Economia de Serviços

um espaço para debate

Month: novembro 2018

Teoria, Ciência e Avaliação de Políticas Públicas

Em um recente e excelente artigo publicado neste Blog (Aprendizado e Tempo na Escola), Rafael Terra e Luis Felipe Oliveira avaliam, para o caso do Brasil, em que medida ampliar o tempo de permanência na escola melhoraria os indicadores de resultado do processo educacional. As conclusões do artigo são pessimistas: essa alternativa de política não teria os resultados que a intuição supõe uma vez que a relação custo/benefício seria francamente desfavorável a esse tipo de iniciativa.

Contudo, nosso objetivo neste post não consiste em comentar ou debater esse artigo específico ou esse resultado particular senão utilizar o mesmo para induzir uma reflexão sobre os nexos entre matrizes teóricas, o conceito de ciência e as propostas de avaliação de políticas públicas. Como bem sustentam Rafael e Luis Felipe no post, elevar a eficiência e eficácia dos recursos públicos alocados em programas e projetos passa pela sua avaliação de impacto. Essa avaliação deveria acompanhar, em termos metodológicos, um savoir-faire já amplamente consolidado em áreas como a medicina, veterinária, agronomia, etc.. A efetividade de um tratamento ou política teria que ser mensurado comparando a evolução e o desfecho de dois grupos escolhidos de forma aleatória: aquele sobre o qual foi aplicado o “tratamento” (a política ou a intervenção) e um outro não submetido ao tratamento (ou sobre o qual foi utilizado um placebo), denominado de grupo de controle. Na sua forma mais pura, este experimento teria que se singularizar por ser “duplo cego”, premissa segundo a qual nem os técnicos que realizam o experimento nem os integrantes dos grupos sabem que unidades fazem parte do grupo de tratamento ou do grupo de controle. Além desses aspectos pouco aplicáveis ao campo das ciências sociais (como a economia), podemos agregar outros. Por exemplo, questões éticas (um grupo social não é escolhido para participar de um programa simplesmente para servir de grupo de controle). Um outro exemplo da limitação de estender esta metodologia a áreas alheias à medicina, veterinária, etc. está vinculado à possibilidade mesma de realizar um experimento. Dada essa dificuldade, nas últimas décadas, na medida em que esta alternativa de pesquisa empírica foi se sedimentando como uma boa possibilidade de aproximar a economia às ciências denominadas de “duras”, os economistas tentam identificar fenômenos que se aproximem do mundo ideal “experimental”. Por exemplo, um caso pioneiro e talvez o mais conhecido, foi a utilização, por Card e Krueger (1994), do aumento, em 1992, do salário mínimo em New Jersey. Na medida em que no vizinho Estado de Pennsylvania o valor não foi alterado, a comparação da evolução do emprego em ambos Estados podia ser utilizado como uma proxy de uma avaliação experimental do impacto na variação do patamar mínimo de salários sobre o emprego no segmento de mão-de-obra não qualificada (mais especificamente, na ocupação nos fast-foods). Na medida em que, no modelo canônico, uma elevação do mínimo impacta negativamente na demanda de mão-de-obra, a identificação desse conjunto não afetado pela política é utilizado como contra-factual[2]. Ou seja, basicamente se estaria tentando responder a esta pergunta: que teria acontecido senão houvesse passado o que passou? Dessa forma, estaríamos ambicionando amoldar uma metodologia (RTC- Randomized Controlled Trial) utilizada em certas ciências para as ciências sociais (economia entre elas) e, mais especificamente, para a avaliação do desenho de políticas (Evidence-Based Policy).

Ao levar esse tipo de abordagem para a economia, a aspiração seria concretizar uma antiga pretensão dos economistas: distinguir seu nicho das ciências sociais em geral, uma vez que suas hipóteses ou modelos teriam que passar pelo crivo de uma metodologia de avaliação (Evidence-Based) que prove sua pertinência, metodologia similar à utilizada por outras ciências denominadas de “duras”. Nesse sentido, a afirmação de Rafael e Luis Felipe é ilustrativa:

“Infelizmente, a criação e as reformulações dos programas no Brasil não levam em conta a necessidade de avaliação. É um problema recorrente. O novo governo faria muito bem às finanças públicas se buscasse incorporar desenhos experimentais ou quase-experimentais para avaliar os programas implementados”

Esse tipo de perspectiva tem no J-PAL (Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab), do MIT, um referencial acadêmico que ancora sua pertinência. A tarefa realizada no âmbito do J-PAL consiste, basicamente, em utilizar a metodologia que sintetizamos nos parágrafos anteriores para avaliar políticas, programas e projetos na área social ao redor do mundo. Assim, podem ser encontrados resultados de avaliação de impacto da construção de escolas sobre salários e escolarização em Indonésia (Duflo (2001)), o resultado da informação do vírus HIV sobre as práticas sexuais dos adolescentes em Quênia (Dupas (2011)) ou o desdobramento da distribuição de uniformes nos alunos, também em Quênia, avaliação na qual se chega à conclusão que essa disponibilidade reduz o absentismo em 38% (Evans, Kremer and Ngatia (2008)). Poderíamos estender os exemplos. Nos seus primeiros dez anos (foi criado em 2005), o J-Pal realizou mais de 400 avaliações experimentais em mais de 50 países.

Neste artigo pretendemos discutir três aspectos: qual é o referencial teórico que pauta cada uma dessas avaliações ? Qual a contribuição que cada uma delas (cada avaliação) realiza para consolidar ou alterar o modelo canônico ou algum outro paradigma? Qual é o status da teoria nessa nova cultura de avaliação?

Comecemos pelo primeiro aspecto. Qual é o referencial teórico que norteia as pesquisas? A resposta é mais ou menos óbvia: nenhum. Um modelo de referência foi substituído pelo bom senso, pela intuição, pelo feeling, etc.. Distribuir uniformes nas escolas, tem impacto positivo sobre os resultados do processo educativo? Pode ter, pode não ter, talvez tenha. A intuição nos diz que pode ser relevante, mas nada garante. A participação e engajamento da comunidade na escola, pode melhorar a qualidade dos resultados? Pode, o bom senso nos diz que sim, mas depende de que tipo de engajamento, não todos (Pradhan et al. (2012)). Por outra parte, essa ambivalência no resultado encontrado por Pradhan et al. pode ser válido para Indonésia, lugar onde a avaliação experimental foi realizada, mas não podemos generalizar.

Ou seja, não precisamos de teoria ou marco conceitual para pautar uma avaliação. O bom senso pode induzir um experimento ou, alternativamente, o objetivo pode consistir na avaliação de um programa do governo ou a proposta de um candidato.

Mas não estaremos diante um processo de produção de conhecimentos eminentemente indutivo? Em outros termos, conclusões de caráter universal podem ser acumuladas para nutrir ou testar um marco conceitual existente ou outro a ser construído? A resposta volta a ser negativa por dois motivos. Primeiro que não existe um modelo teórico prévio que está sendo testado e, nesse sentido, não existe um marco conceitual já existente a ser validado empiricamente ou sofisticado ou consolidado. Simplesmente não existe teoria pré-existente. Por outra parte, a avaliação experimental, ao não ter um arcabouço analítico que a fundamente, fica limitada ao entorno temporal e geográfico no qual foi implementada. A distribuição de uniformes escolares reduz o absentismo em Quênia. Podemos concluir que a distribuição de uniformes reduz o absentismo em todo lugar? Óbvio que não. Reduz em Quênia e o resultado está circunscrito ao espaço no qual foi realizada essa avaliação dentro desse país. Vejamos o caso do Brasil. Se no Rio Grande do Sul realizamos uma avaliação experimental e o resultado nos diz que a merenda escolar eleva o rendimento dos alunos, podemos sustentar que em Roraima esse resultado é válido? Evidente que não. Na ausência de um modelo referencial, quantas validações experimentais são necessárias para que a relação de causalidade encontrada (ou não encontrada) possa adquirir uma singularidade universal ? É impossível saber e sempre pairará a dúvida se os resultados achados em dado espaço geográfico e temporal manifestam um correlação universal ou não.

Assim, não estamos diante um processo de pesquisa indutivo. A vocação da literatura na área, é preciso reconhecer, não tem essa pretensão. Nesse sentido, essa opção metodológica (avaliação experimental ou quase experimental) foi adotada pelo mainstream na tentativa de tornar mais próxima a economia das ciências duras. Contudo, paradoxalmente, o processo leva a tornar mas longínqua a possibilidade de um paralelo. Tomemos o caso da evidence-based medicine. Se um dado experimento determina que um coquetel de drogas inibe o avanço do vírus HIV, esse resultado será válido para Suíça, Burkina-Faso e Japão. Os resultados de Dupas (2011) sugerem que as condutas sexuais dos adolescentes quenianos parecem sensíveis às informações sobre AIDS, com impactos nas taxas de gravidez. Mas será que os adolescentes de Honduras terão a mesma resposta ? Não sabemos. Em outros temos: fica em aberto a questão da validação externa.

Essa impossibilidade de generalização fica mais evidente em certos papers. Tomemos o caso do artigo de Evans, Kremer and Ngatia (2008) que pretende quantificar o impacto da distribuição de uniformes escolares sobre indicadores educacionais. O resultado parece positivo. Mas isso na média. Concretamente, a sensibilidade vai depender se o aluno é do sexo masculino ou feminino, da faixa etária, depende se já tinha uniforme ou não, entre outros aspectos. Não se tem um modelo que dê sentido ao experimento e não se pretende universalizar: “cada caso é um caso”. Bem longe da física, da medicina, etc..

Assim, paradoxalmente, temos que a tentativa de aproximar a economia das ciências ditas duras evidencia de forma nítida as particularidades das ciências sociais em geral e da economia em particular.

Mas a questão agora é: qual é o status da teoria nesse contexto?

A condição atual dessa tendência a privilegiar a avaliação de impacto (seja ela experimental ou quase-experimental) parece nos aproximar a uma espécie de esquizofrenia. Temos os modelos teóricos, cada vez mais sofisticados e, sem diálogo com eles, se tornam corriqueiros crescentes esforços de avaliação, também cada vez mais refinados estatisticamente e com uma cada vez maior disponibilidade de amplos bancos de dados.

Nesse contexto, a teoria parece um exercício de lógica quase teológico ou, nas palavras de Romer (2015, p. 93), é um “entretenimento”. Vamos reproduzir suas palavras:

“…empirical work is science; theory is entertainment”

Essa falta de diálogo entre teoria e experimento fica evidente entre a prática cotidiana de um economista hoje e os cursos teóricos oferecidos na sua formação. O salário real é igual à produtividade marginal do trabalho, se ensina em Micro e Macro. Segundo o paradigma hegemônico, e descartando certos descompassos que podem ser provocados por algum grau de monopólio por parte dos empregadores, uma elevação do salário mínimo deveria gerar desemprego. Mas se uma avaliação como a realizada por Card e Krueger (1994) não identifica esse impacto, o modelo canônico é desqualificado? Não, uma vez que podemos realizar outras avaliações e esse paradigma poderia ser confirmado. Ou, alternativamente, surge uma polêmica sobre as ferramentas estatísticas utilizadas, a consistência dos dados utilizados, etc.[3] Os resultados encontrados alimentam a construção de algum outro paradigma? Também não.

Nos encontramos, assim, diante de uma segmentação entre teoria e práticas empíricas. Por uma parte se apela à necessidade de avaliações para atestar a eficácia e eficiência dos recursos aplicados, um objetivo louvável. Contudo, dado o empiricismo que permeia essa abordagem, os resultados ficam restritos a um determinado projeto/programa/política, a uma determinada área geográfica e a um dado momento do tempo. A agregação de conhecimentos e sua universalização ficam comprometidas dada a ausência de marcos analíticos de referência. A aspiração de nos assemelhar às ciências duras ainda constitui uma utopia.

Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação na Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

Bibliografia Citada

Card, D.; Krueger, A.L., Minimum Wages and Employment: A Case Study of the Fast-Food Industry in New Jersey and Pennsylvania” American Economic Review. 84(4). p. 772-793. 1994.

Duflo, E., “Schooling and Labor Market Consequences of School Construction in Indonesia: Evidence from an Unusual Policy Experiment” American Economic Review. 91(4). p. 795-813. 2001.

Dupas, P., “Do Teenagers Respond to HIV Risk Information? Evidence from a Field Experiment in Kenya” American Economic Journal. Applied Economics. 1(3) p. 1-34. 2011

Evans, D., Kremer, M. and Ngatia, M. “The Impact of Distributing School Uniforms on Children’s Education in Kenya” Working Paper. World Bank. 2008. (Disponível em: https://bit.ly/2SfGI9d; consultado em novembro de 2018).

Pradhan, M. et al., Improving Educational Quality through Enhancing Community Participation: Results from a Randomized Field Experiment in Indonesia. Working Paper. World Bank. 2012.

Romer, P.M., “Mathiness in the Theory of Economic Growth” American Economic Review: Papers & Proceedings. V. 105. p. 89–93. 2015

 

 

  1. / Professor do Departamento de Economia, UnB.
  2. / No caso específico do exercício de Card e Krueger (1994), o impacto negativo da elevação do salário mínimo sobre o emprego não foi identificado. Esse artigo deu margem a uma ampla polêmica cuja resenha está fora de nossos objetivos neste post.
  3. / Justamente, isso foi o que sucedeu com o artigo em questão que abriu uma ampla polêmica técnica/estatística, mas o paradigma teórico ficou incólume.

 

O Preço da Energia: o descontrole do abuso de controle

A “Década Perdida[1]” deixou uma herança inflacionária no Brasil que persistiu de forma intensa até início da década de 90. Após esse período, a inflação brasileira passou a ser uma das grandes preocupações dos governantes e da população. A instituição do Real como moeda oficial do País, em julho de 1994, quebrou o ciclo da hiperinflação, recuperando a credibilidade da moeda brasileira e o poder de compra da população. Atualmente, a inflação está sob controle dentro do regime vigente de metas de inflação[2].

Superada a herança inflacionária, pouco se fala da inflação acumulada ao longo de décadas. Diante de nossa “memória inflacionária”, estamos aliviados com o atual comportamento dos preços. Entretanto, ao desagregar o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA – IBGE), é possível inferir que, quanto mais essencial for o bem ou serviço e quanto mais protegido for o mercado, maior o acúmulo inflacionário ao longo das últimas duas décadas. Entre os itens essenciais de consumo, tanto para as famílias como para o setor produtivo, está a energia elétrica. Entre o período de agosto de 1999 a setembro de 2018, enquanto o IPCA acumulou um aumento de 230%, a inflação de energia elétrica residencial registrou 338% de inflação acumulada. Este post apresenta algumas explicações para o aumento expressivo do preço da energia elétrica e para as quebras estruturais da série do IPCA – Energia.

Inflação energia elétrica mensurada pelo IPCA – IPCA Energia (acumulada de agosto/1999 a setembro/2018)

Fonte: SIDRA – IBGE, Elaboração: própria.

A energia elétrica é comercializada em dois mercados distintos no Brasil: o Ambiente de Contratação Livre (ACL) e o Ambiente de Contratação Regulada (ACR). No ACL os preços são livremente negociados e definidos de acordo com a demanda de energia, mas para comprar energia neste mercado é necessário um consumo mínimo de 3000Kw por mês[3] (CCEE, 2018). Como consequência, 70% dos consumidores se enquadram dentro do ambiente regulado, no qual os preços são definidos em leilões e a tarifa é estipulada pela ANEEL. Com isso a energia é precificada antes de sua comercialização, fazendo com que os preços não reflitam a demanda relativa de energia no ato da compra. É importante ressaltar que o preço da energia elétrica não é a tarifa propriamente dita. A ANEEL tem grande influência na definição da tarifa de energia, principalmente na chamada parcela B[4]. O preço pago pelo consumidor é composto pela tarifa, pela quantidade consumida e tributos (ICMS, PIS, COFINS e CIP).

A rigidez dos preços e da oferta de energia associada a fatores que alteram a demanda, dificultam o equilíbrio neste mercado. O crescimento demográfico e o desenvolvimento econômico geram pressão de demanda, pois aumentam o consumo de energia que, no curto prazo, tem uma oferta relativamente fixa. A demanda por energia é considerada inelástica, ou seja, pouco sensível a variações de preço, o que diminui o impacto de um aumento de tarifa sobre o consumo. Adicionalmente, os contratos de comercialização são contratos de longo prazo com pouca margem de flexibilização caso haja um desequilíbrio entre oferta e demanda no curto prazo.

Durante o período de 2001 a 2004 o preço de energia acumulado no ano cresceu rapidamente a uma taxa anual média de 18% (IPCA – Energia). Desde o início dos anos 2000 o consumo de energia tem aumentado a uma taxa de 5% ao ano, mas a geração de energia não acompanhou essa expansão. O racionamento ocorrido em 2001 foi prova de que o sistema brasileiro de geração e distribuição de energia não suportava o crescimento da demanda (Walvis e Golçalves, 2014).

A partir de 2004, as distribuidoras foram obrigadas a comprar energia em leilões, numa tentativa de trazer previsibilidade, estabilidade e segurança jurídica ao setor. As licitações adotam o modelo do tipo price cap, em que a modicidade tarifária é o critério para permitir a concessão. Os leilões permitem o ajuste de preços, mas para vencer as licitações as concessionárias têm incentivos a estipular um preço abaixo do preço real. As revisões tarifárias são feitas obrigatoriamente a cada 4 ou 5 anos, e há também a possibilidade de reajustes anuais[5] para rever custos não gerenciáveis, como períodos intensos de estiagem e revisões extraordinárias, para manutenção do equilíbrio econômico financeiro. De 2004 a 2012, os preços ficaram estáveis e cresceram em média 3% (acumulado no ano).

Na curva de preço de energia elétrica chama atenção a quebra estrutural em dezembro de 2012, consequência do congelamento de preços feito pelo governo federal com a Medida Provisória nº 579, cujo objetivo era reduzir em 20% a tarifa de energia. A medida intensificou a atuação da ANEEL no setor, prorrogando as concessões com a condição de que a remuneração das usinas fosse estabelecida pela agência, os riscos hidrológicos fossem assumidos pelas concessionárias, entre outras condições que trouxeram muita instabilidade ao setor. A falta de alinhamento entre tarifas e custos gerou diversas consequências, cujas principais foram: a estagnação da oferta do serviço, aumentos de subsídios, alta judicialização do setor e desequilíbrios entre oferta e demanda que geraram sucessivos aumentos de preços a partir de 2014.

A crise hídrica em 2013 e 2014 acarretou a necessidade de ativação de usinas termoelétricas, cujo custo de geração de energia é muito superior ao das hidroelétricas, para garantir o fornecimento de energia (Walvis e Golçalves, 2014). Entre janeiro de 2014 a janeiro de 2016 o preço da energia subiu 174 pontos percentuais. A partir de 2015 o regime de bandeiras tarifárias permitiu flexibilidade de preços (ANEEL, 2016), que, associado ao aumento do risco hidrológico, explica as oscilações da curva a partir desse ano. O aumento expressivo em janeiro de 2018 foi consequência do baixo nível dos reservatórios, que incitou um reajuste nas tarifas das bandeiras para custear as usinas térmicas.

Vale ressaltar que a inflação de energia elétrica não afeta “só” a conta de luz dos domicílios. Por ser um insumo básico, utilizado em cada etapa da cadeia produtiva, ela “contamina” o preço de diversos produtos em todos os setores da economia. A indústria e o comércio consomem cerca de 36% e 19%, respectivamente, da energia distribuída (EPE, 2017). O aumento do preço da energia tende a ser repassado ao bem ou serviço final, e quanto menos elástica for a demanda de determinado bem ou serviço, maior será o repasse do aumento do preço da energia.

Para que o setor elétrico se torne mais eficiente e para que esses ganhos de eficiência sejam repassados aos consumidores é preciso estimular alguma concorrência no setor, com a clareza de que se trata de um monopólio natural, e isso implica que uma ou poucas empresas são capazes de suprir toda a demanda de forma mais eficiente que uma concorrência. Uma medida que tende a aumentar a concorrência entre os ambientes livre (ACL) e regulado (ACR) é a flexibilização dos requisitos para compra no ACL, de forma que mais consumidores possam arbitrar entre comprar energia no ambiente livre ou no regulado.

Além disso, e levando em consideração que todo o sistema regulatório evoluiu muito nos últimos 15 anos, há que se pensar com racionalidade na privatização da Eletrobrás, que poderá se tornar mais um player deste jogo de geração-transmissão-distribuição de energia. A Eletrobrás disfruta de um mercado protegido que corresponde a um terço de toda geração de energia no País e metade da transmissão. A privatização desse gigante não só aumenta a concorrência nas licitações, o que tem impacto direto no preço da energia, como tende a melhorar a gestão da empresa, diminuindo a interferência política do Estado nas decisões da firma.

Dea Fioravante é economista da Confederação Nacional da Indústria (CNI), graduada pela PUC MG e mestre pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Foi docente da graduação da UCB e da pós-graduação do IBMEC, lecionando disciplinas de econometria, estatística, microeconomia e economia do setor público. Trabalhou como pesquisadora no IPEA Brasília, atuando nas áreas de econometria, microeconomia, organização industrial e infraestrutura. Atualmente trabalha como analista de comercio exterior.

REFERÊNCIAS:

AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA, (ANEEL). “Bandeiras Tarifárias”, disponível em: http://www.aneel.gov.br/tarifas-consumidores/-/asset_publisher/e2INtBH4EC4e/content/bandeira-tarifaria/654800?inheritRedirect=false <acesso em 19/11/2018>

CÂMERA DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA, (CCEE). “Info Mercado mensal”. Nº 132, junho de 2018.

MEDIDA PROVISÓRIA Nº 579. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Mpv/579.htm < Acesso em 8/11/2018.

BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB). “RESOLUÇÃO Nº 4.582, DE 29 DE JUNHO DE 2017”, disponível em: https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/50402/Res_4582_v1_O.pdf

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). “Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2017”. Ministério de Minas e Energia, Brasília, 2017. Disponível em: http://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-160/topico-168/Anuario2017vf.pdf <Acesso em 22/11/18.

Walvis, A. e Golçalves, E. D. L. “Avaliação das reformas recentes no setor elétrico brasileiro e sua relação com o desenvolvimento do mercado livre de energia.” FGV CERI, 2014.

  1. A Década Perdida corresponde à década de 80, período no qual o País diminuiu bruscamente sua taxa de crescimento, passou por recessão e hiperinflação. Na ótica econômica, trata-se de um período perdido em termos de crescimento.
  2. A meta de inflação para este ano é de 4,5% com tolerância de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos, segundo regulamentação do Banco Central do Brasil. O objetivo do banco é diminuir a meta gradualmente, de forma que em 2021 a meta seja de 3,75%.
  3. O consumo médio de uma família de 4 pessoas é cerca de 500 Kwh por mês.
  4. A tarifa é composta pelas parcelas A e B e fator X. A parcela A é calculada pela ANEEL e engloba custos pouco gerenciáveis pela concessionária. A parcela B que engloba os custos gerenciáveis pela distribuidora e o Fator X incorpora os ganhos de produtividade da concessionária.
  5. As Revisões Tarifárias Periódicas (RTP) definem um novo patamar das tarifas, para um horizonte temporal de 5 anos. O Reajuste Tarifário Anual (RTA) é feito para corrigir custos não planejados no último ano. A Revisão Tarifária Extraordinária (RTE) corrige problemas emergenciais imediatos em prol da viabilidade do contrato.

Cenário e perspectivas para o comércio de serviços no Brasil

Balanço de Pagamentos

O balanço de pagamentos (BP) de um país é o espelho contábil das transações entre seus residentes e não-residentes em um determinado período de tempo. Os resultados obtidos do BP possibilitam monitorar a magnitude e a direção do fluxo de recursos entre um determinado país e o restante do mundo (FEIJÓ et al., 2003).

Desconsiderando possíveis erros e omissões de mensuração, o BP pode ser dividido em três contas principais: (i) a conta capital; (ii) a conta financeira; e (iii) a conta corrente. Cada conta do BP é dividida entre receitas e despesas. As receitas são formadas pela soma de gastos de não-residentes no país do BP. Por outro lado, as despesas correspondem aos gastos dos residentes desse país no exterior.

O saldo de uma conta do BP consiste na subtração entre as suas receitas e despesas. Quando uma conta do BP apresenta saldo negativo, tem-se que a soma dos pagamentos vindos do exterior (por não-residentes) foi menor do que a soma dos pagamentos feitos para o exterior (por residentes). De maneira simplificada, no caso brasileiro, as receitas das contas do BP são mensuradas a partir do total de gastos no Brasil por estrangeiros; enquanto as despesas são representadas pelos gastos de brasileiros no exterior.

A mensuração do BP de cada país é padronizada conforme as regras dispostas no Manual de Balanço de Pagamentos e Investimento Internacional do Fundo Monetário Internacional (IMF, 2009). O BP brasileiro, por sua vez, tem o seu equilíbrio/saldo regulado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), sendo responsabilidade do Banco Central do Brasil (BCB) a compilação e publicação dos dados que o compõem[1].

Conta de serviços

A conta de serviços faz parte da conta corrente do BP. Para tal, compreende-se como “serviços” o conjunto das atividades que possam influenciar as condições de consumo ou comercialização de produtos ou ativos financeiros em um país (IMF, 2009). No caso brasileiro, esses serviços são divididos conforme as categorias listadas abaixo, na tabela 1.

Tabela 1 – Categorias, receitas, despesas e saldo da conta de serviços do BP brasileiro em 2017, em milhões de dólares.

Categorias Receitas Despesas Saldo
Aluguel de equipamentos $125,71 0,36% $16.963,68 24,83% -$16.837,97
Viagens $5.809,21 16,85% $19.001,63 27,81% -$13.192,42
Transportes $5.790,10 16,79% $10.765,30 15,76% -$4.975,20
Serviços de propriedade intelectual $642,16 1,86% $5.211,81 7,63% -$4.569,66
Telecomunicação, computação e informações $2.186,20 6,34% $3.859,36 5,65% -$1.673,16
Serviços governamentais $801,79 2,33% $2.035,92 2,98% -$1.234,13
Seguros $687,81 1,99% $1.358,43 1,99% -$670,61
Serviços culturais, pessoais e recreativos $313,08 0,91% $863,76 1,26% -$550,69
Serviços financeiros $679,07 1,97% $703,69 1,03% -$24,61
Serviços de manufatura sobre insumos físicos. $6,83 0,02% $1,65 0,00% $5,18
Construção $14,45 0,04% $1,44 0,00% $13,01
Serviços de manutenção e reparo $464,16 1,35% $206,38 0,30% $257,78
Outros serviços de negócio, inclusive arquitetura e engenharia $16.957,81 49,18% $7.355,76 10,77% $9.602,06
Total $34.478,39 100% $68.328,81 100% -$33.850,42

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a).

Observa-se que a conta de serviços brasileira de 2017 foi deficitária, registrando um montante de aproximadamente US$ -34 bilhões. De maneira simplificada, isso significa que o gasto com serviços por brasileiros no exterior superou o de estrangeiros no Brasil naquele ano. Portanto, podemos dizer que o país foi “importador de serviços” em 2017.

Atualmente, o Brasil é um dos maiores deficitários globais no setor de serviços (CNI, 2014; MDIC, 2018). As categorias da conta que mais contribuíram para esse déficit em 2017 foram as de aluguel de equipamentos, viagens, transportes e serviços de propriedade intelectual.

Contexto brasileiro

O histórico do BP brasileiro indica que o déficit da conta de serviços de 2017 não foi inédito na série de saldos do fluxo comercial dessa conta. Entre 1995 e 2004, o saldo em serviços se manteve em patamares próximos a US$ -5 bilhões. Nos 10 anos seguintes, registrou-se vertiginoso crescimento do déficit, aproximando-se de saldo de US$ -50 bilhões em 2014, conforme se observa no gráfico 1.

Gráfico 1 – Série histórica do saldo da conta de serviços do Brasil, por principais categorias, em milhões de dólares (2004-2017).

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a).

Entre 2005 e 2014, a categoria de viagens internacionais registrou o maior aumento na participação sobre o déficit de serviços no Brasil. Outra categoria que reforçou a negatividade da conta foi a de aluguel de equipamentos que, associada à dependência do setor de gás e petróleo de tecnologias estrangeiras, contabilizou déficits crescentes a partir de 2008 (CNI, 2014).

Cuiabano et al. (2013) estudaram a relevância das variações no câmbio e na renda para explicar o saldo decrescente da categoria “viagens” na conta de serviços brasileira até 2011. Conforme os autores, menores taxas de câmbio reais (fortalecimento da moeda nacional) tendem a reduzir o saldo da conta de serviços. Isso porque a valorização do real torna o gasto por brasileiros no exterior relativamente mais barato, o que incentiva a importação de serviços de outros países por parte do residente no Brasil. Ao mesmo tempo, o gasto em moeda estrangeira no Brasil se torna relativamente mais caro, um desincentivo às receitas da conta de serviços do país.

No que tange a variações na renda, aumentos da produção de um país tendem a incrementar gastos de seus residentes no exterior. Cuiabano et al. (2013) verificaram que a correlação entre acréscimos na renda doméstica e maiores déficits em viagens internacionais apresenta maior sensibilidade do que a de reduções na taxa de câmbio com o saldo dessa conta. Nesse sentido, espera-se que variações na renda possuam maior relação com mudanças no saldo da conta de serviços brasileira do que variações no câmbio; em módulo, a elasticidade-renda da demanda por serviços no Brasil é maior que a elasticidade-preço (câmbio).

Entre 2013 e 2016, a economia brasileira sofreu instabilidades que refletiram negativamente sobre a produção interna e a moeda nacional (recessão e desvalorização do real). Não obstante, o déficit da conta de serviços do país em 2016 foi aproximadamente um terço menor do que o déficit de 2013, reduzindo-se de patamares próximos a US$ -50 bilhões para cerca de US$ -30 bilhões.

Gráfico 2 – Saldo da conta de serviços, em milhões de US$, e variação do PIB brasileiros, em percentuais, entre 2009 e 2017.

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a) e IBGE (2018).

Do gráfico acima, também se verifica que a melhora dos indicadores de produção econômica em 2017 foi acompanhada de reversão da trajetória da curva do saldo da conta de serviços brasileira; com valor mais deficitário em relação ao ano de 2016.

No acumulado dos nove primeiros meses de 2017, registrou-se saldo de US$ -24.347 milhões na conta de serviços brasileira. No mesmo intervalo de 2018, o saldo da conta foi 1,9% menor, acumulando déficit de US$ -24.814 (BCB, 2018a). Como esperado, essa redução do saldo de serviços (aumento do déficit), acompanha expectativa de melhora dos indicadores de produção econômica: o acumulado do IBC-Br[2] registrou crescimento de 1,14% entre janeiro e setembro de 2018[3].

Perspectivas

Em setembro de 2017 foi criado o Grupo Técnico de Serviços (GT Serviços). Esse Grupo, alocado na Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (SE/Camex), busca promover a competitividade dos serviços brasileiros no exterior com o debate de políticas públicas para atender esse propósito (MDIC, 2018).

Nos últimos meses, a SE/Camex promoveu consulta pública para avaliação de proposta de Plano de Trabalho 2019/20 do GT Serviços. O plano compila uma série de medidas para desburocratizar o comércio de serviços no Brasil, com maior ênfase em simplificações tributárias a setores com alcance internacional[4]. Essa linha de atuação foi desenhada para reduzir as barreiras à participação brasileira no comércio de serviços, que são, hoje, de caráter essencialmente regulatório (PEREIRA, 2016).

Nesse sentido, segundo a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem espaço para promover maior produtividade na prestação e no comércio de serviços, podendo, para tal, utilizar-se das recentes inovações tecnológicas em informação e em comunicação (OECD, 2017). A melhora do país no ranking do relatório Doing Business 2019, do Banco Mundial, relata que alcançamos melhorias necessárias, mas ainda insuficientes, para destravar o setor (e o comércio) de serviços no país (WB, 2018).

Diante da conjuntura das contas públicas e da possível reforma administrativa à qual o Ministério da Indústria, Serviços e Comércio Exterior (MDIC) está sujeito nos próximos meses, cabe acompanhar se permanecerão a estrutura, as diretrizes e a continuidade dos trabalhos do GT Serviços. No caso de continuidade da política de promoção da competitividade, o maior desafio do Grupo será superar os entraves institucionais que limitam o fluxo comercial de serviços pelo país.

Segundo as últimas publicações do Relatório de Mercado Focus, espera-se relativa estabilidade das taxas de câmbio e crescimento do PIB, em aproximadamente 2,5% a.a., até 2020 (BCB, 2018b). Como vimos, nessas condições e considerando elevada elasticidade-renda da demanda por serviços no Brasil, a tendência é que a retomada do crescimento amplie o déficit na conta de serviços brasileira (CNI, 2014). Portanto, tudo o mais constante, uma maior participação do país como importador de serviços é garantida.

Luis Guilherme A. Batista é professor voluntário na Universidade de Brasília (UnB), bolsista da Capes, mestrando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Gestão Pública pela AVM, e bacharel em Ciências Econômicas pela UnB. Foi Coordenador de Projetos e Gestão de Indicadores do Ministério da Cultura, e Assistente no Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Atua nas áreas de defesa comercial e da concorrência.

Referências

Banco Central do Brasil [BCB]. (2018a). Série histórica do Balanço de Pagamentos – 6ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6). Visualizado em 05 de novembro de 2018. Disponível em https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/Seriehist_bpm6.asp.

BCB. (2018b). Focus – Relatório de Mercado. Visualizado em 14 de novembro de 2018. Disponível em https://www.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/readout/readout.asp.

Confederação Nacional da Indústria [CNI]. (2014). Serviços e Competitividade no Brasil, Brasília: CNI.

Cuiabano, S. M.; Bertussi, G. L.; Vasconcelos, E. B. X.; Machado, D. L. (2013). Saldo da Conta de Viagens Internacionais no Brasil: a Contribuição da Taxa de Câmbio Real Efetiva e da Renda. Revista Tempo do Mundo, v. 5, n. 1, pp. 89-108.

Feijó, C. A.; Ramos, R. L. O. [org.]. (2003). Contabilidade Social: a Nova Referência das Contas Nacionais do Brasil, Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª edição.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2018). PIB avança 1,0% em 2017 e fecha ano em R$ 6,6 trilhões. Visualizado em 13 de novembro de 2018. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/20166-pib-avanca-1-0-em-2017-e-fecha-ano-em-r-6-6-trilhoes.

International Monetary Fund [IMF]. (2009). Balance of Payments and International Investment Position Manual, sixth edition, Washington, D.C., USA.

Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços [MDIC]. (2018). Serviços. Visualizado em 04 de novembro de 2018. Disponível em http://www.camex.gov.br/servicos.

Organisation for Economic Co-operation and Development [OECD]. (2017). OECD Services Trade Restrictiveness Index (STRI): Brazil. Visualizado em 16 de novembro de 2018. Disponível em http://www.oecd.org/tad/services-trade/STRI_BRA.pdf.

Pereira, L. B. V. Além das barreiras ao comércio de mercadorias: os serviços. (2016). Conjuntura Econômica, v. 70, n. 5., pp. 62-65.

World Bank Group [WB]. (2018). Doing Business in Brazil. Visualizado em 16 de novembro de 2018. Disponível em http://www.doingbusiness.org/en/data/exploreeconomies/brazil.

  1. Cf. Lei 4.595/64.
  2. Como o PIB referente ao 3º trimestre de 2018 não havia sido disponibilizado até a redação deste texto, o autor se baseou no Índice de Atividade Econômica do Banco Central, IBC-Br, indicador que é comumente utilizado como uma prévia do PIB.
  3. Cf. noticiado pelo O Estado de São Paulo em 16/11/2018. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,previa-do-pib-tem-recuo-de-0-09-em-setembro-ante-agosto-aponta-bc,70002610124.
  4. A proposta de Plano de Trabalho está disponível no sítio eletrônico da Consulta Pública SE/Camex 02/2018: http://camex.gov.br/noticias-da-camex/2097-consulta-publica-se-camex-n-02-gt-servicos.

A servicificação da manufatura: conceitos, evidências e implicações

Os serviços correspondem a mais de 2/3 da atividade econômica global, mas representam parcela pequena do comércio de serviços, quando medido da forma tradicional, com base em fluxos brutos. Quando olhamos para a base de comércio em valor agregado da OCDE/OMC (base TiVA), conseguimos uma visão mais informativa sobre a participação dos serviços no comércio global, a qual se eleva de 20% (em termos brutos) para 49%.

O que torna os valores acima tão distintos – e o que torna a base TiVA tão importante para aqueles que estudam serviços – é justamente a participação desse setor nas cadeias globais de valor, não apenas como uma “cola” capaz de integrar etapas de produção fragmentadas globalmente, mas como componente fundamental da formação de valor em cadeias globais.

Não é de hoje que sabemos que os serviços são atividades que criam valor, e que, por isso, merecem estudos que entendam a dinâmica desse setor. O que vamos explorar nesse post é a forma pela qual os serviços estão presentes na cadeia de valor da manufatura. Em particular, buscaremos explicar o fenômeno da servicificação, seus impactos nas cadeias globais de valor e as evidências desse processo. No próximo post, discutiremos as implicações da servicificação para políticas públicas, em particular, para a política comercial.

Entendendo a servicificação

Tal como definido pela Conselho Nacional de Comércio da Suécia, que publicado conteúdos sobre o tema desde 2010, servicificação é o processo pelo qual setores da economia, como manufatura e agricultura,[1] compram e produzem mais serviços que antes, e também vendem (e exportam) mais serviços. Isso leva a uma interconexão cada vez maior entre os demais setores e o de serviços, seja pelo uso de serviços como insumos, como atividades dentro das firmas ou pela venda de serviços de forma agregada (bundled) à bens. A figura abaixo, retirada de Miroudout e Cadesin (2017) ilustra essas três possibilidades.

Fonte: Miroudout e Cadesin (2017)

O aumento da dispersão geográfica das cadeias de fornecedores é um dos fatores que explica o crescimento da servicificação, pois a distribuição de uma cadeia de valor em etapas realizadas em diversos países também implicou no processo de outsourcing de diversos serviços. Isso decorre do papel, já bem conhecido, que as etapas de serviços como padronização, P&D, design, logística, pós-vendas, branding, entre outros, possuem no processo de produção de bens. Assim, a servicificação surge como uma forma de reduzir custos e ampliar a eficiência da produção em cadeias globais. Em essência, é uma estratégia para permanecer competitivo e ampliar lucros (Miroudout,2017). Além disso, esse processo também tem origem na ambição das empresas de aprofundar as relações com o consumidor, por meio do provimento de serviços relacionados aos produtos. Esse novo modelo de negócio contribui sobremaneira para a diferenciação dos produtos, para a fidelização dos clientes e para que se consiga adquirir vantagens competitivas pela segmentação de mercado.

Os primeiros estudos de caso sobre servicificação analisaram tanto cadeias da manufatura como da agricultura. Em ambas, o que se encontrou foram mais de quarenta serviços utilizados até se chegar a etapa final de entrega dos produtos (Conselho Nacional de Comércio, 2013). Os casos mais emblemáticos de empresas que viveram intensamente o processo de servicificação referem-se à Rolls Royce Aerospace e à IBM. A Rolls Royce, firma consolidada do setor de motores e turbinas de avião, visando melhorar seus produtos, investiu de forma sólida no levantamento de informações detalhadas sobre a eficiência de suas turbinas, passando pelo uso de sensoriamento, de grandes bases de dados e sistemas que possibilitassem a análise dos dados e das informações produzidas, e que fosse capaz de dar respostas objetivas sobre o desempenho do que era produzido. O resultado foi o modelo “Power by the Hour”, onde os clientes pagam pelo tempo de uso do motor. A turbina passou a ser a plataforma física por meio do qual a empresa oferece o serviço “empacotado” de monitoramento de desempenho, manutenção, reparo e prevenção de falhas (OCDE, 2017). Atualmente, 53% do faturamento da empresa advém de serviços. No caso da IBM, empresa criada e mantida por muito anos como produtora de hardware, hoje tem 59% de seu faturamento oriundo de serviços.

Servicificação e digitalização: conceitos mais que relacionados

A servicificação da manufatura tem relação próxima com as estratégias e modelos de negócios que surgiram a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais. Tais tecnologias transformaram serviços antes não comercializáveis em comercializáveis, possibilitando o uso mais intensivo de serviços em CGVs. Assim, parte do que medimos como conteúdo de serviços (outsourced ou insourced) é um deslocamento de recursos para tecnologias digitais em todos os estágios da produção (Miroudout e Cadesin, 2017). Um exemplo disso é o impacto da transformação digital para design e P&D: hoje, essas etapas dependem cada vez mais de softwares para modelagem, prototipagem e testes de produtos, adicionando-se a isso o impacto das impressoras 3D ligadas a esses softwares. Revolução importante também ocorreu nas etapas de marketing, vendas e pós-vendas, que hoje são um dos seguimentos mais intensivos em dados da cadeia de valor. É por meio da informação coletada dos consumidores que produtos são melhorados e customizados. Conforme colocou os autores supracitados, a servicificação e a digitalização estão entrelaçadas, sendo parte de uma transformação maior na forma como as firmas criam valor.

Evidências da servicificação das cadeias globais de valor

Serviços como insumos: o papel dos serviços na agregação de valor das exportações

Conforme já colocamos, a base TiVA é ferramenta poderosa para analisar a relação entre setores econômicos nos diversos países, sendo uma base fundamental para a compreensão sobre servicificação em CGVs. Ao analisar a decomposição do valor adicionado da exportação de manufaturas para 2011 (último ano disponível na base), observou-se que o valor adicionado dos serviços responde por 38% das exportações de manufatura em países desenvolvidos, e 32% nos países em desenvolvimento, valor bastante superior ao que se tinha em 1995, primeiro ano para o qual as informações estão disponíveis.

Serviços produzidos nas próprias firmas exportadoras

Sabendo que a servificação também é um processo que faz com que as firmas de setores como manufatura e agricultura produzam mais serviços dentro das mesmas (o chamado serviço in house). Essas atividades podem ser identificadas como sendo serviços, pois, se fossem terceirizadas, elas pertenceriam a segmentos de serviços. Todavia, a servicificação dentro das firmas e algo muito mais difícil de se investigar, tendo em vista que se tratam de informações sobre o processo produtivo das empresas, não presentes em estatísticas nacionais.  Miroudout e Cadesin (2017) buscaram pesquisas sobre força de trabalho e ocupação para evidenciar esse processo, e encontraram que, em média, 18% do valor adicionado das exportações da manufatura vem de serviços produzidos dentro das empresas. Quando se soma essa cifra ao valor adicionado dos serviços utilizados como insumos, o valor adicionado dos serviços às exportações de manufatura eleva-se de 38% para 53%. Para os países da OCDE, de 25% a 60% do emprego em firmas de manufatura estão em serviços como P&D, engenharia, transporte, logística, distribuição, TI, vendas e pós-vendas, gerenciamento e back-office.

Serviços empacotados a bens exportados

O estudo de Miroudout e Cadesin (2017) também conseguiu evidenciar como o setor de manufatura vende serviços empacotados a bens, algo também difícil de se medir utilizando as bases de dados sobre comércio, já que a exportação desses serviços é contabilizado como uma transação totalmente distinta da transação de exportação de um bem. Utilizando a base ORBIS, que contem microdados de firmas,  encontram que, em geral, as firmas de manufatura exportadoras estão envolvidas diretamente com a distribuição de seus produtos. Além disso, a exportação de serviços empacotados a bens responde à ambição das empresas de criar relacionamento direto com o cliente, e assim conseguir agregar mais valor aos produtos e gerar maior faturamento a partir dos serviços providos a esses clientes. Muitas firmas também atuam na etapa de transporte, em particular quando isso requer tecnologias e habilidades específicas.

Observa-se, ainda, que empresas dos mais variados seguimentos vêem, nos serviços, uma grande oportunidade de continuar o relacionamento com o cliente mesmo após a entrega do produto, e garantir o provimento de soluções e demanda recorrente pelo bem. Por exemplo, no caso de máquinas e outros equipamentos de transporte (como aeronaves),  o serviço de manutenção e reparo é um dos principais serviços providos. No caso de químicos e minerais, onde há grau elevado de especificidade para entrega desses produtos, as empresas do seguimento fornecem também os serviços de P&D e engenharia.

Implicações

Buscamos aqui apresentar as distintas formas pelas quais os serviços são combinados com os bens, no processo produtivo, para gerar valor. Como vimos, os serviços podem ser utilizados como insumos;  produzidos pela própria firma (in house); e serem vendidos empacotados a bens. Esse fenômeno, apesar de visto de modo mais forte nas empresas da manufatura dos países desenvolvidos, é um modelo também utilizado por diversas empresas de países emergentes. Ao olhar para a servicificação como um modelo de negócios que reduz custos e aumenta a vantagem competitiva das empresas, rapidamente vislumbramos o potencial que esse processo tem para as empresas e países que estão buscando maior engajamento em cadeias globais de valor. A servicificação permite não apenas otimizar a produção, aumentar ganhos advindos da especialização, mas também implica em maior diversificação do faturamento da empresa, além de ser um grande diferencial na relação com os compradores, que passam a ver na firma de manufatura um provedor de soluções customizadas, criando-se, assim, uma relação de longo prazo e novas possibilidades de geração de valor dentro das empresas.

Nesse sentido, políticas que busquem ampliar a participação em cadeias de valor, tanto downstream como upstream, precisam mostrar-se sintonizadas com a dinâmica de produção da manufatura, que hoje é muito mais complexa e envolve muito mais atores de serviços que antes. Nem todas as etapas de serviços podem ser fragmentadas globalmente. E, para que essa fragmentação de fato aconteça, uma rede de acordos precisa estar estabelecida de modo que as empresas possam aumentar a participação de serviços como intermediários mas também criar valor fornecendo serviços na mesma transação da venda de bens – e aqui há desafios grandes para a política comercial, que exploraremos no próximo post.

 

Referências:

Miroudout, S. (2017). The Servicification of Global Value Chains: Evidence and Policy Implications. UNCTAD Multi-  year Expert Meeting on Trade, Services and Development: Genebra.

Miroudot, S. and C. Cadestin (2017). Services In Global Value Chains: From Inputs to Value-Creating Activities. OECD Trade Policy Papers, No. 197, OECD Publishing, Paris

Conselho Nacional de Comércio, 2013. Just Add Services: a case study on servicification and the agri-food sector. National Board of Trade, Suécia.

OCDE (2017). OECD Digital Economy Outlook 2017, OECD Publishing, Paris.

[1] A definição mais precisa coloca a servicificação como o processo que ocorre em setores que não o de serviços, ie, os “non-services sectores”.

Saneamento básico: o serviço essencial que não é prioridade no Brasil

O setor de saneamento básico, apesar do seu caráter essencial, é o setor de infraestrutura menos desenvolvido no Brasil. Desde a década de 1970, o país tem elaborado planos nacionais para universalizar o acesso a essa infraestrutura. Em geral, são planos de médio e longo prazo. O problema é que já se passaram várias décadas e muitos planos já foram elaborados sem que tivessem cumprido as suas metas (Araújo, 2016). A falta de prioridade para essa agenda faz com que o Brasil, embora seja a nona economia do mundo, esteja em 112o lugar no ranking das infraestruturas de saneamento (Benevides e Ribeiro, 2014).

Esse setor é estratégico para o desenvolvimento de longo prazo do país, uma vez que o saneamento, além de garantir o direito humano à água potável, gera uma série de externalidades positivas para a saúde pública, o meio ambiente, a qualidade de vida e a geração de renda (Scriptore e Toneto Júnior, 2012). Uma série de benefícios pode ser gerada com a expansão desses serviços. Freitas et al (2014) quantifica alguns dos benefícios que podem ser obtidos com a universalização do saneamento no Brasil:

  • Queda no número de internações, gerando uma economia de R$ 27,3 milhões anuais;
  • Redução de 15,5% na mortalidade por infecções gastrointestinais;
  • Redução do número de afastamentos do trabalho, evitando uma perda de R$ 258 milhões por ano;
  • Ganho na massa salarial, resultando em crescimento da folha de pagamentos de R$ 105,5 bilhões anuais;
  • Aumento no longo prazo da massa salarial em torno de R$ 31,6 bilhões anuais, em decorrência de melhoria na produtividade, devido à diminuição no atraso na educação;
  • Valorização dos imóveis em torno de R$ 178,3 bilhões;
  • Elevação do número de trabalhadores no setor de turismo, gerando R$ 7,2 bilhões por ano em salários.

Investir em saneamento não se restringe apenas a garantir um direito humano reconhecido pelas Nações Unidas e a evitar a poluição dos corpos hídricos. Investir em saneamento é uma escolha racional tendo em vista a escassez tanto de recursos naturais como de recursos financeiros. Hutton (2013) buscou mensurar a relação custo-benefício global do saneamento. Ao avaliar 136 países, o pesquisador observou que a cada US$ 1 investido em saneamento básico, gera-se um retorno econômico de US$ 4,3 em benefícios. Os benefícios mensurados se referem a ganhos relativos à saúde e à produtividade do trabalho. Se fossem considerados outros ganhos, como aqueles relacionados ao meio ambiente, à educação e ao turismo, os benefícios seriam ainda maiores.

Embora tenha havido avanços no abastecimento de água, no que tange à coleta e ao tratamento de esgoto, o Brasil está muito distante da universalização. De acordo com o último relatório do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em torno de 83,3% da população têm acesso ao abastecimento de água, mas somente 44,9% da população tem acesso ao tratamento de esgoto sanitário. A região Norte é a que apresenta menor acesso ao tratamento do esgoto gerado, com apenas 18,3% da sua população com acesso a esse serviço. A região Centro-Oeste é a que apresenta a melhor taxa, mas ainda assim baixa, com 52,6% da população urbana com acesso ao tratamento do esgoto gerado (Brasil, 2016).

A época de maior investimento e expansão dos serviços de saneamento no Brasil foi a década de 1970, quando foi implantado o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Esse plano pode ser considerado como a única política articulada para financiamento e modernização do saneamento no país. As políticas que o sucederam, em geral, foram pontuais e com baixa articulação entre os entes federativos (Turolla, 2002). Conforme pode ser observado no gráfico 1, os investimentos nessa década foram proporcionalmente muito maiores do que nas décadas seguintes.

Gráfico 1 – Investimentos em saneamento básico no Brasil (1971 – 2016) em % do PIB.

Gráfico

Fontes: Sainani e Toneto Júnior (2010) e SNIS 2006 – 2016 (Brasil, 2016).

Após a extinção do Planasa, em 1992, houve um vácuo institucional de quinze anos até a aprovação da Lei do Saneamento Básico (Lei no 11.445/2007). No processo de discussão e aprovação dessa lei, Sousa e Costa (2013) destacam que se perpetuou uma relação autoritária dos estados para com os municípios e a capacidade de coordenação federal foi fragilizada. Essa lei já completou mais de uma década, houve pouca evolução da infraestrutura de saneamento no país nesse período e o setor continua à margem. Nos últimos anos inclusive, observa-se uma queda dos investimentos em saneamento, conforme pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1 – Investimento realizado no setor de saneamento básico em R$ milhões.

Ano Investimento realizado
2011 8.378,2
2012 9.753,70
2013 10.485,2
2014 12.197,7
2015 12.175,1
2016 11.511,0

Fonte: SNIS 2011-2016 (Brasil, 2016).

Do total de investimentos realizados em 2016, a maior parte corresponde a recursos próprios das empresas de saneamento (55,7%) e o restante se divide em recursos onerosos (32,%) e recursos não onerosos (11,7%). A maioria dos investimentos foi feita pelos prestadores de serviços regionais (79,0%). Os prestadores de serviços locais investiram 20,3% do total e os microrregionais investiram apenas 0,7% do valor total. Essa distribuição de investimentos está diretamente relacionada ao tamanho do público atendido por esses três tipos de prestadores de serviços. A tabela 2 representa a distribuição da população urbana atendida por essas empresas.

Tabela 2 – Distribuição dos prestadores de serviços participantes do SNIS em 2016, segundo a abrangência de atendimento.

Prestador de Serviço Quantidade de municípios atendidos População urbana dos municípios % da população urbana atendida
Abrangência No Água Esgoto Água Esgoto Água Esgoto
Regional 28 4.033 1.351 128.953.667 103.434.498 74,6% 66,6%
Microrregional 6 17 15 701.041 692.992 0,4% 0,4%
Local 1.607 1.141 1.149 43.094.101 51.087.784 25% 33%
Brasil 1.641 5.191 2.515 172.748.809 155.215.274 100% 100%

Fonte: SNIS, 2016 (Brasil, 2016).

Conforme pode ser observado na tabela 2, os prestadores de serviços regionais, aos quais correspondem às empresas estaduais de saneamento, respondem pela maior parte dos serviços de saneamento no país. Araújo e Bertussi (2016) avaliaram a situação econômico-financeira de 20 empresas estaduais de saneamento, bem como as suas estruturas tarifárias. Os resultados encontrados demonstram a baixa capacidade de geração de recursos financeiros por essas empresas para realizar os investimentos necessários. A maior parte das empresas apresentou baixa liquidez, baixa margem líquida e baixa taxa de retorno do investimento. Em 2015, quase metade das empresas apresentaram lucros líquidos negativos e três delas não apresentavam mais nenhum patrimônio líquido e tinham taxas de endividamento acima de 200%.

A baixa capacidade econômico-financeira dessas empresas estaduais de saneamento pode estar ligada à falta de uma regulação efetiva que não tem assegurado estruturas tarifárias de acordo com a Lei 11.445/2007. Conforme o inciso IV do artigo 22 dessa lei, um dos objetivos da regulação é “definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade”. Há, portanto, uma necessidade de aprimoramento da regulação dos serviços de saneamento nos níveis estaduais e municipais e há também a necessidade de estabelecer um regulador em âmbito nacional. O setor de saneamento é o único setor de infraestrutura que não tem um agente regulador em nível federal (Araújo e Bertussi, 2016).

Recentemente, em 06 de julho de 2018, o governo federal editou a Medida Provisória 844 que atualiza o marco legal do saneamento (Lei 11.445/2007) e modifica a Lei 9.984/2000 e a Lei 10.768/2003 para tornar a Agência Nacional de Águas (ANA) responsável pela instituição de normas nacionais para a regulação dos serviços de saneamento. Essas normas nacionais deverão tratar de cinco temas principais: 1) padrões de qualidade e eficiência dos sistemas de saneamento; 2) regulação tarifária dos serviços; 3) padronização dos instrumentos de negociação; 4) critérios para a contabilidade regulatória e 5) redução progressiva da perda de água. Para tanto, essas normas deverão estimular e promover:

  • Livre concorrência, competitividade, eficiência e sustentabilidade econômica;
  • Cooperação entre os entes federados;
  • Prestação adequada dos serviços de saneamento;
  • Adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais (Brasil, 2018).

Essa medida provisória cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), com a finalidade de assegurar a implantação da Política Federal de Saneamento Básico e articular as ações de alocação dos recursos financeiros da União. Além disso, essa nova legislação condiciona o recebimento de recursos públicos federais onerosos e não onerosos ao cumprimento por parte dos municípios e estados das normas nacionais a serem elaboradas pela ANA. O objetivo da MP 844/2018 é aperfeiçoar a legislação de gestão de recursos hídricos e o marco legal de saneamento para promover melhor interação entre as duas políticas, bem como buscar a garantia de maior segurança jurídica aos investimentos no setor. Nesse sentido, a MP busca corrigir três problemas que têm dificultado a implantação da infraestrutura de saneamento: 1) a baixa capacidade regulatória; 2) a limitada coordenação e racionalização das ações federais e 3) o desajuste das regras de consórcios públicos ao setor de saneamento (Brasil, 2018).

A aprovação da MP 844 tem encontrado muitas barreiras no Congresso Nacional. A Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), a Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar) e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) se uniram contra a medida provisória. De acordo com essas entidades, a MP conduzirá ao sucateamento dos serviços públicos de saneamento e ao aumento da privatização do setor, gerando aumento das tarifas e exclusão da população de baixa renda (Brasil, 2018a).

O governo, por outro lado, afirma que para expandir os investimentos no setor é necessário ampliar a participação do capital privado e para tanto precisa haver a segurança jurídica garantida pela aprovação da MP. Os investimentos atuais estão aquém do previsto para o cumprimento das metas de universalização propostas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasab). Os investimentos anuais deveriam estar na ordem de R$ 15 bilhões, mas atualmente giram em torno de R$ 10 bilhões (Brasil, 2018a).

O enfretamento dessas entidades tem interposto barreiras à aprovação da MP que teve seu prazo prorrogado e está próxima de perder a sua validade. A data limite para a votação é o dia 19 de novembro. Apenas no dia 30 de outubro, foi eleito o presidente da Comissão Mista de análise da MP (Brasil, 2018b) e no dia seguinte a medida provisória foi aprovada por esta comissão. A MP ainda terá que passar pelos Plenários da Câmara e do Senado (Brasil, 2018c). Os próximos dias serão decisivos para o setor de saneamento no país. É imprescindível que haja algum avanço na regulamentação do setor e que a União possa ter melhores condições para coordenar a política de saneamento.

Algum avanço na institucionalização do papel da União na promoção dos serviços de saneamento é fundamental para evitar retrocessos maiores. O presidente eleito Jair Bolsonaro já deu sinais de que o setor de saneamento não receberá tanta atenção da União. Além do seu plano de governo não conter qualquer menção ao setor de saneamento (Brasil, 2018d), ele declarou durante a campanha que pretende extinguir o Ministério das Cidades e que os recursos para moradia e saneamento irão diretamente para as prefeituras (G1, 2018). Como se dará esse processo de transferência para os municípios e o quanto será investido é incerto. Entretanto, tendo em vista a complexidade e o histórico do setor, dificilmente se conseguirão avanços sem uma política integrada entre os entes federativos. Por isso, é preciso que pelo menos parte da MP seja aprovada para que haja garantias legais de que algum órgão federal continuará a atuar efetivamente no setor de saneamento.

 

Flávia Camargo de Araújo é Economista, Engenheira Agrônoma e Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisas nas áreas de Economia da Infraestrutura e Meio Ambiente.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, F. C. de. Estrutura tarifária e investimento em saneamento básico no Brasil. 2016. 75 p. Monografia (Bacharelado em Ciências Econômicas). Orientador: Geovana Lorena Bertussi. Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

ARAÚJO, F. C. de. BERTUSSI, G. L. Empresas estaduais de saneamento: estrutura tarifária e situação econômico-financeira. In: 2o Congresso UnB de Contabilidade e Governança, Brasília, 2016.

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Neutralidade de Redes e o Serviço de Prestação de Acesso à Internet

A Internet está presente em todos os aspectos da vida moderna. Desde o envio de uma simples mensagem de texto até o acesso a serviços essenciais, o acesso à Rede de redes é primordial para a execução de grande parte das nossas atividades cotidianas. Hoje é praticamente impossível imaginar “uma vida sem Internet”. Mas nem sempre o uso do serviço de acesso à Internet acontece de maneira satisfatória. Para um usuário de Internet, termos como “site indisponível”, “travar”,“lag” “velocidade lenta” também fazem parte da experiência de uso do acesso à Internet. O que imensa maioria dos usuários desconhece é que existe um princípio que garante o livre acesso à Internet e que este acesso não deve ser passível de interferências de qualquer tipo pelo provedor do serviço de acesso. Além disso, no Brasil o princípio é assegurado aos usuários por lei. Esse princípio pouco conhecido, mas muito importante, é chamado de Neutralidade de Redes.

O princípio da Neutralidade de Redes tem como objetivo garantir o acesso, amplo e irrestrito, aos usuários finais, por meio de sua conexão de acesso à Internet, a serviços, conteúdos e aplicativos legais e que não sejam prejudiciais à integridade e confiabilidade da rede.[1] O debate sobre Neutralidade de Redes, ao longo de quase duas décadas, tem sido bastante polêmico, em que as várias visões sobre o tema têm sido discutidas até mesmo de forma passional no âmbito acadêmico, empresarial, legislativo e governamental. Os críticos do tema já declaram a sua “morte” e a perda de sua relevância.[2] Apesar de momentos em que o princípio perdeu um pouco do seu apelo, sua importância ressurgiu e considero que o tema permanece pertinente.

A discussão sobre neutralidade evidencia que a ideia original para a Internet, como um ambiente que oferece igualdade de acesso e atuação para todos os usuários, vem sendo contestada pela atuação de alguns agentes, que tentam atuar sobre o acesso, utilização, fornecimento de conteúdo e, efetivamente, introduzir práticas que podem prejudicar a concorrência e os usuários.[3] A garantia do acesso amplo e irrestrito à Internet, que é o centro do princípio de neutralidade, envolve a consideração de diversos subtemas e questões, desde a discriminação de acesso a um site por um provedor de acesso à Internet até a interconexão entre as redes mais amplas e de longa distância da infraestrutura das redes de acesso.

Diante dessa variedade de desafios, cabe observar que é inviável esgotar todas as questões atinentes à Neutralidade de Redes em um único trabalho. Portanto, o foco deste artigo está na relação entre os provedores de acesso à Internet em banda larga, por meio da infraestrutura física fixa, e os provedores de aplicativos, serviços e conteúdo e os usuários. Nesse sentido, a Neutralidade de Redes consiste na garantia de acesso, amplo e irrestrito, aos usuários finais, por meio de sua conexão de acesso à Internet em banda larga fixa, a serviços, conteúdos e aplicativos legais e que não sejam prejudiciais à integridade e confiabilidade da rede.[4] Assim, não serão discutidas aqui questões, igualmente importantes para o debate, tais como privacidade, uso e guarda de dados, inovação, propriedade intelectual, censura a conteúdos específicos, liberdade de expressão, entre outros.

O debate sobre a Neutralidade de Redes e a ocorrência de casos de violação à neutralidade suscitaram a instituição de normas regulatórias em diversos países.[5] Em geral, o objetivo de uma intervenção regulatória de neutralidade consiste em garantir: (i) acesso e utilização, pela livre escolha dos usuários, de qualquer aplicativo, serviço ou conteúdo legal de Internet; e (ii) preservação e fomento da competição entre provedores de serviços de acesso à Internet, provedores de aplicativos,serviços e conteúdo. Em apertada síntese, a preservação da Neutralidade de Redes envolve uma avaliação da necessidade (ou não) de impor limitações sobre interesses privados dos operadores das redes físicas em nome da preservação do bem-estar social inerente à manutenção e desenvolvimento do espaço público que é a Internet.

No Brasil, as primeiras ocorrências de práticas de bloqueio e/ou discriminação de tráfego foram verificadas em 2005, quando provedores do serviço de acesso à Internet tentaram bloquear a oferta de serviços de telefonia via Internet (Voice over Internet Protocol – VoIP).[6] A Telemar foi denunciada por bloqueio do uso do aplicativo Skype nas suas redes de acesso à Internet. À época, os contratos da Telemar com os usuários continham uma cláusula que proibia o uso de qualquer serviço de VoIP. Adicionalmente, consumidores insatisfeitos com tentativas malsucedidas de utilizar o aplicativo Skype apresentaram reclamações à Anatel. A Anatel emitiu nota à imprensa sobre o uso de aplicativos de VoIP, para esclarecer que os contratos de prestação serviços de acesso à Internet em banda larga não poderiam impor restrições à transmissão de nenhum tipo de sinal. A Telemar removeu a cláusula de seus contratos com usuários sem a necessidade de uma intervenção direta da agência.

Em 2006, a GVT apresentou reclamação à Anatel de que a Brasil Telecom estava bloqueando chamadas oriundas de sua rede. A Anatel determinou que a Brasil Telecom cessasse com as práticas de bloqueio. Pode-se afirmar que essas ocorrências levaram ao aumento da preocupação com a possibilidade de práticas de interferência no tráfego e no uso de aplicativos por parte dos provedores de serviço de acesso à Internet. Por fim, a disseminação do serviço de acesso à Internet em banda larga pode ser apontada como um dos fatores que levou ao surgimento de preocupações com a discriminação de tráfego de dados.

Assim, a partir de 2006, a interferência dos provedores de acesso à Internet sobre o tráfego de dados e discriminação entre serviços utilizados por meio do serviço de acesso à Internet passaram a ser relevantes no Brasil. Em 2010, o projeto de lei do Marco Civil da Internet teve origem em projeto do Ministério da Justiça, quando a primeira minuta de projeto foi apresentada à sociedade para discussão. Após um longo período de debates, a Lei 12.965/2014 foi promulgada em 23.04.2014, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, dispONDO em seu art. 2º, IV, que “a preservação e garantia da neutralidade de rede” é um dos princípios para o uso da Internet no Brasil.

A nova Lei introduziu a intervenção setorial específica sobre Neutralidade de Redes. Em 11.05.2016, o Decreto n.º 8.711, que regulamenta a Lei no 12.965, entrou em vigor para: (i) tratar das hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados na Internet e de degradação de tráfego; (ii) indicar procedimentos para guarda e proteção de dados por provedores de conexão e de aplicações; (iii) apontar medidas de transparência na requisição de dados cadastrais pela administração pública; (iv) e estabelecer parâmetros para fiscalização e apuração de infrações. O tema foi debatido de maneira extensa e a introdução de normas de neutralidade representa um grande avanço institucional para o Brasil.

A regulação de Neutralidade de Redes é importante e necessária, dadas as características do mercado brasileiro de provimento de acesso do serviço à Internet em banda larga. Este mercado possui três grandes provedores de serviços de acesso: (i) o grupo Mexicano América Móvil, que opera com as marcas NET, Claro e Embratel; (ii) o grupo espanhol Telefonica, que opera com a marca Vivo. O grupo incorporou a GVT em 2015; e (iii) o grupo brasileiro Oi/Brasil Telecom. Estes três provedores de acesso respondem por 77,31% dos acessos realizado por meio acesso em banda larga fíxa, conforme dados da Anatel de março de 2018.[7]

A partir das informações obtidas do sítio da Anatel, verifica-se que 3.030 municípios brasileiros (59% do total) contam com a oferta de apenas um provedor de serviço de acesso à Internet em banda larga; 1.182 municípios (23%) possuem dois provedores para a oferta do serviço; 528 municípios (10%) contam com a presença de 3 provedores e 374 municípios (8%) possuem acesso a mais de 4 provedores do serviço. O Grupo Oi enfrenta concorrência da América Móvil e da Telefonica (com a rede da GVT) na maior parte dos municípios da sua área de concessão, enquanto que a Telefonica tem com principal competidora a América Móvil. O mercado, desse modo, apresenta uma estrutura com monopólios/duopólios em 82% dos municípios e poucos municípios contam com a oferta de mais de três provedores de serviços de acesso à Internet. Diante dos dados apresentados, verifica-se que a oferta no mercado brasileiro de acesso à Internet é bastante concentrada.

A ausência de concorrência suficiente no mercado brasileiro evidencia a importância da regulação de Neutralidade de Redes, estipulada pelo Marco Civil, e por seu decreto de regulamentação, pode ser caracterizada por um regime de neutralidade flexível, pois os dispositivos legais não proíbem taxativamente o gerenciamento de tráfego pelos detentores da infraestrutura de redes.[8] Há uma regra geral para a neutralidade, com possibilidade de exceções para o gerenciamento de tráfego, o que permite a ocorrência de algumas “discriminações”. O Decreto incorpora algumas definições importantes para práticas excepcionais relativas à discriminação e à degradação de tráfego. Adicionalmente, detalha requisitos técnicos indispensáveis, que devem ser observados na transmissão, comutação ou roteamento, além de impor a prestação de informações sobre práticas de gerenciamento.

A análise da regulamentação evidencia seu caráter amplo, genérico e que há, ainda, lacunas importantes. Questões específicas, dentre elas detalhes relacionados ao gerenciamento de tráfego e a transparência dessas práticas, permanecem sem endereçamento adequado. Desse modo, algumas inovações devem, eventualmente, ser incorporadas ao Decreto, para complementar a regulação e buscar sua maior efetividade e aplicabilidade. Cabe ressaltar que estas lacunas na regulação decorrem, principalmente, de questões políticas. A Anatel, após Consulta Pública de 2011, atua apenas pontualmente em questões relativas à neutralidade. A discussão sobre Neutralidade de Redes ficou concentrada na Casa Civil da Presidência da República até o impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016. Nesse sentido, é importante notar que o Decreto de regulamentação do Marco Civil foi promulgado um dia antes do impeachment. Desde então, o tema não tem sido discutido amplamente por nenhum órgão do governo. Assim, a questão permanece em aberto e o aprofundamento e a melhoria da regulação vão depender da sua inclusão na agenda política do próximo governo para o setor de comunicações.

Tatiana Britto é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Doutora em Economia – Universidade de Brasília. Visiting Scholar – University of Illinois at Urbana-Champaign(2015/2016). MBA em Gestão de Empresas – Eastern Illinois University. Mestre em Economia – Universidade de Brasília. Bolsista da CAPES.

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  4. BRITTO, 2018.
  5. MARSDEN, 2017.
  6. PEREIRA JUNIOR, 2018.
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  8. RAMOS, 2015.

 

Aprendizado e tempo na escola

A ampliação do tempo de educação dos alunos é uma solução frequentemente apontada por políticos de diversos países – desenvolvidos ou em desenvolvimento – para a melhoria da qualidade da educação básica. Dentre as cinco maiores economias da América Latina em 2018, Brasil, México, Argentina e Colômbia têm incumbentes ou candidatos a presidente que defendem a necessidade da ampliação da jornada escolar em algum acordo, projeto de lei ou programa eleitoral de governo.[1] Entretanto, os benefícios da ampliação do tempo são incertos (KRAFTS, 2015), o tempo adicional pode ser desperdiçado em coisas irrelevantes para o aprendizado[2], e os alunos podem reduzir o esforço em resposta ao aumento do tempo (LEVIN; TSANG, 1987). Ademais, o custo de ampliação do tempo para o aprendizado pode ser muito alto, chegando a 70% adicionais (DECICCA, 2007).

Há diversas formas de aumentar o tempo do aluno engajado no aprendizado, e a ampliação da jornada escolar de meio período para período integral é a política mais estudada nesse sentido. Decicca (2007) e Robin et al (2006) observam efeitos positivos da jornada em tempo integral já na primeira infância. Em coortes mais velhas de alunos, com idade para cursar o Ensino Fundamental, também são observados ganhos de desempenho devido ao ensino integral, maiores para meninas, alunos de baixo status socioeconômico e em escolas menos socialmente heterogêneas (LAVY, 2012). Mas estes efeitos parecem menos expressivos do que na primeira infância, com resultados às vezes não significativos (MEYER; VANKLAVEREN, 2013), ou significativos somente para matemática (DOBBIE; FRYER, 2012). Por fim, em coortes com idade para cursar o Ensino Médio os efeitos são, em geral, positivos (PIRES; URZUA, 2015, LAVY, 2015, BELLEI, 2009), mais fortes entre imigrantes, pobres, mulheres e em países com mais accountability e menores entre os países em desenvolvimento (LAVY, 2015). Há, ainda, evidências de resultados mais fortes entre alunos de escolas rurais, que frequentavam escolas públicas e com melhores desempenhos (BELLEI, 2009, BATISTIN; MERONI, 2016).

Programas de reforço escolar fora do horário regular de aula constituem formas alternativas de ampliar o tempo de instrução. Nesses programas são realizadas sessões de lição de casa, atividades acadêmicas, recreação e enriquecimento com artes plásticas e cênicas. Os programas podem ser realizados pela própria escola, por bibliotecas, igrejas, museus e centros de recreação, após a aula ou durante o verão. Tais programas são bastante diferentes entre si, o que justifica as evidências mistas. Programas de educação suplementar oferecidos em centros comunitários apresentam tanto resultados positivos (ZIMMER ET AL, 2010), quanto não significativos, e até alguma piora comportamental (JAMES-BURDUMY ET AL, 2005). Já programas de reforço com educação tutorial apresentam mais resultados positivos (ZIMMER ET AL, 2010, BANERJEE ET AL, 2007, KRAFTS, 2015). Cursos de verão também parecem ter um efeito positivo sobre o desempenho de matemática e leitura na educação básica (MATSUDAIRA, 2007), e podem ter efeitos inclusive de redução de abandono e conclusão de créditos no ensino superior (DEPAOLA; SCOPPA, 2014).

Em países que já implantaram a educação integral, o número de dias letivos costuma ser apontado como uma alternativa para melhorar a educação. No entanto, há uma grande variação na duração do ano letivo entre países e até mesmo entre distritos escolares de um país, sem que isso implique necessariamente em diferenças no desempenho dos alunos (LAVY, 2015). Vários estudos verificam a relação entre a duração do ano letivo e o sucesso escolar medido em termos de queda na reprovação e abandono ao fim do ensino fundamental (PISCHKE, 2007), aumento do desempenho do aluno (FITZPATRICK ET AL, 2011)[3], aumento da escolaridade, aumento da empregabilidade no setor formal e aumento dos salários (PARINDURI, 2014)[4].

Aumentar o tempo de escolaridade obrigatória por meio de leis que instituem obrigatoriedade do ensino já na primeira infância, e a extensão da idade limite além do início da adolescência, também pode contribuir para reduzir o abandono e aumentar a escolaridade, especialmente para crianças jovens de background mais vulnerável (Angrist; Krueger, 1991, Oreopoulos, 2006).

Por fim, a efetividade do tempo na escola não diz respeito somente à quantidade, mas ao uso do tempo ao longo do dia e à alocação do conteúdo no tempo. Carrel et al (2011) verificam uma relação entre o ritmo circadiano e o desempenho dos alunos. Segundo o autor, além de necessitarem mais horas de sono do que os adultos, os jovens tendem a ficar menos despertos ao longo do dia devido ao atraso natural na produção de melatonina e ao sono interrompido precocemente para ir a escola. Por outro lado, Pope (2016) avalia o efeito do horário das aulas de matemática e leitura sobre o desempenho dos alunos. O autor encontra resultados que indicam que estudantes aprendem mais pela manhã. Pires & Urzua (2015) também encontram evidências de que o horário do dia que os alunos estudam é mais importante que o montante de aulas.

Experiência no Brasil

No Brasil tivemos uma experiência recente de ampliação do tempo dos alunos na escola. O Programa Mais Educação (PME) se iniciou em 2008 e buscava ampliar o tempo de aprendizado oferecendo atividades pedagógicas fora do turno regular do aluno, de modo que os alunos participantes ficassem, no mínimo, sete horas por dia na escola. O custo do programa chegou a seu maior valor em 2013, quando alcançou 1,5 bilhões de reais em valores atuais. O programa definia uma série de atividades com materiais e ementas padronizadas a serem usadas nas escolas, mas apresentava grande flexibilidade na formatação final, pois dentre as diversas atividades oferecidas, cada escola podia escolher a combinação que melhor se adequasse à sua realidade. As escolas podiam optar por quatro áreas para trabalhar com os alunos dentre onze áreas existentes. A área denominada acompanhamento pedagógico era obrigatória e contemplava aulas em matemática, línguas, ciências, história, geografia e língua estrangeira. Ao menos uma destas atividades devia ser abordada no tempo destinado a acompanhamento pedagógico. A escola podia escolher dedicar todo o seu tempo para o acompanhamento (em várias disciplinas, ou em uma disciplina específica), ou dedicar apenas o tempo mínimo, e o restante a outras atividades como esporte, música, etc.[5]

Um dia típico do Programa Mais Educação para estudantes do turno da manhã começava com o turno regular de ensino, por volta de 7:30. As aulas do turno regular costumam durar 50 minutos, e normalmente há um intervalo por volta de 9:30 para lanches e recreação. Ao final do período matutino, por volta de 12:00, os alunos participantes do PME almoçavam na escola antes do início das atividades do contra-turno, por volta de 13:00. A atividade de acompanhamento pedagógico tinha obrigatoriedade diária, e duração mínima de uma hora a uma hora e meia. Eram realizados intervalos de recreação e outras atividades como esporte, música, danças, etc. O encerramento das atividades se dava, no mínimo, a partir das 15:00– dependendo do número de atividades que a escola decidiu desenvolver.[6]

As turmas do PME eram compostas por no mínimo 20 e no máximo 30 alunos. Os alunos eram recepcionados na sala de aula pelo monitor responsável pela atividade. Esse monitor podia ser um estudante universitário, um estudante de magistério ou um voluntário qualificado. Estes recebiam uma ajuda de custo de até R$300/mês nas escolas públicas urbanas ou até R$600/mês nas escolas públicas rurais (MEC, 2016, p. 12). Os kits padronizados usados durante as aulas, as refeições e as bolsas de monitoria eram custeadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

Almeida et al (2015) e Oliveira & Terra (2018) realizaram avaliações do PME. Os últimos exploraram um experimento natural que em 2012 estabelecia como prioritárias as escolas com mais de 50% dos alunos no Programa Bolsa Família. Ambos os estudos avaliaram os efeitos do PME sobre diversos indicadores educacionais, como Ideb, desempenho na Prova Brasil em Leitura e Matemática, abandono e reprovação. Resende et al (2018) avaliou o efeito do programa sobre a oferta de trabalho infantil e sobre a oferta de trabalho dos pais. Em geral, o programa parece não ter surtido efeito sobre nenhum dos indicadores. Assim, propostas de candidatos de universalizar o ensino integral podem até ser prejudiciais, uma vez que o impacto orçamentário seria imenso (cerca de 4% do PIB) para os benefícios esperados.

Por que o Mais Educação não apresenta resultados?

Uma explicação plausível para o programa não ter dado resultado foi o formato adotado, que dava muita liberdade para a escola escolher quais atividades desenvolver dentre uma gama muito grande de opções. Essa política pressupõe que as escolas tenham perfeito conhecimento de quais são suas principais deficiências e das melhores estratégias para superá-las, o que é claramente incorreto, pois se fosse verdade a qualidade da educação seria melhor. Como o formato do programa era muito aberto, dando muita autonomia às escolas, estas podem ter simplesmente reproduzido no contra-turno as metodologias que já não davam certo antes.

Outra crítica se refere à qualificação dos monitores responsáveis pelas atividades do programa no contra-turno escolar. O programa prevê remuneração simbólica, para custear somente transporte e alimentação. Desse modo, não consegue atrair profissionais qualificados, mas somente aqueles em início de carreira ou que se dispõem a serem voluntários em áreas de acompanhamento pedagógico distintas daquelas que os alunos mais precisam.

O caráter voluntário da participação dos alunos no contra-turno também pode explicar a falta de resultados do programa. Não há um controle sobre o perfil socioeconômico dos alunos participantes, mas é possível que o público que potencialmente mais se beneficiaria do programa tenha ficado de fora do programa.

O governo federal reconheceu problemas com o programa e em 2016 reformulou o programa sob o nome de Novo Mais Educação. Nesse novo formato, Português e Matemática passaram a ter uma carga horária mínima, o que não ocorria no formato antigo. Mas os monitores ainda são contratados da mesma forma.

Os critérios de escolas prioritárias do Novo Mais Educação também mudaram. Com isso, estudos quase-experimentais como em Oliveira & Terra (2018) e Resende et al (2018) não podem mais ser realizados para o programa atual a fim de verificar se as mudanças realizadas surtiram efeitos.

Infelizmente, a criação e as reformulações dos programas no Brasil não levam em conta a necessidade de avaliação. É um problema recorrente. O novo governo faria muito bem às finanças públicas se buscasse incorporar desenhos experimentais ou quase-experimentais para avaliar os programas implementados. Deveria iniciar programas em pequena escala para não colocar muitos recursos públicos em uma aposta arriscada, e ampliar o programa somente quando ficasse comprovada a eficácia do mesmo. Esse seria um grande avanço na gestão dos recursos públicos.

Rafael Terra é professor do Departamento de Economia da UnB. É Doutor em Economia pela EESP-FGV. Desenvolve trabalhos em economia da educação, avaliação de políticas públicas e economia do setor público.

 

Luis Felipe B. Oliveira é técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. É Doutor em Economia pela UnB. Realiza estudos sobre educação, políticas públicas, desigualdade e pobreza.


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Resende, C; Zoghbi, A.; Terra, R; Oliveira, L.F. (2018) Educação integral e indicadores sociais: uma avaliação de impacto do programa mais educação no trabalho infantil e no desemprego das mães. 46º Encontro Nacional de Economia.

Robin, K; Frede, E.; Barnett, W. (2015) et al Is More Better? The Effects of Full-Day vs. Half-Day Preschool on Early School Achievement. NIERR working paper.

Zimmer, R.; Hamilton, L.; Christina, R. (2010) After-school tutoring in the context of no Child Left Behind: Effectiveness of two programs in the Pittsburgh Public Schools. Economics of Education Review. Vol. 29, No.18-28, pp. 18-28.

  1. Informação para a Colômbia recuperada do programa de governo de Ivan Duque Márquez. Informação para o Brasil recuperada na portaria do Ministério da Educação n. 1.144 de 2016 e nos programas de governo dos candidatos a eleição de 2018. Informação sobre o México recuperada do Diário Oficial de la Federación de 26 de fevereiro de 2013. Informação para Argentina recuperada da Declaración de Purmamarca de 12 de fevereiro de 2016.
  2. Por exemplo, em uma amostra de 36 turmas distribuídas em 18 escolas, pesquisadores fizeram pesquisa in loco para saber como era usado o tempo na sala de aula. Os pesquisadores concluíram que após descontar interrupções por indisciplina, faltas de alunos e professores, organização da turma, e tentativas de fazer os alunos prestarem atenção, o total de horas em aula era de apenas duas horas – de cinco horas oficiais (IBOPE, 2011).
  3. Hansen (2008), Marcotte & Helmet (2008), Sims (2008) e Fitzpatrick, et al (2011) usam variações exógenas na data de exame ou fechamento das escolas por condições climáticas ruins sobre o tempo de escola em também encontram ganhos de performance por dias adicionais de escola.
  4. Pischke (2007), por sua vez, não encontra efeitos sobre salários ou empregabilidade, corroborando os resultados observacionais de (CARD; KRUEGER, 1992, HECKMAN ET AL, 1996).
  5. Ver manual do PME publicado por MEC (2012).
  6. Para alunos do turno vespertino, as atividades costumam se iniciar até as 10:00 am, dependendo da escola.

 

Concessões de Rodovias e Fator-X – PARTE (II)

No post anterior apresentamos o contexto no qual emergiram as primeiras concessões federais para exploração da infraestrutura rodoviária na década de 1990.

Mostramos que o cenário de escassez de recursos que vinha sendo desenhado desde meados da década de 1970 foi definitivo para que se optasse pelas concessões. Tal opção pouco teve a ver com convicções ideológicas ou planejamento de longo prazo para aprimorar a infraestrutura rodoviária nacional. Esse cenário, em parte, justifica a realização das concessões da Primeira Etapa sem ainda existir uma agência reguladora responsável, a qual somente foi criada em 2001.

Falamos também da necessidade de o regulador aprimorar continuamente os contratos de concessão para melhorar a sua gestão, o que deveria redundar em um melhor serviço prestado para os usuários das rodovias.

Entre os mecanismos regulatórios adotados na Terceira Etapa de concessões, consta contratualmente o chamado Fator X. E é sobre ele que trataremos no presente post, entendendo como que esse mecanismo funciona, e qual o provável impacto da sua supressão no contrato da Rodovia de Integração Sul, projeto que será licitado em 01 de novembro de 2018.

Regulação Tarifária e Fator X

A tarifa consiste em uma contraprestação que os usuários praticam em face da utilização da infraestrutura pública disponibilizada pelo concessionário (GUIMARÃES, 2017). Assim, a tarifa se trata de preço arcado pelos usuários na esfera da relação jurídica contratual que trava com o concessionário, mas é também um preço regulado e controlado pelo poder concedente, em vista de sua ligação estreita com os valores intrínsecos ao serviço público. Além disso, também é elemento que integra a equação econômico-financeira do contrato de concessão, a qual pertence à esfera de relação entre concessionário e poder concedente.

De acordo com a Teoria da Regulação Econômica do Interesse Público (POSNER, 2004), uma vez que o mercado funciona de forma ineficiente, a intervenção do Estado se faz desejável, e até necessária. Ao se verificar a existência de uma falha de mercado – um monopólio natural no caso do serviço de exploração da infraestrutura rodoviária – a regulação de preços neste mercado visa a garantir que os usuários não sejam explorados indevidamente pelo concessionário e que a equidade no acesso ao serviço seja assegurada.

Considerando então que os monopólios não regulados tendem a produzir quantidades menores do serviço, e cobram preços maiores que aquele que maximizaria o bem-estar, o governo deve intervir de modo a simular um ambiente competitivo que, inclusive, incentive a realização de investimentos por parte do monopolista (PICOT, 2015).

Tirole e Laffont (1993) afirmam que o regulador deve apoiar-se exclusivamente nas informações contratuais detidas pelas firmas. As limitações informacionais, portanto, comprometem a eficiência da regulação. Esta é a chamada assimetria de informações entre regulador e regulado.

Portanto, os contratos de concessão devem incluir fortes incentivos, como o mecanismo do preço-teto (price cap) que não são indexados aos custos de produção das firmas, como um modo de vencer os problemas de assimetria de informação com os quais o regulador invariavelmente se depara (TIROLE, 2017). Dessa forma, o regulador autoriza uma tarifa máxima, e a firma pode escolher seus preços contanto que estejam abaixo do limite e cubram a totalidade dos seus custos.

O modelo de preço-teto como forma de regulação com alto grau de incentivo pode envolver métodos de reajustamento limitado da tarifa a partir da conjugação de índices de produtividade (GUIMARÃES, Op. Cit.). Uma fórmula prestigiada na experiência britânica pela modalidade price cap é a RPI-X (Retail Price Index menos um fator de produtividade X) ou IPC-X (índices gerais de preços menos um fator de produtividade X). Ou seja, aplica-se à tarifação um reajustamento segundo um índice geral de preços, limitado à evolução do valor-resultado por um fator de produtividade, que lhe subtrai um percentual arbitrado pelo poder concedente regulador.

Agrell e Bogetoft (2013) afirmam que uma das áreas mais proeminentes para aplicação das técnicas de benchmarking é justamente na regulação de monopólios naturais, uma vez que tais técnicas podem informar se determinada regulação produz efeitos econômicos em usuários e firmas reguladas de modo equilibrado.

O benchmarking – comparação do desempenho relativo entre empresas – é uma técnica bastante utilizada por reguladores de diversos países, como Noruega, Áustria, Finlândia, Holanda e Alemanha na regulação dos mais diversos tipos de serviços associados à infraestrutura. O objetivo da técnica é extrair uma métrica de desempenho relativo entre as empresas do setor regulado, de modo que possam ser identificadas aquelas mais eficientes. A eficiência relativa é então convertida em Fator-X, o qual será aplicado na equação tarifária de cada empresa, de modo que aquelas menos eficientes tenham um Fator-X maior, o que resulta no decremento do índice de reajuste tarifário ao qual faria jus.

A ideia é que ao final do próximo ciclo regulatório, aquelas empresas menos eficientes tenham conseguido melhorar o seu desempenho de modo que, na próxima aplicação do Fator-X, possam figurar entre as mais eficientes, para então fazer jus a um maior índice de reajustamento tarifário.

Portanto, o mecanismo tende a equilibrar o ímpeto de maximização da receita pelas empresas reguladas (minimização do Fator-X), com a produção de melhores resultados para os usuários daquele serviço público.

Possíveis impactos da retirada do Fator-X dos contratos de concessão rodoviária

Como brevemente descrito, o Fator-X é apoiado não somente pela teoria econômica, mas também pela experiência internacional. Então, o que justifica a sua supressão do contrato de concessão da Rodovia de Integração Sul (RIS)?

Não detemos informações sobre as razões para a sua retirada, e não gostaríamos de realizar especulações acerca do assunto, pois aos usuários interessam tão somente os possíveis impactos da não existência de mecanismos de regulação por incentivos no contrato.

É importante deixar claro que até hoje, o único contrato de que se detém informações sobre a aplicação do Fator-X é o da BR-101/BA/ES. Nesse contrato, o Fator-X corresponde a uma tabela de aplicação de valores pré-definidos em nada parametrizados com as outras empresas do mercado. Deste modo, conforme os conceitos que expusemos, não se pode afirmar que o Fator-X assim estabelecido possa ser considerado efetivamente um mecanismo de incentivo.

Ao mesmo tempo, que se tenha conhecimento, não foi produzido qualquer normativo sobre o assunto pela ANTT, em que pese terem sido produzidos estudos com propostas para a regulamentação do Fator-X. Sabemos, por outro lado, que os contratos de concessão da Terceira Etapa estabelecem que até o quinto ano da concessão o Fator-X será 0 (zero), portanto, não teria como produzir efeitos nos contratos assinados em 2013.

Mas o fato de o Fator-X não produzir efeitos até o quinto ano da concessão não pode ser considerado justificativa plausível para a omissão regulatória da ANTT, especialmente em um cenário em que as concessões rodoviárias federais vêm sendo sistematicamente criticadas pelo TCU, como pode ser verificado na avaliação técnica do órgão de controle sobre a RIS (TCU, 2018):

52. O estudo da BR-101/290/386/448/RS mesclou premissas contratuais da 1ª, 2ª e 3ª etapas do Programa de Concessões Rodoviárias Federais (Procrofe) . Apesar da esperada evolução regulatória em relação aos contratos anteriores, diversos dispositivos que contribuíram para os problemas enfrentados pelas concessões vigentes permanecem na minuta contratual em tela.

(…)

54. De forma geral, as fiscalizações empreendidas pelo TCU em concessões rodoviárias federais têm constatado significativos níveis de inadimplemento contratual. Apesar disso, as tarifas de pedágio continuam a sofrer aumentos anuais acima da inflação, e isso ocorre em razão da inclusão de relevantes investimentos nos contratos.

(…)

62. O cenário do setor retrata um modelo regulatório e regras contratuais que, apesar das variações ao longo das suas três etapas, incentivam a inexecução das obrigações pelas concessionárias. (…) (grifos nossos)

Notamos que o TCU, ao analisar o contrato de concessão da RIS, afirma que não é possível identificar a esperada evolução regulatória. Ademais, ele aponta que os mecanismos regulatórios existentes nos contratos vigentes, e em grande medida inseridos no contrato da RIS, tampouco são suficientes para garantir a execução das obrigações contratuais pelas concessionárias.

Desse modo, é evidente que a adoção de mecanismos que possam incentivar a melhora no desempenho das concessionárias reguladas pela ANTT é urgente. Não que o Fator-X fosse suficiente para solucionar todos os problemas de inexecução contratual apontados pelo TCU, mas já seria um primeiro passo importante.

Por outro lado, ao mesmo tempo que ANTT erra ao manter determinados mecanismos contratuais que já se demonstraram (no mínimo) ineficazes, suprimir um mecanismo de incentivo do contrato de concessão tampouco parece contribuir para a necessária melhora da regulação dos contratos de concessão de rodovias.

O fato é que não parece haver respaldo teórico e técnico na decisão tomada por aqueles à frente do leilão da RIS quanto à supressão do Fator-X. Sem a necessária evolução dos mecanismos de incentivo neste novo contrato de concessão, não é excesso de ceticismo duvidar que este novo contrato apresente melhores resultados que aqueles até então apresentados pelos contratos em andamento.

Aparentemente, a existência do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e a adoção de outras medidas supostamente “modernizadoras da gestão” da área de infraestrutura, não foram suficientes para promover a melhora efetiva dos projetos de concessão rodoviária, sequer em relação aos ciclos anteriores, quanto mais em relação às melhores práticas internacionais. Isto resultou na persistência de dispositivos contratuais há muito conhecidos e questionados, ao lado da supressão de outros que poderiam promover melhora na regulação.

Como alguém disse certa vez: “A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

AGRELL, P. J.; BOGETOFT, P. Benchmarking and regulation. Core Discussion Paper- Center for Operations Research and Econometrics, Université catholique de Louvain, CORE and Louvain School of Management, B-1348 Louvain-la-Neuve, Belgium, p. 23, 2013.

GUIMARÃES, F. C. V. Concessão de serviço público. [s.l.] Editora Saraiva, 2017.

LAFFONT, J.-J.; TIROLE, J. A theory of incentives in procurement and regulation. [s.l.] MIT press, 1993.

PICOT, A. The Economics of Infrastructure Provisioning: The Changing Role of the State. [s.l.] MIT press, 2015.

POSNER, R. A. Teorias da regulação econômica. Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora, v. 34, p. 49–80, 2004.

TCU. Tribunal de Contas da União. ACÓRDÃO 1174/2018 – PLENÁRIO – Acompanhamento do processo de desestatização do lote rodoviário denominado Rodovia de Integração do Sul (RIS), que compreende trechos das rodovias BR-101/290/386/448/RS. Análise do primeiro estágio. Relator: Ministro Bruno Dantas. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1174%2520ANOACORDAO%253A2018/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 out. 2018.

TIROLE, J. Economics for the common good. [s.l.] Princeton University Press, 2017.