acima de 200%.

A baixa capacidade econômico-financeira dessas empresas estaduais de saneamento pode estar ligada à falta de uma regulação efetiva que não tem assegurado estruturas tarifárias de acordo com a Lei 11.445/2007. Conforme o inciso IV do artigo 22 dessa lei, um dos objetivos da regulação é “definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade”. Há, portanto, uma necessidade de aprimoramento da regulação dos serviços de saneamento nos níveis estaduais e municipais e há também a necessidade de estabelecer um regulador em âmbito nacional. O setor de saneamento é o único setor de infraestrutura que não tem um agente regulador em nível federal (Araújo e Bertussi, 2016).

Recentemente, em 06 de julho de 2018, o governo federal editou a Medida Provisória 844 que atualiza o marco legal do saneamento (Lei 11.445/2007) e modifica a Lei 9.984/2000 e a Lei 10.768/2003 para tornar a Agência Nacional de Águas (ANA) responsável pela instituição de normas nacionais para a regulação dos serviços de saneamento. Essas normas nacionais deverão tratar de cinco temas principais: 1) padrões de qualidade e eficiência dos sistemas de saneamento; 2) regulação tarifária dos serviços; 3) padronização dos instrumentos de negociação; 4) critérios para a contabilidade regulatória e 5) redução progressiva da perda de água. Para tanto, essas normas deverão estimular e promover:

  • Livre concorrência, competitividade, eficiência e sustentabilidade econômica;
  • Cooperação entre os entes federados;
  • Prestação adequada dos serviços de saneamento;
  • Adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais (Brasil, 2018).

Essa medida provisória cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), com a finalidade de assegurar a implantação da Política Federal de Saneamento Básico e articular as ações de alocação dos recursos financeiros da União. Além disso, essa nova legislação condiciona o recebimento de recursos públicos federais onerosos e não onerosos ao cumprimento por parte dos municípios e estados das normas nacionais a serem elaboradas pela ANA. O objetivo da MP 844/2018 é aperfeiçoar a legislação de gestão de recursos hídricos e o marco legal de saneamento para promover melhor interação entre as duas políticas, bem como buscar a garantia de maior segurança jurídica aos investimentos no setor. Nesse sentido, a MP busca corrigir três problemas que têm dificultado a implantação da infraestrutura de saneamento: 1) a baixa capacidade regulatória; 2) a limitada coordenação e racionalização das ações federais e 3) o desajuste das regras de consórcios públicos ao setor de saneamento (Brasil, 2018).

A aprovação da MP 844 tem encontrado muitas barreiras no Congresso Nacional. A Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), a Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar) e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) se uniram contra a medida provisória. De acordo com essas entidades, a MP conduzirá ao sucateamento dos serviços públicos de saneamento e ao aumento da privatização do setor, gerando aumento das tarifas e exclusão da população de baixa renda (Brasil, 2018a).

O governo, por outro lado, afirma que para expandir os investimentos no setor é necessário ampliar a participação do capital privado e para tanto precisa haver a segurança jurídica garantida pela aprovação da MP. Os investimentos atuais estão aquém do previsto para o cumprimento das metas de universalização propostas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasab). Os investimentos anuais deveriam estar na ordem de R$ 15 bilhões, mas atualmente giram em torno de R$ 10 bilhões (Brasil, 2018a).

O enfretamento dessas entidades tem interposto barreiras à aprovação da MP que teve seu prazo prorrogado e está próxima de perder a sua validade. A data limite para a votação é o dia 19 de novembro. Apenas no dia 30 de outubro, foi eleito o presidente da Comissão Mista de análise da MP (Brasil, 2018b) e no dia seguinte a medida provisória foi aprovada por esta comissão. A MP ainda terá que passar pelos Plenários da Câmara e do Senado (Brasil, 2018c). Os próximos dias serão decisivos para o setor de saneamento no país. É imprescindível que haja algum avanço na regulamentação do setor e que a União possa ter melhores condições para coordenar a política de saneamento.

Algum avanço na institucionalização do papel da União na promoção dos serviços de saneamento é fundamental para evitar retrocessos maiores. O presidente eleito Jair Bolsonaro já deu sinais de que o setor de saneamento não receberá tanta atenção da União. Além do seu plano de governo não conter qualquer menção ao setor de saneamento (Brasil, 2018d), ele declarou durante a campanha que pretende extinguir o Ministério das Cidades e que os recursos para moradia e saneamento irão diretamente para as prefeituras (G1, 2018). Como se dará esse processo de transferência para os municípios e o quanto será investido é incerto. Entretanto, tendo em vista a complexidade e o histórico do setor, dificilmente se conseguirão avanços sem uma política integrada entre os entes federativos. Por isso, é preciso que pelo menos parte da MP seja aprovada para que haja garantias legais de que algum órgão federal continuará a atuar efetivamente no setor de saneamento.

 

Flávia Camargo de Araújo é Economista, Engenheira Agrônoma e Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisas nas áreas de Economia da Infraestrutura e Meio Ambiente.

Referências Bibliográficas

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