Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Jorge Arbache (page 3 of 7)

Goodbye, globalização 1.0. Hello, globalização 2.0

Um dos assuntos mais populares e polêmicos em âmbito internacional é a globalização e seus efeitos – veja, por exemplo, a regularidade do assunto nas pautas do Fórum Econômico Mundial, The Economist, Project Syndicate e Foreign Affairs e em acaloradas discussões políticas e acadêmicas mundo afora.

Este post trata de um aspecto menos trivial do tema: a transformação por que passa a globalização em sua perspectiva da produção e suas implicações.

As características mais distintivas da produção na primeira geração da globalização, que chamaremos de globalização 1.0, são a escala e a padronização da produção e a frenética busca por redução de custos, que levou ao outsourcing e à formação de cadeias globais de valor. Essas características se confundem com a transnacionalização da produção e das marcas, com a massificação do consumo e com a forte consolidação dos mercados em torno de um número cada vez menor de produtores dos bens e serviços que consumimos no dia-a-dia.

Mas a globalização 1.0 está ficando para trás. As novas tecnologias de produção e de gestão da produção, como nuvem, internet das coisas, big data, inteligência artificial, robotização, machine-learning, impressoras 3D e nanotecnologia, estão alterando profundamente a forma como se produz e o próprio padrão de consumo. Essas tecnologias dependerão cada vez mais de plataformas tecnológicas para a otimização de seus resultados e de toda uma parafernália de algoritmos, sistemas, softwares, rotinas, protocolos, parâmetros e regras na nuvem necessários para a manufatura avançada. É como se fosse um Amazon Web Services voltado para o “chão-de-fábrica”.

Essas tecnologias farão com que duas das características mais importantes da globalização sejam relaxadas: a escala e a padronização da produção. De fato, até bens manufaturados simples, como calçados esportivos e têxteis, antes produzidos em países em desenvolvimento em razão da força de trabalho barata, já estão sendo produzidos em países avançados.

As novas tecnologias já permitem, e permitirão ainda mais, a customização com pequeno ou nenhum aumento marginal do custo de produção. Nessas tecnologias, a produção depende cada vez menos do custo da mão de obra e de outros fatores competitivos convencionais e cada vez mais do entorno da produção, como condições de oferta de serviços sofisticados, instituições e centros de P&D com capacidade de inovar e de adaptar os produtos às características dos mercados locais e regionais.

Com isto, se esvai outra característica básica da globalização 1.0: a busca por locais que oferecem custos baixos de produção e, por conseguinte, a noção convencional das cadeias globais de valor.

A característica mais importante da produção na globalização 2.0 é a commoditização digital. Entra em cena a globalização das plataformas tecnológicas de produção e saem de cena a produção propriamente dita, bem como a priorização dos custos, padronização e escala da produção. O que se globaliza é a onipresença das plataformas que regem a produção, não a produção em si, cujo valor adicionado diminui em razão do aumento das plataformas tecnológicas na composição dos custos.  A gestão do desenvolvimento tecnológico é característica definidora da globalização 2.0, não a produção e a massificação do consumo. Trata-se de mudança paradigmática.

As implicações dessa mudança serão profundas, em especial para países que estão distantes da fronteira tecnológica e do desenvolvimento, distribuição e gestão das plataformas tecnológicas de produção. Como na globalização 1.0, a preocupação geral com emprego e desigualdade deverá perdurar, mas de forma bastante diferente. Isto porque, primeiro, a criação de empregos deverá se concentrar em países que desenvolvem, distribuem e gerem as plataformas e, segundo, a desigualdade de renda possivelmente aumentará tanto ou mais entre países usuários e desenvolvedores de plataformas tecnológicas do que entre os cidadãos de um mesmo país.

Estamos, ainda, no início da jornada da globalização 2.0 e, por isto, ela é ainda pouco visível a olho nu. Mas ela já está aí. Vê-la, é só questão de tempo.

A economia do Japão e o setor de serviços

O que explica a longa estagnação da economia japonesa? Obviamente, existem explicações diversas. O objetivo deste post é o de adicionar um pouco de luz num aspecto sintomático da estagnação: o padrão e o comportamento do setor de serviços.

Vários indicadores podem ser empregados para ilustrar a estagnação da economia japonesa. O gráfico abaixo mostra dois desses indicadores. O primeiro, o de densidade industrial (Arbache 2012); o segundo, o índice de complexidade de Hausmann-Hidalgo. Esses indicadores sugerem inequívoca tendência de queda da competitividade da indústria manufatureira japonesa.

De acordo com a literatura de espaço-indústria (Arbache 2012), a variável-chave da transformação econômica é a capacidade da manufatura elevar a densidade industrial. Essa capacidade não se revela pela participação da manufatura no PIB, mas pela sua capacidade de desenvolver uma relação sinergética e simbiótica com os serviços para, juntos, agregarem valor (Arbache 2017).

De fato, evidências empíricas internacionais mostram elevada e crescente parcela de serviços e inovações “embarcados” em bens manufaturados. Tratam-se de P&D, marcas, design, distribuição, projetos, softwares customizados, funcionalidades e conectividade, marketing, entre outros tantos serviços que diferenciam, agregam valor e conectividade ao bem tangível. Serviços de custos, como logística e serviços financeiros convencionais, são importantes, mas não diferenciam produtos e nem agregam valor.

Para agregar valor, a economia precisa ter um setor de serviços capaz de responder às demandas da indústria por novas soluções e de apoiar o desenvolvimento de novos modelos de negócios.

O que se observa no caso japonês? Observa-se estagnação da participação dos serviços comerciais profissionais no PIB (professional business services – PBS), que são os serviços que agregam valor à indústria. Observa-se, também, aumento da participação do setor de serviços no PIB. Logo, a participação do PBS no setor de serviços está contraindo, enquanto que os demais serviços, incluindo os voltados para o consumo, estão vendo a sua participação na economia aumentar.

Essas tendências vão na direção contrária do que se observa em economias mais dinâmicas, como Estados Unidos e Alemanha (e China, mais recentemente), em que o nível do PBS no PIB é mais elevado e segue crescendo.

Indicadores internacionais de conectividade são reveladores em razão da sua relação com o PBS. O indicador de conectividade da McKinsey Global Institute, por exemplo, mostra que o Japão está numa longínqua 24ª posição no ranking atrás, inclusive, de países emergentes asiáticos. Os Estados Unidos estão na terceira posição, a Alemanha na quarta e a China na sétima posição. Os componentes do indicador da McKinsey que mais explicam as diferenças entre o Japão e os três países são fluxo de serviços, fluxo de dados e fluxo de pessoas, fatores comumente presentes nas economias mais abertas e dinâmicas e associados à capacidade de desenvolvimento de serviços sofisticados e novos modelos de negócios.

A economia japonesa talvez só não esteja em situação ainda mais desafiadora em razão do elevado estoque de capital per capita que tem e do ainda elevado nível de densidade industrial da sua economia.

As características estruturais da economia do Japão sugerem insistência num modelo econômico tradicional incompatível com o nível do seu PIB per capita e que, claramente, já demonstra retornos decrescentes. Para avançar, o Japão terá que considerar adotar uma visão muito mais ampla e aberta de manufatura. Para isto, terá que aprofundar o entendimento acerca do imperioso papel dos serviços para a competitividade e a criação de valor industrial.

Notas sobre o gráfico: Densidade industrial: valor adicionado da manufatura per capita (em US$), eixo da esquerda. Fonte: calculado com dados do World Development Indicators.

%Manuf-PIB: participação percentual da manufatura no PIB, eixo da direita. Fonte: World Development Indicators.

%PBS-PIB (professional business services): participação percentual dos serviços comerciais profissionais no PIB; consideram-se os serviços especializados destinados às cadeias de produção tais como correios e telecomunicações, intermediação financeira, atividades imobiliárias comerciais, aluguel de máquinas e equipamentos, TI e atividades correlatas, P&D e outras atividades comerciais profissionais, eixo da direita. Fonte: World Input-Output Database.

%Serviços-PIB: participação percentual dos serviços no PIB, eixo da direita. Fonte: World Development Indicators.

Indicador de complexidade (0-1). Eixo da direita. Fonte: Atlas of Economic Complexity

De onde virão os empregos?

Uma das perguntas mais relevantes deste início de século XXI é: de onde virão os empregos?

A pergunta é mais que pertinente em razão da commoditização digital, que está fazendo com que bens de capital e tecnologias super-sofisticados, como robôs e impressoras 3D, inteligência artificial, internet das coisas, computadores e softwares avançados e até aplicativos disponíveis na Internet experimentem queda de preço e popularização jamais registrados.

Mudanças nos modelos de negócios dos produtores e desenvolvedores desses bens de produção tangíveis e intangíveis, que passaram a mirar o efeito-rede e o efeito-plataforma, e crescimento dos serviços na composição do valor agregado, estão entre as causas primárias daquela popularização. A tendência é que a commoditização digital siga avançando a passos ainda mais largos ao longo dos próximos anos.

Essa mudança é transformadora para o emprego por várias perspectivas. Neste post, tratamos de uma delas: o desenvolvimento econômico.

Um dos atrativos dos países em desenvolvimento para investidores é o custo relativamente baixo da força de trabalho. No entanto, a combinação de commoditização digital com mudanças nas preferências dos consumidores, que exigem cada vez mais bens e serviços customizados e de fornecimento (quase) instantâneo, entre outros fatores, estão desafiando a capacidade daqueles países de competir por investimentos estrangeiros, mesmo que para produzir bens relativamente simples, como têxteis e calçados.

Considere o caso das camisetas esportivas. A Adidas passará a produzir nada menos que 800 mil camisetas por dia numa nova planta industrial a partir do emprego de robôs, impressoras 3D e computadores. Vinte e dois segundos será o tempo de produção de cada camiseta. Detalhe: a planta fabril será em Little Rock, Arkansas. Com a automação, o custo da força de trabalho por camiseta será de 33 centavos de dólar (trinta e três!). Serão criados um total de 400 empregos naquela que será a maior planta de camisetas esportivas do mundo.

A produção de outros itens simples também está voltando para “casa”. A Adidas decidiu iniciar produção de calçados esportivos na cidade bávara de Ansbach e em Atlanta a partir da instalação de fábricas também supersofisticadas e automatizadas. A Nike não está atrás e também já decidiu produzir calçados esportivos nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos onde estão os seus principais mercados.

Hoje, fábricas da Adidas, Nike, Zara e outras tantas marcas globais estão concentradas em países como Vietnam, Tailândia, Laos, Indonésia, El Salvador e outros países em desenvolvimento. A produção responde por parcela importante do emprego formal, receitas tributárias e exportações daqueles países. Em El Salvador, por exemplo, os têxteis representam nada menos que 45% do total das exportações.

Mas é muito provável que esse cenário se altere significativamente nos próximos anos.

De fato, estamos presenciando uma profunda transformação da geografia da produção que terá efeitos sem precedentes para os países em desenvolvimento. Força de trabalho e mesmo incentivos fiscais e subsídios muitas vezes oferecidos para atrair investidores estão perdendo relevância em favor de novas tecnologias de produção e de gestão da produção e proximidade dos mercados consumidores. De outra forma, fatores de custo estão definitivamente perdendo espaço para tecnologias.

De onde, então, virão os empregos? Virão, majoritariamente, do desenvolvimento, distribuição e gerenciamento de plataformas digitais, inovações, tecnologias, design, marcas e outros fatores intangíveis e da gestão de cadeias de valor. Milhões de empregos já estão sendo criados nessas áreas em países como Estados Unidos e Alemanha e até na China, que entendeu a transformação em curso e nela se engajou de corpo e alma. Não é propriamente no chão de fábrica, mas no “entorno” dela que estará a criação de empregos.

E os países em desenvolvimento? É muito provável que eles se defrontem com desafios jamais vistos para criar empregos. Agendas de custos baixos já não serão suficientes. Capital humano, ambiente de negócios, fomento ao empreendedorismo e maior acesso a commodities digitais serão parte da solução, mas também não serão suficientes.

A esta altura, soluções muito mais complexas e sofisticadas terão que ser exploradas, como a industrialização das vantagens comparativas, e políticas que promovam leapfrogging. Isto exigirá enorme capacidade de elaboração e implementação de políticas.

Comércio eletrônico: é preciso regulamentar?

O entendimento sobre o que é comércio eletrônico abrange mais do que a simples venda de bens pela internet. Apesar do varejo em lojas físicas ainda representar a maior parcela do comércio total, o e-commerce – tanto business-to-business (B2B) como business-to-consumer (B2C) – tem crescido muito nos últimos anos, especialmente na modalidade transfronteiriça. Relatório da empresa internacional de logística DHL aponta que, em 2020, esse mercado poderá passar de US$ 1 trilhão, representando 22% de todo o e-commerce mundial.

As implicações desse movimento para a economia são cada vez mais visíveis. Basta observar o valor de mercado e o crescimento projetado das vendas de empresas como Amazon e Alibaba, e o fortalecimento dos braços de compras de plataformas como Facebook e Google (Google Shopping) para compreender porque temas ligados ao comércio eletrônico estão ganhando cada vez mais espaço nas discussões internacionais de comércio.

A consolidação do mercado global de e-commerce está se tornando desafio crescente para empresas locais ou entrantes competirem com “superestrelas” como a Amazon. A lógica do winner-takes-all explica as aquisições e fusões defensivas de grandes varejistas. No fundo, é uma competição não mais por nichos de mercados, mas uma busca pela sobrevivência. Afinal, já há sinais de que as plataformas de fornecimento cuidarão de quase tudo que o consumidor precisa e deseja comprar. Como resultado, o único caminho para os varejistas locais, principalmente as lojas de médio e pequeno portes, é vender nessas megaplataformas ou marketplaces se subjugando às regras do jogo e imposições das plataformas (há algo ainda mais importante aqui, que é o fato de a plataforma capturar e usar todos os dados originados da relação entre o consumidor e o lojista – mas isto será objeto de outro post).

Apesar de paralisadas as negociações, o Tratado da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês) cumpriu papel importante ao revelar que o e-commerce é uma das novas arenas de “luta” no comércio mundial. Basicamente, o TPP pretendeu determinar os rumos da economia digital ao definir regras e procedimentos, incluindo o comércio eletrônico de bens e serviços, e temas como padrões, regras e tarifas sobre produtos digitais, localização de servidores, códigos fonte, etc. – todos considerados como “barreiras” aos mercados dos gigantes digitais do e-commerce. Assim, o TPP teria consequências contundentes para os seus signatários e também para os não signatários, em particular para o espaço de formulação de políticas públicas para o setor de serviços e para o e-commerce. Apesar de estar atualmente paralisado, o TPP se tornou inspiração e ponto de partida para as novas negociações comerciais.

Para economias em desenvolvimento, a atenção a essas condições deve ser redobrada, pois a participação em acordos que tratam do comércio eletrônico sem um cuidadoso debate interno sobre onde queremos chegar e o que precisa ser feito poderá dificultar o desempenho do setor e até mesmo as perspectivas do crescimento econômico de médio e longo prazos. O caso do Chile é simbólico: o comércio de varejo do país já é dominado pelos gigantes globais do e-commerce.

A corrida de ocupação dos espaços do e-commerce já tem players bem sucedidos, mas com estratégias distintas. A China praticamente fechou o mercado de e-commerce ao funcionamento de empresas americanas, como o Google e o Facebook, e limitou a ação da Amazon a vendas de bens que ela dispõe em seus próprios armazéns, impedindo-a de exercitar o seu superpoderoso braço de marketplace. Com isso, a China pavimentou o caminho para o desenvolvimento de novos gigantes como o Alibaba, JD.com e Weibo, que hoje já têm projeção global e são, juntos, substancialmente maiores que a Amazon. A China percebeu a sua condição de latecomer num setor crítico e usou ferramentas protecionistas para desenvolver a sua indústria digital nascente. Para empresas estrangeiras que podem operar na China, todos os dados devem ser depositados em servidores lá sediados.

Já os EUA estão empenhados na promoção de ampla liberalização e desregulamentação do mercado digital global, já que, à exceção das chinesas, quase todas as principais plataformas digitais globais são americanas, bem como o são as gigantes do e-commerce com maior presença no ocidente.

Os europeus, cientes dos efeito-rede e efeito-plataforma no mundo digital e no e-commerce, e temendo os efeitos de seu atraso nessas tecnologias, também estão jogando pesado em suas negociações comerciais com regiões menos desenvolvidas em prol da liberalização dos mercados de serviços, inclusive do e-commerce, em favor das suas empresas. Talvez não sejam apenas a preocupação concorrencial e com o bem estar do consumidor que expliquem as recentes multas bilionárias para a Microsoft e Google impostas pelas autoridades de competição de Bruxelas.

EUA e China são dois modelos extremos. O Brasil não é um líder digital e, por isso, agendas ultra-liberalizantes ou ultra-protecionistas devem ser vistas com cautela. Mas o Brasil não pode se enclausurar e proteger a ineficiência, sob pena de repetir os conhecidos erros do passado que ajudaram a nos trazer aqui. Talvez o mais razoável seja desenvolver uma estratégia que leve os operadores internacionais da economia digital a estabelecerem bases operacionais no Brasil (com servidores e abertura de código fonte) e formarem clusters digitais nacionais com parceiros locais.

Nessa discussão, também será preciso levar em conta que o comércio de varejo é, de longe, o setor que mais emprega no Brasil, em especial pessoas com pouca qualificação, bem como um dos setores que mais recolhem ICMS. A eventual expansão do e-commerce internacional no país não será, portanto, neutra em efeitos sociais nem fiscais, incluindo ali os impactos nos recolhimentos e nos benefícios previdenciários.

Uma estratégia nacional para inserir o Brasil na economia digital global deveria incluir ações em ao menos três direções: regulamentação interna do comércio eletrônico; construção de “capabilities”; e inserção internacional.

A regulação interna do comércio eletrônico deve partir do pressuposto de que esse não é um mero canal de vendas remoto, pois as modernas tecnologias permitem experiências de compra e venda tão ou mais completas quanto às do mundo real. Isso traz implicações para os direitos do consumidor, direito econômico (defesa da concorrência, mais especificamente), tributação, entre outros. Além disso, o Marco Civil da Internet e toda a sua regulamentação devem ser pensados numa perspectiva de desenvolvimento econômico, para além das questões sobre democracia e liberdade de expressão. Até mesmo a infraestrutura de transportes e armazenamento e suas regras precisam se adaptar para comportarem uma maior demanda por entregas rápidas, com extensa capilaridade e com projeção internacional. Também é preciso simplificar leis e normas. Porém, algumas das iniciativas recentes requerem atenção. Exemplo disso é a lei – suspensa por liminar no STF – que obriga varejistas online a recolherem ICMS em dois estados em transações interestaduais.

A construção de capabilities é uma tema especialmente importante. Apesar da tendência de consolidação do varejo eletrônico, ainda existe possibilidade de crescimento do mercado, especialmente o de nichos. Análise feita pela FedEx aponta que os segmentos de varejo eletrônico de médio porte crescem mais rapidamente que o segmento de massa. Isso ocorre pela possibilidade de prestação de vendas online e serviços com maior customização e especialização. Obviamente, isso faz parte de uma cultura empresarial na qual a possibilidade de contribuição do governo está centrada numa política de ambiente de negócios e incentivos à inovação e ao capital humano que incorporem, desde a alfabetização, o contato e a aprendizagem de linguagens de programação, machine learning e tecnologias digitais.

Finalmente, a inserção internacional deve ser o farol que orienta os dois pilares anteriores. Para isso, o país precisa amadurecer rapidamente seus planos de abertura comercial, inclusive com vistas à conquista de mercados externos. Manter a economia fechada será um equívoco; abrir o mercado digital de forma apressada sem um plano estratégico será outro equívoco.

Mas que uma coisa fique clara: o Brasil está atrasado na agenda da economia digital, que é a verdadeira guerra dos tronos do século XXI. Embora o momento atual seja de reformas estruturais que estabilizem e reorganizem a economia, é preciso ter clareza do contexto e propor políticas públicas que pensem as fronteiras econômicas do futuro. O que não podemos é esperar que o dirigismo estatal ou que o mercado por si só apareçam com soluções que parem de pé neste complexo novo mundo. Elas simplesmente não aparecerão.

A transformação econômica da China e os serviços

A China experimenta a mais formidável transformação econômica que se tem registro. De uma economia rural e agrária, a China passou a ser uma economia industrial e voltada à exportação de bens industriais. Reformas políticas combinadas com políticas de realocação da mão-de-obra rural para movimentar fábricas e com políticas vigorosas de expansão do crédito, dos investimentos e das infraestruturas levaram o país à condição de segunda maior economia do globo em menos de duas gerações.

Mas o modelo de export-led strategy fortemente baseado em acumulação de capital e em trabalho barato está chegando ao fim. As taxas anuais de crescimento do PIB passaram da ordem de 10-12% para cerca de 6,5% e deverão caminhar para um patamar de 4,5-6,5% nos próximos anos.

A China está promovendo nova reestruturação da sua economia. Agora, em direção a uma economia com maior participação dos serviços e com maior protagonismo da ciência e da tecnologia. Busca-se organizar e preparar a economia para a etapa mais avançada do desenvolvimento econômico. Ao invés de fábricas de cimento e de aço, fábricas de bens sofisticados com alto conteúdo de inovações embarcadas e produzidos com sistemas avançados de gestão e produção. Ao invés de foco em serviços de consumo, foco em serviços sofisticados de apoio aos setores industrial, agrícola e de mineração que, de um lado, reduzam custos e, de outro, agreguem valor e diferenciem os produtos. Plantas industriais tecnologicamente defasadas, intensivas em mão-de-obra, poluidoras e que consomem muita água estão sendo fechadas ou relocalizadas em outros países. De “fábrica do mundo” a China busca ser produtora de bens e serviços altamente sofisticados e gestora de cadeias globais de valor.

O caminho será longo, mas indicadores já mostram sinais de que a transformação está em curso.

O gráfico abaixo apresenta indicadores selecionados da economia chinesa. A despeito de ligeira queda, a participação da manufatura no PIB segue elevada, por volta dos 30-35%, muito acima do padrão dos países avançados, que é de metade daquele patamar.

Gráfico – China, indicadores selecionados

Notas sobre o gráfico: Densidade industrial: valor adicionado da manufatura per capita (em US$), eixo da esquerda. Fonte: calculado com dados do World Development Indicators.

%Manuf-PIB: participação percentual da manufatura no PIB, eixo da direita. Fonte: World Development Indicators.

%PBS-PIB (professional business services): participação percentual dos serviços comerciais profissionais no PIB; consideram-se os serviços especializados destinados às cadeias de produção tais como correios e telecomunicações, intermediação financeira, atividades imobiliárias comerciais, aluguel de máquinas e equipamentos, TI e atividades correlatas, P&D e outras atividades comerciais profissionais, eixo da direita. Fonte: World Input-Output Database.

%Serviços-PIB: participação percentual dos serviços no PIB, eixo da direita. Fonte: World Development Indicators.

A densidade industrial teve aumento contínuo e absolutamente espetacular. Entre 1979 – ano do início das reformas – e 2014, a densidade aumentou nada menos que 29 vezes, o que mostra uma crescente capacidade da indústria chinesa de se aprimorar e agregar valor.

O aumento da participação do setor de serviços não veio em detrimento da indústria. Pelo contrário, como mostram evidências empíricas (Arbache 2012, 2015, 2016), o aumento da densidade industrial resulta do aumento da relação sinergética e simbiótica da indústria e dos serviços para criar valor. O rápido aumento dos serviços comerciais profissionais (PBS) no PIB, que passou de 12% para 18% entre 2000-2014, é uma expressão desse movimento.

A tendência é que o setor de serviços siga crescendo seu protagonismo na economia chinesa, seja para atender à nova etapa do desenvolvimento econômico, seja para atender à crescente demanda do mercado interno urbano de consumo. É improvável, porém, que o setor de serviços atinja participação no PIB comparável ao dos países avançados, mas é muito provável que o PBS cresça de forma desproporcional.

Multa da Google, rendição da Nike e desenvolvimento econômico: o que há em comum?

Em 27 de junho, o órgão de defesa da concorrência da União Europeia (UE) anunciou uma multa recorde de € 2,42 bilhões para a Google. Trata-se da maior multa já aplicada pela UE para uma empresa por conduta anticompetitiva. A sanção se deveu por abuso de posição dominante em buscas na internet para favorecer o próprio comparador de preços para compras online, o Google Shopping. A Google também responde a dois outros processos na UE. Um relacionado à sua ferramenta de publicidade e outro relacionado ao Android, que já vem com diversos aplicativos próprios pré-instalados. Em ambos, a acusação é a mesma: prática anticompetitiva.

Por anos, a Nike se recusou a vender seus produtos no marketplace da Amazon por entender que este não seria o melhor caminho para a imagem da marca e para o seu modelo de negócios. Recentemente, porém, a Nike jogou a toalha e se associou ao gigante do e-commerce para comercializar os seus produtos.

O que essas duas estórias aparentemente dissociadas têm em comum? A explosiva importância da economia digital para determinar os contornos da economia no século XXI e os meios utilizados pelos grandes operadores para ampliar e manter o seu domínio.

Conforme indicou a UE, a Google usa e abusa de expedientes não competitivos para seguir ampliando a fatia da sua plataforma em vários segmentos da Internet. Ainda que isto possa lhe custar sanções, não é óbvio que a Google abandonará práticas competitivas questionáveis, já que os benefícios podem ser enormes. Já a Amazon, através de uma formidável capacidade de ação, ameaça sem cerimônia o varejo de rua não apenas dos Estados Unidos, mas, também, de outros países.

Há, definitivamente, uma transformação econômica em curso associada à economia digital e empresas com ambições globais sabem que é preciso se preparar para ela sob pena de ficarem pelo caminho. Ou de se tornarem dependentes da plataforma de alguma outra empresa.

Neste momento, observam-se plataformas segmentadas e plataformas mais amplas. Dentre as plataformas segmentadas incluem-se a PayPal, a SAP e outros serviços de propósitos específicos que se tornaram influentes em suas áreas, inclusive contribuindo para determinar padrões e regras.

Já as plataformas amplas atuam em frentes diversas e oferecem cada vez mais um leque de bens e serviços de A a Z . Ali estão as temidas superestrelas, como a Amazon e a Google. Os efeitos-rede e plataforma que essas empresas têm sido capazes de criar são de tal monta que tornou-se quase impossível contestá-las, ao menos no horizonte previsível. Isto explica, ao menos em parte, as práticas não-competitivas ousadas da Google e a capitulação da Nike.

Esse movimento também ajuda a explicar o definhamento dos unicórnios, startups que chegaram a valer US$ 1 bilhão ou mais e que, até recentemente, incomodavam as superestrelas. A PayPal, por exemplo, está perdendo clientes para a Amazon simplesmente porque uma plataforma de pagamentos segmentada tem menos condições de competir com um sistema de pagamentos próprio já “pré-embarcado” numa plataforma geral.

O que está em jogo nem sempre é a melhor prestação de serviços para o consumidor ou mesmo o melhor algoritmo, mas o modelo de negócios mais adaptado ao  agressivo ambiente que se desenrola. Por isto, o futuro da PayPal é incerto.

O que tudo isto tem a ver com o desenvolvimento?

Haverá um acelerado processo de consolidação de vários segmentos que estão direta ou indiretamente expostos à economia digital dando origem a conglomerados sem precedentes com enorme poder de ação e influência global.

A despeito da briga de foice que se trava entre empresas dos Estados Unidos e de outros países avançados pela dominância de mercados digitais, esta estória não é neutra do ponto de vista do desenvolvimento. Afinal, como temos reiterado neste blog, o mundo está sendo dividido entre usuários de um lado, e desenvolvedores, distribuidores e gerenciadores de commodities digitais de outro.  E neste último grupo estão países como Estados Unidos, Alemanha e Japão, e, correndo por fora, a China.

Esse movimento sugere fortemente a necessidade de governos e reguladores se atentarem para o canto da sereia das supostas belezas da convergência regulatória e da liberalização dos mercados digitais sem terem uma estratégia de longo prazo.  Diferentemente de mercados convencionais, como  automóveis, têxteis e produtos químicos, a economia digital não é mais do mesmo. Ao tempo em que é uma grande ameaça para aqueles que ficarem para trás em áreas variadas como perspectivas de crescimento econômico, criação de empregos, carga tributária, privacidade e proteção de dados e segurança nacional, a economia digital ainda oferece enormes oportunidades, justamente em razão da sua natureza tecnológica.

China e Índia já entenderam isto e trabalham com estratégias bem definidas tanto para protegerem seus interesses como para contestarem mercados e se tornarem players globais.

O caminho a seguir é o de desenvolver políticas públicas que identifiquem e removam obstáculos e criem oportunidades para o país participar da economia digital como desenvolvedor, distribuidor e gerenciador de commodities digitais e não apenas como usuário.

Fortalecer o conhecimento das crianças e jovens em matemática, ciências da vida, machine learning, programação e desenvolvimento de algoritmos e línguas estrangeiras; criar um ambiente favorável para o surgimento, crescimento e atração de startups; e colaborar com centros de pesquisa estrangeiros e com empresas multinacionais de economia digital devem ser parte de uma agenda mais extensa e ambiciosa que proteja os interesses do Brasil ao tempo em que otimiza o seu potencial de voos mais altos na economia global.

Investimentos diretos estrangeiros no setor de serviços

A UNCTAD publicou recentemente o Relatório Mundial de Investimentos 2017. O relatório oferece um rico conjunto de estatísticas e análises sobre o investimento global. Muitos assuntos chamam atenção no documento e dentre eles está o da participação dos serviços no investimento direto estrangeiro (IDE).

Do estoque global de IDE de US$ 25,6 trilhões em 2015, cerca de US$ 16 trilhões estavam alocados em serviços, o que perfazia algo como dois terços do total. Dentre os setores com maiores participações no estoque de IDE estão finanças, com US$ 5,6 trilhões, business services, com US$ 4,7 trilhões, atividades de comércio, com US$ 2,6 trilhões, e telecom, com US$ 1,8 trilhão.

Dos US$ 869 bilhões em fusões e aquisições (M&A) entre fronteiras registrados em 2016, US$ 383 bilhões destinaram-se ao setor de serviços. Em comparação com 2015, houve aumento de M&A em serviços de 25,4%, enquanto que nos demais grandes setores — manufatura e atividades primárias — o aumento foi de 13,5%. Dentre os setores que mais observaram aumento de negócios em M&A estão finanças, business services, entretenimento e transporte e armazenamento.

As estatísticas sobre valores anunciados de projetos de investimentos greenfield mostraram elevação de 14,8% entre 2015 e 2016 nos projetos em serviços , que passaram de US$ 419 bilhões para US$ 481 bilhões. No mesmo período, houve queda de 3% nos valores dos projetos greenfield anunciados em manufatura e em atividades primárias.

Esses números impressionantes refletem a crescente relevância dos serviços na economia global e a crescente atratividade dos negócios no setor. Mudanças do padrão de consumo em favor dos serviços, crescente participação dos serviços na matrizes de custos dos bens manufaturados e primários e avanço da economia digital  sugerem que os serviços provavelmente abocanharão parcela ainda maior do IDE nos próximos anos. Mais do que em outros setores, devemos esperar forte aumento  da consolidação dos mercados de serviços no mundo. Países emergentes devem mirar em como participar ativamente desse movimento na condição de investidores. Aqui, China e Índia já têm algumas interessantes experiências para inspirar outros países.

Inteligência artificial e automação vão mesmo destruir empregos?

Um dos assuntos que mais está atraindo as atenções nos dias de hoje são os efeitos da inteligência artificial e da robotização (AI&R) no mercado  de trabalho. De forma simplificada, analistas defendem que a AI&R tomarão o lugar das pessoas em muitas atividades econômicas — de atividades laborais com rotinas pré-definidas e mesmo com rotinas não repetitivas, mas previsíveis, a atividades que requerem capacidades cognitivas e que antes eram consideradas difíceis de automatizar.

Do ponto de vista da empresa, se a automação pode fazer a tarefa de forma mais eficiente e até com menor custo, inclusive de aprendizagem e de gestão, então parece razoável que trabalhadores venham a ser total ou parcialmente substituídos por tecnologias. A substituição já está acontecendo de forma generalizada, mas com especial intensidade em alguns setores – pense nas modernas fábricas de automóveis e de produtos eletrônicos.

Se, do ponto de vista da empresa, a substituição pode fazer sentido, do ponto de vista coletivo a questão tem levantado sinais de alerta, notadamente por seus efeitos sociais. Um dos temores é que a maior pressão sobre o mercado de trabalho causada pela substituição de robôs por trabalhadores leve ao aumento da desigualdade de renda e de riqueza, inclusive com impactos não negligenciáveis na política local. De fato, já há evidências de que o tema está contagiando as agendas políticas e muitos o consideram como um dos fatores a explicar, ainda que indiretamente, resultados eleitorais e de plebiscitos recentes em países avançados.

Que AI&R já tem e terá ainda mais impactos nos mercados de trabalho nacionais, disso poucos analistas discordam. O que não está claro nas diferentes visões sobre a questão são os prováveis efeitos daqueles impactos em nível de país e também em nível global.

Grosso modo, para exame dessa questão, podemos classificar os países em dois grupos. O primeiro é composto por países que partiram na frente no emprego de AI&R, como Estados Unidos, Alemanha, Suécia, Japão e Coreia do Sul. Na Coreia do Sul, por exemplo, já há 500 robôs ativos para cada 10 mil trabalhadores. Tudo o mais constante, incluindo a queda da população em idade ativa em muitos países, a substituição de robôs por trabalhadores levará à destruição líquida de postos de trabalho em vários setores e regiões. No médio prazo, porém, o impacto é incerto.

O segundo grupo é composto por países emergentes e em desenvolvimento, e mesmo por alguns países avançados, nos quais a mão de obra ainda é relativamente barata, como Portugal e Espanha. Os efeitos de AI&R no emprego serão menores, porém, apenas no curto prazo.

No primeiro grupo, o impacto no médio prazo é incerto porque a destruição de empregos será ao menos parcialmente compensada pela farta criação de empregos nas áreas tecnológicas. Afinal, é naqueles países que está se desenvolvendo, gerenciando e distribuindo em nível global as tecnologias digitais. E é neles que estão sediadas as mais poderosas plataformas digitais que cada vez mais fazem parte do dia-a-dia das pessoas, famílias, empresas e governos. Pense no Google, Apple, Facebook, Microsoft, Amazon, Alibaba, AT&T, PayPal e SAP, ou em serviços como o Netflix e o Uber.

A convergência regulatória ora em curso e o tratamento alfandegário e tributário preferenciais dispensados para atividades da economia digital garantem que empregos em tecnologia e em e-commerce serão gerados basicamente nos países que sediam o desenvolvimento, gestão e distribuição daquelas plataformas.

Dessa forma, a geração de empregos tecnológicos associada à realização de altas taxas de lucro e de capacidade de coleta de impostos sobre esta renda poderão mitigar ao menos parcialmente os efeitos negativos da substituição de robôs por trabalhadores. Restará àqueles países desenvolver políticas fiscais, industriais e sociais adequadas para neutralizar o problema do desemprego associado à AI&R.

No segundo grupo, os prospectos de emprego de médio prazo são, infelizmente, menos promissores, ao menos até onde conseguimos antever. E isto decorre da combinação das novas tecnologias de produção e de gestão da produção com o efeito-rede e a commoditização digital, que estão tornando custos baixos de produção fatores cada vez menos relevantes para se ser competitivo internacionalmente. De fato, a banalização dos bens de capital está transformando radicalmente a forma como entendemos a atividade de produção e de distribuição da riqueza em nível global e mesmo a noção convencional de escassez de recursos produtivos. Mão-de-obra farta e barata, incentivos fiscais e outras formas convencionais de atração de investimentos para países em desenvolvimento requerem, portanto, revisão.

Sendo assim, há que se esperar aumento da pressão nos mercados de trabalho dos países em desenvolvimento e expansão de atividades non-tradable, especialmente serviços de baixa agregação de valor.

Com fins de alterar aquele destino, será preciso que se entenda a diferença entre usar e desenvolver, gerenciar e distribuir tecnologias e recursos digitais. E agir. Afinal, está cada vez mais claro que, no século XXI, a fonte primária da geração do emprego e da riqueza está na capacidade de se criar conhecimento e riquezas intangíveis e de “embuti-los” em bens industriais, agrícolas, minerais e mesmo em terceiros serviços, bem como em se desenvolver e gerenciar plataformas digitais.

A tarefa não será fácil, pois vai requer a gestação de toda uma nova geração de políticas públicas e privadas que mirem o conhecimento e a economia digital como a mola propulsora do desenvolvimento.

Comércio exterior de serviços – o que vem pela frente?

Há muito que este blog vem discutindo as causas e consequências da elevada e crescente contribuição do setor de serviços para a economia brasileira. Seja pelo lado da participação no emprego, no PIB ou na produtividade, os serviços são cada vez mais determinantes dos destinos da nossa economia.

Um aspecto menos visível, mas que merece maior atenção, é o comércio exterior de serviços. Considere comparações entre os quinquênios inicial e final do período 1995 a 2016. No quinquênio 1995-1999, a corrente anual média de comércio de serviços foi de US$ 20 bilhões, o que correspondeu a 19% da corrente de comércio de bens. No quinquênio 2012-2016, a corrente já era de US$ 114 bilhões anuais, valor correspondente a 28% da corrente de bens.

O aumento da corrente de serviços foi mais fortemente influenciado pelas importações, como mostra o gráfico abaixo. De fato, enquanto no primeiro quinquênio as importações anuais médias de serviços foram de US$ 14,5 bilhões, as exportações anuais médias foram de US$ 5 bilhões. Já no último quinquênio, a média anual de importações passou para US$ 78 bilhões, enquanto que a de exportações passou para US$ 37 bilhões. O gráfico mostra que uma espécie de “boca de jacaré” se abriu, levando a um crescente déficit da conta de serviços – no primeiro quinquênio, o déficit anual médio foi de US$ 8,4 bilhões, mas no último quinquênio o déficit anual médio já tinha subido para US$ 40 bilhões.

O déficit do comércio de serviços passou a ter  crescente relevância para o saldo da balança comercial agregada de bens e serviços. No primeiro quinquênio, o déficit anual médio de serviços correspondeu a 61% do déficit da balança comercial Já no último quinquênio, o déficit anual passou a corresponder a números situados no intervalo entre 100% e 200% do déficit da balança comercial. Ou seja, os serviços tornaram-se o mais importante determinante do saldo da balança comercial e causa fundamental do déficit de transações correntes.

Como mostra o gráfico, parece ter havido mudança estrutural no comércio de serviços a partir de 2004, quando a corrente de comércio passou a crescer rapidamente. A partir de 2014, no entanto, a corrente de comércio entrou em declínio puxada principalmente pela queda das importações.

A queda recente da corrente de serviços pode ser explicada, ao menos em parte, pela recessão e pela desvalorização da taxa de câmbio. Mas é muito provável que uma vez que a economia volte a se recuperar, as importações de serviços também voltarão a se recuperar, mas a taxas desproporcionalmente maiores que a do crescimento do PIB. E isto se deve à elevada elasticidade da importação de serviços com relação ao produto. O quadro de recuperação também deverá ser acompanhado de aumento do déficit de serviços porque a elasticidade  das importações é maior que a das exportações, o que decorre, ao menos em parte, da crescente relevância dos serviços no comércio e nas cadeias globais de valor.

O que vem pela frente?

É muito provável que a corrente de comércio de serviços siga aumentando no futuro próximo e que influencie cada vez mais o resultado das contas externas. Para além do diferencial de elasticidades,  o que determinará mesmo o aumento da corrente de serviços será o explosivo crescimento da importância dos serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos e da economia digital na produção e na gestão da produção, no comércio e no bem-estar das pessoas.

Gestão e uso de dados, serviços nas nuvens, e-commerce, entretenimento digital, marcas, propriedade intelectual, design, marketing, distribuição, uso de serviços de plataformas, dentre muitos outros serviços sofisticados estão se tornando componentes praticamente obrigatórios do dia-a-dia das empresas e da cesta de consumo das pessoas. Como a maior parte daqueles serviços é, e se tudo continuar como está, seguirá sendo importada, o déficit comercial de serviços provavelmente aumentará substancialmente nos próximos anos.

Um indicador dessa tendência são as contas externas de pagamentos de serviços de propriedade intelectual e de serviços de telecomunicação, computação e informações. As importações anuais médias de propriedade intelectual passaram de US$ 1 bilhão para US$ 5 bilhões no primeiro e último quinquênios, e as importações anuais médias de serviços de telecomunicação, computação e informações passaram de US$ 670 milhões para US$ 4 bilhões. No último quinquênio, aquelas duas contas já respondiam, sozinhas, por quase 20% do déficit total da conta de serviços.

Essas tendências, juntamente com a commoditização digital, sugerem fortemente que o comércio de serviços tem que ser parte integrante das políticas de crescimento econômico sustentado, bem como das agendas de políticas comercial, de investimento, industrial, tecnológica, capital humano e de infraestrutura. Afinal, já há pistas suficientes mostrando que, no futuro próximo, não será possível criar riquezas, gerar empregos de qualidade e entrar pela porta da frente nas cadeias globais de valor senão a partir da capacidade de desenvolver e gerenciar serviços sofisticados e de “empacotá-los” dentro de bens e de terceiros serviços.

Custos e benefícios da abertura do mercado de serviços

Este blog tem discutido há muito que os serviços brasileiros são relativamente caros e de baixa qualidade para padrões internacionais, o que compromete a competitividade das empresas que os utilizam como insumos de produção. Também tem mostrado que vários segmentos do mercado de serviços são bastante protegidos da competição internacional.

A quase instantânea reação a essas evidências é a de apoiar a abertura do mercado de serviços como forma de minorar os impactos negativos mais imediatos para as empresas. Posição mais que legítima. A defesa da maior competição deve, porém, levar em conta outros pontos que também têm impactos para a competitividade, produtividade e geração de riquezas e empregos. Dentre esses pontos, incluem-se os que seguem.

Primeiro, os serviços de custos, como logística e fretes, portos, serviços financeiros convencionais, serviços industriais e serviços de manutenção e apoio, são normalmente menos comercializáveis internacionalmente em razão da sua natureza — pense nos serviços de cargas internas — e, portanto, são providos majoritariamente em nível local. Já os serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos, como licenças e royalties, softwares customizados, design, marcas, marketing, distribuição e pós-vendas, são mais passíveis de serem comercializados internacionalmente também em razão da sua natureza — pense nos serviços providos via internet.

Segundo, embora a participação dos serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos no valor adicionado esteja crescendo, os serviços de custos ainda são absolutamente majoritários nas nossas matrizes de custos industriais  e de commodities (juntas, as duas classes de serviços correspondem a nada menos que 64% do valor adicionado da indústria). Matrizes internacionais de insumo-produto (WIOD) mostram que a participação dos serviços de custos é desproporcionalmente elevada no Brasil porque ela espelha a estrutura de produção — bens sofisticados consomem mais serviços de agregação de valor, enquanto que bens menos sofisticados consomem mais serviços de custos. Commodities, semimanufaturados e outros produtos e serviços de baixo valor adicionado respondem pela maior parte do PIB e das nossas exportações.

Terceiro, muitos dos mais importantes serviços de custos consumidos pelas empresas no Brasil são excessivamente concentrados e oligopolizados, o que leva a preços altos, ineficiências e poucos incentivos para inovar. O mercado de serviços financeiros, que perfazem, em média, 25% dos serviços consumidos pelas empresas, é revelador.  O aumento da competição e da eficiência nos serviços de custos requer, antes de tudo, a remoção de barreiras à entrada de novas empresas e a modernização da regulação que governa aqueles serviços. A tributação incidente sobre muitos serviços de custos é elevada e distorciva e compõe o quadro de ineficiências e preços altos.

Quarto, evidências empíricas mostram que enquanto os serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos elevam a produtividade e a competitividade das empresas, os serviços de custos têm pouco ou nenhum impacto na produtividade, o que decorre desses serviços serem condição necessária, mas não suficiente para se competir internacionalmente. Serviços eficientes e modernos de logística e portos, por exemplo, reduzem custo, mas não criam valor nem inserem o produto em estágios mais avançados das cadeias globais de valor. Isto, quem pode fazer, são os serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos, sobretudo por meio das relações sinergéticas e simbióticas entre bens e serviços para criar valor (Arbache 2016, capt 2).

As considerações acima sugerem que, na margem, a abertura do mercado terá maior impacto nas importações de serviços de agregação de valor do que nos serviços de custos. Por isto, não se deve esperar que a abertura venha, per se, a impactar substancialmente a competitividade e a produtividade das empresas.

A maior dependência da importação de serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos decorrente da abertura poderá ter impactos não negligenciáveis nos incentivos para se desenvolver esses serviços no país, o que poderá ter implicações importantes na nossa capacidade de adicionar valor e de participar de fases mais sofisticadas das cadeias globais de valor. As maquilas do norte do México e a Zona Franca de Manaus são reveladores dos efeitos dessa dependência sobre o que e o como se produz.

Por fim, embora os serviços de custos sejam mais importantes para os produtos que mais produzimos e exportamos, mesmo ali os serviços de agregação de valor já exercem influência importante. Pense na soja em grão. P&D e royalties embutidos nas sementes e nos agrotóxicos, serviços técnicos especializados, serviços de satélite, comercialização em mercados futuro, comercialização internacional por trading companies, dentre outros serviços sofisticados — e que são majoritariamente importados – já respondem por elevada e crescente parcela do valor final da commodity.

O que fazer?

A esta altura do acirramento da competição global por um lugar ao sol, é crucial, crítico até, reconhecer as limitações dos nossos serviços e de seus impactos deletérios na produtividade das empresas e também na produtividade agregada, já que eles perfazem 73% do PIB.

Mas tão ou mais importante que abrir o mercado é remover as enormes barreiras à competição interna que geram verdadeiros cartórios. Além disso, é preciso identificar os principais bottlenecks a partir das relações sinergéticas e simbióticas entre bens e serviços para se criar valor e ali promover aumento dos investimentos e maior acesso à tecnologias (as novas políticas operacionais do BNDES são encorajadoras e vão nesta direção). Outras políticas que serão úteis para o desenvolvimento e a competitividade dos serviços incluem medidas que atraiam investimentos de multinacionais de serviços e seus laboratórios de P&D, estimulem as universidades e institutos de pesquisa a desenvolverem tecnologias de serviços sofisticados, reforma tributária que não discrimine a provisão de serviços de agregação de valor no país, investimentos em infraestruturas avançadas que estimulam negócios no setor (como banda larga) e formação de quadros voltados para as necessidades dos investimentos em serviços.

A maior abertura do setor é inquestionável, mas ela deve ser feita com visão estratégica e deve compor um conjunto coordenado de políticas que se complementem e que contribuam para gerar prosperidade e inserção internacional do país pela “porta da frente”. Deve, ainda, levar em conta a economia política da proteção e os erros de política que foram cometidos no passado e que ajudaram a criar tantas ineficiências no país.

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