A Internet está presente em todos os aspectos da vida moderna. Desde o envio de uma simples mensagem de texto até o acesso a serviços essenciais, o acesso à Rede de redes é primordial para a execução de grande parte das nossas atividades cotidianas. Hoje é praticamente impossível imaginar “uma vida sem Internet”. Mas nem sempre o uso do serviço de acesso à Internet acontece de maneira satisfatória. Para um usuário de Internet, termos como “site indisponível”, “travar”,“lag” “velocidade lenta” também fazem parte da experiência de uso do acesso à Internet. O que imensa maioria dos usuários desconhece é que existe um princípio que garante o livre acesso à Internet e que este acesso não deve ser passível de interferências de qualquer tipo pelo provedor do serviço de acesso. Além disso, no Brasil o princípio é assegurado aos usuários por lei. Esse princípio pouco conhecido, mas muito importante, é chamado de Neutralidade de Redes.

O princípio da Neutralidade de Redes tem como objetivo garantir o acesso, amplo e irrestrito, aos usuários finais, por meio de sua conexão de acesso à Internet, a serviços, conteúdos e aplicativos legais e que não sejam prejudiciais à integridade e confiabilidade da rede.[1] O debate sobre Neutralidade de Redes, ao longo de quase duas décadas, tem sido bastante polêmico, em que as várias visões sobre o tema têm sido discutidas até mesmo de forma passional no âmbito acadêmico, empresarial, legislativo e governamental. Os críticos do tema já declaram a sua “morte” e a perda de sua relevância.[2] Apesar de momentos em que o princípio perdeu um pouco do seu apelo, sua importância ressurgiu e considero que o tema permanece pertinente.

A discussão sobre neutralidade evidencia que a ideia original para a Internet, como um ambiente que oferece igualdade de acesso e atuação para todos os usuários, vem sendo contestada pela atuação de alguns agentes, que tentam atuar sobre o acesso, utilização, fornecimento de conteúdo e, efetivamente, introduzir práticas que podem prejudicar a concorrência e os usuários.[3] A garantia do acesso amplo e irrestrito à Internet, que é o centro do princípio de neutralidade, envolve a consideração de diversos subtemas e questões, desde a discriminação de acesso a um site por um provedor de acesso à Internet até a interconexão entre as redes mais amplas e de longa distância da infraestrutura das redes de acesso.

Diante dessa variedade de desafios, cabe observar que é inviável esgotar todas as questões atinentes à Neutralidade de Redes em um único trabalho. Portanto, o foco deste artigo está na relação entre os provedores de acesso à Internet em banda larga, por meio da infraestrutura física fixa, e os provedores de aplicativos, serviços e conteúdo e os usuários. Nesse sentido, a Neutralidade de Redes consiste na garantia de acesso, amplo e irrestrito, aos usuários finais, por meio de sua conexão de acesso à Internet em banda larga fixa, a serviços, conteúdos e aplicativos legais e que não sejam prejudiciais à integridade e confiabilidade da rede.[4] Assim, não serão discutidas aqui questões, igualmente importantes para o debate, tais como privacidade, uso e guarda de dados, inovação, propriedade intelectual, censura a conteúdos específicos, liberdade de expressão, entre outros.

O debate sobre a Neutralidade de Redes e a ocorrência de casos de violação à neutralidade suscitaram a instituição de normas regulatórias em diversos países.[5] Em geral, o objetivo de uma intervenção regulatória de neutralidade consiste em garantir: (i) acesso e utilização, pela livre escolha dos usuários, de qualquer aplicativo, serviço ou conteúdo legal de Internet; e (ii) preservação e fomento da competição entre provedores de serviços de acesso à Internet, provedores de aplicativos,serviços e conteúdo. Em apertada síntese, a preservação da Neutralidade de Redes envolve uma avaliação da necessidade (ou não) de impor limitações sobre interesses privados dos operadores das redes físicas em nome da preservação do bem-estar social inerente à manutenção e desenvolvimento do espaço público que é a Internet.

No Brasil, as primeiras ocorrências de práticas de bloqueio e/ou discriminação de tráfego foram verificadas em 2005, quando provedores do serviço de acesso à Internet tentaram bloquear a oferta de serviços de telefonia via Internet (Voice over Internet Protocol – VoIP).[6] A Telemar foi denunciada por bloqueio do uso do aplicativo Skype nas suas redes de acesso à Internet. À época, os contratos da Telemar com os usuários continham uma cláusula que proibia o uso de qualquer serviço de VoIP. Adicionalmente, consumidores insatisfeitos com tentativas malsucedidas de utilizar o aplicativo Skype apresentaram reclamações à Anatel. A Anatel emitiu nota à imprensa sobre o uso de aplicativos de VoIP, para esclarecer que os contratos de prestação serviços de acesso à Internet em banda larga não poderiam impor restrições à transmissão de nenhum tipo de sinal. A Telemar removeu a cláusula de seus contratos com usuários sem a necessidade de uma intervenção direta da agência.

Em 2006, a GVT apresentou reclamação à Anatel de que a Brasil Telecom estava bloqueando chamadas oriundas de sua rede. A Anatel determinou que a Brasil Telecom cessasse com as práticas de bloqueio. Pode-se afirmar que essas ocorrências levaram ao aumento da preocupação com a possibilidade de práticas de interferência no tráfego e no uso de aplicativos por parte dos provedores de serviço de acesso à Internet. Por fim, a disseminação do serviço de acesso à Internet em banda larga pode ser apontada como um dos fatores que levou ao surgimento de preocupações com a discriminação de tráfego de dados.

Assim, a partir de 2006, a interferência dos provedores de acesso à Internet sobre o tráfego de dados e discriminação entre serviços utilizados por meio do serviço de acesso à Internet passaram a ser relevantes no Brasil. Em 2010, o projeto de lei do Marco Civil da Internet teve origem em projeto do Ministério da Justiça, quando a primeira minuta de projeto foi apresentada à sociedade para discussão. Após um longo período de debates, a Lei 12.965/2014 foi promulgada em 23.04.2014, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, dispONDO em seu art. 2º, IV, que “a preservação e garantia da neutralidade de rede” é um dos princípios para o uso da Internet no Brasil.

A nova Lei introduziu a intervenção setorial específica sobre Neutralidade de Redes. Em 11.05.2016, o Decreto n.º 8.711, que regulamenta a Lei no 12.965, entrou em vigor para: (i) tratar das hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados na Internet e de degradação de tráfego; (ii) indicar procedimentos para guarda e proteção de dados por provedores de conexão e de aplicações; (iii) apontar medidas de transparência na requisição de dados cadastrais pela administração pública; (iv) e estabelecer parâmetros para fiscalização e apuração de infrações. O tema foi debatido de maneira extensa e a introdução de normas de neutralidade representa um grande avanço institucional para o Brasil.

A regulação de Neutralidade de Redes é importante e necessária, dadas as características do mercado brasileiro de provimento de acesso do serviço à Internet em banda larga. Este mercado possui três grandes provedores de serviços de acesso: (i) o grupo Mexicano América Móvil, que opera com as marcas NET, Claro e Embratel; (ii) o grupo espanhol Telefonica, que opera com a marca Vivo. O grupo incorporou a GVT em 2015; e (iii) o grupo brasileiro Oi/Brasil Telecom. Estes três provedores de acesso respondem por 77,31% dos acessos realizado por meio acesso em banda larga fíxa, conforme dados da Anatel de março de 2018.[7]

A partir das informações obtidas do sítio da Anatel, verifica-se que 3.030 municípios brasileiros (59% do total) contam com a oferta de apenas um provedor de serviço de acesso à Internet em banda larga; 1.182 municípios (23%) possuem dois provedores para a oferta do serviço; 528 municípios (10%) contam com a presença de 3 provedores e 374 municípios (8%) possuem acesso a mais de 4 provedores do serviço. O Grupo Oi enfrenta concorrência da América Móvil e da Telefonica (com a rede da GVT) na maior parte dos municípios da sua área de concessão, enquanto que a Telefonica tem com principal competidora a América Móvil. O mercado, desse modo, apresenta uma estrutura com monopólios/duopólios em 82% dos municípios e poucos municípios contam com a oferta de mais de três provedores de serviços de acesso à Internet. Diante dos dados apresentados, verifica-se que a oferta no mercado brasileiro de acesso à Internet é bastante concentrada.

A ausência de concorrência suficiente no mercado brasileiro evidencia a importância da regulação de Neutralidade de Redes, estipulada pelo Marco Civil, e por seu decreto de regulamentação, pode ser caracterizada por um regime de neutralidade flexível, pois os dispositivos legais não proíbem taxativamente o gerenciamento de tráfego pelos detentores da infraestrutura de redes.[8] Há uma regra geral para a neutralidade, com possibilidade de exceções para o gerenciamento de tráfego, o que permite a ocorrência de algumas “discriminações”. O Decreto incorpora algumas definições importantes para práticas excepcionais relativas à discriminação e à degradação de tráfego. Adicionalmente, detalha requisitos técnicos indispensáveis, que devem ser observados na transmissão, comutação ou roteamento, além de impor a prestação de informações sobre práticas de gerenciamento.

A análise da regulamentação evidencia seu caráter amplo, genérico e que há, ainda, lacunas importantes. Questões específicas, dentre elas detalhes relacionados ao gerenciamento de tráfego e a transparência dessas práticas, permanecem sem endereçamento adequado. Desse modo, algumas inovações devem, eventualmente, ser incorporadas ao Decreto, para complementar a regulação e buscar sua maior efetividade e aplicabilidade. Cabe ressaltar que estas lacunas na regulação decorrem, principalmente, de questões políticas. A Anatel, após Consulta Pública de 2011, atua apenas pontualmente em questões relativas à neutralidade. A discussão sobre Neutralidade de Redes ficou concentrada na Casa Civil da Presidência da República até o impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016. Nesse sentido, é importante notar que o Decreto de regulamentação do Marco Civil foi promulgado um dia antes do impeachment. Desde então, o tema não tem sido discutido amplamente por nenhum órgão do governo. Assim, a questão permanece em aberto e o aprofundamento e a melhoria da regulação vão depender da sua inclusão na agenda política do próximo governo para o setor de comunicações.

Tatiana Britto é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Doutora em Economia – Universidade de Brasília. Visiting Scholar – University of Illinois at Urbana-Champaign(2015/2016). MBA em Gestão de Empresas – Eastern Illinois University. Mestre em Economia – Universidade de Brasília. Bolsista da CAPES.

Referências Bibliográficas

BRITTO, Tatiana Alessio, Neutralidade de redes – mercado de dois lados, antitruste e regulação, Tese de Doutorado, Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Gestão de Políticas Públicas, Universidade de Brasília, 2018.

MARSDEN, C. Network Neutrality – from policy to law to regulation. Manchester: Manchester University Press, 2017.

PEREIRA JUNIOR, Ademir Antônio. Infraestrutura, regulação e Internet: a disciplina jurídica da neutralidade das redes. Tese de Doutorado, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2018.

RAMOS, P. H. S. Neutralidade da Rede e o Marco Civil da Internet: um guia para interpretação. In: Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2015.

YOO, C. Innovations in the Internet´s architecture that challenge the status quo. Journal on Telecommunications and High Technology Law, vol. 8, 2010.

WU, T. Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal on Telecommunications and High Technology Law, vol. 2 (1), 2003.

  1. MARSDEN, 2017.
  2. YOO, 2010.
  3. WU, 2003.
  4. BRITTO, 2018.
  5. MARSDEN, 2017.
  6. PEREIRA JUNIOR, 2018.
  7. Dados obtidos dos sítios dos três grupos econômicos, do Teleco www.teleco.com.br e da Anatel http://www.anatel.gov.br/dados/destaque-1/269-bl-acessos. Acesso em 06/06/2018.
  8. RAMOS, 2015.