Economia de Serviços

um espaço para debate

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Breve panorama sobre o setor de comércio no Brasil

O comércio cria valor ao fornecer conveniência e praticidade aos consumidores. No atacado ou a varejo, é um segmento do setor de serviços, uma atividade definida pela compra para revenda, sem transformação significante, de bens novos e usados. O comércio atacadista presta serviços que são consumidos predominantemente pelas empresas enquanto o varejista fornece serviços consumidos predominantemente pelas famílias, embora ambos sejam “serviços tradicionais” (Eichengreen e Gupta, 2009; OCDE) e tipicamente de custos (Arbache, 2014).

O setor de comércio ganhou importância econômica nas últimas duas décadas, uma vez que sua participação no Produto Interno Bruto (PIB), que se manteve relativamente estável e em torno de 8% entre 1996 e 2002, subiu continuamente até atingir 13,6% em 2014, número em torno do qual permaneceu no triênio seguinte (Figura 1). Ademais, o valor adicionado pelo setor acelerou mais rapidamente que todos os demais setores econômicos entre o final da década de noventa e o início da crise de 2015-2016 e, dentro do setor de serviços em geral, o comércio também foi o segmento que mais se destacou no período. Assim, considerando que o setor de serviços exclusive comércio manteve participação relativamente estável no PIB (61%), a relevância econômica que o setor de serviços como um todo ganhou nas últimas duas décadas – passando de cerca de 69% para 73% – pode ser atribuída principalmente ao crescimento do comércio atacadista e varejista.

Figura 1 – Participação dos setores econômicos no valor adicionado (%) – 1996 – 2017

Elaboração própria com dados das Contas Nacionais/IBGE.

Isso ocorreu porque o consumo privado foi o principal motor do crescimento econômico nos últimos anos. Vale notar que essa aceleração relativa do comércio é recente, uma vez que o segmento representou em torno de 30% do PIB de serviços entre as décadas de 1950 e 1970, caiu para pouco mais de 20% no início da década de 1980, chegou a 12% em 2000 e, em 2014, em razão do exposto, registrou 19% do PIB do setor de serviços no Brasil, conforme apresentado em Arbache (2014).

Em termos de participação no emprego, o comércio absorve cerca de 20% da mão de obra, possui uma taxa de informalidade no mercado de trabalho bastante elevada, mas em queda no período recente, assim como uma alta taxa de rotatividade. Estudos mostram que pelo menos até 2003 a incidência de relações informais no comércio se encontrava acima de 50% e foi de cerca de 30% em 2009, diminuindo o hiato setorial em relação a indústria, por exemplo. Ademais, entre 2000 e 2009, o comércio foi uma das atividades que se destacaram no aumento da participação do setor formal no valor adicionado total (Barbosa Filho e Moura, 2012; Amitrano e Squeff, 2016; Ramos e Ferreira, 2015).

Os dados da Pesquisa Anual do Comércio (PAC)[1] mostram que, em 2015, o Brasil tinha 1,6 milhão de empresas comerciais que geraram R$ 3,1 trilhões de receita operacional líquida e R$ 550,5 bilhões de valor adicionado bruto, e pagaram R$ 206,3 bilhões em salários, retiradas e outras remunerações a 10,3 milhões de trabalhadores. O segmento varejista destaca-se em termos de mão de obra (73%), número de empresas e unidades locais (80%), salários e outras remunerações (62%), e geração de valor adicionado (54%), e ainda responde por cerca de 45% da receita operacional líquida do comércio no Brasil. O comércio por atacado também gera atualmente em torno de 45% da receita, mas possui cerca de 17% da população ocupada e 12% das empresas, pagando pouco mais de 25% das remunerações e gerando 37% do valor adicionado. O comércio de veículos, peças e motocicletas perdeu relevância para os demais recentemente, ficando sua representatividade em torno de 10% do total nas principais variáveis em 2015. Em termos de distribuição geográfica, a região sudeste representou pouco mais de 50% de participação nas principais variáveis do comércio.

A estrutura da oferta no setor de comércio é complexa, em geral com inúmeras pequenas empresas atuando no varejo, tanto em ramos especializados quanto não-especializados, mas também há presença de grandes redes com maior poder de barganha sobre os fornecedores, como também pequenas, médias e grandes redes atuando no atacado. Em relação ao tamanho das empresas, existe uma heterogeneidade entre os segmentos. Por exemplo, as empresas com até 19 pessoas ocupadas em 2015 empregavam quase 60% do pessoal ocupado tanto nos segmentos de comércio de veículos, peças e motocicletas quanto no varejista, enquanto no atacado elas empregaram menos de um terço do total. O que se observa de padrão no atacado e no varejo em relação à faixa de pessoal é que a geração de emprego e a massa de remunerações está avançando menos rapidamente nas firmas menores (com até 19 pessoas ocupadas) do que nas demais. No comércio varejista, este fenômeno é observado também em termos de geração de receita e de valor adicionado.

Existe uma heterogeneidade também em relação às margens de comercialização, que é o resultado obtido pelo esforço de venda, deduzidos os custos de aquisição das mercadorias pelas empresas (Figura 2). Entre 2007 e 2015, houve crescimento da margem em 14 dos 16 segmentos a dois dígitos de classificação[2]. A análise mais detalhada (a quatro dígitos da CNAE) mostra que o comércio de combustíveis e lubrificantes é o que trabalha com a menor margem de todos os segmentos: as médias entre 2007 e 2015 foram de 8,4% no atacado (distribuição) e 16,7% no varejo (postos revendedores). Produtos farmacêuticos, eletrodomésticos e móveis ficam em torno de 60% e o comércio de artigos usados trabalhou na média com margem de 111,9% no período.

Figura 2 – Taxa de margem de comercialização (%) – 2007 – 2015

Elaboração própria com dados da PAC/IBGE.

Em síntese, a adoção de um modelo de crescimento via estímulo ao consumo levou o comércio a ganhar importância relativa no período recente, sendo ele um dos principais elementos a explicar o ganho de relevância do setor de serviços no PIB nas últimas duas décadas. O segmento é um grande demandante de mão de obra, ainda possui uma taxa de informalidade elevada, embora em queda, e uma alta taxa de rotatividade. A estrutura da oferta é heterogênea, as margens de comercialização são bastante distintas entre os segmentos, e observa-se que a geração de emprego e a massa de remunerações está avançando mais rapidamente nas firmas maiores.

Por fim, destaca-se que para as empresas comerciais prestarem seus serviços, elas demandam uma série de outros serviços ofertados por outras empresas e por profissionais autônomos. Em razão da revolução digital, mudanças estão fazendo surgir novas formas de negócios nos segmentos varejistas e atacadistas e ocasionando um aumento da importância relativa do setor dos serviços de valor na estrutura de custos das empresas comerciais. Conforme mostrado em post anterior, o e-commerce, por exemplo, tem crescido significativamente no mundo todo e 90% das transações são entre empresas (B2B). O aumento da relevância de serviços na produção de outros setores vem sendo chamado de “servicização” da economia (Arbache, 2014; European Comission, 2014; OECD, 2014) de modo que explorar de maneira adequada essa relação é estratégia fundamental para o crescimento econômico. Em um próximo post veremos a importância dos serviços como insumo intermediário das atividades comerciais e a heterogeneidade desse consumo entre os principais segmentos.

 

Referências Bibliográficas

ARBACHE, J. Serviços e competitividade industrial no Brasil. Confederação Nacional da Indústria (Org.) . CNI, 2014.

BARBOSA FILHO, F. H.; MOURA, R. L. Evolução recente da informalidade no Brasil: uma análise segundo características da oferta e demanda de trabalho. Texto para Discussão nº 17, IBRE/FGV, 2012.

EICHENGREEN, B., e GUPTA, P. The two waves of service sector growth. NBER. Working Paper, n. 14968, 2009.

EUROPEAN COMMISION. High-Level Group on Business Services – Final Report, 2014.

OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD Perspectives on Global Development 2014: Boosting Productivity to Avoid the Middle Income Trap. Paris, 2014.

RAMOS, L.; FERREIRA, V. Padrões espacial e setorial da evolução da informalidade no Brasil – 1001 – 2003. Texto para Discussão 1099. IPEA, Rio de Janeiro, 2005.

 

[1] Os segmentos empresariais do comércio brasileiro, no âmbito da PAC, são organizados e tabulados em três categorias distintas: a) Comércio de veículos automotores, peças e motocicletas; b)          Comércio por atacado; e comércio varejista.

[2] Exclusive representantes e agentes de comércio.

Microeconomia e concentração de mercados na economia digital

A lógica de compra de empresas por gigantescos grupos corporativos no setor da economia digital, a exemplo da Google, Youtube, Whatsapp, Amazon, Uber, AirBnB, e a emergência de concorrentes chineses, a exemplo do o Goojje, Youtubecn, Wechat, Aliexpress e DiDi Chuxing, revelam uma preocupação legítima da China em relação ao controle acionário de empresas que administram plataformas digitais. A aquisição de empresas por grandes grupos concentra as decisões e aumentaria o poder de mercado de determinado fornecedor. Esse poder é uma falha de mercado que gera ineficiências e conduz à emergência dos oligopólios e monopólios. Conforme a literatura tradicional econômica, o controle do mercado por poucos vendedores (mercado concentrado) traz ineficiência se comparado ao livre mercado. Essa lógica é bastante conhecida pelos economistas, que, em geral, a aplicam para comparar a concorrência perfeita à imperfeita.

O modelo a ser apresentado buscará aplicar a lógica mais elementar do monopólio a uma situação de comércio internacional. Para isso, fará uso do modelo básico que simulará dois monopólios idênticos atuando em dois países também idênticos, em situação de autarquia. Em seguida, utilizando a hipótese de que uma empresa adquiriu a outra, em situação de comércio internacional, sem custos logísticos, buscará analisar as variações dos excedentes sociais e do lucro das empresas.

O modelo a ser apresentado buscará estender o conceito de monopólio apresentado nos livros de economia em situação de comércio internacional (GREEN & MAS-COLLEL, 1995, p.384). O objetivo nesse primeiro exercício é buscar identificar as somas dos excedentes dos produtores e dos consumidores – que juntos compõem o bem-estar social.  O modelo usa uma curva de demanda linear e supõe uma curva de oferta igualmente linear conforme as equações abaixo:

Demanda dos consumidores do País A:

Onde:

QDA: Quantidade demandada do produto no País A

PDA: Preço do produto ofertado no País A

b: Quantidade demandada do produto em caso de preço nulo.

a: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

Oferta do monopolista do País A:

Onde:

QOA: Quantidade ofertada do produto no País A

POA: Preço do produto ofertado no País A

c: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

Suporemos, para fins de simplificação, que o País A é idêntico ao País B, o que resulta em curvas de demandas essencialmente idênticas. Ademais, vamos supor que os monopólios são iguais, e tem custos idênticos, o que nos leva à formação de curvas de ofertas iguais.

Demanda dos consumidores do País B:

Oferta do monopolista do País B:

QDB=QDA=Q: Quantidade demandada do produto no País B

PDB=PDA=P: Preço do produto ofertado no País B

b: Quantidade demandada do produto em caso de preço nulo.

a: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

QOB=QOA: Quantidade ofertada do produto no País A

POB=POA: Preço do produto ofertado no País A

c: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

Para fins de simplificação dos cálculos algébricos, vamos considerar:

a=c=1

Isso significa que a variação de uma unidade a mais na demanda (ou na oferta) provoca aumento (ou diminuição) de preço de uma unidade.

Em equilíbrio, a oferta se iguala à demanda. Na figura 1, a oferta corresponde à linha vermelha, enquanto a demanda corresponde à linha azul.

Demanda dos consumidores do País A e do País B:      Q =   b – P                     (5)

Oferta do monopolista do País A e do País B:                   P = Q                             (6)

O monopólio irá produzir a quantidade em que a receita marginal se iguala com os custos marginais:  CMg=RMg (GREEN & MAS-COLLEL, 1995, p.384). A Receita da firma no país A (que é a mesma do país B pela similaridade das hipóteses) é dada por: R = Q x P.

A Receita Marginal (RMg) representa a quantidade de receita marginal para uma variação marginal no preço do produto.

Receita marginal do monopólio do País A = País B:

Os custos marginais (CMg) são a própria curva de oferta:

Figura 1 – Os efeitos do monopólio no País A.

 

A perda de bem-estar (DWL) decorrente do monopólio está representada pela área em cinza e equivale a variação do preço e da quantidade em relação a concorrência perfeita:

Agora consideremos a hipótese de que há comércio entre os dois países, sem custos logísticos. Além disso, vamos supor que a empresa – o monopólio – do País A adquiriu a empresa do País B. Uma vez que não há custos logísticos, suporemos, igualmente, que se possa somar as demandas dos dois países. Com isso, poderemos simular que, nessa nova situação, há apenas um monopolista atuando em um país duas vezes maior que o País A.

O resultado indica que agora a demanda é mais elástica (há mais consumidores nesse mercado), sendo duas vezes menos inclinada do que a curva de demanda no País A.

Suporemos também que a aquisição da empresa do País B não gerou nenhuma mudança na estrutura de custos. Assim:

Figura 2 –  Os efeitos de um único monopólio na economia, após a aquisição do monopólio do País B pelo monopólio do país A. Com a agregação das demandas dos países A e B, a curva de demanda total percebida pelo único monopolista é duas vezes menos inclinada (mais elástica) se comparada à situação antes da aquisição.

É possível perceber que haverá perda de bem-estar em uma situação em que um dos monopólios compra o outro. Nesse caso, com a abertura comercial, os monopólios em escala nacional fundem-se para tornar-se um monopólio em escala global, que retira bem-estar da sociedade.

Analisando-se a questão dos lucros, conclui-se que o monopólio em escala global terá lucros maiores se comparado ao monopólio em escala nacional. Uma vez que as empresas maximizam seus lucros, é razoável concluir que as empresas tenderão a preferir a fusão do que a competição. Assim, o modelo parece descrever qual seria a razão para que haja tantas fusões de empresas na atualidade: com as fusões as empresas buscam aumentar seus lucros, maximizando-os. Por outro lado, essas fusões levam à perda de bem-estar social global, prejudicando em grande medida os consumidores.

É bastante razoável supor que, em razão da velocidade de adaptação das empresas que participam da economia digital, esse processo de aquisição ocorra de maneira muito mais rápida. A dinâmica atual no mercado de economia digital parece confirmar essa tendência. Startups que têm certo êxito são rapidamente adquiridas por grandes empresas que controlam as plataformas digitais.

Green, J. R., A. Mas-Colell, and M. Whinston. Microeconomic Theory. New York: Oxford University Press, 1995.

Patentes e dinamismo econômico

A World Intellectual Property Organization (WIPO) disponibiliza dados internacionais sobre direitos intelectuais, sendo importante fonte de informações sobre as patentes emitidas pelos países-membros desta organização. Os dados disponibilizados por esta fonte podem ser utilizados para se realizar uma comparação entre o número de patentes registradas pelo setor industrial e pelo setor de serviços no período entre 1980 e 2015.

Para isto, as patentes foram classificadas em três categorias, Serviços, Indústria e Outros.  Posteriormente, realizou-se a comparação entre o número de patentes geradas pelos setores no período citado. Esta comparação revela que ocorreu aumento considerável no número de patentes relacionadas ao setor de serviços, em detrimento das patentes industriais. Em 1980, 72% das patentes eram em tecnologias industriais e apenas 28% em serviços. Em 2015, a proporção de patentes relacionadas a tecnologias industriais recuou para 59%, de modo que 41% das patentes geradas eram em tecnologias relacionadas a serviços. Isto é, observou-se crescimento de 47% na proporção de patentes geradas em tecnologias relacionadas ao setor de serviços.

Separando os serviços em finais e intermediários, observa-se o crescimento na proporção de patentes relacionadas a serviços intermediários. Em 1980, apenas 29% das patentes de serviços eram em serviços intermediários e em 2015 esta proporção avança para 79%. Isto é, o setor que apresenta maior crescimento no número de patentes é serviços e, dentro deste setor, se observa avanço das patentes em serviços intermediários.

Estes dados mostram que a dinâmica de inovação mundial está se modificando. As novas tecnologias de comunicação criaram ambiente favorável ao desenvolvimento de inovações organizacionais no setor de serviços. Este setor está sendo profundamente transformado pela emergência destas tecnologias e está se convertendo em uma das principais fontes de inovação. Esta evidência mostra que o crescimento econômico não está associado à presença de um setor específico, mas ao conhecimento e à capacidade de gerar inovações que contribuem para o crescimento econômico.

A análise do número de patentes geradas entre 2000 e 2015 para as tecnologias que mais cresceram no período revela grande concentração nos Estados Unidos e na Ásia. Das patentes registradas em Métodos de TI para gerenciamento, 47% foram registradas nos Estados Unidos, 35% na Ásia; e apenas 10% na Europa. A América Latina e a África geraram quantidade muito baixa de patentes nesta tecnologia, não superior a 1%, como este padrão se repete para as demais tecnologias, estas regiões não serão analisadas.

Gráfico 1 – Proporção de patentes geradas nas tecnologias de serviços que se encontram entre as dez tecnologias com maior crescimento no número de patentes entre 2000 e 2015

Fonte: World Intellectual Property Orgamization

Em Comunicação digital, 50% das patentes foram registradas nos Estados Unidos, 26% na Ásia, e apenas 16% na Europa. Em Tecnologia computacional, 44% das patentes foram geradas nos Estados Unidos, 38% na Ásia e 11% na Europa. Já em tecnologia médica, 35% das patentes registradas foram nos Estados Unidos, 30% na Ásia e 23% na Europa. Assim, existe uma grande concentração nas patentes geradas em serviços nos Estados Unidos e na Ásia, e, em menor escala, na Europa.

A análise do número de patentes geradas revela que a dinâmica de inovação está migrando para o setor de serviços. O setor industrial ainda é o principal responsável por introduzir inovações que provocam modificações na estrutura produtiva e geram crescimento econômico. Porém, cada vez mais, o centro dinâmico gerador de inovações, introdutor de novas atividades econômicas, mudanças na estrutura produtiva e responsável por promover o crescimento econômico é o setor de serviços. Com grande destaque para o surgimento de novas atividades de serviços intermediários, intimamente relacionadas ao surgimento de novas tecnologias de comunicação, que provocam  inovações organizacionais nos processos produtivos e administrativos. Caso esta tendência permaneça, dentro de poucas décadas a transformação de atividades tradicionais de serviços em atividades modernas se transformará no principal vetor de inovações e no principal gerador de novas atividades econômicas, sendo responsável por explicar as mudanças estruturais observadas pelos países.

Os dados de patentes corroboram a argumentação de que o crescimento do setor de serviços nos países desenvolvidos não ocorre através da migração dos trabalhadores para atividades de serviços finais, que possuem baixa produtividade e que resultam em estagnação econômica. Na realidade, o crescimento deste setor está relacionado ao surgimento de atividades inteiramente novas, inovadoras, altamente dinâmicas e introdutoras de progresso técnico. Estas novas tecnologias estão introduzindo mudanças organizacionais que, provavelmente, resultam em crescimento elevado da produtividade do setor de serviços, contribuindo para que a produtividade da indústria e da economia como um todo se eleve significativamente.

Ensino baseado em projetos

[Este post faz parte da série “10 Tendências que afetarão o ensino superior até 2025]

10/05/2025 – Pierre, que tem 23 anos, é aluno de uma universidade particular e está chegando logo cedo para suas aulas. Ao passar pelo portão de entrada principal, um aplicativo instalado em seu celular já indica e dispara a informação de que ele está nas dependências da escola. Ele vê alguns colegas com quem se junta e vão rumo à sala de aula conversando animadamente. Ao adentrar a sala, por algum motivo, naquele dia específico, ele repara o quanto é agradável e estimulante aquele espaço. Mesas redondas com cadeiras confortáveis, acesso à internet, onde ele pode acessar diversos conteúdos facilmente e uma sala inteira onde ele, seus colegas e os professores podem utilizar as paredes para escreverem (ele ouviu falar que há alguns anos atrás nas universidades eram utilizados equipamentos que tinham o nome de “lousa”, “quadro”), dentre outros elementos estimulantes, incluindo alguns equipamentos e objetos que pareciam dar à sala de aula um ambiente de laboratório, misturado com sala de jogos.

Ele é recebido por três professores, o de genética, o de estatística e o de química, que estão acompanhando a turma no entendimento, desenvolvimento e resolução de um problema colocado por eles. Ele está feliz por ter chegado aquela hora, pois desde a noite anterior ele vinha pensando em algumas questões específicas do projeto que estão desenvolvendo (em sala e logicamente fora dela também, já que estão sempre conectados) e para os quais havia tentado buscar mais informações para ajudar o seu grupo a evoluir na solução do problema.

Em 2025, o cerne do processo de aprendizagem estará centrado no estudante e pelo menos a maior parte das universidades mais relevantes já terão construído um ambiente de sala de aula que lembre, de alguma forma, o ambiente hipotético descrito anteriormente. Apesar de essa centralidade no aluno parecer um caminho óbvio e já envelhecido, ela é, na verdade, mais complexo do que parece.

A aprendizagem baseada em projetos (do inglês project-based learning) ou problemas (problem-based learning), que coloca o aluno no centro do “palco”, é uma abordagem que tem sido discutida há pelo menos três décadas, tendo sua discussão e aplicação se intensificado nos últimos anos. Porém, essa abordagem tende a ser aplicada de maneira isolada, por alguns poucos professores e escolas, quando poderia ser vista como base de uma reestruturação mais profunda e geral no modelo de ensino.

A visão proposta por Venturelli (1997), quando construiu seu quadro comparativo entre as estratégias educacionais de metodologia centrada no professor versus uma estratégia educacional inovadora, centrada nos estudantes, conforme explicitado no quadro abaixo, ainda será uma realidade.

INOVADOR TRADICIONAL
Avaliação formativa contínua Avaliação formativa fora de contexto
Centrada em estudantes ativos e com objetivos definidos Centrada nos docentes
Uso de recursos educacionais múltiplos e relevantes Uso de exposição repetitivas

 

Considera qualidades pessoais e estilos; promove destreza educacional Não há espaço para o indivíduo. Entrega passiva de informações
Autoaprendizagem. Auto analítica criativa. Uso de alternativas Programas estabelecidos. Usa oportunidades existentes. Não aceita programas alternativos
Crítica, baseada em problemas relevantes, promove raciocínio Não crítica, baseada no uso da memória

Fonte: Venturelli (1997)

Quando esse grupo de escolas tiver concluído a migração de uma abordagem tradicional para uma abordagem inovadora, terá havido também uma profunda alteração do papel exercido pelo professor. Estes terão que pensar em soluções conjuntas para o suporte a processos de aprendizado e não mais apenas dentro da lógica e dimensão de uma única “disciplina”; e habilidades como mediação, facilitação, articulação e pesquisa serão as que deverão prevalecer.

Pensando nas abordagens e metodologias, teremos uma massificação daquelas que já são utilizadas hoje, como o flipped classroom (sala de aula invertida), gameficação (game-based learning), peer instruction (avaliação por pares), aprendizagem aumentada (combinando recursos 3D e elementos virtuais com o ambiente real) etc.

Iniciativa do Bank of America Merrill Lynch é um exemplo recente de demonstração de poder dessas novas abordagens e metodologias. A iniciativa, baseada num projeto-piloto começado em 2017 com noventa escolas públicas de municípios na região metropolitana de Fortaleza, utiliza jogos como apoio às estratégias de educação financeira para crianças de 10 a 14 anos. Por conta do maior engajamento dos alunos, foi possível constatar consideráveis melhorias no índice de educação financeira desses estudantes.

Um outro exemplo de sucesso recente das abordagens de ensino baseado em projetos é a proliferação de programas de MBA de renomadas escolas de negócios, que se utilizam fortemente de estudos de casos.  Por meio deles, os alunos aprendem fazendo e são instigados a encontrar soluções para problemas de negócios reais, o que exige análise profunda, pesquisa e multidisciplinaridade para proposição das soluções.

O que querem os países nas negociações de e-commerce?

O comércio digital tem crescido rapidamente no mundo todo. De acordo com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as vendas globais de bens e serviços pela internet alcançaram US$ 25,7 trilhões em 2016. Desse valor, 90% foram transações entre empresas (B2B). Como consequência, provisões sobre comércio digital cresceram substancialmente nos âmbitos dos acordos regionais de comércio com o objetivo de remover e evitar barreiras ao livre fluxo de dados e conter o surgimento do chamado “protecionismo digital” ou proteger e resguardar interesses nacionais associados à esta agenda.

Dado mais recente da Organização Mundial do Comércio mostra que 80 dos 305 acordos notificados à instituição têm provisões ou capítulos sobre o tema. Quando se olha apenas os acordos recentemente notificados, o que se vê é que a vasta maioria dos acordos já abarcam temas de e-commerce. Com os vários acordos ora em negociação bilateral e regionalmente, tudo indica que esse número ainda crescerá bastante nos próximos anos.

Em análise feita pela OMC focada em 63 acordos regionais com capítulos específicos sobre comércio eletrônico, entre eles o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CTPP), seriam os países desenvolvidos que estariam a “puxar” aquelas negociações. Estados Unidos, Cingapura, Austrália, Canadá e Coreia do Sul são os países que mais alavancaram o tema de e-commerce em ARCs. Muitos países em desenvolvimento hoje têm acordos com essas provisões à reboque da demanda de países desenvolvidos para fechar negociações.

Os temas que compõem os acordos variam bastante, não apenas em conteúdo, como, também, em profundidade dos compromissos. A maior parte inclui cláusulas de não-tributação de transmissão eletrônica, cooperação, proteção de dados pessoais e do consumidor. Em menor escala, mas também frequente, estão temas de aplicabilidade das regras da OMC ao comércio eletrônico, comércio sem papel, tratamento não-discriminatório de produtos digitais e autenticação eletrônica. Questões mais controversas, como localização de servidores e código-fonte, estão presentes apenas em acordos mais recentes. O formato desses acordos também varia — muitos têm capítulos separados para comércio digital, enquanto outros preferiram deixar o tema no capítulo de serviços.

Acordos ainda em negociação ilustram bem as posições dos países em relação ao tema de comércio digital. Na proposta apresentada na OMC ou nos textos em negociação com México e Chile, já é possível ver com clareza os pontos importantes na negociação para os europeus: a proibição da imposição de impostos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e o banimento de procedimentos de autorização focada apenas em serviços online “por motivos protecionistas” (colocado como princípio de não-autorização prévia), e o aceite de contratos e assinaturas eletrônicas.  O bloco ainda negocia o tema com o Mercosul, e o capítulo de comercio eletrônico ainda requer alguma convergência e a definição de exceções à aplicação das provisões.

O que se vê nesse e em outros acordos recentes é reflexo do avanço da União Europeia na promoção da economia digital no bloco, como o “mercado digital comum”, e na regulação sobre várias questões cruciais para a economia digital, como a proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais (autenticação eletrônica, por exemplo).

Ao colocar a proteção de dados pessoais como “não negociável” em acordos de comércio, por se considerar um direito fundamental, a Comissão Europeia retira o tema de pauta das negociações bilaterais. A regulação sobre proteção de dados europeia (GDPR, na sigla em inglês), que entra em vigor dia 25 de maio, responde à demanda dos cidadãos europeus por mais transparência sobre quem tem seus dados, de onde eles vieram e com quem eles são compartilhados. Ao mesmo tempo, o bloco tem trabalhado em provisões para evitar medidas protecionistas sobre o fluxo de dados entre fronteiras, ao tempo que garantam a proteção e a privacidade dos dados no patamar colocado pelas novas regras no bloco.

Apesar de terem se retirado das negociações do Acordo Transpacífico (originalmente TPP e agora CTPP) como um dos primeiros atos oficiais da administração Donald Trump e de terem apresentado diversas críticas à OMC em relação a comércio eletrônico, os Estados Unidos vêm firmando posição naquela Organização e destacando que o comércio digital segue como essencial para a economia do país, o que está em linha com a condição de sediar muitas das maiores e mais influentes empresas de economia digital, incluindo plataformas de e-commerce.

A posição dos americanos na OMC seguiu em defesa do livre fluxo de informações e de transferência de dados entre fronteiras, não exigência de localização de servidores e proibição do bloqueio de conteúdo online. Advoga-se pela não tributação sobre transmissões eletrônicas, não-discriminação no tratamento de produtos digitais, proteção a código-fonte e não restrição à encriptação. Trata-se de um claro esforço para avançar as discussões sobre comércio eletrônico na Organização e reduzir as possibilidades de barreiras digitais aos fluxos de dados, algo vital para o atual modelo de negócios das empresas super-hegemônicas americanas de tecnologia digital.

Já no continente africano, o tema do comércio eletrônico é dominado por um pequeno grupo de países, entre eles Egito, África do Sul, Gana e Etiópia. A região tem baixíssima participação no comercio digital global (inferior a 1%) muito em virtude dos grandes desafios que a região enfrenta, como acesso à eletricidade, tecnologia da informação e comunicação (TIC), logística, baixo uso de métodos de pagamentos eletrônicos, pouco acesso a cartão de crédito, fraca penetração bancária e falta de conhecimento sobre TI e habilidades ligadas a e-commerce, tanto de empresas como de consumidores.

O tema de comércio eletrônico não está na mesa nos acordos que a região da África está negociando, como é o caso da Zona de Livre Comércio Continental (CFTA, na sigla em inglês). No âmbito multilateral, o Grupo Africano, que não é composto por todos os países do continente, durante as reuniões pré-Ministeriais de Buenos Aires, mostrou grande preocupação com as implicações de novas regras em e-commerce e com a potencial restrição que tais regras colocariam sobre o espaço para políticas industriais digitais voltadas ao desenvolvimento da região. Uma adoção de regras “prematuras” poderiam reduzir ainda mais, na visão do bloco, as possibilidades futuras de catching up de crescimento econômico e tecnológico.

A Índia também está entre os países com ressalvas quanto ao avanço nas negociações em e-commerce na OMC. O país tem tido forte expansão do mercado de comércio eletrônico e da penetração da internet e de smartphones e tem receio de que as novas regras multilaterais prejudiquem o crescimento das plataformas de e-commerce nacionais. No último documento circulado pelo país na OMC, posicionaram-se contra o avanço nas negociações de regras em comércio eletrônico, tal como o Grupo Africano. O país assinou apenas um acordo que cobre o tema de comércio eletrônico, provavelmente por demanda da contraparte cingapuriana.

Em lado oposto, não há região mais promissora no comércio eletrônico que o leste da Ásia. A região já tem alguns dos gigantes globais da internet e do e-commerce e ao menos 1 de cada 3 novos unicórnios são daquela região. A região tem um mercado digital pujante, com forte aumento anual no número de consumidores. A China, sozinha, é, hoje, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo, respondendo por 40% das transações globais. Nessa condição, a região tem uma postura diferente da de outros países em desenvolvimento. Afinal, a região se posiciona para ser parte do mainstream da indústria global do e-commerce e da economia digital. Ainda que o tema não se reflita em números de acordos assinados, já é possível ver apontando no horizonte as demandas que o país tem para seguir avançando na provisão de bens e serviços digitais para os mais diversos mercados.

Já o Brasil segue negociando acordos com União Europeia, Chile, México, Índia, Canadá e Associação Europeia de Livre Comércio (EEFTA) e tem mandato negociador já aprovado para negociações com a Coreia do Sul e conversas ainda preliminares com Cingapura. O país segue com participação ativa nas negociações na OMC, seguindo o indicado na Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico. Com o crescimento do interesse de países desenvolvidos por provisões em comércio eletrônico, alguns desses acordos passam a repercutir aqueles anseios. Na condição de país essencialmente “usuário” das tecnologias digitais, o Brasil tem sido cauteloso nas negociações de forma a resguardar espaço de política. O país tem colocado na mesa a necessidade de associar o e-commerce a preocupações de desenvolvimento econômico. Afinal, tem ficado cada vez mais evidente a tendência de concentração do mercado de e-commerce em nível global em torno de um pequeno punhado de grandes plataformas, bem como a distinção entre os benefícios de se “usar” e-commerce e os benefícios de se “desenvolver, distribuir e gerenciar” plataformas de e-commerce, o que é prevalecente para alguns poucos países. De fato, já se identificam evidências de que o hiato entre esses dois grupos de benefícios poderá ser a fonte fundamental de aumento da desigualdade de renda entre países.

Pela análise dos acordos em andamento, já é possível ver convergência para alguns temas centrais, que devem acabar sendo os principais assuntos a terem resultados em um eventual acordo multilateral sobre o tema. A grande presença do comércio digital em acordos regionais e bilaterais é uma clara resposta à ânsia dos países em avançar na agenda antes que mais barreiras ao comércio digital e ao fluxo de dados sejam aprovadas em nível doméstico.

Os países que têm maior receio quanto ao avanço da economia digital e do poder das mega-empresas digitais sobre as suas economias muitas vezes têm dificuldades em colocar a sua posição sobre um tema cujo alcance ainda não está claro. Acordos de comércio apresentam inúmeras frentes de negociação, sendo difícil consolidar posição em economia digital frente às demandas prementes e bem mapeadas em bens,  investimentos, regras de origem e compras públicas, por exemplo.

Orquestrar todos os interesses é matéria difícil quando se tem maior conhecimento e tactibilidade nos efeitos das provisões para o comércio entre os potenciais parceiros em temas tradicionais. Todavia, cada vez mais, os países atentam-se para a importância de se olhar com cautela para o que os capítulos de comércio eletrônico contemplam, o que torna ainda mais importante o engajamento em fóruns multilaterais de forma a manter espaço suficiente para políticas públicas digitais que permitam aos países, em especial os em desenvolvimento, otimizar os benefícios da revolução digital.

Como as TICs têm proporcionado o crescimento de serviços

Conforme vem sendo discutido aqui no Blog, é nítido o crescimento da relevância do setor de serviços para geração de riquezas. A participação dos serviços nas exportações mundiais passou de aproximadamente 9% em 1970 para algo em torno de 20% em 2014. Atualmente, “os serviços já representam 75% das economias da OCDE; nos Estados Unidos, eles já passam dos 80%; e nas economias de renda média, eles já são 54%” (ARBACHE, 2014, p. 6). No Brasil, os serviços são responsáveis por 70% do PIB. Mas não foi sempre assim: o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) tem possibilitado a crescente comercialização a longas distâncias de serviços modernos que independem de presença física entre consumidores e produtores. Esse processo viabiliza a crescente terceirização que tem aumentado o comércio de serviços entre unidades produtivas, intensificando a relação sinérgica e simbiótica dos serviços com a indústria e do Big Data, que proporciona oportunidades de novos serviços e negócios. Tudo isso tem contribuído para o aumento da importância do setor de serviços na geração de riquezas.

Através de análises empíricas, Loungani et al. (2017, p.13) afirmam que a relação entre o crescimento do setor de serviços e o crescimento de toda a economia tem se tornado mais forte. Especificamente, eles encontraram um coeficiente de correlação de 0,6 entre o crescimento de serviços e o crescimento do PIB per capita, versus um coeficiente de correlação de 0,24 entre o crescimento da manufatura e o crescimento do PIB per capita. O (coeficiente de determinação) para a parcela de valor agregado de serviço encontrado foi 0,51; e o R² para a parcela de valor agregado de manufatura, 0,19. A fim de ilustrar o maior espaço ocupado pelos serviços na participação do crescimento das exportações mundiais, os autores prepararam a figura abaixo.

Figura 1. Contribuição das exportações de serviços e manufaturas para o crescimento das exportações mundiais, de 1990 a 2014, em percentual.

Fonte: Manual 6 do Balanço de Pagamentos do Fundo Monetário Internacional (FMI), dados de 2016 da UN COMTRADE e cálculos dos autores que elaboraram o gráfico (LOUNGANI et al., 2017). Tradução própria.

A figura acima evidencia a separação proposta por Loungani et al. (2017) dos serviços em dois grupos: serviços tradicionais e serviços modernos. Os primeiros seriam aqueles que requerem proximidade física entre compradores e vendedores, como serviços de manicure, de cabeleireiro, serviços de transporte, de hotelaria e etc. Os modernos, por sua vez, dispensam proximidade física entre compradores e consumidores: seriam serviços de consultoria, de marketing, design, de pesquisa e desenvolvimento, tecnologia da informação (TI) e etc. Conforme a digitalização e o progresso tecnológico avançam, a diferenciação de tais serviços se tornaria cada vez mais imprecisa pois os tradicionais se tornariam modernos. Um exemplo desse fenômeno poderia ser a consulta médica: a princípio ela é serviço tradicional, mas na medida em que a telemedicina avança, os pacientes podem enviar exames online e serem atendidos remotamente.

Os serviços estariam crescendo em participação no comércio mundial e na renda dos países por quatro motivos principais. O primeiro é fácil de se imaginar: o progresso técnico nas TIC possibilita a crescente troca de dados entre países e, embutidos neles, serviços dantes impossíveis de serem comercializados. Serviços de logística, por exemplo, são hoje oferecidos para vários países pela empresa americana Amazon, através de sua plataforma online; seguros para bens móveis e imóveis podem ser contratados sem sair de casa; créditos podem ser adicionados ao celular com apenas alguns cliques em aplicativos de bancos e serviços de banda larga podem ser contratados através dos sites de provedores.

O segundo motivo para o crescimento do setor de serviços seria sua crescente participação nas cadeias globais de valor. De acordo com Arbache (2015, p. 3), o desenvolvimento e a massificação das TIC, bem como dos serviços de transporte e logística, contribuem para a popularização das tecnologias organizacionais e de produção que possibilitam às firmas focarem nas suas atividades principais, terceirizando as demais funções.

Podemos exemplificar essa ideia do autor com o caso de um fabricante de acessórios de informática no Brasil. Em sua cadeia de suprimento, serviços de telecomunicações são contratados de provedores regionais; empresas de transportes levam os insumos até a fábrica; um restaurante é contratado para servir alimento aos funcionários e a vigilância fica a cargo de uma empresa de segurança. Uma vez que as demais atividades necessárias ao funcionamento fabril são contratadas de terceiros, a fábrica está apta a focar estritamente na produção de acessórios de informática. Como exemplo deste processo, temos o avanço de 10% ao ano da terceirização de serviços de TI no Brasil:

     “O mercado de TICs avança no Brasil apesar da crise, em razoável medida ajudado pela cada vez maior terceirização de serviços de tecnologia da informação. Segundo balanço divulgado pela associação brasileira das empresas de TIC, Brasscom, entre 2010 e 2017, a receita com serviços, BPO e computação em nuvem dobrou de tamanho (…). A receita somada de outsourcing e TI in house passou de R$ 59,6 bilhões para R$ 104,9 bilhões nesse período. Mas enquanto o desenvolvimento interno cresceu 5,9% ao ano, a terceirização andou bem mais acelerada, ao ritmo de 10,5% ao ano. Como resultado, se em 2010 a TI in house chegou a representar 48,6%, em 2017 foi somente 41,2%. No caminho inverso, a terceirização de serviços passou de 51,4% para 58,8%, com receita anual superior a R$ 61 bilhões” (CONVERGÊNCIA DIGITAL, 23/04/2018).

O terceiro motivo para o crescimento do setor de serviços seriam as intensificações das relações sinérgicas e simbióticas deles com os produtos manufaturados. Segundo Arbache (2015), o valor agregado de fabricação aumenta quando a manufatura é combinada com serviços para formar um terceiro produto que não é em si nem um bem manufaturado, nem um serviço convencional. São produtos com alto conteúdo de serviços e vendidos em pacotes, como smartphones – dependentes fortemente de marketing, marcas, design e telecomunicações – e motores a jato para aeronaves cuja comercialização inclui serviços de leasing, seguros, treinamento, engenharia, manutenção e outros serviços pós-venda.

O autor cita o caso do smartphone Nokia N95 como um exemplo da relação moderna entre bens e serviços: nada menos que 81% do preço final do celular se relaciona com o valor acrescentado de serviços como licenças, software, marketing, branding e distribuição, enquanto apenas 19% se relaciona com peças, componentes e funções de montagem. Ademais, essa complementariedade entre produtos manufaturados e serviços também fica evidente em exemplos como telefone celular (manufatura) e serviços de valor adicionado – como os aplicativos: não há como se pensar no uso de aplicativos sem se imaginar o meio físico, a manufatura na qual o serviço se torna disponível.

Por último, a crescente geração de dados através de robôs e máquinas utilizadas no processo produtivo e a geração de dados nas plataformas digitais possibilitam surgimento de novos negócios e serviços. Não à toa, é crescente o interesse na exploração e interpretação de Big Data: os dados podem revelar desperdícios de insumos e consequentes oportunidades de melhoria na eficiência produtiva. Ademais, possibilitam customização de produtos e serviços ao oferecer informações de preferências e características dos consumidores, além de novos modelos de negócios.

Assim, podemos perceber a crescente relevância das TIC para a expansão dos serviços e para a consequente geração de riquezas. As empresas e governos devem se atentar ao desenvolvimento tecnológico das TIC, bem como seu uso para geração de novos serviços e negócios. Só assim serão capazes de desenvolver políticas condizentes com uma eficaz estratégia de crescimento frente à globalização digital.

Serviços, leis de Kaldor e eficiência schumpeteriana

A literatura econômica kaldoriana considera a indústria o setor mais dinâmico, responsável pela disseminação do progresso técnico e pela capacidade de geração de crescimento endógeno e autossustentado. Para essa literatura o setor de serviços não apresenta ganhos de produtividade e não é capaz de gerar crescimento econômico persistente (KALDOR, 1966).

No período recente cresceu internacionalmente a literatura que defende a existência de uma relação de interdependência entre o setor de serviços intermediários e a indústria. As evidências encontradas por esta literatura mostram que o crescimento da produção industrial depende do crescimento do setor de serviços intermediários, sendo a expansão deste setor que viabiliza o surgimento de inovações, o crescimento e o aumento da produtividade da indústria. A ideia principal é a de que no processo de mudança estrutural, atividades mais nobres dos setores industriais e de serviços, intensivas em tecnologia e conhecimento, co-evoluem. Na trajetória de desenvolvimento das nações, a partir de determinado momento histórico, faz-se necessária a existência de uma elevada simbiose entre indústria e serviços, na medida em que atividades manufatureiras passam a demandar mais serviços especializados.

No artigo “Contribution of services to economic growth: Kaldor’s fifth law?” Adilson Giovanini e Marcelo Arend (autores deste post) questionam a existência de uma nova lei de Kaldor. Esta lei evidenciaria que à medida que os países se industrializam e passam a fabricar produtos cada vez mais sofisticados, se elevaria a demanda por maior volume de conhecimento. O desenvolvimento de um setor de serviços intermediários, especializado no fornecimento de soluções tecnológicas e gestão deste conhecimento, viabilizaria a fabricação de manufaturas avançadas e complexas.

Esta hipótese foi testada através da estimação de modelos VAR em painel para oito países desenvolvidos (Japão, Estados Unidos, Dinamarca, Espanha, França, Reino Unido, Itália e Holanda) no período 1980-2009. Os resultados estimados corroboraram a hipótese levantada. O crescimento do setor de serviços intermediários contribui para o crescimento da produtividade industrial; do valor adicionado industrial per capita e da complexidade econômica dos países em análise. Com isto, dadas as devidas ressalvas, os resultados apresentam elementos iniciais favoráveis para a defesa de que os serviços avançados também atuam como um “motor do crescimento econômico”.

A partir dessas conclusões é possível explorar em mais detalhes o “espaço-indústria”, desenvolvido por Arbache (2012), com “pitadas teóricas” da literatura schumpeteriana e estruturalista. O espaço-indústria é constituído por quatro quadrantes que mostram diferentes processos de mudanças estruturais. No quadrante R1 a população é predominantemente rural e a agropecuária é o setor dominante. Neste quadrante o país se encontra preso na armadilha da renda baixa (RODRIK, 2014). Em perspectiva schumpeteriana, tal como Dosi, Pavitt e Soete (1993), podemos derivar que países nesse estágio de seu desenvolvimento possuem exclusivamente eficiência ricardiana, pois a alocação de fatores se realiza em perfeita concordância com o princípio das vantagens comparativas estáticas.

Figura 1 – Espaço-Indústria

Fonte: Adaptado de Arbache (2012)

 

 

 

 

 

 

 

O quadrante R2 é caracterizado pela crescente demanda por produtos industriais básicos e pelo desenvolvimento de uma indústria de baixo valor adicionado e serviços gerais. Nessa trilha, muitos países superam a armadilha da pobreza, com crescimento acelerado proporcionado por um processo de industrialização. As clássicas leis de Kaldor explicam perfeitamente o caminho percorrido até o quadrante R2. Também, poderíamos considerar que nesse processo a eficiência keynesiana funcionaria como um “motor” do crescimento da renda per capita. A condição de eficiência keynesiana implica que a estrutura produtiva abarque cada vez mais ramos que tenham elevada elasticidade-renda da demanda. Isso quer dizer que o país está internalizando setores nos quais a demanda e os mercados crescem rapidamente, abrindo, consequentemente, oportunidades de vendas e de lucros maiores (DOSI; PAVITT; SOETE, 1993). Aliada ao processo de industrialização, a diversificação produtiva amplia-se, conforme demonstrado por Imbs e Wacziarg (2003).

A passagem para o quadrante R3 e deste para o R4 é um caminho que poucos países conseguiram fazer. Muitos países entram em relativa estagnação de seu nível de renda per capita nesse estágio (armadilha da renda média), inclusive apresentando regressão de sua estrutura produtiva, fenômeno associado ao processo de desindustrialização prematura.

Ademais, a região R4 representa o estágio mais avançado do desenvolvimento industrial. Neste quadrante, o processo de expansão da densidade industrial continua e é acompanhado pela existência de demanda mais do que proporcional por serviços intensivos em conhecimento, ao passo que a participação da indústria “tradicional” declina (ARBACHE, 2012). No quadrante R4, se encontram os países industrializados, que possuem renda elevada. Seguindo a linha argumentativa de Imbs e Wacziarg (2003), este quadrante também é caracterizado por relativo retorno à especialização produtiva. A demanda por serviços avançados cresce, de modo que estes países se caracterizam pela fabricação de serviços conectados a manufaturas de elevada complexidade econômica. Pode-se defender, a partir das conclusões de Rodrik (2014), que os países que migram para os quadrantes R3 e R4 são aqueles que conseguiram desenvolver as capacitações necessárias para o desenvolvimento do setor de serviços intermediários e produtos complexos. O “segredo” da prosperidade de alguns países em detrimento dos demais se encontraria em capacidades organizacionais, de distribuição do conhecimento entre os trabalhadores e de utilização coletivamente de volumes maiores de conhecimento.

É nesse momento que consideramos que eleva-se a necessidade de maior simbiose entre a indústria e o setor de serviços, conforme exposto no inicio desse artigo. A saída do quadrante R2, em direção ao R3 e R4, pressupõe a conquista da eficiência schumpeteriana. A eficiência schumpeteriana supõe que existam, na estrutura produtiva, setores nos quais o progresso técnico e os ganhos de produtividade são especialmente elevados. A definição de eficiência schumpeteriana prescreve um padrão de especialização baseado na exportação de produtos para os quais se identifique um elevado grau de oportunidade, apropriabilidade e cumulatividade tecnológica (DOSI; PAVITT; SOETE, 1993). Stojkoski et al. (2016) mostram que os países que apresentam maior exportação de serviços apresentam índices mais elevados de complexidade. Ademais, seus resultados mostram que as economias cuja pauta de exportação é baseada em serviços têm estrutura produtiva mais complexa e maior potencial de crescimento no longo prazo.

Sociedades complexas, com estruturas produtivas complexas, possuem eficiência schumpeteriana. São países que enfrentaram seus processos de desindustrialização, porém sem estagnação de seus níveis de renda. Tais processos deram-se com elevação da densidade industrial e crescimento do setor de serviços intermediários. Portanto, as leis de Kaldor também são válidas para economias com elevada participação do setor de serviços no produto e no emprego, desde que possuam estruturas produtivas complexas e com eficiência schumpeteriana.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARBACHE, J. Industrial-Space and Industrial Development [Mimeo]. Departamento de Economia, Universidade de Brasília, 2012.

DOSI, G.; PAVITT, K.; SOETE, L. La economía del cambio técnico y el comercio internacional. México: Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, 1993.

GIOVANINI, AdilsonAREND, Marcelo. CONTRIBUTION OF SERVICES TO ECONOMIC GROWTH: KALDOR’S FIFTH LAW?. RAM, Rev. Adm. Mackenzie [online]. 2017, vol.18, n.4, pp.190-213. ISSN 1678-6971.  http://dx.doi.org/10.1590/1678-69712017/administracao.v18n4p190-213.

IMBS, J. e WACZIARG, R. Stages of diversification. American Economic Review, v. 93; n. 1, p. 63-86, 2003.

KALDOR, Nicholas. Causes of the slow rate of economic growth of the United Kingdom: an inaugural lecture. Cambridge University Press, 1966.

RODRIK, Dani. The past, present, and future of economic growth. Challenge, v. 57, n. 3, p. 5-39, 2014.

STOJKOSKI, Viktor; UTKOVSKI, Zoran; KOCAREV, Ljupco. The Impact of Services on Economic Complexity: Service Sophistication as Route for Economic Growth. PloS one, v. 11, n. 8, 2016.

Globalização e a escada íngreme da tecnologia

A edição de abril do “World Economic Outlook (WEO)” do FMI trouxe um capítulo sobre como a globalização vem contribuindo para uma difusão de conhecimento pelos líderes tecnológicos mais rápida do que anteriormente. A difusão tecnológica transfronteiriça não só contribuiu para o aumento dos níveis de produtividade doméstica nas economias avançadas e emergentes, mas também facilitou uma reformulação parcial do mapa da inovação tecnológica, com alguns beneficiários se tornando novas fontes significativas de pesquisa e desenvolvimento (P & D) e patentes. Cabe a nós entender o que seria necessário para que essa mudança no cenário da inovação fosse ainda mais ampla.

A globalização difundiu conhecimento e tecnologia …

Maior comércio, investimento estrangeiro direto e uso internacional de patentes disseminaram mais intensamente o conhecimento e a tecnologia através das fronteiras. Um duplo dividendo pode potencialmente ser derivado de tal característica: como a tecnologia é tipicamente “não-rival” em seu uso, sua difusão pode levar a aumentos de resultados médios a custos relativamente baixos; além disso, seu uso múltiplo pode gerar efeitos de rede positivos por meio da polinização cruzada.

Os fluxos de conhecimento do exterior podem ter impacto tanto na produtividade, através da adoção de tecnologias estrangeiras no processo de produção, como – combinados com P & D interna – em inovação (Gráfico 1).

O WEO estima que, nas economias de mercado emergentes, “de 2004 a 2014, o conhecimento estrangeiro foi responsável por cerca de 0,7 ponto percentual do crescimento anual da produtividade do trabalho, ou 40 por cento do crescimento observado da produtividade setorial, comparado com o crescimento anual de 0,4 ponto percentual durante 1995–2003″ (Gráfico 2). Segundo o relatório, esses resultados permanecem robustos mesmo quando a China é excluída, o que indica que os efeitos da produtividade foram amplos entre as economias emergentes.

Além disso, o relatório mostra um quadro de mudança na constelação internacional de fontes de inovação tecnológica, à medida que os gastos com P & D crescem rapidamente na China e os estoques de patentes internacionais se acumulam na Coreia (Gráfico 3). Esses países se juntaram aos líderes tradicionais em setores como equipamentos elétricos e ópticos e, especialmente, na Coreia, em equipamentos de máquinas.

Isso aconteceu mesmo enquanto, desde o início da década de 2000, as economias tradicionais de fronteira passaram por uma desaceleração nos aumentos de produtividade da mão-de-obra e na produtividade total dos fatores, ao mesmo tempo em que houve um crescimento mais lento das patentes e, em certa medida, menor investimento em P&D. Duas linhas de explicação para tal têm sido oferecidas, vale dizer: refletem uma lacuna de tempo na transição entre a terceira e a quarta revoluções industriais ou manifestam um declínio secular nas oportunidades de levar a produtividade adiante. De qualquer maneira, como assinalei em 2010, as prevalentes lacunas de convergência tecnológica e a não-rivalidade no uso de tecnologias existentes ofereceram às economias de mercado emergentes a oportunidade de continuar avançando mesmo com o ritmo desacelerando na fronteira (Canuto, 2010).

O WEO também traz à tona os resultados de um exercício empírico mostrando os efeitos positivos da competição internacional em inovação e difusão tecnológica. Isso poderia ser considerado um canal adicional através do qual a globalização estaria reforçando os incentivos para inovar e adotar tecnologias do exterior.

… Mas existem requisitos locais para subir na escada de capacidades de inovação

Não obstante a melhoria dos fluxos transfronteiriços de conhecimento pela globalização, a simples interconectividade não gera automaticamente os aumentos de produtividade e a inovação local. Qualquer aplicação de tecnologia incorpora um conteúdo “tácito” e localmente específico – idiossincrático – que não pode ser adquirido ou transferido por meio de manuais ou qualquer outra forma codificável de transmissão de conhecimento. Esse conhecimento não pode ser tornado “explícito” em blueprints e, portanto, não pode ser perfeitamente difundido como informação pública ou propriedade privada. Tem de ser desenvolvido localmente (Canuto, 1995).

Há um aumento dos requisitos em termos de conhecimento tácito e idiossincrático e de desenvolvimento local de capacidades quando se pensa em produção, adoção de tecnologia e invenção, como mostrado no Gráfico 4. Pode-se também considerar típica para os retardatários uma evolução que geralmente começa com a produção e a adoção de tecnologia antes da invenção. Esse foi exatamente o caso da Coréia e da China, que empreenderam esforços para desenvolver capacidades de inovação após intenso aprendizado pelo uso e adaptação de tecnologias existentes.

O sucesso em montar e ascender na escada rolante de capacidades depende da presença de um amplo conjunto de complementaridades, na ausência das quais o retorno do investimento no desenvolvimento de capacidades é dificilmente obtido. O acesso a finanças, infraestrutura, mão de obra qualificada e práticas gerenciais e organizacionais importa. Soluções para falhas de mercado que geram desincentivos ao acúmulo de conhecimento também devem estar presentes. Além disso, os custos de transação associados ao ambiente de negócios – comércio internacional, contratação de mão de obra, execução de contratos, etc. – não podem ser muito altos (Canuto, Dutz & Reis, 2010).

Como a presença de tais complementaridades não é fenômeno generalizado, pode-se entender porque a mudança internacional na paisagem da inovação tem sido limitada. Também explica o que Cirera & Maloney (2017), do Banco Mundial, chamaram de paradoxo da inovação: os níveis de investimento relacionados à inovação nas economias em desenvolvimento não são proporcionais aos altos retornos que se espera acompanharem a adoção de tecnologias disponíveis e a convergência tecnológica. A globalização pode disseminar o conhecimento, mas não necessariamente vem com o que é necessário para desfrutar completamente disso.

Câmbio: a falsa discussão sobre o verdadeiro problema

Elon Musk, o visionário (e bilionário) fundador do PayPal, da Tesla Motors e da SpaceX, é considerado um verdadeiro gênio. Questionado pelo Curador do TED Talks, Chris Anderson, em um dos eventos da marca, sobre a fonte de sua genialidade, Elon Musk respondeu o seguinte:

“Well, I do think there’s a good framework for thinking. (…) that is, boil things down to their fundamental truths and reason up from there, as opposed to reasoning by analogy (…), which essentially means copying what other people do with slight variations.”

Possivelmente, esse é o melhor conselho para abordarmos questões centrais do Brasil, e aqui nos dedicaremos ao câmbio: à ideia de que os países cambiam bens e serviços (muito mais bens do que serviços, e essa é uma observação que o leitor não deve esquecer para o resto da leitura) e o que condiciona que eles sejam cambiados de uma maneira e não de outra (por uma taxa, e não por outra).

“Boiling things down to their fundamental truths…”

A intuição mais fundamental sobre câmbio é a relação entre os preços de produtos comercializáveis e os preços de produtos não-comercializáveis em uma economia. Repare: a Carros S.A. vende carros no mundo todo e concorre com outras montadoras; o preço dos carros converge em todos mercados; a diretoria está decidindo se constrói sua nova fábrica em Springfield ou em Pindorama. Numa reunião estratégica, um dos diretores diz:

“Não podemos errar na escolha do local de investimento! Uma vez localizados, não poderemos cambiar as estradas esburacadas por estradas boas; não poderemos cambiar a energia elétrica vacilante por energia estável; quando formos exportar nossos carros, não poderemos cambiar o porto de Anjos pelo porto de Los Santeles. Não poderemos também escolher sob qual sistema tributário operaremos e em qual justiça vamos pelear.”

Uma vez que a Carros S.A. venderá seus carros pelo mesmo preço em todos lugares do mundo (lei do preço único), a decisão de investimento entre Springfield e Pindorama será determinada pela relação preço/qualidade daquele conjunto de fatores não-comercializáveis que afetam diretamente o sucesso da sua fábrica, mas que são próprios de cada lugar.

A noção de paridade está implícita nessa alegoria. A Carros S.A. está investigando se condições de mercado imóveis entre territórios afetam de maneira idêntica ou não suas operações fabris. Se não forem idênticas, um dos territórios demandará mais esforço do que o outro para que a Carros S.A. produza a mesma coisa.

“… and reason up from there…”

É muito frequente a análise da relação entre a taxa de câmbio e os preços relativos internos de uma economia pela abordagem dos diferenciais de produtividade entre setores comercializáveis e não-comercializáveis. Paul Samuelson e Bela Balassa estudaram esse assunto nos anos 60 e demonstraram que o mercado de câmbio equilibrava a demanda e a oferta de divisas estrangeiras em consonância com a corrente de comércio exterior – evidentemente, com os setores comercializáveis.

Como havia nítidas diferenças de produtividade entre os setores comercializáveis dos diversos países, isso explicaria porque os preços relativos de setores não-comercializáveis eram tão discrepantes entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Uma vez que o setor comercializável dos desenvolvidos era mais produtivo que o setor comercializável dos países em desenvolvimento, o mercado de trabalho em cada grupo de países gerava uma convergência específica de salários pagos entre todos os setores da economia. Isso explicava por que serviços idênticos presentes em todo mundo, de qualidade similar, pagavam, em paridade poder de compra (PPC), salários tão díspares, e por que a taxa de câmbio raramente refletia o equilíbrio de oferta e demanda de moeda estrangeira que propiciasse o mesmo poder de compra de bens e serviços em países distintos.

William Baumol, também nos anos 60, chegou à mesma conclusão que seus colegas, porém por outros caminhos e tentando entender outro problema. Baumol previa uma crise de urbanização como consequência dos diferenciais de evolução de produtividade entre bens (comercializáveis) e serviços (não-comercializáveis). As elevações salariais do setor comercializável eram antecedidas por elevações proporcionais de produtividade – decorrentes de avanços tecnológicos –, o que não ocorria no setor não-comercializável, que tendia a uma estagnação de produtividade em função da dificuldade de substituição de trabalhadores por máquinas. Baumol percebeu que quanto maiores os avanços tecnológicos do setor de bens, maiores seriam os custos (ganhos salariais sem contrapartida de produtividade) no restante da economia.

“… as opposed to reasoning by analogy.”

Os ganhos de produtividade ocorrem no setor comercializável da economia, mas sua gênese reside em um conjunto de condições e mercados majoritariamente não-comercializáveis. Esqueçamos aqui os serviços de consumo familiar (os serviços permanentemente usados como exemplo, como cabeleireiro, encanador, etc.) e foquemos nos serviços empresariais e em condições sistêmicas de competitividade (infraestrutura e instituições) e rememoremos o caso da Carros S.A. Se todos os serviços e infraestruturas que gravitam em torno do setor industrial são paritariamente mais caros num país do que em outro (mesmo preço, mas qualidades distintas, ou mesma qualidade com preços distintos), a taxa de câmbio PPC (ou câmbio real) será estruturalmente desfavorável a empreendimentos no setor industrial.

Cada vez mais ganha espaço a teoria da complexidade econômica na explicação do desenvolvimento econômico. Quanto mais diversa e complexa uma matriz produtiva, maior a renda per capita das nações. Ou seja, quanto mais variados e sofisticados os produtos e serviços que uma sociedade é capaz de fazer, mais produtiva ela é e, portanto, mais desenvolvida. Afinal de contas, o que determina a capacidade de uma sociedade produzir uma variedade de bens e serviços sofisticados?

As capabilities – ou competências – empresariais e tecnológicas determinam a sofisticação e a variedade de bens e serviços produzidos por uma economia. Infelizmente, essas competências são tácitas, demandam muito tempo e/ou muito esforço para se desenvolverem, e não são facilmente transplantáveis entre os povos.

Voltemos à reunião estratégica da Carros S.A., na qual outro diretor argumentou o seguinte:

“Devemos observar muito atentamente os preços que nos serão cobrados, pois não se trata apenas de ter serviços bons ou ruins, mas a que preço vamos adquirí-los. Minha equipe observou que os serviços de engenharia e automação de Springfield nos custarão $ 1,2 milhões ao ano, enquanto em Pindorama os mesmíssimos serviços custarão $ 1 milhão. Contudo, a qualidade dos serviços de Springfield nos permitirá produzir 13 mil carros, enquanto a qualidade dos serviços de Pindorama nos permitirá produzir 10 mil carros. Assim, em Springfield, cambiaremos $ 92,3 por carro, enquanto em Pindorama cambiaremos $100,0 por carro. Meu voto é por Springfield!”

Então perceba a sutileza de uma análise sobre câmbio. Balassa, Samuelson e Baumol, ao exemplificarem suas teses com serviços de consumo familiar, implicitamente estão estabelecendo padrões idênticos de qualidade (e produtividade): cortar cabelo é a mesma coisa em qualquer lugar do mundo, e, portanto, basta observar o preço real do corte de cabelo para obter a informação de apreciação ou depreciação cambial de uma economia. Mas se exemplificarmos essas teses com consumo intermediário de serviços empresariais por empresas industriais, imediatamente temos que trazer a qualidade/produtividade para entender se o preço é caro ou barato, ou se o câmbio dessa economia está apreciado ou depreciado.

O câmbio real no Brasil é sobrevalorizado porque temos um setor de serviços que oferta soluções numa razão preço/qualidade superior ao de vários de nossos concorrentes. Nosso setor industrial fica estrangulado porque concorre aqui e lá fora com preços determinados globalmente, mas depende de serviços e infraestrutura prestados localmente. Então, se quisermos nos reindustrializar, só temos duas saídas: ou desvalorizamos o câmbio nominal na marra, ou criamos uma política industrial focada na criação de capabilities empresariais e tecnológicas em torno de um competitivo setor de serviços industriais.

Rafael Leão é Mestre em Economia pela UnB e integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Paulo Gala é Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EESP) de São Paulo, onde leciona desde 2002. Autor do blog paulogala.com.br

Quais serviços de infraestrutura e para que fim? Parte II

Em post anterior, discutimos a necessidade de se ser mais seletivo na priorização de carteiras de infraestruturas em países com grande hiato e carência de investimentos no setor. Neste post, seguimos discutindo o tema.

É consenso na literatura que infraestruturas aumentam a produtividade e o investimento. De fato, ao aumentarem o acesso e reduzirem os custos de transporte, de comunicação e de energia, investimentos em infraestruturas reduzem custos de produção e elevam o valor adicionado, o que impacta as métricas de produtividade e aumenta as margens, incentivando novos investimentos.

Mas há que se diferenciar os impactos das infraestruturas na competitividade absoluta e na relativa, bem como nos benefícios privado e social.

Infraestruturas que impactam majoritariamente custos, como uma ferrovia que transporta cargas da mina ao porto, colocam os produtores no jogo da competição ao elevar o benefício privado e a competitividade absoluta. Isto ocorre notadamente em setores comoditizados, cujo valor de mercado do bem está dado.

Já infraestruturas que incentivam a agregação de valor e a diferenciação de produtos e têm muitas externalidades, como um rodoanel ou redes de banda larga, impactam também os benefícios sociais e podem ajudar a elevar a competitividade relativa. Ou seja, além de ajudar a colocar os produtores no jogo, essa classe de infraestruturas pode ajuda-los a ganhar o jogo da competição.

Em países com forte escassez de recursos e grande demanda reprimida por infraestruturas, o custo marginal de uma determinada infraestrutura será tanto menor quanto maior for o impacto no benefício social. Pense, por exemplo, no impacto que a oferta abundante de energia elétrica pode vir a ter ao viabilizar, digamos, a agregação de valor da produção agrícola de uma região. Nesse caso, ao contribuir para a elevação do valor da produção, a oferta de energia poderá viabilizar economicamente, por exemplo, a construção de uma ferrovia ligando aquela região ao porto, já que o valor da carga transportada aumentou.

Países que buscam a convergência de renda per capita com países desenvolvidos e a participação na economia mundial em etapas mais avançadas das cadeias globais de valor deveriam, portanto, focar na relação entre infraestruturas e competitividade relativa.

Infelizmente, a equação da priorização de carteiras de investimentos em infraestruturas é ainda mais complexa do que parece. Straub (2008)[1], por exemplo, mostra que cerca de 50% dos projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento têm pouco ou nenhum impacto no PIB, o que indica graves deficiências na escolha daquelas daquelas carteiras e na implementação dos projetos.

O que fazer? Por óbvio, o problema varia de país para país, mas a atenção aos seguintes pontos pode ser útil.

Fragmentação, complementaridade e sinergias. Dentre as explicações para o modesto impacto dos investimentos em infraestrutura na economia estão a fragmentação dos projetos e a pouca ou nenhuma sinergia e complementariedade entre eles. A fragmentação ocorre, sobretudo, por falta de planejamento em níveis federal e subnacional e falta de coordenação entre unidades do próprio governo e entre os governos e o setor privado. A falta de planejamento leva não apenas à fragmentação, mas, também, ao não sequenciamento adequado dos projetos de infraestrutura para potencializar os seus impactos.

Serviços e não somente infraestrutura física. Projetos de infraestrutura têm que focar na potencialização da utilidade que geram para os agentes econômicos, sejam eles consumidores ou firmas. Isso leva a que os projetos de infraestrutura tenham que ser analisados também pelo seu componente intangível. Os benefícios de uma nova rodovia, por exemplo, serão maiores quando, para além de viabilizar a conectividade física, também viabilizarem serviços complementares, como banda larga ao longo do curso da via, serviços de energia, de segurança, de apoio logístico, dentre outros que agregam valor e façam daquela rodovia mais do que um meio para levar uma carga do ponto A para o ponto B. De fato, já há farta evidência empírica mostrando que projetos de infraestrutura intensivos em capital intangível têm maiores impactos na produtividade e na competitividade relativa.

Tecnologia e não apenas menor custo. É preciso que carteiras de infraestruturas priorizem o uso de novas tecnologias, sejam elas construtivas, de serviços de gestão, manutenção e de provisão de bens públicos e privados. Afinal, aqueles projetos são oportunidades únicas para se incentivar o emprego de novas tecnologias e podem funcionar como polo radiador de incentivos a investimentos sofisticados, geração de riquezas e capacitação.

Monitoramento e avaliação de projetos. É preciso avaliar com maior atenção o que deu certo e o que deu errado em projetos de infraestrutura, tanto no próprio país como no exterior, de forma a se evitar repetir erros e deixar de otimizar as chances de acertos.

Futuro e não apenas o passado. Mais que mirar no atendimento dos velhos gargalos de logística, é preciso que o planejamento combine esforços na provisão de serviços de conectividade física e também não física e mirem em atividades que apontem para o futuro, como serviços sofisticados e economia digital.

Implementação e pós-implementação. Para além de melhorar a implementação de projetos, é preciso maior foco na recuperação das infraestruturas já existentes e na sua manutenção, de forma a que se reduzam os custos dos projetos e se amplifiquem os seus benefícios sociais.

Por fim, é preciso se repensar as métricas convencionais de identificação dos benefícios das infraestruturas. Afinal, muitos benefícios sociais importantes nem sempre são de fácil identificação e mensuração. De outra forma, há espaço para o desenvolvimento de metodologias mais sofisticadas e flexíveis de mensuração das contribuições das infraestruturas para a economia e para a sociedade.

[1] S. Straub, Infrastructure and growth in developing countries: recent advances and research challenges, World Bank Policy Paper No. 4460, 2008.

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