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A agenda do comércio eletrônico na OMC: para onde estamos caminhando?

O tema de e-commerce começou a ser discutido na OMC em 1998, a partir do estabelecimento de um Plano de Trabalho que consideraria o chamado “aspectos relacionados ao comércio no comércio eletrônico” (trade related aspects of electronic trade) ali definido como a produção, distribuição, marketing, venda ou entrega de bens e serviços por meios eletrônicos. A definição do escopo do trabalho parece uma redundância, mas foi a forma encontrada para se focar no tema de comércio em si, e não nos demais aspectos relacionados ao componente “eletrônico” do termo – e incorrer no risco de entrar no escopo de atuação de outras organizações, como a União Internacional de Telecomunicações (UIT). Um histórico sobre o tratamento do tema na OMC pode ser encontrado em Hees (2016) e Matos (2018).

Com exceção da moratória sobre transmissão eletrônica, e sua renovação a cada dois anos nas Reuniões Ministeriais da OMC, pouco progresso decorreu do Plano de Trabalho de 1998. Após 2016, todavia, houve intensificação nas discussões, com a circulação de propostas de trabalho, sugestão de temas que futuro acordo deveria contemplar. Essas discussões culminaram na decisão, tomada em janeiro de 2019, de se iniciar as negociações com o objetivo de desenhar regras globais em comercio eletrônico. Representantes de 76 membros da OMC – União Europeia e 48 outros países, incluindo a China, assinaram assim a Declaração Conjunta em Comércio Eletrônico, o documento plurilateral que lançou as negociações e que atesta o objetivo de chegar, de modo pragmático, transparente e aberto ao posicionamento de qualquer país, a um conjunto ambicioso de disciplinas em comércio eletrônico, que se coadune com as disciplinas já existentes na OMC e que leve em consideração a perspectiva do desenvolvimento, tal como os últimos acordos firmados no âmbito da Organização. Embora a iniciativa seja plurilateral, existe um claro objetivo de torná-la multilateral.

O pano de fundo das discussões

O lançamento das negociações plurilaterais insere-se em um contexto maior, de tentativa de manter a OMC como o lócus das discussões sobre novas regras internacionais. Por mais que a iniciativa sobre comércio eletrônico na organização seja bem-vinda, e que regras sobre os aspectos comerciais da economia digital sejam mais que desejáveis, há aqui também uma “luta” da OMC em demonstrar seu valor, papel e preponderância nos temas novos e urgentes do comércio. Num momento de tanto questionamento quanto ao papel da instituição – vide as discussões sobre reforma da OMC, do sistema de solução de controvérsias, entre tantas outras – um acordo que demonstre que os países ainda acreditam que este fórum tem sua validade na consolidação de regras multilaterais poderia contribuir para repaginar seu papel e demonstrar que a estrutura construída ainda consegue cumprir sua função.

Apesar de os 76 signatários representarem 90% do comércio global, esse grupo continua sendo minoria no total de membros da OMC. Para países que pressionam a instituição por avanço em questões pendentes, como subsídios à agricultura por países desenvolvidos, entrar nesse acordo seria abrir mão de toda uma agenda que ainda está pendente de resolução. O que se questiona, todavia, é se de fato ainda há como enfrentar essa “agenda perdida” do comércio, encabeçada por países como a Índia. A opinião que prevalece é a negativa.

Como todo acordo plurilateral firmado no âmbito da OMC, o grande benefício é “manter a roda dos acordos plurilaterais rodando”, em particular sobre temas novos, como foi o caso do Acordo sobre Tecnologia da Informação (ITA, da sigla em inglês), firmado em 1996 e expandido em 2015. A desvantagem da abordagem, por outro lado, é a perda de legitimidade desse tipo de acordo, em razão da baixa representatividade em termos de membros, em particular, dos menos desenvolvidos. Além disso, uma vez que o acordo é assinado, pode haver um comportamento de carona dos não signatários, que usufruirão dos benefícios desse tipo de acordo (como importação de equipamento de TI a alíquotas menores de importo de importação, no caso do ITA), sem ter que se comprometer com mudanças tarifárias ou regulatórias. Ou seja, é possível participar dos ganhos do acordo sem incorrer nos seus (supostos) custos.

O Brasil nas negociações em comércio eletrônico na OMC

Em conjunto, os documentos brasileiros[1] apresentados na OMC no âmbito das negociações em e-commerce demonstram os principais pontos que devem estar presentes em um futuro acordo, e destacam-se por uma abordagem competente e firme, numa tentativa bem estruturada de liderar o movimento de formação de posições. Trazem consensos para a discussão sem deixar de apresentar posições e de trazer à tona temas espinhosos, mas caros aos países em desenvolvimento, como concorrência, direito do autor e tributação.

O Brasil demonstra certo alinhamento à posição de países mais avançados ao utilizar o termo “comércio digital”, algo defendido amplamente pelos Estados Unidos e pelo Canadá, os quais buscam, dessa forma, um acordo que contemplem bens, serviços ou qualquer outro produto que circule por meios digitais. Utilizar o termo “comercio digital” pode ser uma estratégia negociadora de trazer o peso de países relevantes junto da posição brasileira. Todavia, na hora de definir o conceito de comércio digital, o faz de forma ampla e avança pouco em relação ao conceito de comércio eletrônico utilizado pela OMC desde 1998. Ou seja, traz para si países defensores desta guinada nas tratativas, como Estados Unidos e Canadá, mas não aponta uma definição que possa de fato deixar países em desenvolvimento mais confortáveis em tratar do assunto de comércio eletrônico em um acordo.

O documento produzido pelo Brasil é firme em endereçar pontos delicados. Por exemplo, deixa claro e explícito o direito a regular (right to regulate), isto é,a abertura para a introdução de novos regulamentos, e um espaço para consecução de de políticas públicas. O right to regulate já foi muito criticado como uma carta branca para utilização de políticas que sejam contrárias ao que se busca estabelecer em um acordo de comércio.

O Brasil também avança ao pautar concretamente o tema da tributação, e coloca que os países devem ter o direito de recolher tributos de plataformas ou demais fornecedores sobre a renda ou lucro gerado em seu território. Ao mesmo tempo, deixa em aberto a decisão pela moratória permanente em transmissão eletrônica, que fica atrelada a resolução sobre como tributar internamente o comércio digital. Essa posição diverge daquela adotada atualmente pelo Brasil em acordos bilaterais, nos quais tende a ser mais aberto a aceitar a moratória sobre transmissões eletrônicas. O Brasil tem assumido na OMC uma posição ativa, tanto na articulação de consensos como na proposição de temas sensíveis, que precisam ser enfrentados. As negociações bilaterais, como esperado, possuem dinâmica distinta – onde se costuma preponderar as questões tarifarias – tornando a posição em comércio eletrônico mais reativa e menos propositiva.

Destacam-se também a abordagem brasileira sobre o tema de copyright e a menção ao direito que o autor tem de obter informação sobre seu trabalho. Essa informação é amplamente detida pelas plataformas digitais, gerando uma assimetria de informação e um baixo poder dos autores para negociar melhores remunerações. Essa menção ressoa movimentos anteriores do Brasil, tanto no Conselho de TRIPS[2] da OMC em 2016 como na própria Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), sobre os desafios do copyright no ambiente digital. O que se busca, mais do que a criação de regras, parece ser a abertura de um espaço mais informal para discussão dessas questões.

O Brasil também busca enfrentar o tema da concorrência no ambiente digital, já debatido pelo blog, colocando sobre os países a responsabilidade de evitar o abuso do poder de mercado. Apesar do amplo benefício da economia de escala advinda da participação em uma plataforma, e dos ganhos ao consumidor (seja ele indivíduo, empresa ou governo) pelo acesso a serviços baratos ou gratuitos, há muitos estudos evidenciando ações deletérias das plataformas sobre a concorrência dentro e fora da plataforma. Restrição ao acesso da plataformas por fornecedores de outros países[3], falta de transparência quanto a publicidade e escolha de quais produtos serão apresentados primeiramente são algumas dessas ações, e decorre da clara vantagem que as plataformas possuem (advindas do efeito-rede e efeito-plataforma). Levanta-se, ademais, a dificuldade de entrada e de permanência de empresas e startups em nichos digitais, uma vez que plataformas grandes se movem na direção desses novos mercados e nele adentram com grande vantagem ao levarem rapidamente seus usuários para esses novos serviços. Aponta-se também os efeitos negativos das grandes plataformas sobre a inovação. Esses efeitos negativos sobre a capacidade das firmas de inovar poderia, ao menos em teoria, ser superiores os benefícios advindos dos baixos preços a consumidores, ensejando intervenção e regulação governamental.

Como os demais países estão se posicionando

A posição da União Europeia nas negociações em comércio eletrônico reflete bastante aquela já adotada em seus acordos bilaterais recentemente assinados ou em negociação. Em resumo, o país mostra que seu principal interesse é garantir que os princípios não discriminatórios que balizam os demais acordos no âmbito da OMC sejam aplicados também ao comércio digital. Como já possui um aquis regulatório bastante consolidado em diversas questões, como assinaturas e contratos eletrônicos, não discriminação entre bens e serviços transacionados fisicamente ou online, sua posição em negociações de e-commerce busca refletir esse status regulatório no ambiente multilateral bem como avançar em acesso a mercados. Países que possuem regulação já madura conseguem assim uma estratégia inside-out para regulações em comércio eletrônico. Já países no lado oposto – com poucos marcos regulatórios e políticas voltadas ao e-commerce – terão uma repercussão outside-in, ao menos que consigam firmar posição em questões macro que possibilitem a adoção de regulações e politicas no futuro.

Em relação ao fluxo de dados, a abordagem reflete novamente a maturidade da regulação doméstica em comércio-eletrônico. Aqui, fala-se que os países devem garantir o fluxo de dados para facilitar o comércio na era digital, uma abordagem bem mais conservadora que a americana, que advoga pela liberdade total nos fluxos de dados (salvaguardando os casos de segurança e demais exceções). Como já esperado, a União Europeia advoga que a proteção de dados pessoais e a privacidade são direitos fundamentais, e que os países podem adotar todas as salvaguardas que se fizerem necessárias para proteção desse direito, incluindo regras sobre a transferência de dados pessoais. Isso significa, em termos práticos, que a União Europeia não quer de forma alguma trazer esse tema para um acordo comercial, abordagem essa já consolidada nas negociais bilaterais do bloco. Nas palavras da Comissão Europeia: “a privacidade não é uma commodity, para ser negociada (em acordos)”, no âmbito das negociações com o Japão.

A União Europeia já mostrou que deseja utilizar as negociações em comércio eletrônico para revisar as disciplinas em serviços de telecomunicações, algo questionável tendo em vista que isso pode ensejar demandas similares em outras disciplinas de serviços, fazendo com que a negociação perca o foco – e mine a adesão de novos membros. Além disso, advoga que todos os países signatários de um futuro acordo em e-commerce também assinem o Acordo para Tecnologia da Informação (ITA), que reduz alíquotas de importação para centenas de produtos de informática, eletrônicos, e de telecomunicação. Ainda que se tratem de acordos de certa forma relacionados, já que o ITA facilita o acesso a mercados de produtos eletrônicos e de infraestrutura para conectividade, essa estratégia pode ser vista como extremamente impositiva.

A China decidiu participar do lançamento das negociações em Davos, surpreendendo muitos, tendo em vista a hesitação do país nas rodadas de negociação informal que aconteceram na OMC nos anos anteriores. O documento produzido pelo país em abril desse ano para subsidiar as discussões revela de forma contundente os objetivos do país nessa negociação.

Mais importante, o documento enfatizou que, mesmo sabendo que se trata de uma negociação ambiciosa, ela deve considerar de forma plena o direito a regular dos membros e objetivos legítimos de políticas públicas, tais como soberania da internet, segurança dos dados e proteção à privacidade. De acordo com o país, os membros devem respeitar as políticas promovidas pelos países para o desenvolvimento do comércio eletrônico, e o direito legítimo de adotar medidas regulatórias para atingir seus objetivos de política pública. O recado é bem claro: não haverá retrocesso quanto às políticas e regulamentos que o país colocou em vigor para desenvolvimento de sua rede de comércio eletrônico doméstica e global.

O documento também segue na direção oposta à posição americana (que discutiremos em maior profundidade em um próximo post) ao buscar que as discussões se restrinjam ao comércio internacional de bens habilitados pela internet, e em serviços complementares a essas transações, como os de pagamento e logística, enquanto o documento americano está focado em regulações que permitam o livre fluxo de dados e a liberdade em transações envolvendo o comércio de serviços.  Não por outro motivo, as principais propostas chinesas referem-se à facilitação do comércio eletrônico de bens, comércio sem papel, e assinaturas eletrônicas e ao papel da infraestrutura para a promoção do comércio de bens. O documento vai além, e advoga que discussões sobre regras em temas regulatórios mais complexos devem ficar de fora das negociações. Para a China, qualquer disciplina sobre fluxo de dados tem como pré-condição a discussão sobre segurança nacional. Ou seja, por parte da China, poucas concessões serão feitas dentro daquela que é a área de maior interesse dos Estados Unidos na negociação: a liberdade do fluxo de dados.

A China traz para as negociações o conceito de “soberania cibernética”, o qual foca no controle da informação e do conteúdo provido pela internet (Schia e Gjesvik, 2017), diferentemente do conceito mais conhecido de segurança cibernética, que está ligado a proteção da infraestrutura e dos processos na internet. Como colocado por Lindsay, Cheung & Reveron (2015), o objetivo é retirar qualquer influência indesejada do “espaço informacional” do país, e tentar trazer a governança da internet para os estados. Trata-se mais de um objetivo político de controlar as informações às quais os cidadãos tem acesso do que um interesse puramente mercadológico.

É preciso também atentar para o movimento anti-negociação existente na OMC, que dificultará sobremaneira a multilateralização do acordo e a entrada de players importantes no comércio eletrônico, como é o caso da Índia e da Rússia. A Índia é o país com oposição mais contundente a um acordo em e-commerce na OMC, pois defendem que o acordo retirará a capacidade dos países de tributarem empresas de tecnologia digital, e, em consequência,  as plataformas, uma importante fonte de receita, tendo em vista que as formas tradicionais de tributação (sobre bens ou lucro das empresas) vem decrescendo ao longo dos anos. A preocupação é mais forte especialmente em áreas como manufatura aditiva e impressão digital, tema pouquíssimo debatidos nos fóruns de comércio.  Além disso, o país opõe-se fortemente a provisões que impeçam que um país adote requerimentos de localização de dados. A postura do país no âmbito multilateral está em concordância com o que tem sido feito no âmbito interno: o país já criou diversos regulamentos que impactam diretamente a atuação de plataformas estrangeiras no país, e está atualmente elaborando sua política nacional para e-commerce, a qual regulará o uso de dados gerados por plataformas dentro da Índia e incluirá previsão que permita o país tributar transmissões eletrônicas.

Além da Índia, diversos outros países têm adotado regulações domésticas que impactam comércio digital e que têm sido classificadas como protecionistas. É o caso de restrições a movimentação de dados impostos por Rússia, Arábia Saudita, Vietnã, China, Quênia, Nigéria e Turquia. Apesar de a maioria desses países terem esse tipo de legislação apenas para alguns setores (como serviços de pagamentos e financeiros), países como Estados Unidos alegam que esse tipo de restrição prejudica uma série de serviços digitais ofertados por suas empresas. Algumas das nações citadas acima estão participando das discussões dedicadas a e-commerce na OMC, e parte delas provavelmente acabará retrocedendo em algumas das regulações adotadas domesticamente. Todavia, já se espera grande embate para inclusão de cláusulas e exceções que preservem o espaço para regulação de novas tecnologias.

Conclusões

Como se pode observar, o tema de comércio eletrônico ganhou relevância significativa na OMC, um reflexo tardio, já que o tema tem sido abordado em acordos bilaterais e regionais de comércio há pelo menos dez anos. Todavia, não é negligenciável o esforço feito por diversos membros em prol de um acordo multilateral, o que evidencia que a OMC segue com capacidade de se renovar e ser lócus relevante para discussão de temas modernos.

Os primeiros documentos circulados depois da assinatura da Declaração Conjunta em 2019 revelam posições que já eram conhecidas, e refletem parte do status quo das negociações bilaterais e regionais em e-commerce. Todavia, países como o Brasil tem conseguido expressar de forma consistente suas posições e pautar as discussões em relação a alguns temas.

É possível, em certa medida, prever quais os possíveis resultados em alguns temas, que já estão com debate mais avançado e que figuram em acordos comerciais há mais tempo. É o caso das disciplinas em assinaturas e contratos eletrônicos, facilitação do comércio, regulação anti-spam e direito do consumidor.  Todavia, muitos temas novos estão surgindo. Resta, portanto, acompanhar como as posições se aglutinarão em torno dos temas mais difíceis da agenda, como fluxo de dados, localização de servidores, compartilhamento de códigos-fonte, algoritmos e softwares, concorrência, entre outros.


[1] A presente análise foi feita com base nos dois últimos documentos circulados a pedido da delegação brasileira. O documento mais recente, circulado em 30/04/2019, ainda não está disponível para consulta. Todos os documentos citados nesse post bem como os demais produzidos pelos países podem ser encontrados no site da OMC.

[2] TRIPS é a sigla para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio.

[3] No caso da Amazon, por exemplo, sabe-se que apenas prestadores com residência nos Estados Unidos e Índia podem vender produtos na plataforma.

Comércio exterior de serviços e balança de pagamentos no Brasil

A figura 1 mostra o comércio de serviços no Brasil desde 1976. O saldo do comércio de serviços foi sistematicamente negativo no período e observam-se dois movimentos de mudança de patamar do déficit: um a partir do final dos anos 1980 e um segundo, mais intenso, a partir de 2004. Em ambos os casos, o aumento do déficit se explica majoritariamente pelo crescimento das importações, o que deu origem a uma espécie de “boca de jacaré”. Em 2014, o déficit chegou a nada menos que US$ 48 bilhões. Ao que parece, teria havido mudança estrutural no comércio de serviços.

De fato, a elasticidade do crescimento das importações de serviços com relação ao crescimento do PIB é de 2,28 para o período completo. Já a elasticidade do crescimento das exportações é de 1,11. Teste de mudança estrutural sugere quebra da série em 2004. Recalculamos as elasticidades para antes e depois daquele ano e encontramos 1,37 e 4,28, e 0,13 e 3,38, respectivamente, para importações e exportações.

Esses números sugerem, primeiro, que as importações de serviços são mais sensíveis à atividade econômica que as exportações; segundo, que, embora ambas as variáveis tenham se tornado substancialmente mais sensíveis à economia a partir de 2004, o coeficiente de importações é significativamente maior que o de exportações; e, terceiro, caso a economia volte a crescer à taxas similares à do produto potencial, que é da ordem de 2,5%, então, tudo o mais constante, observaremos considerável elevação do déficit da conta de serviços.[1]

A figura 2 mostra o saldo comercial total e, separadamente, os saldos comerciais das contas de bens e de serviços. Observa-se que a conta de serviços exerce elevada e crescente influência no saldo comercial total. Embora a corrente de comércio de serviços seja de apenas 1/5 da corrente de comércio de bens, o déficit da conta de serviços praticamente determina o saldo comercial total.

A figura 3 mostra decomposição do saldo comercial total em seus componentes —  os saldos comerciais de bens e de serviços. Conforme sugerido acima, os saldos comerciais no Brasil são “pautados” pelo desempenho da conta de comércio de serviços. Assim, anos com saldos comerciais totais mais modestos ou até negativos são anos com relativamente elevados déficits comerciais da conta de serviços, e vice-versa.

Déficit na conta de serviços não é, necessariamente, um problema. Afinal, pode-se estar importando insumos que elevam a competitividade e a produtividade. Porém, ainda assim, preocupações emergem quando a conta de serviços segue trajetória sistemática de crescimento do déficit, o que pode dar origem à um constrangimento estrutural das contas externas que, eventualmente, pode vir a se tornar um “freio” ao próprio crescimento econômico. Este poderá ser o caso do Brasil.

De fato, para além de elasticidades e de patamar de déficit comercial já elevado, há razões para se esperar aceleração do déficit da conta de serviços ao longo dos próximos anos e, dentre elas, estão as que seguem:

  1. Os serviços estão se tornando tradable e muitos serviços que tradicionalmente são providos localmente por empresas nacionais ou estrangeiras estão, e cada vez mais, sendo providos a partir de terceiros países. Ali incluem-se serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos mas, também, serviços de custos. Essa mudança já está reescrevendo a geografia dos investimentos e do comércio do setor de serviços;
  2. Liderados pelos Estados Unidos, países ricos com fortes interesses ofensivos em serviços estão fazendo intensa pressão para a liberalização dos mercados de serviços e para a convergência técnica e regulatória do setor, que é, na prática, o fator mais determinante do comércio do setor ;
  3. Os preços relativos dos serviços, incluindo os com demanda mais inelástica, seguem trajetória de forte crescimento com relação a preços de manufaturas e de commodities, aumentando a parcela dos produtores, gestores e distribuidores de serviços no valor agregado, em detrimento dos compradores de serviços. A mudança de preços relativos se deve à fatores como concentração de mercados e imposição de padrões técnicos privados em serviços, que fomentam e garantem a formação de “quase-monopólios”;
  4. Devido à mudanças tecnológicas de produção e de gestão da produção, a parcela dos serviços, incluindo os digitais, na formação do valor adicionado de bens, commodities e outros serviços já é elevada, mas seguirá aumentando, beneficiando os produtores, distribuidores e gestores de serviços (pense na smile curve de cadeias globais de valor);
  5. O consumo B2C e B2B de serviços, incluindo os digitais, que já é elevado, deverá aumentar ainda mais ao longo dos próximos anos;
  6. O efeito-rede e o efeito-plataforma conferem enormes poderes para os desenvolvedores e gestores de plataformas e têm criado espaço para práticas discriminatórias que distorcem os mercados.

A ausência, no país, de políticas industriais, políticas de financiamento, políticas de investimentos e políticas de comércio exterior para o setor de serviços deverá aumentar a dependência de serviços importados e a fragilidade das contas externas. Assim, tudo o mais constante, o país terá que fazer enorme esforço exportador de bens e commodities para mitigar os crescentes déficits comerciais de serviços.

O tema é, certamente, complexo e, infelizmente, poucas pessoas se interessam pelo assunto. Mas o tempo não para e já passou da hora de colocarmos o setor de serviços nas agendas das políticas pública e privada.

  1. A mudança na trajetória das importações e das exportações de serviços a partir de 2014 se explica, ao menos em parte, pela recessão e pelo envolvimento de grandes empresas de engenharia brasileiras em problemas de governança, o que afetou consideravelmente as exportações de projetos e de outros serviços de engenharia.

O cobalto da República Democrática do Congo no vale da “curva sorriso”

Em texto publicado neste blog no fim do ano passado, Renan Abrantes e Jorge Arbache compararam as Grandes Navegações da metade do milênio passado ao que seriam as atuais Grandes Navegações Digitais. Para os autores, tanto nas primeiras quanto nestas últimas, os maiores beneficiários das conexões que se estabeleceram eram os intermediários – mercadores, no primeiro caso, e os atuais donos de grandes plataformas digitais no segundo. A meio caminho entre uma e outra era, os recursos naturais do interior do continente africano entraram na equação.

Sob o recorrente pretexto de levar os valores cristãos e civilidade a “pobres almas” do desconhecido continente, exploradores como o famoso inglês David Livingstone realizaram grandes feitos, como a travessia a pé de costa a costa, em meados do séc. XIX. Anos depois, em nova incursão à África, para tentar dar fim a uma rusga entre exploradores conterrâneos seus acerca de qual seria a verdadeira fonte do Rio Nilo, Livingstone desapareceu. Coube ao ambicioso jornalista americano Henry M. Stanley encontrar o explorador, moribundo, em uma aldeia da Tanzânia. O feito de Stanley chamou a atenção do Rei Leopoldo II da Bélgica, para quem o jornalista contou das abundantes riquezas naturais que encontrou na região do Rio Congo, selando o destino de milhares de vidas.

Leopoldo II nunca pisou naquelas terras – que tornou sua propriedade pessoal -, mas multiplicou sua riqueza com o marfim e a borracha retirados de lá às custas de grande devastação ambiental e de um genocídio. Pela borracha, o Congo Belga se integrava a uma das cadeias produtivas de maior valor da época; porém, a importante matéria prima para produção de pneus da nascente e promissora indústria automobilística não permitiu ao país uma inserção melhor que precária na cadeia global.

A República Democrática do Congo (RDC), atualmente, é fonte de outra matéria prima, crucial para indústrias de tecnologia: 60% do cobalto disponível no mundo encontra-se no solo do país. O metal é utilizado em baterias de celulares a carros elétricos e, conforme relatório da Anistia Internacional, sua exploração é feita de forma artesanal, insalubre e com considerável participação de mão de obra infantil.

A integração da atual República Democrática do Congo à economia mundial, por meio da borracha, permitiu que o único intermediário (o Rei Leopoldo II), se apropriasse de considerável parcela da renda gerada na produção do produto final (pneus). Isto porque esta integração se deu em momento no qual a curva sorriso de produção desse bem encontrava-se menos abaulada, de modo que a etapa da fabricação em si do bem final (pneus) representava importante parcela do valor de venda gerado. O problema de então relacionava-se mais ao total alheamento da mão de obra que coletava o látex em relação aos ganhos auferidos com a sua venda – isso para não mencionar as atrocidades cometidas.

Atualmente, observando-se a inserção da indústria de cobalto da RDC na cadeia global de produção, percebe-se que ela se encontra no vale de uma curva que, ademais, vem se tornando cada vez mais profundo. Ora, com a apropriação de parcela crescente do valor de produção por parte de etapas não produtivas (design, marketing, pós-vendas, pesquisa, desenvolvimento de software etc.), o trecho da produção física de bens com grande conteúdo de serviços agregado torna-se irrisório. Ironicamente, o que se poderia tomar apenas como triste constatação pode vir a ser um alento aos congoleses que vivem de tirar o metal do fundo de poços.

Ocorre que o recente crescimento observado e o previsto da indústria de carros elétricos permite inferir que a dependência do cobalto por parte desse segmento da indústria seguirá alta. Assim, vislumbra-se uma chance interessante de fazer com que mais benefícios da exploração do cobalto sejam destinados aos habitantes de seu país de origem, especialmente àqueles trabalhando nas minas. Ora, se produtos sofisticados tentem a se valorizar pelos serviços neles embarcados, em detrimento do material empregado em sua fabricação, é razoável supor que uma majoração no preço pago pelas matérias primas na etapa de sua produção física em pouco afetará o lucro de empresas como Apple – que admitiu o uso de cobalto vindo do Congo em pelo menos 20% suas baterias -,LG Chem, Amazon ou Samsung.

A mudança depende, no entanto, de que empresas como as citadas monitorem a origem do material utilizado na fabricação de seus produtos e que a regulação estatal na RDC incremente a proteção dos trabalhadores. Com isto, é possível distribuir melhor o quinhão, que atualmente vai para os intermediários da cadeia do metal, compostos principalmente por empresas chinesas atuantes no país.

Ao se confrontar a inserção da RDC como importante player da cadeia global de baterias elétricas (maior ofertante individual de cobalto) com a precariedade das condições em que esse minério é explorado, evidencia-se a importância da regulação e indicam-se soluções para um problema local pela integração entre estratégia de mercado do setor privado com melhorias em condições socioeconômicas. No entanto, trata-se de arena complexa a cuja abordagem deve ser dada mais atenção por parte de nações e mesmo de blocos econômicos.

À medida que se confirmam tendências como a concentração de mercado na economia digital, o avanço da mobilidade como um serviço (MaaS) e o aprofundamento do vale da curva sorriso, a concepção de arranjos regulatórios adequados mostra-se como alternativa apta a trazer ao sistema macroeconômico contrapesos aos malefícios resultantes da necessidade de economias ou setores primário-exportadores (como a RDC e a mineração no Brasil) extraírem recursos com participação decrescente, em termos relativos, na composição do valor de produtos.

No entanto, não se deve esperar que tal regulação – que já é de difícil aplicabilidade – resolva por si só os problemas, mesmo porque a escassez de determinado recurso serve como incentivo ao desenvolvimento de materiais ou de tecnologias alternativas. É preciso, como contrapartida, a efetiva emancipação de economias primárias no sentido de agregarem mais valor à sua produção, o que pode ser possível tanto pela diversificação de seu parque exportador quanto pela agregação de valor a seus produtos. Não é tarefa simples, mas auspiciosa, afinal, é de se esperar que países com a nossa biodiversidade, por exemplo, alcancem melhores níveis de desenvolvimento com a exploração de recursos caros às ciências médicas e à biotecnologia do que com a de minérios no vale de uma curva sorriso cada vez mais profunda.

 

A Desoneração Tributária da Exportação de Serviços e a Possibilidade de Eliminação de Resíduos da Cadeia

Um dos legados da famigerada greve dos caminhoneiros foi a divisão com a sociedade brasileira dos ônus da desoneração tributária do diesel. Ao afetar a meta de arrecadação e sendo pressionado para não aumentar a carga tributária, o governo federal deliberou cobrir o deficit provocado, pela redução ou eliminação, à toque de caixa, de diversos incentivos vigentes, como é o caso do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras -Reintegra.

O art. 21 da Lei nº 13.043/2014, com a disciplina do Decreto nº 9.393, de 30 de maio de 2018, reduziu a alíquota para os créditos do Reintegra de 2% para 0,1%, com vigência imediata, a despeito de a regulamentação anterior determinar que essa alíquota seria mantida até o final do exercício.

O Reintegra permite que empresas que exportam determinados produtos apurem crédito no valor de percentual fixado sobre a receita auferida na operação de exportação. A finalidade da restituição é a devolução de parte dos resíduos tributários da cadeia de produção de bens exportados, em consonância com o princípio de comércio internacional, de que não deverá haver a exportação de tributos. A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 540/2011, convertida, posteriormente, na Lei nº 12.546/2011, discorreu sobre a necessidade de combater as dificuldades das empresas exportadoras brasileiras. Os resíduos tributários existentes na cadeia produtiva de bens manufaturados reduz a competitividade de exportações brasileiras, pois representam de 5% a 10% do custo do produto exportado, a depender de fatores tais como a extensão da cadeia produtiva.

O Reintegra não se aplica aos serviços, apenas a produtos manufaturados. Mas a discussão que veio à baila com as medidas compensatórias decorrentes da greve dos caminhoneiros, trazidos pelos contribuintes exportadores prejudicados, é a indispensabilidade da eliminação dos resíduos tributários das cadeias de bens exportados.

Note-se que se a cumulatividade tributária afeta as mercadorias exportadas, os serviços padecem de uma deficiência na estrutura de tributação muito maior, considerando que a tributação sobre os serviços brasileira não dispõe de técnicas para a eliminação dos resíduos tributários.

A base de cálculo do imposto sobre serviços -ISS é o preço bruto do serviço, com alíquotas máxima de 5%, não se permitindo a dedução de insumos empregados na prestação de serviços, nem o quanto pago nas operações anteriores, de acordo com suas normas gerais, determinadas pela Lei Complementar n. 116/2003. A única exceção é o caso de serviços de construção civil, em relação aos quais há a previsão de dedução do valor de materiais e o das subempreitadas já oneradas pelo imposto.[1]

Em regra, não há a possibilidade de dedução dos materiais empregados para a prestação dos serviços, que já são gravados pelo IPI e pelo ICMS, gerando dupla imposição econômica, situação que não ocorrerá em ordenamentos jurídicos que tributam de forma unificada mercadorias e serviços.

Uma justificativa possível para a estrutura cumulativa do ISS é o fato de sua alíquota ser relativamente baixa, aliada ao fato de sua competência ser disseminada entre 5570 competências tributárias municipais: não oneraria demasiadamente aos contribuintes, ao mesmo passo que não ofereceria maiores dificuldades de fiscalização às administrações tributárias, pela simplicidade de sua estruturação.

Entretanto, sob a perspectiva do comércio exterior, da dificuldade de quantificação da carga tributária, que dependerá da configuração da cadeia de serviços, decorre a violação do princípio da não-discriminação, em desfavor do contribuinte brasileiro, pois o importado será onerado de forma distinta do fornecido internamente, uma vez que não é possível precisar a carga tributária interna.

A despeito de a alíquota máxima do ISS ser relativamente baixa, o que poderia compensar as múltiplas incidências ao longo da cadeia, não promove a neutralidade, vetor a ser perseguido por uma política tributária eficiente. Um dos efeitos de uma tributação cumulativa é a verticalização da cadeia, concentrando-se os diversos prestadores de serviço por razões alheias à eficiência do mercado, mas apenas para fugir à tributação.

Poder-se-ia se argumentar que não é inerente aos serviços a cumulatividade, pois, em geral, esgotam-se em uma única prestação, com algumas exceções, como nas hipóteses serviços de administração de outros serviços. Classicamente, os serviços não se inseririam em uma cadeia, isto é, esgotavam-se em uma única relação jurídica.

Todavia, o perfil das formas de serviços tem se alterado substancialmente em virtude da evolução tecnológica, tornando-se muito mais complexas e atreladas a diversos prestadores. A tendência é que quanto mais sofisticado o serviço, maior será a cadeia de prestadores e maior será o número de subcontratações de serviços, como o caso de serviços de engenharia e de elaboração de softwares.

Acresça-se que, segundo Anita Kon, ao longo do processo de internacionalização produtiva, os serviços, que numa visão tradicional, eram entendidos como não comercializáveis internacionalmente (non tradable), devido à sua intangibilidade e em vista de sua pouca representatividade nas pautas de exportação, mudaram o seu status. As mudanças tecnológicas e a intensificação do processo de globalização produtiva e comercial, incrementaram o fluxo de serviços, especialmente nas áreas de transporte, consultoria, comunicações, de maneira que o seu mercado internacional ampliou-se consideravelmente.[2]

No Brasil, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), baseados no Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio (Siscoserv), as exportações de serviços no Brasil representam pouco, se comparadas às de mercadorias, embora o setor terciário represente pouco mais de 70% (setenta por cento) do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB), como se depreende:

Dos serviços exportados, dentre os mais relevantes estão serviços profissionais, técnicos e gerenciais, de consultoria, financeiros :

A política tributária tem seu papel na contradição desses dados. A cumulatividade do ISS e a “quase-cumulatividade” do PIS e Cofins, incidente sobre a receita das prestações de serviços, que também oferece dificuldades para os contribuintes eliminarem a cumulatividade da cadeia dos bens exportados, são uma das faces desse problema.

Dificuldades adicionais serão encontradas pelos contribuintes para implementar a desoneração nas saídas voltadas às exportações, em virtude da própria dificuldade de aplicação da norma, pela divergência de intepretação pelas administrações tributárias de definições como as de “local de desenvolvimento” e “de consumo” dos serviços.

Todavia, esses obstáculos para desoneração dos serviços exportados, são inconstitucionais. Defende-se que o legislador constitucional optou pela adoção do princípio do destino na tributação das operações de comércio exterior, em detrimento do princípio da origem, como elemento de conexão determinante do exercício da competência tributária. O princípio do destino implica na desoneração da carga tributária nas saídas voltadas à exportação, além da restituição ou creditamento da carga tributária que incidiu na cadeia de produção e distribuição do bem, internamente.

Contrariamente ao que existe no imposto de renda, em que há uma disputa internacional sobre a aplicação do princípio da residência ou fonte, como critério de determinação de competência tributária, há um notável consenso no comércio internacional pela aplicação do princípio do destino, optando as economias mundiais por desonerar as exportações, enquanto que no local de consumo desses bens, recairá a carga tributária.

 

Conforme o saudoso jurista Ricardo Lobo Torres, o princípio do destino está intimamente conectado e harmonizado com o princípio da territorialidade, com a ideia de Justiça e com o princípio da capacidade contributiva, ao estabelecer que os tributos devam ficar no país onde foram consumidos os bens, sendo o vetor para se evitar a dupla tributação no comércio internacional[3]

Nas palavras do também saudoso professor Alberto Xavier[4]:

Os impostos de consumo sobre as transações são geralmente lançados no país do consumidor, revertendo em benefícios dos Estados nos quais são consumidos os bens sobre que incidem. Precisamente por isso, o país de origem, isto é, o país no qual o bem foi produzido, procede normalmente à restituição ou isenção do imposto no momento da exportação; e, por razões simétricas, o país do destino, onde o bem será consumido, institui um encargo compensatório sobre as mercadorias importadas, em ordem de colocá-las ao menos em pé de igualdade com os produtos nacionais.

A Constituição de 1988 adota claramente o princípio do destino no comércio internacional, pois determina que os tributos não incidirão na exportação dos bens. Em diversos dispositivos consolida-se essa opção do legislador constitucional, como o art. 153, §3o, III, que determina que o IPI “não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior”; o art. 155, §2o, X, ‘a’, com a redação da EC n. 42/2003, que determina que o ICMS não incidirá “sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”; o art. 156, §3o, II, que determina, para o ISS, que cabe à lei complementar “excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior”; o art.149, §2o, I, que determina que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico “não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação” (com a redação da EC n. 33/2001) e “incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços” (com a redação da EC n. 42/2003).

Em um ambiente internacional cooperativo de tributação, a escolha pela eficiência econômica e por conseguinte, pelo princípio do destino é inequívoca, pois ao se permitir que um produtor não direcione o seu comportamento por força da tributação de insumos, determinando-se que a carga tributária recaia sobre o consumidor final, incrementa-se a produção e, assim, um governo pode assegurar que parte dessa produção excedente seja capturada pela tributação dos lucros, remanescendo o suficiente para o benefício dos consumidores.

E nesse ponto, retorna-se à ideia lançada no início do texto: o Reintegra, ao possibilitar a redução (não eliminação) dos resíduos tributários oriundos da tributação interna, não é um favor governamental, mas uma obrigação do legislador infraconstitucional. E mais: deve ser estendido aos serviços. Quanto ao ISS o art. 156, §3o, II da Constituição determina que a lei complementar deve excluir a incidência do ISS dos serviços exportados: não apenas a incidência do serviço exportados, como de sua cadeia.

Se no Brasil o princípio do destino tem matriz constitucional, a sua realização não é faculdade do Estado, sendo dever do legislador incluir as imunidades/isenções nas exportações e a constituição de técnicas que viabilizem o aproveitamento de créditos de saídas direcionadas à exportação, na proporção da carga tributária incidente internamente.

A tributação cumulativa traz prejuízos à alocação de recursos e à competitividade dos produtos nacionais, tanto no mercado externo como no doméstico, pois altera de forma incontrolável os preços relativos da economia. No comércio exterior, a realidade da cumulatividade prejudica a competividade das exportações brasileiras. Em relação ao custo dos bens exportados, é difícil a recuperação da carga tributária incidente sobre a cadeia de produção e comercialização, relativa aos insumos, bens de capital e à gestão de negócios.

E se essa discussão ainda necessita amadurecer no comércio exterior de mercadorias, no caso dos serviços, em que as mesmas premissas podem ser aplicadas, a discussão é incipiente.

A não-cumulatividade é técnica expressamente imposta constitucionalmente apenas para o IPI, o ICMS e mais recentemente, para o PIS e Cofins. Portanto, em princípio, não haveria a obrigação da municipalidade de instituir técnicas de implementação de não-cumulatividade para o ISS.

Não obstante, a cumulatividade da tributação dos serviços ofende a diversos preceitos constitucionais. Assim, como justificar que aquele que forneça serviços mais sofisticados e com maior peso econômico, seja mais gravemente tributado? Ademais, ao se estabelecer uma estrutura de tributação que verticalize a cadeia de produção, haverá não só ofensa à neutralidade, como aos vetores constitucionais da Ordem Econômica.

Essas são apenas algumas provocações que apontam para a estrutura anacrônica das técnicas de tributação sobre os serviços, que devem ser repensadas em um contexto econômico em que o setor terciário participa de forma crescente no PIB brasileiro.

  1. Observando-se que do projeto original da Lei Complementar n. 116/2003, foi vetada a possibilidade de dedução dos valores despendidos com terceiros pela prestação de serviços dos hospitais, laboratórios, clínicas, medicamentos, médicos, odontólogos e demais profissionais de saúde, por cooperativas médicas.
  2. KON, Anita. Nova Economia Política dos Serviços, p.53 et seq. São Paulo, Perspectiva, CNPq, 2015.
  3. TORRES, Ricardo Lobo.O Princípio da Não-Cumulatividade e o IVA no Direito Comparado. MARTINS, Ives Grandra da Silva (coord.). Série Pesquisa Tributárias, no 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 161.
  4. Direito Tributário Internacional, 2a ed. Coimbra: Edições Almedina, 2014, p.238-239

O setor de serviços tem papel diferenciado na redução da desigualdade de gênero?

A igualdade de gênero é, sem dúvida, um tema que ganhou espaço no debate de comércio internacional. O empoderamento feminino foi objeto de Declaração Ministerial Conjunta na 11ª Conferência Ministerial da OMC realizada em 2017 na Argentina, além de ser o Objetivo #5 da Agenda para Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, negociada em 2015. Ademais, iniciativas relacionadas à importância da participação das mulheres no comércio ganham força, como o #SheTrades do International Trade Center e a rede de GenderChampions das Nações Unidas. Alguns países, como o Canadá, já tomaram a decisão de incluir a questão de maneira horizontal em todos os seus acordos de comércio. No Brasil, o tema também ganhou força e espaços para discussão, como no blog WomenInsideTrade, por exemplo.

O setor de serviços aparece de maneira recorrente nessas discussões como um setor Gender Champion. O argumento é de que, além de ser um setor chave para o desenvolvimento econômico, o setor de serviços é responsável por uma alta parcela do emprego feminino, de maneira que o seu desenvolvimento poderia ter um importante papel na redução da desigualdade de gênero, tanto no comércio internacional, quanto no emprego da força de trabalho doméstica.

De fato, estatísticas indicam alto nível de emprego feminino no setor de serviços, que corresponde a quase 50% do emprego feminino global total[1]. Em economias avançadas, a porcentagem de mulheres trabalhando no setor de serviços chega a 85%. Em países em desenvolvimento, apesar de a maior parte das mulheres estarem empregadas no setor agrícola, a parcela de mulheres que trabalha no setor de serviços aumentou 7,6% entre 1992 e 2012, e tem tendência crescente[2].

Contudo, um olhar mais detalhado sobre esses dados mostra que as mulheres parecem ter uma participação concentrada em determinados subsetores, quando comparadas com os homens. A Figura 1 mostra que os setores “predominantemente femininos” são atacado e varejo, hotéis e restaurantes, educação, saúde e trabalho social. Esses subsetores são, usualmente, caracterizados por pagamentos baixos e arranjos informais de trabalho. A força de trabalho masculina, por outro lado, está mais concentrada em serviços relacionados às atividades de manufatura, construção, agricultura e transportes e comunicações, subsetores usualmente responsáveis pela maior geração de valor agregado e, consequentemente, maiores salários.

Figura 1 – Diferenças na média das participações em subsetores, por sexo (Masculino – Feminino)

Últimos dados disponíveis: 2000

Fonte: The Gender Dimension of Services.

 

Dessa forma, apesar de o setor de serviços de fato empregar mais mulheres que o setor industrial, os dados sugerem que o setor tende a perpetuar a desigualdade de gênero, no sentido de que a força de trabalho feminina está empregada majoritariamente em subsetores de menores salários, menor geração de valor agregado e arranjos de trabalho informais, enquanto os subsetores de alta geração de valor agregado e salários maiores continuam com força de trabalho majoritariamente masculina.

A maneira correta de combater a desigualdade de gênero reside no combate aos motivos que levam as mulheres a atuarem, tanto no setor industrial quanto no setor de serviços, em trabalhos com menor remuneração e menor geração de valor agregado.

Tomemos como exemplo a chegada iminente da Revolução Industrial 4.0. Como se sabe, a Revolução Industrial 4.0 é marcada pela automação da indústria, processos influenciados por inteligência artificial, internet das coisas e intenso fluxo de dados. É, portanto, válido afirmar que carreiras promissoras para o futuro estão relacionadas a tecnologia da informação e comunicação, ciência da computação e engenharia. Um combate eficaz à redução da desigualdade de gênero seria proporcionar a igualdade de participação feminina e masculina desde a formação, para que o resultado se configure no momento de emprego da força de trabalho.

Infelizmente, estatísticas sugerem o contrário. As figuras 2, 3 e 4 apresentam dados de obtenção de diploma em carreiras de humanas e artes (2), tecnologia da informação e comunicação (3) e engenharia, manufatura e construção (4).

Os dados mostram que no Brasil e nos países da OCDE, mais de 80% dos diplomas na área de tecnologia da informação e comunicação são concedidos a homens. Na área de engenharia, manufatura e construção, o valor é similar, atingindo 70%. Os diplomas concedidos às mulheres se concentram, sobretudo, na área de humanas e artes, em que aproximadamente 70% dos diplomas nos países da OCDE, e 60% no Brasil, são concedidos a pessoas do sexo feminino.

Figura 2. Diplomas concedidos a homens e mulheres em carreiras de humanas e artes, 2015

 

Figura 3.  Diplomas concedidos a homens e mulheres em carreiras de tecnologia da informação e comunicação, 2015

Figura 4. Diplomas concedidos a homens e mulheres em carreiras de engenharia, manufatura e construção, 2015

 

Fonte: OCDE

 

Iniciativas que trazem a questão da desigualdade de gênero para o centro do debate são importantes e merecem reconhecimento. É digno de destaque esse importante momento em que a igualdade de gênero tem a atenção dos países, de organismos internacionais e da mídia. É necessário, contudo, olhar a questão com uma lente ajustada para identificar os fatores que levam à desigualdade. Buscar incentivar setores, subsetores ou áreas do comércio que possuem maior participação feminina, sem o devido trabalho de avaliação, pode apenas perpetuar a desigualdade de gênero, sendo ineficaz ou tendo o efeito inverso do esperado.

[1] ILO. Global Employment Trends 2014. Geneva: International Labour Organization, 2014.

[2] ILO. Global Employment Trends for Women 2012. Geneva: International Labour Organization, 2012

Brasil e Índia: possível aproximação em serviços?

Este ano são comemoradas sete décadas de relações diplomáticas entre os dois países. Nesse longo período é evidente que as duas economias experimentaram variações diversas em sua orientação de política, bem como nos resultados obtidos.

Juntamente com o Brasil, a Índia foi sistematicamente voz ativa nos fóruns internacionais, em defesa dos interesses das economias menos desenvolvidas. De fato, ambos países têm participado de diversas iniciativas voltadas para aquilo que até recentemente era conhecido como o Terceiro Mundo, hoje rebatizado como economias emergentes. À diferença do Brasil, contudo, nos anos de Guerra Fria o alinhamento indiano esteve mais próximo do bloco soviético.

Se a economia brasileira apresentou, nesses setenta anos, altos e baixos, com momentos de hiperinflação, crises nas contas externas alternadas com momentos de euforia, introversão em paralelo a iniciativas relativamente tímidas de abertura selecionada, etc, a história econômica da Índia é um pouco distinta.

À diferença da experiência brasileira, a inserção internacional da economia indiana tem um claro ponto de inflexão no início da década de 1990, quando uma crise importante nas contas externas levou a processo de abertura sem precedentes. Desde então, as exportações de bens e serviços triplicaram sua participação no PIB, passando de 7% em 1990 para 21% em média, entre 2014 e 2016, segundo dados do Banco Mundial[1]. Variação semelhante à registrada do lado das importações: de 8% para 23%.

Existem cinco vezes mais indianos que brasileiros no planeta. A população brasileira, de pouco mais de 200 milhões de habitantes, é pequena quando comparada com os mais de 1,3 bilhão de indianos. A Índia é o segundo país mais populoso do planeta, atrás apenas da China.

O valor da produção nas duas economias é, contudo, de ordem semelhante. Se medido em termos de poder de compra de paridade para a média do período 2014-2016, a preços constantes de 2010, o PIB nos dois casos é da ordem de US$ 2,3 trilhões.

Isso, evidentemente, afeta a estimativa da renda per capita. Quando medido em termos da paridade do poder de compra, isto é, a capacidade efetiva de compra da renda individual, o PIB per capita do Brasil, da ordem de US$ 15,6 mil em média em 2014-2016 é mais do dobro dos US$ 6 mil correspondentes na Índia.

Mais do que simples curiosidades estatísticas, esse conjunto de diferenças afeta o padrão de demanda predominante em cada uma dessas economias, portanto sua estrutura produtiva e seus interesses negociadores.

As duas economias diferem, também, na composição setorial básica da sua estrutura produtiva. A Tabela 1 mostra as participações dos três principais setores.

Tabela 1 – Estrutura Produtiva do Brasil e da Índia – média 2014-2016 (% do PIB)
Brasil Índia
Agricultura 5,1 17,6
Indústria 22,5 29,5
Serviços 72,4 52,8

Fonte: http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=world-development-indicators

Em ambas as economias há predominância da produção de serviços, mas a importância relativa desse setor é bem mais pronunciada no caso brasileiro, onde corresponde por quase três quartas partes do valor adicionado na economia. Essa diferença é particularmente notável quando se trata de comparação com a economia indiana, sabidamente uma economia com forte desempenho (muito mais pronunciado que o brasileiro) no comércio internacional de serviços.

As duas economias têm relação distinta, também, na sua relação com o comércio externo. Se considerado o valor total do comércio de mercadorias em relação ao PIB, esse percentual era em média, em 2014-2016, da ordem de 19% no caso do Brasil, bem menos que os 32% registrados no caso da Índia.

Nesse mesmo período, a economia brasileira exportou bens e serviços em montante correspondente a 12% do seu PIB, e importou 13%. Os mesmos indicadores para a Índia foram de 21% e 23%, respectivamente, indicando uma economia mais aberta ao comércio.

O grau de envolvimento das duas economias com o comércio internacional de mercadorias tem trajetória claramente diferenciada. Enquanto no Brasil o grau de abertura pouco se alterou nessas duas décadas e meia (a relação entre o comércio de mercadorias e o PIB brasileiro passou de 12% em 1990 para 18% em 2016), na Índia esse indicador aumentou duas vezes e meia, no mesmo período, passando de 13% para 28%.

Seja como for, o maior grau de abertura comercial não significa que o desempenho da economia indiana no comércio de mercadorias tenha gerado resultado marcante, em termos de saldo comercial. De fato, o que se observa é que essa economia é deficitária no comércio de mercadorias, e compensa esse resultado negativo com a exportação de serviços, como mostra a Tabela 2.

Tabela 2 – Balança Comercial e Comércio de Serviços (US$ milhões)
Média 1990-99 Média 2000-2010 Média 2011-2016
Índia
Balança comercial -5151 -52873 -14433
Saldo de serviços -2420 14152 68737
Brasil
Balança comercial 778 20078 9964
Saldo de serviços -6304 -11744 -39793

Fonte: http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=world-development-indicators

É notável, na comparação entre as duas economias, que o peso relativo do setor de serviços na produção nacional seja bem mais elevado no caso do Brasil do que na Índia.

Existem, portanto, diferenças notáveis entre as duas economias, tanto no que se refere a suas estruturas produtivas – o que implica diferenças nas estruturas de demanda e nos interesses de produtores – quanto à sua relação com o Resto do Mundo.

À semelhança do comércio entre o Brasil e outros países, também as relações comerciais bilaterais com a Índia são essencialmente do tipo “Norte-Sul”, significando um intercâmbio em que um dos parceiros (Brasil) exporta produtos básicos e importa mercadorias processadas.

Além disso, a pauta de exportações é bastante mais concentrada do lado brasileiro do que para os indianos.

Em 2010 não mais que três produtos – óleos brutos de petróleo, açúcar de cana em bruto e sulfetos de minério de cobre – correspondiam a 67% do valor exportado pelo Brasil, tendo como destino o mercado indiano. Os 100 produtos mais importantes representavam 96,3% do valor exportado pelo Brasil no comércio bilateral.

As importações brasileiras provenientes da Índia eram, naquele mesmo ano, mais diversificadas. Os três principais produtos – óleo diesel, fio de algodão e fio de poliéster – representavam apenas 47% do valor total, indicando um grau bem mais diversificado que as exportações brasileiras. Os 100 principais produtos correspondiam a 80%.

Decorridos sete anos, em 2017 os três principais produtos de exportação brasileira – óleo bruto de petróleo, óleo de soja em bruto e outros açúcares de cana – correspondiam a 60% do valor total, enquanto os 100 principais produtos representavam 95%. Isto é, houve pouquíssima diversificação da pauta exportadora brasileira no comércio com a Índia.

O registro é um tanto diferente do lado das importações brasileiras. Em 2017 os três principais produtos indianos – fios têxteis de poliéster, inseticidas e querosene de aviação – representavam não mais que 12% do total da pauta. E os 100 principais produtos corresponderam a apenas 63%.

Esses indicadores são ilustrativos do baixo grau de elaboração dos produtos exportados pelo Brasil e de quão limitado foi o processo de diversificação da oferta brasileira.

Ao mesmo tempo, contudo, eles mostram que do lado indiano houve claramente ganho de participação por parte de produtos mais elaborados e um notável grau de desconcentração da pauta exportadora.

Esses são indicadores relativos ao comércio de mercadorias. No entanto, a Índia é uma economia que se destaca pelo seu dinamismo na exportação de serviços.

Uma das limitações básicas quando se trata do comércio de serviços é a dificuldade em conseguir dados. Em particular, a identificação de fluxos bilaterais demanda pesquisa específica, o que transcende os objetivos deste artigo.

Algo é possível informar, contudo, no que se refere à importância relativa do comércio de serviços para cada uma das duas economias.

A Tabela 3 mostra que a participação do comércio (exportações e importações) de serviços no PIB de cada um dos dois países é crescente, mas bastante distinta. Ao longo do período considerado o comércio de serviços representou, em termos do produto nacional, duas vezes mais para a Índia do que o observado no Brasil.

Tabela 3 – Comércio de Serviços (% do PIB)
2000 2005 2010 2016
Brasil 3,77 4,31 4,15 5,40
 
India 7,76 12,28 11,83 11,39

Fonte: http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=world-development-indicators

Na comparação com a Tabela 1 chama a atenção – como já referido – que na economia brasileira o setor de serviços representa um percentual do PIB bem mais elevado do que na economia indiana. No entanto, o comércio externo de serviços é bem mais significativo em proporção ao PIB nesta última.

Em termos do valor adicionado pelo setor de serviços como proporção do PIB houve aumento, entre 2000 e 2017, de 68% para 73%. Na Índia essas proporções foram mais modestas, com o valor adicionado em serviços tendo aumentado de 45% para 54%.

Uma explicação para tanto reside no fato de que o tipo de serviços produzidos no Brasil é predominantemente voltado para o consumo final, com baixo valor agregado e grau limitado de sofisticação. Ao passo que na Índia há destaque para os serviços de apoio à atividade produtiva, portanto mais comercializáveis

Há diferença igualmente no desempenho recente das duas economias no que se refere ao valor exportado de serviços. Entre 2000 e 2017 as exportações brasileiras de serviços cresceram, em dólares correntes, 313%. No mesmo período, o valor exportado pela Índia aumentou não menos de 853%.

Representando mais de US$ 160 bilhões, as exportações de serviços pela Índia são concentradas (45%) no setor de software, seguido (20%) por apoio a negócios, viagens (14%), transportes (10%) e outros com pesos menos relevantes, como serviços financeiros, seguros e comunicações[2].

Em 2016 os principais serviços exportados pelo Brasil foram[3] serviços profissionais, técnicos e gerenciais (11% do total); serviços gerenciais e de consultoria gerencial (11%); serviços auxiliares aos serviços financeiros (8%); serviços de manuseio de cargas (6%) e serviços de transporte aquaviário de cargas (6%). Praticamente a metade foi exportada para os Estados Unidos e os Países Baixos.

Se no caso indiano há um padrão de especialização identificável e a preocupação é diversificar a pauta de exportações de serviços, no Brasil essa pauta é relativamente pulverizada (numa relação inversa à que se observa em mercadorias).

Em ambos os casos, há preocupação em diversificar os mercados de destino, reduzindo a dependência de poucos consumidores.

Em resumo, as relações comerciais entre o Brasil e a Índia são claramente influenciadas por diferenças na composição da estrutura produtiva em cada economia, assim como nas diferenças na relação entre o comércio de mercadorias e de serviços. No entanto, e em que pese a maior importância das exportações de serviços no caso indiano, aquele país foi capaz de diversificar e sofisticar sua pauta exportadora de mercadorias para o Brasil em proporções bem mais significativas do que se observa nas exportações brasileiras.

Não foi possível conseguir dados para a composição do comércio bilateral de serviços. Mas é possível inferir que há claras implicações para um eventual processo negociador entre as duas economias.

O fato de o Brasil pertencer ao Mercosul é determinante de que eventuais negociações de preferências comerciais devam ser feitas no formato 4+1, o que implica identificar tanto os interesses negociadores de parte da Índia quanto os interesses dos quatro membros do Mercosul.

Tendo em vista as considerações acima, parece razoável esperar que a Índia tenda a ter maior interesse nas negociações no setor de serviços, mais do que no comércio de mercadorias.

E no âmbito dessas negociações, dada a concentração de exportações indianas em software, seria de se esperar interesse em medidas que facilitem as transações do chamado Tipo 2 do GATS, isto é, serviços “ofertados no território de um país para consumidores em outro país”.

Isso, sem prejuízo de interesse igualmente em negociações de medidas que facilitem transações de Tipo 3 (serviços ofertados através de algum tipo de estabelecimento profissional ou comercial de um país no território de outro país), dada a participação importante, no processo produtivo indiano, de tecnologia de informação e comunicação e serviços de apoio aos negócios, sem prejuízo, claro, de outros tipos de serviços.

Da perspectiva brasileira é menos fácil identificar como poderia ser a composição de sua demanda negociadora em serviços, até pela diversidade da pauta de exportação, o que dificulta identificar as vantagens comparativas da economia brasileira em serviços.

Eventuais negociações para ampliar o comércio de mercadorias são mais previsíveis. De fato, o acordo firmado entre a Índia e o Mercosul em 2004 compreende uma lista limitada de itens: poucas centenas de itens, quando a pauta comercial dos dois lados é formada por milhares de produtos. Há, de fato, processo em curso para ampliar a cobertura do acordo, com a inclusão de um número mais expressivo de itens.

No tocante a serviços, seria da maior importância poder dispor de informações comparáveis sobre a composição dos fluxos bilaterais. Seja como for, parece razoável imaginar a existência de demanda indiana para a facilitação das transações bilaterais em serviços. E dada a composição da pauta exportadora daquele país, com forte concentração setorial, é possível especular sobre onde estariam focados, em princípio, seus interesses.

O aspecto relevante a ressaltar é o grau de possível complementaridade entre as duas economias, e que deveria ser explorado de maneira mais intensa e focada, seja no âmbito de acordos bilaterais, seja na convergência de posições em fóruns multilaterais.

 

[1] http://databank.worldbank.org/data/reports.aspx?source=world-development-indicators

[2] Ver https://thewire.in/business/can-india-double-services-exports-five-years

[3] MIDC, Serviços – Panorama do Comércio Internacional, 2016

O que querem os países nas negociações de e-commerce?

O comércio digital tem crescido rapidamente no mundo todo. De acordo com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as vendas globais de bens e serviços pela internet alcançaram US$ 25,7 trilhões em 2016. Desse valor, 90% foram transações entre empresas (B2B). Como consequência, provisões sobre comércio digital cresceram substancialmente nos âmbitos dos acordos regionais de comércio com o objetivo de remover e evitar barreiras ao livre fluxo de dados e conter o surgimento do chamado “protecionismo digital” ou proteger e resguardar interesses nacionais associados à esta agenda.

Dado mais recente da Organização Mundial do Comércio mostra que 80 dos 305 acordos notificados à instituição têm provisões ou capítulos sobre o tema. Quando se olha apenas os acordos recentemente notificados, o que se vê é que a vasta maioria dos acordos já abarcam temas de e-commerce. Com os vários acordos ora em negociação bilateral e regionalmente, tudo indica que esse número ainda crescerá bastante nos próximos anos.

Em análise feita pela OMC focada em 63 acordos regionais com capítulos específicos sobre comércio eletrônico, entre eles o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CTPP), seriam os países desenvolvidos que estariam a “puxar” aquelas negociações. Estados Unidos, Cingapura, Austrália, Canadá e Coreia do Sul são os países que mais alavancaram o tema de e-commerce em ARCs. Muitos países em desenvolvimento hoje têm acordos com essas provisões à reboque da demanda de países desenvolvidos para fechar negociações.

Os temas que compõem os acordos variam bastante, não apenas em conteúdo, como, também, em profundidade dos compromissos. A maior parte inclui cláusulas de não-tributação de transmissão eletrônica, cooperação, proteção de dados pessoais e do consumidor. Em menor escala, mas também frequente, estão temas de aplicabilidade das regras da OMC ao comércio eletrônico, comércio sem papel, tratamento não-discriminatório de produtos digitais e autenticação eletrônica. Questões mais controversas, como localização de servidores e código-fonte, estão presentes apenas em acordos mais recentes. O formato desses acordos também varia — muitos têm capítulos separados para comércio digital, enquanto outros preferiram deixar o tema no capítulo de serviços.

Acordos ainda em negociação ilustram bem as posições dos países em relação ao tema de comércio digital. Na proposta apresentada na OMC ou nos textos em negociação com México e Chile, já é possível ver com clareza os pontos importantes na negociação para os europeus: a proibição da imposição de impostos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e o banimento de procedimentos de autorização focada apenas em serviços online “por motivos protecionistas” (colocado como princípio de não-autorização prévia), e o aceite de contratos e assinaturas eletrônicas.  O bloco ainda negocia o tema com o Mercosul, e o capítulo de comercio eletrônico ainda requer alguma convergência e a definição de exceções à aplicação das provisões.

O que se vê nesse e em outros acordos recentes é reflexo do avanço da União Europeia na promoção da economia digital no bloco, como o “mercado digital comum”, e na regulação sobre várias questões cruciais para a economia digital, como a proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais (autenticação eletrônica, por exemplo).

Ao colocar a proteção de dados pessoais como “não negociável” em acordos de comércio, por se considerar um direito fundamental, a Comissão Europeia retira o tema de pauta das negociações bilaterais. A regulação sobre proteção de dados europeia (GDPR, na sigla em inglês), que entra em vigor dia 25 de maio, responde à demanda dos cidadãos europeus por mais transparência sobre quem tem seus dados, de onde eles vieram e com quem eles são compartilhados. Ao mesmo tempo, o bloco tem trabalhado em provisões para evitar medidas protecionistas sobre o fluxo de dados entre fronteiras, ao tempo que garantam a proteção e a privacidade dos dados no patamar colocado pelas novas regras no bloco.

Apesar de terem se retirado das negociações do Acordo Transpacífico (originalmente TPP e agora CTPP) como um dos primeiros atos oficiais da administração Donald Trump e de terem apresentado diversas críticas à OMC em relação a comércio eletrônico, os Estados Unidos vêm firmando posição naquela Organização e destacando que o comércio digital segue como essencial para a economia do país, o que está em linha com a condição de sediar muitas das maiores e mais influentes empresas de economia digital, incluindo plataformas de e-commerce.

A posição dos americanos na OMC seguiu em defesa do livre fluxo de informações e de transferência de dados entre fronteiras, não exigência de localização de servidores e proibição do bloqueio de conteúdo online. Advoga-se pela não tributação sobre transmissões eletrônicas, não-discriminação no tratamento de produtos digitais, proteção a código-fonte e não restrição à encriptação. Trata-se de um claro esforço para avançar as discussões sobre comércio eletrônico na Organização e reduzir as possibilidades de barreiras digitais aos fluxos de dados, algo vital para o atual modelo de negócios das empresas super-hegemônicas americanas de tecnologia digital.

Já no continente africano, o tema do comércio eletrônico é dominado por um pequeno grupo de países, entre eles Egito, África do Sul, Gana e Etiópia. A região tem baixíssima participação no comercio digital global (inferior a 1%) muito em virtude dos grandes desafios que a região enfrenta, como acesso à eletricidade, tecnologia da informação e comunicação (TIC), logística, baixo uso de métodos de pagamentos eletrônicos, pouco acesso a cartão de crédito, fraca penetração bancária e falta de conhecimento sobre TI e habilidades ligadas a e-commerce, tanto de empresas como de consumidores.

O tema de comércio eletrônico não está na mesa nos acordos que a região da África está negociando, como é o caso da Zona de Livre Comércio Continental (CFTA, na sigla em inglês). No âmbito multilateral, o Grupo Africano, que não é composto por todos os países do continente, durante as reuniões pré-Ministeriais de Buenos Aires, mostrou grande preocupação com as implicações de novas regras em e-commerce e com a potencial restrição que tais regras colocariam sobre o espaço para políticas industriais digitais voltadas ao desenvolvimento da região. Uma adoção de regras “prematuras” poderiam reduzir ainda mais, na visão do bloco, as possibilidades futuras de catching up de crescimento econômico e tecnológico.

A Índia também está entre os países com ressalvas quanto ao avanço nas negociações em e-commerce na OMC. O país tem tido forte expansão do mercado de comércio eletrônico e da penetração da internet e de smartphones e tem receio de que as novas regras multilaterais prejudiquem o crescimento das plataformas de e-commerce nacionais. No último documento circulado pelo país na OMC, posicionaram-se contra o avanço nas negociações de regras em comércio eletrônico, tal como o Grupo Africano. O país assinou apenas um acordo que cobre o tema de comércio eletrônico, provavelmente por demanda da contraparte cingapuriana.

Em lado oposto, não há região mais promissora no comércio eletrônico que o leste da Ásia. A região já tem alguns dos gigantes globais da internet e do e-commerce e ao menos 1 de cada 3 novos unicórnios são daquela região. A região tem um mercado digital pujante, com forte aumento anual no número de consumidores. A China, sozinha, é, hoje, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo, respondendo por 40% das transações globais. Nessa condição, a região tem uma postura diferente da de outros países em desenvolvimento. Afinal, a região se posiciona para ser parte do mainstream da indústria global do e-commerce e da economia digital. Ainda que o tema não se reflita em números de acordos assinados, já é possível ver apontando no horizonte as demandas que o país tem para seguir avançando na provisão de bens e serviços digitais para os mais diversos mercados.

Já o Brasil segue negociando acordos com União Europeia, Chile, México, Índia, Canadá e Associação Europeia de Livre Comércio (EEFTA) e tem mandato negociador já aprovado para negociações com a Coreia do Sul e conversas ainda preliminares com Cingapura. O país segue com participação ativa nas negociações na OMC, seguindo o indicado na Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico. Com o crescimento do interesse de países desenvolvidos por provisões em comércio eletrônico, alguns desses acordos passam a repercutir aqueles anseios. Na condição de país essencialmente “usuário” das tecnologias digitais, o Brasil tem sido cauteloso nas negociações de forma a resguardar espaço de política. O país tem colocado na mesa a necessidade de associar o e-commerce a preocupações de desenvolvimento econômico. Afinal, tem ficado cada vez mais evidente a tendência de concentração do mercado de e-commerce em nível global em torno de um pequeno punhado de grandes plataformas, bem como a distinção entre os benefícios de se “usar” e-commerce e os benefícios de se “desenvolver, distribuir e gerenciar” plataformas de e-commerce, o que é prevalecente para alguns poucos países. De fato, já se identificam evidências de que o hiato entre esses dois grupos de benefícios poderá ser a fonte fundamental de aumento da desigualdade de renda entre países.

Pela análise dos acordos em andamento, já é possível ver convergência para alguns temas centrais, que devem acabar sendo os principais assuntos a terem resultados em um eventual acordo multilateral sobre o tema. A grande presença do comércio digital em acordos regionais e bilaterais é uma clara resposta à ânsia dos países em avançar na agenda antes que mais barreiras ao comércio digital e ao fluxo de dados sejam aprovadas em nível doméstico.

Os países que têm maior receio quanto ao avanço da economia digital e do poder das mega-empresas digitais sobre as suas economias muitas vezes têm dificuldades em colocar a sua posição sobre um tema cujo alcance ainda não está claro. Acordos de comércio apresentam inúmeras frentes de negociação, sendo difícil consolidar posição em economia digital frente às demandas prementes e bem mapeadas em bens,  investimentos, regras de origem e compras públicas, por exemplo.

Orquestrar todos os interesses é matéria difícil quando se tem maior conhecimento e tactibilidade nos efeitos das provisões para o comércio entre os potenciais parceiros em temas tradicionais. Todavia, cada vez mais, os países atentam-se para a importância de se olhar com cautela para o que os capítulos de comércio eletrônico contemplam, o que torna ainda mais importante o engajamento em fóruns multilaterais de forma a manter espaço suficiente para políticas públicas digitais que permitam aos países, em especial os em desenvolvimento, otimizar os benefícios da revolução digital.

Câmbio: a falsa discussão sobre o verdadeiro problema

Elon Musk, o visionário (e bilionário) fundador do PayPal, da Tesla Motors e da SpaceX, é considerado um verdadeiro gênio. Questionado pelo Curador do TED Talks, Chris Anderson, em um dos eventos da marca, sobre a fonte de sua genialidade, Elon Musk respondeu o seguinte:

“Well, I do think there’s a good framework for thinking. (…) that is, boil things down to their fundamental truths and reason up from there, as opposed to reasoning by analogy (…), which essentially means copying what other people do with slight variations.”

Possivelmente, esse é o melhor conselho para abordarmos questões centrais do Brasil, e aqui nos dedicaremos ao câmbio: à ideia de que os países cambiam bens e serviços (muito mais bens do que serviços, e essa é uma observação que o leitor não deve esquecer para o resto da leitura) e o que condiciona que eles sejam cambiados de uma maneira e não de outra (por uma taxa, e não por outra).

“Boiling things down to their fundamental truths…”

A intuição mais fundamental sobre câmbio é a relação entre os preços de produtos comercializáveis e os preços de produtos não-comercializáveis em uma economia. Repare: a Carros S.A. vende carros no mundo todo e concorre com outras montadoras; o preço dos carros converge em todos mercados; a diretoria está decidindo se constrói sua nova fábrica em Springfield ou em Pindorama. Numa reunião estratégica, um dos diretores diz:

“Não podemos errar na escolha do local de investimento! Uma vez localizados, não poderemos cambiar as estradas esburacadas por estradas boas; não poderemos cambiar a energia elétrica vacilante por energia estável; quando formos exportar nossos carros, não poderemos cambiar o porto de Anjos pelo porto de Los Santeles. Não poderemos também escolher sob qual sistema tributário operaremos e em qual justiça vamos pelear.”

Uma vez que a Carros S.A. venderá seus carros pelo mesmo preço em todos lugares do mundo (lei do preço único), a decisão de investimento entre Springfield e Pindorama será determinada pela relação preço/qualidade daquele conjunto de fatores não-comercializáveis que afetam diretamente o sucesso da sua fábrica, mas que são próprios de cada lugar.

A noção de paridade está implícita nessa alegoria. A Carros S.A. está investigando se condições de mercado imóveis entre territórios afetam de maneira idêntica ou não suas operações fabris. Se não forem idênticas, um dos territórios demandará mais esforço do que o outro para que a Carros S.A. produza a mesma coisa.

“… and reason up from there…”

É muito frequente a análise da relação entre a taxa de câmbio e os preços relativos internos de uma economia pela abordagem dos diferenciais de produtividade entre setores comercializáveis e não-comercializáveis. Paul Samuelson e Bela Balassa estudaram esse assunto nos anos 60 e demonstraram que o mercado de câmbio equilibrava a demanda e a oferta de divisas estrangeiras em consonância com a corrente de comércio exterior – evidentemente, com os setores comercializáveis.

Como havia nítidas diferenças de produtividade entre os setores comercializáveis dos diversos países, isso explicaria porque os preços relativos de setores não-comercializáveis eram tão discrepantes entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Uma vez que o setor comercializável dos desenvolvidos era mais produtivo que o setor comercializável dos países em desenvolvimento, o mercado de trabalho em cada grupo de países gerava uma convergência específica de salários pagos entre todos os setores da economia. Isso explicava por que serviços idênticos presentes em todo mundo, de qualidade similar, pagavam, em paridade poder de compra (PPC), salários tão díspares, e por que a taxa de câmbio raramente refletia o equilíbrio de oferta e demanda de moeda estrangeira que propiciasse o mesmo poder de compra de bens e serviços em países distintos.

William Baumol, também nos anos 60, chegou à mesma conclusão que seus colegas, porém por outros caminhos e tentando entender outro problema. Baumol previa uma crise de urbanização como consequência dos diferenciais de evolução de produtividade entre bens (comercializáveis) e serviços (não-comercializáveis). As elevações salariais do setor comercializável eram antecedidas por elevações proporcionais de produtividade – decorrentes de avanços tecnológicos –, o que não ocorria no setor não-comercializável, que tendia a uma estagnação de produtividade em função da dificuldade de substituição de trabalhadores por máquinas. Baumol percebeu que quanto maiores os avanços tecnológicos do setor de bens, maiores seriam os custos (ganhos salariais sem contrapartida de produtividade) no restante da economia.

“… as opposed to reasoning by analogy.”

Os ganhos de produtividade ocorrem no setor comercializável da economia, mas sua gênese reside em um conjunto de condições e mercados majoritariamente não-comercializáveis. Esqueçamos aqui os serviços de consumo familiar (os serviços permanentemente usados como exemplo, como cabeleireiro, encanador, etc.) e foquemos nos serviços empresariais e em condições sistêmicas de competitividade (infraestrutura e instituições) e rememoremos o caso da Carros S.A. Se todos os serviços e infraestruturas que gravitam em torno do setor industrial são paritariamente mais caros num país do que em outro (mesmo preço, mas qualidades distintas, ou mesma qualidade com preços distintos), a taxa de câmbio PPC (ou câmbio real) será estruturalmente desfavorável a empreendimentos no setor industrial.

Cada vez mais ganha espaço a teoria da complexidade econômica na explicação do desenvolvimento econômico. Quanto mais diversa e complexa uma matriz produtiva, maior a renda per capita das nações. Ou seja, quanto mais variados e sofisticados os produtos e serviços que uma sociedade é capaz de fazer, mais produtiva ela é e, portanto, mais desenvolvida. Afinal de contas, o que determina a capacidade de uma sociedade produzir uma variedade de bens e serviços sofisticados?

As capabilities – ou competências – empresariais e tecnológicas determinam a sofisticação e a variedade de bens e serviços produzidos por uma economia. Infelizmente, essas competências são tácitas, demandam muito tempo e/ou muito esforço para se desenvolverem, e não são facilmente transplantáveis entre os povos.

Voltemos à reunião estratégica da Carros S.A., na qual outro diretor argumentou o seguinte:

“Devemos observar muito atentamente os preços que nos serão cobrados, pois não se trata apenas de ter serviços bons ou ruins, mas a que preço vamos adquirí-los. Minha equipe observou que os serviços de engenharia e automação de Springfield nos custarão $ 1,2 milhões ao ano, enquanto em Pindorama os mesmíssimos serviços custarão $ 1 milhão. Contudo, a qualidade dos serviços de Springfield nos permitirá produzir 13 mil carros, enquanto a qualidade dos serviços de Pindorama nos permitirá produzir 10 mil carros. Assim, em Springfield, cambiaremos $ 92,3 por carro, enquanto em Pindorama cambiaremos $100,0 por carro. Meu voto é por Springfield!”

Então perceba a sutileza de uma análise sobre câmbio. Balassa, Samuelson e Baumol, ao exemplificarem suas teses com serviços de consumo familiar, implicitamente estão estabelecendo padrões idênticos de qualidade (e produtividade): cortar cabelo é a mesma coisa em qualquer lugar do mundo, e, portanto, basta observar o preço real do corte de cabelo para obter a informação de apreciação ou depreciação cambial de uma economia. Mas se exemplificarmos essas teses com consumo intermediário de serviços empresariais por empresas industriais, imediatamente temos que trazer a qualidade/produtividade para entender se o preço é caro ou barato, ou se o câmbio dessa economia está apreciado ou depreciado.

O câmbio real no Brasil é sobrevalorizado porque temos um setor de serviços que oferta soluções numa razão preço/qualidade superior ao de vários de nossos concorrentes. Nosso setor industrial fica estrangulado porque concorre aqui e lá fora com preços determinados globalmente, mas depende de serviços e infraestrutura prestados localmente. Então, se quisermos nos reindustrializar, só temos duas saídas: ou desvalorizamos o câmbio nominal na marra, ou criamos uma política industrial focada na criação de capabilities empresariais e tecnológicas em torno de um competitivo setor de serviços industriais.

Rafael Leão é Mestre em Economia pela UnB e integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Paulo Gala é Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EESP) de São Paulo, onde leciona desde 2002. Autor do blog paulogala.com.br

Um acordo de e-commerce no Sistema Multilateral de Comércio é possível?

A economia digital tem transformado rápida e radicalmente as formas que as pessoas se relacionam, a maneira como os países comercializam e até mesmo os meios de produção das empresas. A 4ª Revolução Industrial tem como base a economia digital e já está em curso.

Apesar de constantes referências ao tema “Comércio Eletrônico” na Organização Mundial do Comércio (OMC), o tema está longe de ser novo na Organização. Diante das evidências de que o comércio eletrônico se expandia rapidamente e criava novas oportunidades para o comércio internacional, os ministros presentes à 2ª Conferência Ministerial, realizada em Genebra em 1998, adotaram a Declaração sobre o Comércio Eletrônico Global.

Tendo em vista que o assunto, à época, ainda se encontrava em estágio incipiente, foi estabelecido um programa de trabalho (WTO Work Programme on Electronic Commerce), com o objetivo de examinar os aspectos comerciais do tema. As discussões do programa de trabalho levaram a uma definição ampla de comércio eletrônico. A definição, adotada há 20 anos, se aproxima do que hoje se conhece como economia digital: produção, distribuição, marketing, venda ou entrega de bens ou serviços por meio eletrônico.

Ao longo dos 20 anos de discussão, o Grupo de Trabalho gerou poucos resultados significativos, sendo o mais relevante deles a moratória de não imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.

Desde meados de 2015, de certa forma impulsionados pela Declaração Ministerial de Nairóbi, os Membros se engajaram mais ativamente em discussões sobre o tema. A participação ativa das delegações gerou a Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico, em Buenos Aires, em que 70 Membros concordaram em iniciar trabalhos com vistas a alcançar possíveis futuras negociações em aspectos comerciais do comércio eletrônico.

Panorama do tema e principais players

A falta de avanços na formulação de regras para o tema na OMC, claro sintoma do impasse enfrentado na frente negociadora da Organização, abriu espaço para avanço do rule making na área por parte de Acordos Regionais de Comércio. De acordo com dados do RTA Database da OMC, pelo menos 79 acordos regionais contam com um capítulo dedicado a comércio eletrônico ou artigos dedicados ao tema.

Uma interessante característica dessa proliferação de provisões de comércio eletrônico em acordos regionais é a diferença de profundidade e abordagem do tema. Uma análise didática dessa “e-spaghetti bowl” de acordos regionais e dos interesses por parte dos dispositivos neles incluídos leva a uma separação em três modelos/players principais: Estados Unidos, União Europeia e China.

Os Estados Unidos, país pioneiro no mercado e detentor das principais gigantes da tecnologia (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Netflix, entre outras) têm o claro interesse de manter o mercado digital aberto, de maneira que suas empresas possam continuar usufruindo cada vez mais dos ganhos de escala característicos desse mercado, já que os custos marginais de clientes adicionais são praticamente zero. Esse interesse se reflete nos acordos regionais firmados pelo país (ou fortemente influenciados, no caso do CPTPP). Dessa maneira, o template de acordos regionais dos EUA conta com profundas regras de comércio digital, como livre fluxo de dados, proibição de exigências de localização de servidores, tratamento de código-fonte e não imposição de direitos aduaneiros em transmissões eletrônicas.

A União Europeia (UE), apesar de partilhar da posição dos EUA com relação ao princípio do livre mercado, tem se destacado na preocupação com a sua regulação doméstica. O bloco tem se dedicado à estratégia do Mercado Único Digital, que busca garantir acesso a atividades online para indivíduos e empresas sob condições de competição justa, ao mesmo tempo em que aborda questões como privacidade de dados, direitos de copyright, tributação de operações realizadas no ambiente digital, etc. Em 2018, uma série de medidas regulatórias no mercado digital europeu entrarão em vigor, entre elas a General Data Protection Regulation, que aborda questões como ampliação do escopo de jurisdição na esfera online, penalidades para plataformas online que não cumpram as regras, disciplinas para portabilidade de dados visando questões concorrenciais, etc. Essa posição é refletida nos acordos firmados pelo bloco que, comparados ao template americano, são muito mais leves com relação a regras ao mercado digital. De uma maneira resumida, os acordos firmados pela UE basicamente consagram a não imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e, no restante do capítulo, colocam mais ênfase no diálogo regulatório entre as partes (como o CETA, por exemplo).

A China, por sua vez, tem defendido soberania sobre o seu cyber espaço e se protegido da abertura do mercado digital por trás da Grande Muralha Digital (The Great Firewall of China). Dessa maneira, e aproveitando-se do enorme mercado doméstico à sua disposição, a China consagrou criar um universo digital paralelo, com empresas chinesas operando no mesmo espaço das conhecidas empresas ocidentais, como AliBaba, Baidu e Tencent (WeChat). A Lei de Segurança Cibernética chinesa, em vigor desde junho de 2017, contém 79 artigos que contêm três posições centrais[1]: (i) dados físicos obrigatoriamente armazenados na China continental; (ii) inspeções obrigatórias de segurança em equipamentos antes de sua instalação; e (iii) regulações de retenção de dados e assistência de law enforcement obrigatória. Apesar de o país ter firmado alguns acordos regionais com disciplinas de comércio eletrônico, tome-se o Acordo entre China e Austrália como exemplo, as obrigações neles contidas não vão muito além das já previstas no âmbito da OMC, o que reflete a estratégia do país.

Desdobramentos recentes na OMC

Após a assinatura da Declaração Ministerial conjunta, as discussões do tema na OMC têm prosperado. Em 2018 já foram realizadas duas reuniões específicas para o tema e já há previsão de outras três nos próximos meses (maio, junho e julho). Ademais, 9 documentos já foram circulados contendo propostas para o futuro das discussões na Organização de autoria dos seguintes países: Argentina, Colômbia, e Costa Rica; Nova Zelândia; Brasil; Japão; Estados Unidos; Singapura; Japão; Rússia; e Taipé Chinês.

As propostas têm conteúdo e mostram apetite dos países. Em especial, a proposta americana é robusta e demonstra engajamento do país para discussão do tema. Levando em consideração as recentes posições do país com demais temas no sistema multilateral, esse posicionamento sugere prestígio do tema.

Contudo, o vale existente entre as posições dos principais players da economia digital, aliado à questão do desenvolvimento e do hiato digital, sugere que não há um caminho óbvio e único a percorrer. De todo modo, é válida a premissa de que, quanto antes os países encararem a discussão, menores serão os custos econômicos envolvidos.

O fato é que a revolução digital já está em curso e não pausará à espera de consenso entre os Membros da OMC. Ademais, a negociação de um acordo ambicioso em comércio eletrônico e economia digital mostraria que a Organização é capaz de se modernizar e apresentar uma resposta aos novos desafios da economia e comércio mundial.

A proposta brasileira traz uma boa abordagem para superar o impasse que pode ser estabelecido diante de posições tão divergentes. Além de buscar organizar todos os temas que merecem ser discutidos na Organização, a proposta apresenta uma divisão do tema em blocos, facilitando a compreensão da vasta gama de assuntos e permitindo flexibilidade na adoção de regras. Dessa forma, os Membros poderiam aceitar compromissos de uma maneira taylor-made: países de menor desenvolvimento relativo, por exemplo, podem participar de todas as discussões, mas optar por adotar apenas compromissos leves de comércio eletrônico, enquanto países que assim desejem podem estabelecer e aderir compromissos profundos relacionados à economia digital.

Dificuldades existem, mas o fato é que os Membros da OMC dispõem de oportunidade, motivo e engajamento para o lançamento de negociações oficiais de comércio eletrônico. Resta saber se haverá consenso para seguir adiante. Ao que tudo indica, saberemos em breve os próximos passos dessas discussões.

[1] “Começaram as guerras no comércio digital: delineando os campos de batalha regulatória”. Dan Ciuriak, Maria Ptashkina. Pontes, volume 14, número 1 – Março 2018.

Aproximação Mercosul – Aliança do Pacífico e o Comércio de Serviços

Já se disse, em relação aos países vizinhos do Brasil, que a opção de se integrar é destino, tendo em vista a proximidade geográfica, a longa coexistência não conflitiva e a proximidade dos padrões de consumo.

Cabe investigar se os países da região são “parceiros naturais”.

A literatura econômica tem, entre muitos outros, um debate sobre como identificar um “parceiro natural”, com quem um país possa negociar tratamento preferencial, em termos comerciais e outras dimensões econômicas[1].

São candidatos imediatos os principais parceiros comerciais (aqueles com maior peso enquanto destino das exportações) ou com fluxos bilaterais de investimento direto mais intenso, os países geograficamente mais próximos, as economias mais estáveis, os países com maior poder econômico ou aqueles com nível similar de desenvolvimento econômico, e aqueles que possibilitem um potencial de exploração de diferenciação produtiva vertical, em paralelo a vantagens comparativas tradicionais.

A lista de variáveis a considerar pode ser extensa. Idealmente, seria um “parceiro natural” aquele país que correspondesse à maior parte desses critérios.

Não é claro, contudo, que a condição de “parceiro natural” seja facilmente identificável, ou mesmo possível de ser cumprida. Talvez o exemplo mais óbvio seja o fato de que para diversos países a maior proximidade com uma economia desenvolvida não corresponde ao principal parceiro comercial. No caso dos países latino-americanos, a primeira condição seria claramente atendida pelos Estados Unidos, enquanto a segunda corresponde cada vez mais à China. Qual das duas economias seria o “parceiro natural” dos latino-americanos? Difícil dizer.

Esse tipo de consideração pode ser útil para o debate sobre a aproximação entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico. Será possível identificar num desses dois grupos de países o “parceiro natural” do outro grupo?

Independentemente da discussão sobre se os países da Aliança do Pacífico seriam “parceiros naturais” do Mercosul, existem alguns argumentos que podem ser considerados em prol de maior aproximação entre os dois grupos de países.

Um primeiro argumento é aritmético. Se ocorre desvio de comércio como resultado de um processo de integração, quanto maior o número de países envolvidos em um mesmo processo menor a probabilidade de que ocorra desvio. Assim, a união dos oito países provavelmente promoveria mais criação que desvio de comércio do que no caso dos dois grupos isoladamente.

O segundo argumento é igualmente trivial. Poder contar com acesso a um mercado ampliado sem barreiras permite aproveitar as economias de escala em diversos setores.

Um terceiro argumento está relacionado com o chamado “efeito aprendizagem”. As empresas de um dos grupos, sobretudo aquelas de menor porte, poderão expandir a produção e exportação para o mercado regional e a partir daí amadurecer a capacidade de competir em mercados mais competitivos.

Quarto, cada país isoladamente tem dificuldade em afetar suas relações de troca. Em conjunto, contudo, um grupo de países pode pretender exercer poder monopólico. Isso será ainda mais verdadeiro quanto maior o tamanho desse grupo de países.

Quinto, há evidência empírica abundante indicando que boa parte da competitividade das exportações de produtos industriais por parte dos países do Sudeste Asiático, da União Europeia e dos países da América do Norte é influenciada pelos processos produtivos em cadeia.

Em Baumann/Ng (2012) foi mostrado que a intensidade do comércio regional em bens de produção é claramente associada a um melhor desempenho. Comparando-se as experiências de duas décadas da América Latina e do Sudeste Asiático fica claro que mesmo com a variação nos termos de intercâmbio beneficiando em nível recorde as economias da primeira região e punindo fortemente as da segunda, estas foram capazes não apenas de crescer mais e exportar mais, como também reduzir a distância entre elas. Resultado praticamente inverso ao experimentado na América Latina, no mesmo período.

Por analogia, pode-se supor que a promoção de complementaridade produtiva – ao menos entre os países da América do Sul, uma vez que a distância geográfica em relação ao quinto membro da Aliança, o México, pode ser um complicador nesse sentido – poderia contribuir para um melhor desempenho das exportações de produtos industrializados por parte dos países da região.

O comércio existente entre os dois grupos é expressivo (próximo a 1/3 das transações no âmbito da ALADI), e a composição dos fluxos de comércio entre os dois grupos tem participação significativa de produtos com grau de elaboração (portanto valor adicionado) mais pronunciado do que se observa no comércio extra-regional.

Do ponto de vista comercial, as negociações no âmbito da ALADI já contribuíram bastante para o livre-comércio entre os países membros. Restam, evidentemente, numerosos exemplos de barreiras não-tarifárias no comércio regional, e há pouca dúvida sobre as restrições impostas pela qualidade – ou mesmo inexistência – de infraestrutura, entre os membros de cada um desses grupos de países e – ainda mais – entre os dois grupos.

Mas a análise do potencial de integração entre os dois blocos não deveria se limitar aos fluxos de mercadorias. Os processos produtivos em todas as partes são cada vez mais intensivos em serviços de tipos variados. Cabe, portanto, uma digressão sobre esse comércio, para identificar o tipo de especialização dos países membros dos dois grupos em suas exportações de serviços.

As exportações totais de serviços indicam trajetórias um tanto distintas. Em 2010 as exportações totais de serviços por parte dos países do Mercosul eram da ordem de US$ 47 bilhões, e nos seis anos seguintes tiveram crescimento de 5%, atingindo US$ 50 bilhões em 2016[2].

No início do período, as exportações totais de serviços por parte dos países da Aliança do Pacífico somavam US$ 35 bilhões, ou 70% do exportado pelo Mercosul.

Em 2016 as exportações de serviços pelos países da Aliança alcançavam US$ 48 bilhões, próximas das do Mercosul, com um crescimento de não menos que 37%. Esse desempenho se deveu, sobretudo, ao desempenho mexicano, cujo valor exportado total cresceu 58% no período, atingindo, em 2016, quase ¾ do total exportado pelo Brasil.

Ao se considerar a composição dos fluxos de exportação de serviços, contudo, em cindo dos oito países nos dois grupos há predominância (mais da metade do valor total transacionado) de viagens (pessoais e de negócios). Esse dado, isoladamente, sugere que a margem para a complementaridade em serviços é limitada.

São destaques (Tabela 1) a Argentina, o Brasil e o Chile, com os dois primeiros apresentando parcela significativa de “outros serviços empresariais” (serviços empresariais, profissionais e técnicos, e serviços jurídicos, contábeis, de assessoramento administrativo e relações públicas) e o Chile, com destaque para transportes (sobretudo transporte marítimo). Nesses casos, as perspectivas para uma integração parecem mais promissoras.

De fato, a Matriz de Insumo-Produto para a América do Sul, estimada pelo IPEA e a CEPAL, com dados para o ano de 2005, indica a existência, embora ainda incipiente, de alguma integração entre exportações de serviços – sobretudo serviços empresariais – de alguns dos países sul-americanos e uns tantos setores produtores de mercadorias nos países vizinhos. Se a complementaridade entre setores produtores de serviços parece algo distante, a julgar pelos dados da Tabela 1, a interação entre serviços e produção de mercadorias já é uma pequena realidade, ao menos na América do Sul.

Um tema que merece análise mais detalhada, além do permitido por este espaço. De todos modos, algo é possível ilustrar, a partir de coeficientes selecionados da referida Matriz.

A Tabela 2 mostra os indicadores relativos a alguns dos fluxos de exportações de serviços mais expressivos entre países dos dois grupos. Desnecessário lembrar que, por ser a matriz focada nos países sul-americanos, não há informação correspondente ao México.

Segundo essa Tabela, o intercâmbio regional em serviços compreende tanto fluxos de serviços de um país para outros tipos de serviços em outros, como – o que é mais notável e promissor, do ponto de vista de potencial para complementaridade produtiva – serviços que são exportados para viabilizar atividades em setores produtores de mercadorias.

A julgar pelos dados da Matriz para 2005, o país na região mais ativo na exportação de serviços no âmbito regional é a Argentina. Não são mostrados na Tabela 2 alguns outros fluxos, associando – com valores não muito desprezíveis – “outros serviços” argentinos exportados para setores como mineração, celulose, borracha, máquinas e equipamentos, celulose e papel e produtos químicos e farmacêuticos, no Chile. De fato, o eixo Argentina-Chile parece ser o mais ativo, nesse sentido.

O Brasil aparece como parcialmente “integrado” com os países da Aliança do Pacífico, no sentido de ser exportador (embora em pequena escala) mas também importador de serviços do Chile e também da Colômbia.

A título de consideração final, portanto, há margem para uma ampliação significativa das transações entre o Mercosul e as economias que compõem a Aliança do Pacífico, também no que se refere ao comércio de serviços.

E mais: foi apresentado um conjunto de argumentos que apoiam atitudes mais proativas no estímulo a essa intensificação de relações comerciais, uma vez que ela muito provavelmente possibilitaria, em princípio, margem para apropriação de ganhos de escala, aprendizado na atividade exportadora e maior competitividade dos produtos exportados, se implicar a exploração de atividades de menor custo e maior complementaridade produtiva.

A racional da busca de competitividade pela via da complementaridade daria um Norte ao processo de integração regional, hoje carente de objetivos claros e perpetuado pelo custo implícito que poderia derivar da interrupção do processo negociador herdado das últimas décadas.

Mais do mesmo em termos de negociações no âmbito regional não significa avançar em direção clara, nem tampouco – como mostram à saciedade os indicadores do comércio regional latino-americano até aqui – melhora das condições de inserção internacional.

 

REFERÊNCIAS

R. Baumann, F. Ng (2012), Regional productive complementarity and competitiveness, International Trade Journal, vol. 26, No.4

J. Bhagwati (1993), Regionalism and multilateralism: an overview, em J. de Melo, A. Panagariya (orgs), New dimensions in regional integration, Cambridge University Press, Cambridge

P. Krugman (1991), Is bilateralism bad?, em E. Helpman, A. Razin (orgs), International trade and trade policy, Cambridge, MA, MIT Press

P. Krugman (1991a ), The move towards free trade zones, em Federal Reserve Bank of Kansas, Policy implications of trade and currency zones, Kansas City

L. Summers (1991), Regionalism and the world trade system, em Federal Reserve Bank of Kansas, Policy implications of trade and currency zones, Kansas City

[1] Ver, a propósito, Krugman (1991), Krugman (1991a ), Summers (1991) e a crítica a esse conceito em Bhagwati (1993).

[2] Dados da ALADI.

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