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Concentração na Economia Digital: Poder de Edição, Círculo Vicioso de Médici e Defesa da Concorrência

  1. Antes de qualquer coisa: o que é uma firma?

As questões fundamentais da ciência econômica são: o quê, como, quanto e para quem produzir. Portanto, seu objeto de estudo é a alocação de recursos escassos para atendimento de necessidades ilimitadas. Há várias formas de se alocar recursos: os mercados e as firmas são algumas delas.

Uma teoria da firma tem como objetivo explicitar as razões para a existência de tal tipo de organização, bem como suas funcionalidades. Não há consenso, mas uma teoria da firma bastante difundida entre economistas é a teoria dos custos de transação (TCT) do Oliver Williamson, laureado com o Nobel de Economia de 2009 (partilhou a premiação com Elinor Ostrom).

A ideia central da TCT é que usar mercado envolve custo. Por exemplo, no sistema de proto-manufatura do tipo putting out, os mercadores barganhavam uma grande quantidade de contratos de fornecimento com diferentes artesãos autônomos, de forma descentralizada e não sincronizada. Barganhar, coordenar e monitorar contratos envolvia (e ainda envolve) custos e riscos elevados.

Trazer todas as máquinas e artesãos para dentro de um mesmo ambiente de trabalho, onde (i) o processo de produção passou a ser controlado e monitorado; (ii) foram estabelecidas condições de subordinação, hierarquia e comando; e (iii) onde os contratos de fornecimento foram substituídos por contratos de trabalho; foi uma forma de alocar recursos com custos menores, ou seja, de forma mais eficiente. Essa solução alocativa foi chamada de firma.

  1. Concentração: por que as firmas crescem?

A trajetória pela qual um produto ou serviço é desenvolvido, concebido, manufaturado e comercializado envolve uma grande quantidade de transações. Essas transações podem ser conduzidas por meio dos mercados. Quando os custos de transação são elevados, a firma pode internalizar tais trocas. Logo, a firma crescerá à medida que o custo de internalizar tarefas for inferior ao custo de se recorrer às trocas de mercado. Portanto, a eficiência da firma em internalizar custos de transação determinará seu tamanho, bem como seus graus de integração vertical e horizontal.

A dimensão concorrencial (a disputa por frações crescentes de mercado) também determina o tamanho das firmas. Alguns bens ou serviços são produzidos com economias de escala, ou seja, quanto maior o tamanho da firma, menor será o custo de se produzir uma unidade adicional daquele bem. Nestas situações encontramos os monopólios naturais. Barreiras à entrada a novos concorrentes, tais como patentes, também constituem formas de alavancar o crescimento das firmas incumbentes (aquelas que já se encontram nos mercados). As firmas também podem crescer de forma não orgânica, ou seja, simplesmente adquirindo outras firmas.

  1. Por que as firmas da economia digital são tão grandes?

A maioria das empresas de tecnologia são plataformas digitais e plataformas eficientes são plataformas grandes. Por exemplo, uma operadora de plano de saúde é um tipo de plataforma (não necessariamente digital) de dois lados, onde de um lado temos os pacientes e do outro temos os médicos, clínicas e hospitais. Uma administradora de cartões de crédito também é uma plataforma.

Numa plataforma eficiente e bem sucedida, os usuários devem desfrutar dos benefícios dos efeitos de rede (network effect). Esse benefício será maior, quanto maior o número de usuários nos dois lados da plataforma. Por exemplo, nenhum paciente ficará feliz em adquirir um plano de saúde com uma rede credenciada reduzida. Os médicos também terão incentivos reduzidos em aceitarem um seguro de saúde que cobre poucos usuários.

Uma rede social é uma plataforma digital, onde as pessoas partilham conteúdo. Tais plataformas podem trazer grande valor para seus usuários, sem que os mesmos necessariamente paguem por partilhar conteúdos. Os usuários também proporcionam grande valor para as plataformas, afinal a circulação massiva de pessoas e organizações naquela infraestrutura a torna uma espécie de “Rua 25 de Março” de proporções globais. Com uma diferença relevante: a plataforma é capaz de coletar informação estratégica (inferência sobre hábitos, costumes, padrão de consumo, capacidade de pagamento, etc.) de cada uma das pessoas daquela multidão. Tais inferências são possíveis por conta dos comportamentos e dos padrões de interação dos usuários na plataforma. O potencial de geração de valor econômico disso é incomensurável e é refletido no enorme valor de mercado de tais corporações.

  1. O poder de edição das plataformas digitais

O poder de edição das plataformas digitais é também conhecido como gatekeeper power. A teoria do gatekeeper power foi originalmente associada ao poder de edição da imprensa e o suposto exercício de noticiar apenas o que os jornalistas assim desejam. Cabe destacar que não há um consenso na teoria do jornalismo se tal poder de edição de fato exista. No caso das plataformas digitais, o poder de edição se daria de forma semelhante, mas não estaria limitado à circulação de notícias, mas também a qualquer forma de conteúdo partilhável, inclusive publicidade e propaganda.

Algumas questões merecem ser endereçadas nesse ponto: as plataformas digitais teriam de fato poder de influenciar preferências e decisões de consumo? Você compraria um produto pelo simples fato do algoritmo inferir isso e divulgá-lo em sua timeline? As corporações que adquirem espaços publicitários nestas plataformas realmente acreditam que vão alavancar vendas? As respostas parecem ser positivas para todas estas perguntas.

Isso também significa que podemos ser potenciais consumidores de um bem ou serviço que sequer sabíamos da existência, mesmo porque tal bem é capaz de suprir uma necessidade que sequer nos incomodava até então. Mito ou realidade, o fato é que os empreendedores são guiados por tal crença, como pode ser constatado nas palavras de Steve Jobs: “a lot of times, people don’t know what they want until you show it to them”.  Se de fato isso for verdadeiro, o poder econômico de edição das plataformas digitais é, mais uma vez, proporcional ao valor de mercado de tais corporações.

  1. O poder de imputar custos a rivais

O poder econômico de uma grande corporação, associado ao poder de edição de veiculação de informações (gatekeeper power) acerca de bens e serviços (que as pessoas não sabiam que desejavam até que tenham sido apresentados e elas), proporciona à plataforma uma capacidade gigantesca de geração de sinergias com novos negócios. Por exemplo, distribuir e comercializar conteúdo digital em geral, tal como notícias, músicas, filmes, softwares, soluções e aplicativos em geral.

Contudo, o mesmo poder de edição pode ser usado para imputar custos aos rivais e a potenciais entrantes nos diferentes mercados explorados pela plataforma, inclusive contra startups provedoras de produtos altamente inovadores e diferenciados. Um suposto uso abusivo do poder de edição teria como efeito a restrição de espaço para divulgação de tais soluções aos potenciais consumidores, de modo que a probabilidade de sucesso na introdução de uma inovação por rivais ficaria, ao menos teoricamente, bastante reduzida. Parece claro que as consequências disso em termos de bem estar da sociedade são bastante negativas, uma vez que limitaria a velocidade com que as inovações são produzidas e difundidas na economia.

  1. A teoria política da firma e o círculo vicioso de Médici

Em artigo publicado em 2017 no prestigioso periódico Journal of Economic Perspectives, Luigi Zingales sugere a construção de uma teoria política da firma. A proposta teórica do artigo, intitulado “Towards a Political Theory of the Firm”, gira em torno da noção do que o autor denomina de círculo vicioso de Médici, em referência ao poder econômico da família de banqueiros e mecenas fiorentinos da Renascença.

Os Médici não apenas acumularam fortuna com seus negócios, mas também tiveram papel fundamental na construção da revolução cultural e científica do Renascentismo. Adicionalmente, obtiveram êxito político extraordinário ao garantirem, por exemplo, que quatro de seus membros exercessem um dos postos políticos mais poderosos e influentes do mundo ocidental: o Papado da Igreja Católica.

Sabemos que o faturamento de muitas das modernas corporações da economia digital supera até mesmo a arrecadação tributária de vários países. Isso significa que tal poder econômico seja capaz de influenciar de forma decisiva as “regras do jogo” que moldam o ambiente de negócios de uma economia capitalista. Portanto, grandes corporações podem usar o poder econômico para obtenção de poder político, de forma a influenciar as “regras do jogo”, garantindo assim mais poder econômico, que proporcionará mais poder político e ainda maior capacidade de influenciar na construção das “regras do jogo” e assim por diante. Cabendo destacar que as “regras do jogo” não se limitam ao âmbito dos Estados Nacionais, mas também as “regras do jogo” dos mercados globais e dos acordos multilaterais.

A lógica da alocação de recursos no interior das firmas não segue, necessariamente, a mesma lógica de alocação de recursos por meio dos mercados. Como foi brevemente descrito na primeira seção deste artigo, segundo a TCT, quando os custos de transação dos mercados são elevados, a firma internalizaria tais trocas. Portanto, a firma seria, sob algumas condições e circunstâncias, um substituto dos mercados. Logo, não faria muito sentido imaginarmos que firmas e mercados seguissem os mesmos padrões de regras alocativas. Neste sentido, fica claro interpretar o argumento de Zingales, quando o mesmo sugere que a extensão do círculo vicioso de Médici depende de vários fatores não relacionados aos mercados.

  1. Política Antitruste e Defesa da Concorrência

Vários países dispõem de legislação antitruste (algumas mais sofisticadas que outras) que busca endereçar alguns dos problemas acima relacionados. O “pacote básico” de política antitruste inclui controle de concentrações (análise de fusões e aquisições) e repressão às condutas unilaterais (abuso de posição dominante) e concertadas (cartéis).

Algumas jurisdições dispõem de relativa riqueza de recursos humanos e materiais para exercer tais tarefas, como são os casos do sistema FTC/DOJ dos EUA e do DG Comp da União Européia. Mesmo em tais jurisdições, há um debate em torno da ideia de que o atual conjunto de ferramentas disponíveis para estas autoridades não seja suficiente para lidar com os novos desafios impostos pela economia digital. Parte disso se deve ao fato de que autoridades da concorrência se guiam em torno da noção de mercados (principalmente a noção de mercados relevantes) e, como já discutido ao longo deste artigo e sugerido por Zingales, os mercados podem ter muito pouco a revelar acerca da real extensão dos círculos viciosos envolvendo poder político e poder econômico.

No caso brasileiro, dispomos do CADE: uma autoridade antitruste que desfruta de excelente reputação internacional, além de agregar um quadro técnico e diretivo bastante qualificado. Contudo, há uma grande heterogeneidade qualitativa na qual o CADE processa casos envolvendo atos de concentração (AC’s), cartéis e condutas unilaterais. No caso dos AC’s e dos cartéis, o CADE consolidou de forma muito satisfatória sua atuação, de modo que seu desempenho não destoa do que é produzido nas melhores jurisdições do mundo. Contudo, no âmbito da análise das condutas unilaterais, com destaque àquelas relacionadas ao abuso de posição dominante, há um caminho longo a ser percorrido. O problema é que a maioria dos potencias efeitos colaterais da concentração da economia digital são refletidas nestas formas de conduta.

A solução não é muito trivial. Eu mesmo exerci a função de economista-chefe do CADE entre os anos de 2014 e 2016. Costumava interagir com os economistas de outras autoridades, principalmente dos EUA e Europa. A diferença de prioridades era nítida. Enquanto eu tinha como tarefa prioritária contribuir na consolidação de um protocolo de análise prévia de AC’s (atualização de Guia e construção de modelos de simulação) e de estimativas de danos de cartéis, meus colegas dos EUA e Europa já haviam superado isso e toda a energia disponível era alocada para análise de condutas unilaterais.

As prioridades eram óbvias. Da nossa parte, estávamos lidando com um cenário de concentração e consolidação de mercados e cadeias produtivas (inclusive estimuladas por políticas públicas) e com o desmantelamento de cartéis por meio de acordos de leniência, por exemplo. Já nossos colegas de Europa e EUA estavam mais preocupados com a atuação de gigantes da economia digital, pois já sentiam de forma mais evidente os efeitos colaterais de seu gigantismo.

Esse amadurecimento da política antitruste no Brasil foi reportado de forma bastante elucidativa por Amanda Athayde, em seu artigo de opinião de 01/11/2017 no Portal JOTA, intitulado “As três ondas do antitruste no Brasil: A Lei 12.529/2011 e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica”. Como bem apontado pela autora, superamos a primeira (análise de AC’s) e segunda onda (cartéis), mas a “terceira onda” ainda está “a ser iniciada no Brasil”.

Espero que sejamos rápidos, para que também possamos construir e aprimorar nossas “regras do jogo”, que busquem priorizar o gênio inovativo e empreendedor de um capitalismo brasileiro que ainda não tivemos a felicidade de construir.

Luiz A. Esteves é Economista Chefe do Banco do Nordeste (BNB) e Professor do Departamento de Economia da UFPR. Foi Economista Chefe do CADE e Chefe Adjunto da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento. Doutor em Economia pela Universidade de Siena, Itália.

Como as TICs têm proporcionado o crescimento de serviços

Conforme vem sendo discutido aqui no Blog, é nítido o crescimento da relevância do setor de serviços para geração de riquezas. A participação dos serviços nas exportações mundiais passou de aproximadamente 9% em 1970 para algo em torno de 20% em 2014. Atualmente, “os serviços já representam 75% das economias da OCDE; nos Estados Unidos, eles já passam dos 80%; e nas economias de renda média, eles já são 54%” (ARBACHE, 2014, p. 6). No Brasil, os serviços são responsáveis por 70% do PIB. Mas não foi sempre assim: o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) tem possibilitado a crescente comercialização a longas distâncias de serviços modernos que independem de presença física entre consumidores e produtores. Esse processo viabiliza a crescente terceirização que tem aumentado o comércio de serviços entre unidades produtivas, intensificando a relação sinérgica e simbiótica dos serviços com a indústria e do Big Data, que proporciona oportunidades de novos serviços e negócios. Tudo isso tem contribuído para o aumento da importância do setor de serviços na geração de riquezas.

Através de análises empíricas, Loungani et al. (2017, p.13) afirmam que a relação entre o crescimento do setor de serviços e o crescimento de toda a economia tem se tornado mais forte. Especificamente, eles encontraram um coeficiente de correlação de 0,6 entre o crescimento de serviços e o crescimento do PIB per capita, versus um coeficiente de correlação de 0,24 entre o crescimento da manufatura e o crescimento do PIB per capita. O (coeficiente de determinação) para a parcela de valor agregado de serviço encontrado foi 0,51; e o R² para a parcela de valor agregado de manufatura, 0,19. A fim de ilustrar o maior espaço ocupado pelos serviços na participação do crescimento das exportações mundiais, os autores prepararam a figura abaixo.

Figura 1. Contribuição das exportações de serviços e manufaturas para o crescimento das exportações mundiais, de 1990 a 2014, em percentual.

Fonte: Manual 6 do Balanço de Pagamentos do Fundo Monetário Internacional (FMI), dados de 2016 da UN COMTRADE e cálculos dos autores que elaboraram o gráfico (LOUNGANI et al., 2017). Tradução própria.

A figura acima evidencia a separação proposta por Loungani et al. (2017) dos serviços em dois grupos: serviços tradicionais e serviços modernos. Os primeiros seriam aqueles que requerem proximidade física entre compradores e vendedores, como serviços de manicure, de cabeleireiro, serviços de transporte, de hotelaria e etc. Os modernos, por sua vez, dispensam proximidade física entre compradores e consumidores: seriam serviços de consultoria, de marketing, design, de pesquisa e desenvolvimento, tecnologia da informação (TI) e etc. Conforme a digitalização e o progresso tecnológico avançam, a diferenciação de tais serviços se tornaria cada vez mais imprecisa pois os tradicionais se tornariam modernos. Um exemplo desse fenômeno poderia ser a consulta médica: a princípio ela é serviço tradicional, mas na medida em que a telemedicina avança, os pacientes podem enviar exames online e serem atendidos remotamente.

Os serviços estariam crescendo em participação no comércio mundial e na renda dos países por quatro motivos principais. O primeiro é fácil de se imaginar: o progresso técnico nas TIC possibilita a crescente troca de dados entre países e, embutidos neles, serviços dantes impossíveis de serem comercializados. Serviços de logística, por exemplo, são hoje oferecidos para vários países pela empresa americana Amazon, através de sua plataforma online; seguros para bens móveis e imóveis podem ser contratados sem sair de casa; créditos podem ser adicionados ao celular com apenas alguns cliques em aplicativos de bancos e serviços de banda larga podem ser contratados através dos sites de provedores.

O segundo motivo para o crescimento do setor de serviços seria sua crescente participação nas cadeias globais de valor. De acordo com Arbache (2015, p. 3), o desenvolvimento e a massificação das TIC, bem como dos serviços de transporte e logística, contribuem para a popularização das tecnologias organizacionais e de produção que possibilitam às firmas focarem nas suas atividades principais, terceirizando as demais funções.

Podemos exemplificar essa ideia do autor com o caso de um fabricante de acessórios de informática no Brasil. Em sua cadeia de suprimento, serviços de telecomunicações são contratados de provedores regionais; empresas de transportes levam os insumos até a fábrica; um restaurante é contratado para servir alimento aos funcionários e a vigilância fica a cargo de uma empresa de segurança. Uma vez que as demais atividades necessárias ao funcionamento fabril são contratadas de terceiros, a fábrica está apta a focar estritamente na produção de acessórios de informática. Como exemplo deste processo, temos o avanço de 10% ao ano da terceirização de serviços de TI no Brasil:

     “O mercado de TICs avança no Brasil apesar da crise, em razoável medida ajudado pela cada vez maior terceirização de serviços de tecnologia da informação. Segundo balanço divulgado pela associação brasileira das empresas de TIC, Brasscom, entre 2010 e 2017, a receita com serviços, BPO e computação em nuvem dobrou de tamanho (…). A receita somada de outsourcing e TI in house passou de R$ 59,6 bilhões para R$ 104,9 bilhões nesse período. Mas enquanto o desenvolvimento interno cresceu 5,9% ao ano, a terceirização andou bem mais acelerada, ao ritmo de 10,5% ao ano. Como resultado, se em 2010 a TI in house chegou a representar 48,6%, em 2017 foi somente 41,2%. No caminho inverso, a terceirização de serviços passou de 51,4% para 58,8%, com receita anual superior a R$ 61 bilhões” (CONVERGÊNCIA DIGITAL, 23/04/2018).

O terceiro motivo para o crescimento do setor de serviços seriam as intensificações das relações sinérgicas e simbióticas deles com os produtos manufaturados. Segundo Arbache (2015), o valor agregado de fabricação aumenta quando a manufatura é combinada com serviços para formar um terceiro produto que não é em si nem um bem manufaturado, nem um serviço convencional. São produtos com alto conteúdo de serviços e vendidos em pacotes, como smartphones – dependentes fortemente de marketing, marcas, design e telecomunicações – e motores a jato para aeronaves cuja comercialização inclui serviços de leasing, seguros, treinamento, engenharia, manutenção e outros serviços pós-venda.

O autor cita o caso do smartphone Nokia N95 como um exemplo da relação moderna entre bens e serviços: nada menos que 81% do preço final do celular se relaciona com o valor acrescentado de serviços como licenças, software, marketing, branding e distribuição, enquanto apenas 19% se relaciona com peças, componentes e funções de montagem. Ademais, essa complementariedade entre produtos manufaturados e serviços também fica evidente em exemplos como telefone celular (manufatura) e serviços de valor adicionado – como os aplicativos: não há como se pensar no uso de aplicativos sem se imaginar o meio físico, a manufatura na qual o serviço se torna disponível.

Por último, a crescente geração de dados através de robôs e máquinas utilizadas no processo produtivo e a geração de dados nas plataformas digitais possibilitam surgimento de novos negócios e serviços. Não à toa, é crescente o interesse na exploração e interpretação de Big Data: os dados podem revelar desperdícios de insumos e consequentes oportunidades de melhoria na eficiência produtiva. Ademais, possibilitam customização de produtos e serviços ao oferecer informações de preferências e características dos consumidores, além de novos modelos de negócios.

Assim, podemos perceber a crescente relevância das TIC para a expansão dos serviços e para a consequente geração de riquezas. As empresas e governos devem se atentar ao desenvolvimento tecnológico das TIC, bem como seu uso para geração de novos serviços e negócios. Só assim serão capazes de desenvolver políticas condizentes com uma eficaz estratégia de crescimento frente à globalização digital.

Um acordo de e-commerce no Sistema Multilateral de Comércio é possível?

A economia digital tem transformado rápida e radicalmente as formas que as pessoas se relacionam, a maneira como os países comercializam e até mesmo os meios de produção das empresas. A 4ª Revolução Industrial tem como base a economia digital e já está em curso.

Apesar de constantes referências ao tema “Comércio Eletrônico” na Organização Mundial do Comércio (OMC), o tema está longe de ser novo na Organização. Diante das evidências de que o comércio eletrônico se expandia rapidamente e criava novas oportunidades para o comércio internacional, os ministros presentes à 2ª Conferência Ministerial, realizada em Genebra em 1998, adotaram a Declaração sobre o Comércio Eletrônico Global.

Tendo em vista que o assunto, à época, ainda se encontrava em estágio incipiente, foi estabelecido um programa de trabalho (WTO Work Programme on Electronic Commerce), com o objetivo de examinar os aspectos comerciais do tema. As discussões do programa de trabalho levaram a uma definição ampla de comércio eletrônico. A definição, adotada há 20 anos, se aproxima do que hoje se conhece como economia digital: produção, distribuição, marketing, venda ou entrega de bens ou serviços por meio eletrônico.

Ao longo dos 20 anos de discussão, o Grupo de Trabalho gerou poucos resultados significativos, sendo o mais relevante deles a moratória de não imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.

Desde meados de 2015, de certa forma impulsionados pela Declaração Ministerial de Nairóbi, os Membros se engajaram mais ativamente em discussões sobre o tema. A participação ativa das delegações gerou a Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico, em Buenos Aires, em que 70 Membros concordaram em iniciar trabalhos com vistas a alcançar possíveis futuras negociações em aspectos comerciais do comércio eletrônico.

Panorama do tema e principais players

A falta de avanços na formulação de regras para o tema na OMC, claro sintoma do impasse enfrentado na frente negociadora da Organização, abriu espaço para avanço do rule making na área por parte de Acordos Regionais de Comércio. De acordo com dados do RTA Database da OMC, pelo menos 79 acordos regionais contam com um capítulo dedicado a comércio eletrônico ou artigos dedicados ao tema.

Uma interessante característica dessa proliferação de provisões de comércio eletrônico em acordos regionais é a diferença de profundidade e abordagem do tema. Uma análise didática dessa “e-spaghetti bowl” de acordos regionais e dos interesses por parte dos dispositivos neles incluídos leva a uma separação em três modelos/players principais: Estados Unidos, União Europeia e China.

Os Estados Unidos, país pioneiro no mercado e detentor das principais gigantes da tecnologia (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Netflix, entre outras) têm o claro interesse de manter o mercado digital aberto, de maneira que suas empresas possam continuar usufruindo cada vez mais dos ganhos de escala característicos desse mercado, já que os custos marginais de clientes adicionais são praticamente zero. Esse interesse se reflete nos acordos regionais firmados pelo país (ou fortemente influenciados, no caso do CPTPP). Dessa maneira, o template de acordos regionais dos EUA conta com profundas regras de comércio digital, como livre fluxo de dados, proibição de exigências de localização de servidores, tratamento de código-fonte e não imposição de direitos aduaneiros em transmissões eletrônicas.

A União Europeia (UE), apesar de partilhar da posição dos EUA com relação ao princípio do livre mercado, tem se destacado na preocupação com a sua regulação doméstica. O bloco tem se dedicado à estratégia do Mercado Único Digital, que busca garantir acesso a atividades online para indivíduos e empresas sob condições de competição justa, ao mesmo tempo em que aborda questões como privacidade de dados, direitos de copyright, tributação de operações realizadas no ambiente digital, etc. Em 2018, uma série de medidas regulatórias no mercado digital europeu entrarão em vigor, entre elas a General Data Protection Regulation, que aborda questões como ampliação do escopo de jurisdição na esfera online, penalidades para plataformas online que não cumpram as regras, disciplinas para portabilidade de dados visando questões concorrenciais, etc. Essa posição é refletida nos acordos firmados pelo bloco que, comparados ao template americano, são muito mais leves com relação a regras ao mercado digital. De uma maneira resumida, os acordos firmados pela UE basicamente consagram a não imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e, no restante do capítulo, colocam mais ênfase no diálogo regulatório entre as partes (como o CETA, por exemplo).

A China, por sua vez, tem defendido soberania sobre o seu cyber espaço e se protegido da abertura do mercado digital por trás da Grande Muralha Digital (The Great Firewall of China). Dessa maneira, e aproveitando-se do enorme mercado doméstico à sua disposição, a China consagrou criar um universo digital paralelo, com empresas chinesas operando no mesmo espaço das conhecidas empresas ocidentais, como AliBaba, Baidu e Tencent (WeChat). A Lei de Segurança Cibernética chinesa, em vigor desde junho de 2017, contém 79 artigos que contêm três posições centrais[1]: (i) dados físicos obrigatoriamente armazenados na China continental; (ii) inspeções obrigatórias de segurança em equipamentos antes de sua instalação; e (iii) regulações de retenção de dados e assistência de law enforcement obrigatória. Apesar de o país ter firmado alguns acordos regionais com disciplinas de comércio eletrônico, tome-se o Acordo entre China e Austrália como exemplo, as obrigações neles contidas não vão muito além das já previstas no âmbito da OMC, o que reflete a estratégia do país.

Desdobramentos recentes na OMC

Após a assinatura da Declaração Ministerial conjunta, as discussões do tema na OMC têm prosperado. Em 2018 já foram realizadas duas reuniões específicas para o tema e já há previsão de outras três nos próximos meses (maio, junho e julho). Ademais, 9 documentos já foram circulados contendo propostas para o futuro das discussões na Organização de autoria dos seguintes países: Argentina, Colômbia, e Costa Rica; Nova Zelândia; Brasil; Japão; Estados Unidos; Singapura; Japão; Rússia; e Taipé Chinês.

As propostas têm conteúdo e mostram apetite dos países. Em especial, a proposta americana é robusta e demonstra engajamento do país para discussão do tema. Levando em consideração as recentes posições do país com demais temas no sistema multilateral, esse posicionamento sugere prestígio do tema.

Contudo, o vale existente entre as posições dos principais players da economia digital, aliado à questão do desenvolvimento e do hiato digital, sugere que não há um caminho óbvio e único a percorrer. De todo modo, é válida a premissa de que, quanto antes os países encararem a discussão, menores serão os custos econômicos envolvidos.

O fato é que a revolução digital já está em curso e não pausará à espera de consenso entre os Membros da OMC. Ademais, a negociação de um acordo ambicioso em comércio eletrônico e economia digital mostraria que a Organização é capaz de se modernizar e apresentar uma resposta aos novos desafios da economia e comércio mundial.

A proposta brasileira traz uma boa abordagem para superar o impasse que pode ser estabelecido diante de posições tão divergentes. Além de buscar organizar todos os temas que merecem ser discutidos na Organização, a proposta apresenta uma divisão do tema em blocos, facilitando a compreensão da vasta gama de assuntos e permitindo flexibilidade na adoção de regras. Dessa forma, os Membros poderiam aceitar compromissos de uma maneira taylor-made: países de menor desenvolvimento relativo, por exemplo, podem participar de todas as discussões, mas optar por adotar apenas compromissos leves de comércio eletrônico, enquanto países que assim desejem podem estabelecer e aderir compromissos profundos relacionados à economia digital.

Dificuldades existem, mas o fato é que os Membros da OMC dispõem de oportunidade, motivo e engajamento para o lançamento de negociações oficiais de comércio eletrônico. Resta saber se haverá consenso para seguir adiante. Ao que tudo indica, saberemos em breve os próximos passos dessas discussões.

[1] “Começaram as guerras no comércio digital: delineando os campos de batalha regulatória”. Dan Ciuriak, Maria Ptashkina. Pontes, volume 14, número 1 – Março 2018.

O que é transformação digital?

No contexto atual, no qual empresas tradicionais estão enfrentando forte concorrência de startups ou das grandes empresas de tecnologia, muito tem se falado sobre “transformação digital”. Mas, o que isso significa? De acordo com Khan (2016), transformação digital é o “processo acelerado de adaptação técnica de indivíduos, empresas, sociedades e países à digitalização de tudo.”

A título de exemplo, é assustador o impacto que o smartphone teve na sociedade global em pouco mais de dez anos de existência. Na imagem ao fim deste post, há uma propaganda de 1991 da Radio Shack, uma das maiores redes varejistas eletrônicos nos EUA à época. Nela, 13 dos 15 produtos ofertados são facilmente encontrados em smartphones. A eleição no país mais rico do mundo pode ter sido decidida em grande medida por uma plataforma que começou há 14 anos com o simples propósito de conectar estudantes de Harvard. Redes sociais foram o motor de uma das maiores ondas revolucionárias do Oriente Médio, a chamada Primavera Árabe. Uma empresa de tecnologia da Califórnia compete diretamente com taxistas ao redor do mundo. E por aí vai.

Os exemplos de como as tecnologias digitais têm impactado o mundo são praticamente infinitos. O fato é que as empresas tradicionais que quiserem sobreviver a esse mundo cada vez mais digital têm e terão que se transformar e se adaptar constantemente. Portanto, para empresas, “transformação digital” se refere, principalmente, a se tornarem capazes de se adaptarem a um cenário cada vez mais mutável. David L. Rogers, em seu livro de 2016  “The digital transformation playbook: rethink your business for the digital age”[1], apresenta cinco grandes áreas em que a transformação digital é mais evidente: consumidores, competição, dados, inovação e valor.

Na parte de consumidores, o que é mais destacado é como eles, os consumidores, têm se tornado mais influentes nas decisões de outros consumidores. Atualmente, restaurantes, hotéis, bancos e negócios de qualquer setor sabem (ou deveriam saber) que a sua reputação pode ser profundamente abalada por resenhas negativas em plataformas como o Google, Facebook, Tripadvisor ou ReclameAqui. Por outro lado, se, antes, o fluxo de valor era unidirecional, no sentido empresa-cliente, hoje, ele é recíproco. Um hotel oferece valor (estadia) para um cliente e recebe valor (reputação) do cliente que o resenha. Por fim, nesta área, vale ressaltar a expectativa cada vez mais presente da customização em massa. Da mesma forma que um usuário do Netflix espera que a sua experiência seja customizada especificamente para ele, cada vez mais o consumidor espera o mesmo de cada serviço e produto que ele adquire, seja ele presencial ou digital.

Na área de competição, destaca-se cada vez mais a competição entre empresas aparentemente de setores distintos. Atualmente, uma empresa de tecnologia norte-americana (AirBnB) compete com uma pousada brasileira. O Google compete até com médicos, ao dar informações cada vez mais detalhadas a respeito de doenças, seus sintomas e tratamentos. Ao mesmo tempo, há, em alguns casos, cooperação entre competidores em áreas-chave. Por exemplo, Google, Facebook, Amazon, IBM e Microsoft cooperaram para estabelecer padrões éticos para o uso da Inteligência Artificial. Por fim, no mundo digital, a competição pode ser difusa, mas há tendência, em vários mercados, de um cenário de winner-takes-all por conta dos efeitos-rede e dos modelos de negócio de plataforma.

Os dados também são um componente importante da transformação digital. Até pouco tempo atrás, dados eram caros de se obter e gerenciar. Atualmente, os dados estão cada vez mais abundantes e a principal dificuldade é transformar dados em valor, algo que as gigantes da tecnologia já conseguem fazer com maestria. Só é possível atender à já mencionada demanda por customização com a análise contínua de dados sobre o usuário. Como exemplo disto, basta lembrar o tanto que o Cambridge Analytica declarava conhecer sobre os usuários do Facebook. Segundo foi revelado, com poucos likes, é possível conhecer alguém mais profundamente do que os amigos e familiares da pessoa.

A formas de se inovar também têm mudado consideravelmente. Atualmente, é muito mais barato, rápido e fácil testar ideias. Entre startups, é comum lançar uma página anunciando um serviço que ainda nem existe para medir o interesse dos consumidores na ideia e colher feedback antes mesmo de se começar a desenvolver a ideia.

Outra mudança é o foco no problema. Atualmente, empresas que dominam mercados iniciaram atacando um problema claro e comum aos consumidores: o Uber começou a atuar pois percebeu que táxi era algo caro e burocrático e não resolvia eficientemente o problema do transporte individual; o AirBnB começou pois viu que os hotéis não eram suficientes e nem baratos em grandes cidades; o Google percebeu que, à época, ainda era difícil de se encontrar respostas na Internet, etc. Por fim, as empresas inovadoras têm menos foco no produto “finalizado” e se concentram em lançar um produto minimamente viável (MVP) que resolva um problema específico para aprender com o uso pelo cliente e evoluir constantemente. Serviços como Facebook, Whatsapp e outros têm atualização quase diária, ou seja, nunca têm um produto “pronto”.

Outra área afetada pela digitalização de tudo é o valor. Antes, a proposta de valor de uma empresa era facilmente compreendida: uma empresa automobilística entregava carros como valor. Hoje, uma empresa como a Amazon entrega qual valor exatamente? A empresa, que começou como uma simples loja de livros online, tornou-se megavarejista; fabricante de hardwares que entregam conveniência (Kindle, Amazon Echo, etc); espaço em nuvem para empresas; entre outras atividades, e está constantemente buscando novas formas de entregar valor para os seus clientes. Nas palavras de Rogers (2016), se, no passado, o sucesso permitia a complacência, hoje, “só os paranóicos sobrevivem.” Na visão do autor, as empresas que não buscarem novas formas de gerar valor para os seus clientes provavelmente morrerão antes do que esperam.

Com tantas mudanças, é importante ressaltar que, em geral, a mudança na estratégia e no modelo de negócios de uma empresa costuma ser mais relevante do que a tecnologia em si para responder aos desafios que resultam da digitalização de tudo. Essa é a conclusão de estudo do MIT com Deloitte feito com empresas do mundo inteiro e bem sintetizado e debatido em artigo de Sílvio Meira (2017), do Porto Digital. Afinal, o que há de mais disruptivo no modelo Uber não é a tecnologia em si, mas, sim, o seu uso para viabilizar um modelo de negócios que resolve um problema do dia-a-dia de maneira exponencial.

Em tempos de commoditização digital, se as empresas brasileiras quiserem ter relevância no mercado global, não bastará a elas utilizar as últimas tecnologias. Será preciso usá-las para oferecer produtos e serviços de maneira inovadora.

Imagem – Propaganda da Radio Shack de 1991. 13 dos produtos vendidos estão atualmente embutidos ou vendidos como aplicativos em smartphones

[1]No Brasil, o livro foi traduzido como “Transformação digital: Repensando o seu negócio para a era digital” (Autêntica Business, 2017)

Por que algumas empresas crescem exponencialmente?

Na economia digital, o grande número de usuários das maiores plataformas chama a atenção. É ainda mais impressionante pensar que a maioria das empresas que detém essas plataformas não tem mais que duas décadas. Um grande punhado, menos até que uma década. Então o que explica, por exemplo, uma empresa como o Facebook ter mais de 2 bilhões de usuários em menos de 15 anos de operação?

Antes de responder a esta pergunta, vale ressaltar o quanto é anormal (ou era, até algumas décadas) um crescimento como o de serviços digitais atuais. O infográfico abaixo compara o tempo que algumas tecnologias levaram para alcançar 50 milhões de usuários. Enquanto o avião e o automóvel demoraram 68 e 62 anos respectivamente para chegar a essa marca, o Facebook e o Twitter demoraram apenas 3 anos. O jogo Pokémon Go atingiu essa marca em meros 19 dias.

Imagem 1 – Tempo que cada tecnologia demorou para alcançar 50 milhões de usuários

Obviamente, não existe uma única resposta para a pergunta inicial, mas há dois fatores que são essenciais para entender o crescimento de empresas como o Facebook e o Uber: o modelo plataforma e o efeito-rede, assuntos que tanto temos debatido neste blog.

O modelo plataforma, seguido por empresas como o Facebook, Uber, Google, Amazon e outras, pressupõe o uso de ativos externos para a criação de valor.  O modelo esquemático abaixo, retirado e traduzido livremente de artigo de Van Alstyne, Parker e Choudary (2016), mostra como costuma funcionar uma plataforma digital, usando o exemplo do sistema operacional para smartphones Android, do Google.

No modelo, o “dono” da plataforma (Google) cria e gere a infraestrutura necessária e determina as regras do jogo para a participação de produtores e consumidores. O gestor da plataforma conta com fornecedores (que não são, necessariamente, fornecedores diretos dele) que suprem as interfaces que podem acessar a plataforma. No caso do Google, esses fornecedores são a Samsung, Sony, Motorola, etc, que produzem smartphones que vêm com o Android instalado. Por fim, produtores (por exemplo, desenvolvedores de apps) que criam as ofertas disponíveis na plataforma e consumidores (por exemplo, usuários de apps) que demandam essas ofertas se encontram e transacionam por meio da plataforma.

Essas transações geram dados e valor para todos os atores da plataforma. O Google passa a saber mais sobre o comportamento e as preferências dos consumidores e produtores. As empresas que fazem smartphone descobrem as utilizações mais frequentes dos usuários e também se a plataforma segue relevante ou não. Os desenvolvedores aprendem sobre as preferências dos seus consumidores e dos consumidores de outros apps. Já os consumidores se utilizam dos feedbacks de outros usuários para saber quais apps valem a pena ser baixados ou comprados.

Imagem 2 – Modelo esquemático de uma plataforma típica

Em um modelo linear, ou “não plataforma”, o Google não só criaria e manteria a infraestrutura tecnológica, como ,também, produziria os smartphones que viessem com Android e criaria aplicativos para que os consumidores se interessassem pelo Android. Para manter o seu produto vivo, ela teria que constantemente criar, e aceleradamente, novos aplicativos e smartphones que acompanhassem os gostos em constante mudança dos seus clientes.

Para dobrar o número de aplicativos, o Google provavelmente teria que aumentar consideravelmente os seus ativos, incluindo os empregados. Ainda assim, provavelmente o Android não chegaria aos 2,8 milhões de aplicativos que constavam na plataforma até março de 2017.

Já imaginou como seria um YouTube em que o Google seria o criador de todos os vídeos da plataforma?

Em suma, empresas que funcionam no modelo “linear” dificilmente crescem de maneira “exponencial”, como as empresas que se utilizam de modelos do tipo plataforma. Isso ocorre porque uma empresa-plataforma depende principalmente de ativos externos para crescer. Nesse modelo, o mais importante é manter a plataforma viva e interessante, tanto para usuários quanto para produtores. Se houver um desequilíbrio, em qualquer uma das duas pontas, é provável que a plataforma enfrente dificuldades. Imagine, por exemplo, uma plataforma de vídeos com muitos consumidores e poucos produtores: eventualmente, consumidores vão começar a migrar para outras plataformas que tenham maior diversidade de conteúdo. O mesmo vale para uma plataforma com muitos produtores, mas que atrai poucos usuários: os produtores acabarão migrando para uma plataforma na qual eles encontrem mais consumidores.

O modelo das plataformas está intimamente ligado ao efeito-rede, que é o outro fator que ajuda a explicar o crescimento desse modelo de negócios. Na definição de Parker, van Alstyne e Choudary (2016), “[e]feitos-rede se referem ao impacto que o número de usuários de uma plataforma tem no valor criado para cada usuário.” Em geral, o valor de uma plataforma bem gerida está diretamente relacionado ao seu número de usuários (sejam eles produtores ou consumidores). O exemplo clássico disso é o de uma rede social como o Facebook ou o WhatsApp. Quanto mais pessoas usarem a plataforma, mais conteúdo será gerado, mais conexões poderão ser feitas, e daí por diante. Por melhor que seja uma rede social concorrente ao WhatsApp (por exemplo, o Telegram), tudo o mais constante, dificilmente os usuários migrarão para essa nova rede se os amigos desses usuários não estiverem em massa nessa rede.

Ao mesmo tempo, quanto mais usuários tiver uma plataforma, mais dados a empresa gestora da plataforma terá sobre os seus usuários e, por meio do processamento deles, será possível oferecer mais e melhores serviços para a plataforma cada vez mais customizados para seus usuários. Portanto, a plataforma que consegue ganhar espaço em um nicho e crescer rapidamente o seu número de usuários tende a ganhar participação de mercado rapidamente. Não à toa, o mercado das plataformas tende a formar monopólios e oligopólios. Basta ver o número de usuários das maiores redes sociais, na casa dos bilhões (ver gráfico abaixo).

Gráfico 1 – Usuários ativos nas principais plataformas sociais em 27 de janeiro de 2018

Fonte: Digital in 2018 (we are social & Hootsuite, 2018).

Toda essa discussão importa para países emergentes como o Brasil. Na era da commoditização digital, o valor de se usar as tecnologias dominantes tende a ser muito baixo ao longo tempo, já que, na era digital, praticamente todos tendem a aderir a essas tecnologias rapidamente. No século XXI, o valor deverá se concentrar cada vez mais nos donos e gestores dessas tecnologias e plataformas. O problema é que a grande maioria dessas tecnologias nascem e/ou crescem na Califórnia e poucos outros lugares, incluindo, mais recentemente, a China.

Sobrará algo para países como o Brasil, que são grandes usuários, mas pouco criadores dessas plataformas vencedoras? A ver.

Plataformas digitais: para onde vamos?

Em recente decisão, a Corte de Justiça da União Europeia (ECJ) classificou o Uber como um serviço de transporte. A corte explicou que, em razão de o Uber intermediar a relação entre motoristas e passageiros, incluindo pagamentos pelas corridas e o controle de qualidade dos condutores, haveria, simultaneamente, uma oferta de serviços de transporte e o estabelecimento de uma rede capaz de organizar o fluxo das pessoas que pretendem usar esse tipo de atividade, tornando-a essencial às duas partes do negócio. “A ECJ entende que este serviço de intermediação deve ser considerado parte integrante de um serviço global cujo elemento principal é um serviço de transporte e, portanto, que não corresponde à qualificação de serviço da sociedade da informação, mas, sim, de serviço no domínio dos transportes.”

A decisão da ECJ aponta para uma tendência de maior regulação das atividades relacionadas à economia digital. Devido à importância do tema, seria útil buscar esclarecer alguns pontos relacionados aos ganhos e aos riscos da economia digital para a sociedade.

A economia digital tem ganhado relevo na atual ordem econômica, fornecendo oportunidades para a diminuição dos custos de transação e para a eliminação de intermediários. Dentro dessa ordem econômica diferenciada, o pleno aproveitamento das novidades tecnológicas torna-se questão fundamental para a sobrevivência das empresas, especialmente para aquelas que operam na área de economia digital. Para isso, faz-se uso de um constante processo de inovação capaz de manter o consumo por novidades tecnológicas em nível que permita a manutenção de empresas da área no setor.

É bem verdade que a economia digital possibilita a inserção de pequenas empresas em fluxos de trocas que, sem o uso das ferramentas tecnológicas atuais, seriam inviáveis. Não obstante, essas empresas necessitam de canais de comunicações — em geral controlados por grandes empresas — para se manterem em contato com seus consumidores.

São nesses canais de comunicações, doravante denominados plataformas digitais, ou simplesmente plataformas, que as estruturas de mercado se concentram em número muito limitado de empresas. Exemplos de plataformas seriam os sistemas da Google, o AirBnB, o Uber, o Whatsapp, o site de vendas da Amazon e os sistemas do Facebook. No caso do Google Play, aplicativo que disponibiliza a compra de softwares para smartphones que operam com sistema Android, os compradores utilizam-se da plataforma para adquirirem esses aplicativos. De mesma forma, o desenvolvedor do aplicativo é obrigado a seguir padrões para poder oferecer seu produto nessa mesma plataforma.

Ficará, assim, necessária a distinção dos termos “usuários” e “desenvolvedores” de plataformas, conforme Arbache (2015). Enquanto a maioria das empresas e dos clientes são usuários de plataformas, um conjunto extremamente limitado de empresas são desenvolvedoras dessas plataformas, portanto, capazes de definir padrões de uso. Os usuários (tanto as empresas quanto os clientes) dessas plataformas têm ganhos de produtividade, pois aumentam sua eficiência. É, portanto, nessa ótica, positivo o uso de plataformas digitais. No caso do Uber, por exemplo, o cliente que usa o aplicativo tem a possibilidade de pagar menos por uma corrida, além de ter ganhos com a praticidade do uso do aplicativo. O motorista que usa o Uber também ganha, pois consegue oferecer o serviço sem precisar de comprar licenças ou passar por complexos processos burocráticos para operar um táxi, por exemplo.

Um paralelo pode ser feito com a questão da agricultura. É óbvio que o uso de tratores e de dispositivos de georreferenciamento possibilitam ganhos importantes para o aumento da produtividade do campo. Na realidade, o fato de o produtor deixar de usar equipamentos modernos inviabiliza, em razão do nível de concorrência internacional e dos respectivos custos de produção, o cultivo da maioria das commodities agrícolas. O uso, nesse caso, passa não mais a ser um diferencial competitivo, mas mais uma técnica necessária para a manutenção de determinado negócio. O diferencial não estará, assim, no produtor que usa o trator, porquanto todos usam, mas no país que desenvolve o trator. Ali estará a técnica mais avançada, onde o conhecimento exigido para a concepção dos tratores exige maior capacitação e tecnologia.

Nos países em que se desenvolvem os aplicativos como o Uber, além de potenciais usuários do sistema, há ganhos de inovação e de produtividade no desenvolvimento das plataformas. A imposição de padrões de uso funciona como uma reserva de mercado para esses desenvolvedores, que podem atribuir taxas para que outras empresas operem em suas plataformas. O Airbnb, por exemplo, cobra de seus anunciantes uma taxa para a oferta de seu serviço. Caso o ofertante não concorde com as condições ali impostas, há somente uma saída: não oferecer seu serviço no Airbnb.

Há um outro lado da história. É sempre necessário frisar que a concorrência perfeita – eficiente em termos de Pareto – leva em consideração que são várias e pequenas empresas que ofertam produtos. Uma vez que, dentro da economia digital, há poucas empresas que criam barreiras para entrantes, tem-se a formação de estruturas oligopolizadas quando não monopolizadas de mercado. Há, assim, surgimento de problemas de ineficiência econômica no sentido de Pareto: o conhecido peso morto discutido na microeconomia básica.

As plataformas da economia digital que se apresentam como fundamentais para a criação de eficiência nos mercados, por formarem mercados extremamente concentrados, geram também ineficiências econômicas. Ademais, em geral, essas empresas estão geograficamente concentradas nos EUA e mais recentemente na China, gerando grandes excedentes que remuneram alguns poucos trabalhadores qualificados naquela região.

A decisão do ECJ, por mais precipitada que possa parecer, mostra que pouco se sabe quais são os reais ganhos e riscos relacionados às plataformas da economia digital. Possivelmente, estudos pormenorizados sobre os ganhos e perdas em termos de eficiência econômica da economia digital possam dar um norte mais qualificado a essa discussão.

 Diplomata, trabalha no Ministério das Relações Exteriores. Mestrando em economia na UnB.

Como (não) competir com o Google?

Temos falado há algum tempo no blog sobre o poder das cinco grandes empresas do mundo digital: Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft. Estas cinco companhias estão em praticamente tudo. Apenas a título de exemplo, 2 bilhões de pessoas usam celulares Android, do Google; 2,1 bi. de pessoas usam Facebook; a Amazon responde por mais de um terço do mercado de serviços de armazenagem em nuvem do mundo; mais de 700 milhões de Apple iPhones estão em uso atualmente; e 1,5 bilhão de pessoas usam o Windows, da Microsoft.

Em comum, essas empresas têm plataformas pelas quais passam diariamente praticamente todos os usuários e desenvolvedores online fora da China. Esse fato traz a elas dados e conhecimentos sobre o mundo digital que lhes permitem aperfeiçoar progressivamente seus algoritmos e aplicações de maneira a capturar ainda mais valor ao longo das suas cadeias. Para o usuário, é cômodo e vantajoso seguir utilizando os serviços cada vez mais vastos dessas empresas.

Digamos que surja um sistema operacional de smartphone mais eficiente que o Android ou o iOS (da Apple). Uma pergunta plausível é: por que um desenvolvedor tomaria seu tempo construindo aplicativos para essa plataforma que começaria com um número reduzido de usuários? Pelo lado do usuário, uma pergunta plausível seria: por que comprar um celular com esse sistema operacional se ele terá muito menos opções de aplicativos que os dois sistemas operacionais dominantes?

Esse tipo de questão também já ficou aparente entre redes sociais: diversos serviços surgiram tentando desbancar o Facebook, mas quase todos fracassaram pela baixa adesão de usuários. Se meus amigos não estão nessa nova rede social, melhor seguir na rede em que estão praticamente todos. Esses fenômenos são conhecidos como efeito-rede e efeito-plataforma.

O que tem ocorrido, portanto, é que essas empresas conhecem cada vez mais seu mercado e expandem suas atividades para mais serviços, estes progressivamente mais customizados para os seus usuários devido aos dados adquiridos. Não à toa, a revista The Economist recentemente chamou os dados de “petróleo do século XXI”. As cinco grandes, por sua abrangência e controle de plataformas globais, têm mais capacidade de mudar a economia do que muitos Estados nacionais. Também não é coincidência o aumento da preocupação, por parte das autoridades de defesa da concorrência, com o poder de mercado dessas gigantes.

Nesse cenário, está ficando mais difícil competir no mundo digital. Assim que uma empresa desponta como potencial competidora das grandes irmãs, seus fundadores normalmente têm duas opções: vendê-la ou morrer por ter seus serviços “imitados” pelas gigantes. O caso do Snapchat, rede social de vídeos curtos e que se auto-deletam, está entre os mais famosos: o Facebook tentou comprá-la, sem sucesso, por US$ 3 bilhões em 2013. Desde então, o Facebook incluiustories”, muito similares aos vídeos do Snapchat, em pelo menos três de seus serviços: Instagram, WhatsApp e o próprio Facebook. Em parte por conta disso, o Snapchat tem encontrado dificuldades para crescer e suas ações caíram consideravelmente desde a sua oferta pública, em março de 2017.

É possível não competir com os gigantes do mundo digital? Se uma empresa deseja alcançar milhões de usuários pelo mundo, dificilmente ela não incomodará ou interessará as grandes irmãs. Vejam o caso do WhatsApp, concorrente do Facebook Messenger, que foi vendido por US$ 19 bi. para o Facebook.

Empresas como Uber, AirBnB e outras conseguiram crescer e se consolidar nos últimos anos, a despeito das gigantes, talvez por ainda não estarem no caminho delas. Porém, investimentos pesados do Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft em carros autônomos e em serviços concorrentes ao Uber mostram que elas seguem expandindo para competir em áreas de negócio relativamente povoadas atualmente. Quanto ao AirBnB, o Google recentemente injetou mais de meio bilhão de dólares na companhia.

Então, será possível competir, com sucesso, com as cinco gigantes? É algo a ser observado. No curto prazo, sim. O Twitter, por exemplo, segue disputando com o Facebook, sem nunca ter sido verdadeiramente ameaçado (a despeito das tentativas).

Gigantes chinesas, como o Alibaba (dona de marketplace com cerca de 500 milhões de usuários), Tencent (dona do WeChat, com quase 1 bilhão de usuários) e a Baidu (com cerca de 2 bi. de usuários), também têm conseguido competir, em parte por conta do enorme mercado asiático e do fechamento da China para diversos serviços das norte-americanas.

É difícil responder com segurança à pergunta acima. O cenário que está se desenhando é de uma grande concentração e consolidação e é possível que a era dos unicórnios (empresas que em pouco tempo valem US$ 1 bilhão) esteja chegando ao fim.

Economia digital e defesa da concorrência: desafios e tendências

As tecnologias digitais mudaram a economia de diferentes maneiras, estimulando o desenvolvimento de mercados disruptivos e processos competitivos extremamente dinâmicos. A geração, processamento e uso de dados tornaram-se uma característica de extrema importância na economia, na medida em que estamos hoje constantemente conectados a dispositivos móveis on-line[1].

Os dados pessoais, que incluem informações detalhadas sobre os comportamentos e interesses dos indivíduos, se tornaram ativos extremamente valiosos no mercado digital. O acesso e a propriedade desses ativos influenciam diretamente as estruturas de mercado. Isso porque esses dados são atualmente propriedade exclusiva das empresas que fornecem a infra-estrutura para produzi-los, tornando-se uma fonte de receita e aquisição de poder de mercado.

Cria-se assim um ambiente favorável para uma concentração e  consolidação sem precedentes de poder econômico na mão de poucas organizações, tornando de certa forma ultrapassada a euforia inicial acerca do potencial da Internet como instrumento de nivelamento de oportunidades e de criação de organizações mais equitativas e cooperativas.

Um dos desafios levantados por esse novo panorama ​​é o papel a ser desempenhado pelas políticas antitruste para garantir níveis adequados de competição e o incentivo à inovação. A concentração do poder de mercado deve ser vista como uma característica inerente às indústrias de alta tecnologia? Os elevados lucros obtidos pelas empresas “superstars” devem ser considerados necessários para estimular a inovação e compensar altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento — e temporários — em linha com a “destruição criativa” de Schumpeter, que garantiria uma concorrência sistêmica?

Essas e outras questões estão desafiando as autoridades regulatórias ao redor do mundo, que vêm intervindo de maneiras diversas sobre as condutas empresariais nos mercados digitais. O tema também tem sido crescentemente debatido na academia e em fóruns globais de formulação de políticas públicas, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Estamos longe de obter respostas concretas sobre como lidar com as questões concorrenciais impostas pelas tecnologias digitais, mas uma hipótese é que as metodologias e teorias tradicionais utilizadas para identificar e mensurar o poder de mercado subestimam o poder econômico das “superstars” digitais. Nesse novo panorama, as análises antitruste merecem maior reflexão. Por exemplo, com a crescente ausência de transações monetárias para o fornecimento de serviços, torna-se cada mais difícil a utilização de metodologias baseadas no faturamento com vendas para definir o poder de mercado. Ademais, é cada vez mais complexa a aferição do mercado relevante. A título de ilustração, os investimentos da Google em carros autônomos apontam a empresa como concorrente em um mercado relevante e mais amplo do que o segmento de serviços on-line. Ademais, ao se realizar o controle de fusões, é fundamental que se avalie a competição potencial do mercado. Nesse sentido, o preço de compra pode indicar que um agente incumbente está buscando eliminar um potencial competidor – o que explicaria a elevada disposição a pagar do Facebook para comprar uma empresa sem aparente fonte receita, como o WhatsApp.

Nesse contexto, a definição de um aparato regulatório sobre a propriedade dos dados também desempenha hoje um papel mais importante que em ambientes econômicos anteriores. Isso porque as vantagens oferecidas pela exclusividade da detenção de dados tenderiam a reforçar a dominância no mercado e dificultar a entrada de novos concorrentes, ao longo do tempo[2].

Uma das sugestões regulatórias nesse sentido envolve a definição de um padrão legal que aumente a transparência dos dados, permitindo que os indivíduos saibam quais informações as empresas detêm, para quais fins são utilizados e a receita gerada pelo seu processamento. Isso diminuiria o controle informacional das grandes empresas, incentivando a contestabilidade e uma distribuição mais equitativa dos benefícios decorrentes da chamada data-driven economy.

O debate apresentado talvez tenha surgido com um certo atraso, dadas as várias operações de fusão e aquisição no setor da economia digital realizadas sem que houvesse uma percepção mais clara sobre os possíveis efeitos oriundos desses movimentos de concentração. Será interessante acompanhar o desenvolvimento de políticas regulatórias nesse setor, agora que tais efeitos já são apontados por diferentes análises, inclusive por autoridades de defesa da concorrência.

[1] SCHWAB, K., The Fourth Industrial Revolution, 2016

[2] ERZACHI, Ariel; STUCKER, Maurice E., Virtual Competition: The Promisse and Perfils of The Algorithm-Driven Economy, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2016.

Os Mercadores das Novas Grandes Navegações

As Grandes Navegações portuguesas inauguraram o que, segundo Thomas Friedman, teria sido a primeira onda da globalização. O termo refere-se à interação e à conectividade desde então experimentadas pelas vias do comércio, do movimento de pessoas, da relação entre culturas e das trocas de ideias. Para Cesar Hidalgo, redes interativas como essas permitem a criação e incorporação de conhecimento e know-how, aumentando a capacidade de processamento de informação, o que, em última análise, leva ao desenvolvimento econômico.

Boa parte dos benefícios da primeira onda de globalização foi difusa. Mas quem, sem dúvida, mais se beneficiou das Grandes Navegações foram os mercadores, intermediários que conectaram vendedores e compradores para disponibilizar especiarias e outros produtos numa escala até então sem precedentes.

Os ganhos da intermediação se traduziriam na alavancagem política dos mercadores o que, para Acemoglu e outros, viria a se constituir num dos pilares dos modernos direitos de propriedade. Juntamente com o boom populacional, aquele desenvolvimento institucional viria a ser decisivo para a Revolução Industrial.

Não estamos mais no século XV, nem Colombo está prestes a descobrir a América. Entretanto, a era das Grandes Navegações está de volta. Assim como naquela altura, inovações tecnológicas também estão desencadeando a era das “Grandes Navegações Digitais”. Mas, ao invés de bússolas, astrolábios, quadrantes e caravelas, é a internet e os dispositivos digitais que estão nos conduzindo pelos oceanos virtuais. E busca-se, agora, intermediar outro tipo de especiaria, esta, muito, mas muito mais valiosa: a informação.

A popularização da Internet tem levado à emergência de martkeplaces, mercados digitais operados por plataformas de gigantesco alcance público. Amazon, Alibaba, WeChat, Facebook, Google, Apple, Microsoft, Linkedin, Uber, dentre outros, se tornaram os intermediários das Grandes Navegações Digitais. Ao desempenhar as funções de mercadores da informação, essas plataformas têm proporcionando ganhos difusos para a sociedade ao reduzirem assimetrias de informação e custos de transação, além de integrar compradores e vendedores que antes pouco ou nada tinham acesso aos mercados.

A distância entre compradores e vendedores diminuiu e eliminaram-se intermediários. Ficou substancialmente mais fácil achar um amigo, um emprego, um quarto de hotel, chamar um táxi, comprar uma geladeira ou até mesmo contratar um serviço empresarial.

O nivelamento das oportunidades para se competir em igualdade de condições no oceano digital ajudou a levar Thomas Friedman a considerar que “o mundo seria plano”.

Cesar Hidalgo fez argumento similar, mas a partir da lógica de redes: quanto mais conectados estiverem os agentes, mais meritocrático será o sistema econômico. Em outras palavras, quanto menor for o número de intermediários necessários para se chegar ao comprador, maior será o valor apropriado pelo produtor do bem comercializado. Com isto, recompensa-se mais quem originalmente mais gera valor. Já em redes pouco conectadas, o intermediário é o maior beneficiário, o que leva a uma topocracia.

Estaria o mundo moderno se tornando mais meritocrático? Infelizmente, não. A eliminação de intermediários veio acompanhada de elevada e crescente concentração das transações em poucas plataformas. Apesar de haver maior competição horizontal entre produtores de bens e serviços, há elevada e crescente codependência deles para com as plataformas para intermediar transações.

De fato, os efeitos-rede e plataforma tornaram quase impossível contestar os modernos mercadores. Até mesmo os unicórnios, startups tecnológicas que chegaram a valer US$ 1 bilhão ou mais, pouco ou nada conseguem competir com as grandes plataformas.

O que estamos vendo, na verdade, são os grandes mercadores se apropriarem tanto dos excedentes do consumidor, como, também, da firma, uma característica topocrática que eleva o poder daquele grupo à uma condição sem precedentes na história econômica.

Difícil negar que as grandes plataformas digitais estão revolucionando os mercados. Mas, ironicamente, se, de um lado, essas inovações digitais estão nos proporcionando uma verdadeira revolução tecnológica de acesso à informação, por outro lado, a crescente concentração da informação em poucas mãos está comprometendo a horizontalidade e a difusão dos benefícios daquela revolução.

Essa hierarquização da rede econômica está trazendo consigo características topocráticas agudas. O mundo é plano, mas não para todos.

Como disse Jeff Bezos, CEO da Amazon, ainda estamos no “day one” da era digital. É difícil prever quais serão as consequências dessa crescente concentração da informação. Mas, do pouco que já pudemos ver, pode-se dizer que, quanto mais plano for o mundo, melhor será para todos.

Como a Black Friday alavancou o e-commerce no Brasil

A Black Friday tornou-se uma das mais importantes datas para o varejo nacional. Importada por diversos países como forma de estimular o comércio semanas antes do Natal, a Black Friday foi adotada há sete anos pelo varejo brasileiro. O último dia 24 de novembro revelou que o costume foi, finalmente, bem aceito pelo consumidor brasileiro, mas com diferenças importantes em relação ao que se observa nos demais países.

Apesar das diversas reportagens e imagens mostrando consumidores ávidos por descontos dados pelas grandes lojas físicas, a data foi muito mais importante para o comércio eletrônico, que se aproveitou do movimento para atrair o consumidor para vendas online. O resultado impressionou: nos dois principais dias de oferta, o faturamento chegou a 2,1 bilhões de reais. As lojas físicas temem, inclusive, um menor crescimento nas compras de final de ano devido à antecipação nas compras promovidas pela Black Friday, e já se discute uma antecipação da data para agosto no próximo ano.

Na Black Friday de 2017, pode-se observar com clareza o potencial do e-commerce no mercado brasileiro. O ticketdio de compras foi duas vezes superior à média mundial. Ainda, as vendas por meio do celular representaram parcela importante das vendas: quase um terço ocorreu via mobile, crescimento superior a 80% em relação a 2016. O varejo online, que já supera o físico em diversas categorias como eletrônicos, viagens e celulares, viu na data a chance de trazer novos consumidores para o mundo virtual.

O crescimento das vendas online na Black Friday demonstra também uma maior confiança por parte do consumidor brasileiro no comércio eletrônico, algo recorrentemente apontado como uma das principais barreiras ao crescimento desse mercado. As lojas online parecem, de forma geral, ter conseguido vencer o receio dos consumidores de estarem  realizando compras com falsos descontos. Isso não significa que a prática de “maquiagem de preços” não tenha ocorrido – o site Reclame Aqui registrou mais de cem reclamações por hora durante a mega oferta, a maior parte sobre propaganda enganosa.

O e-commerce no Brasil – vantagens, oportunidades e espaço para avanço

A Black Friday explorou algumas vantagens em relação ao comércio físico ainda pouco conhecidas pelo consumidor. É o caso, por exemplo, do direito de desistência, que existe apenas quando a compra é feita fora do estabelecimento, conforme coloca o Código de Defesa do Consumidor.  As empresas virtuais aliam a isso estratégias como a devolução sem pagamento de frete ou embalagem para reenvio, bastando apenas a comunicação à loja e a entrega do produto aos Correios.

Todavia, o avanço das vendas no comércio eletrônico é refreado por uma série de entraves, alguns estruturais, e com poucas possibilidades de melhoria no curto prazo. Um deles, já levantado por este blog, refere-se aos altos fretes – um dos maiores responsáveis pela desistência na hora de se fazer o pagamento. Calcula-se que lojas online perderam quase 12 bilhões de reais por conta tanto do alto frete como da demora na entrega. Essas dificuldades reduzem sobremaneira a compra de produtos de menor valor – muitas vezes o valor do frete é superior ao valor do produto –, o que torna a compra desvantajosa. Isto inibe o crescimento de nichos de mercado importantes, como é o caso do uso do e-commerce para compras recorrentes, como produtos de limpeza e alimentos. Esse mercado, por sinal, é um dos grandes responsáveis pelo crescimento nas vendas da Amazon, por exemplo, por meio do Amazon Prime. Uma forma de se mitigar esse problema é o Click and Collect, ainda pouco usado no Brasil.

O comércio eletrônico ainda tem muito a ganhar com as tecnologias digitais

Embora surfando na onda da Black Friday (e suas variantes, como Black Weekend, Black Week ou Cyber Monday), o comércio eletrônico ainda terá que vencer muitas fronteiras para avançar em mercados mais tradicionais do varejo, como moda, itens de compra cotidiana e recorrente, mantimentos, entre outros. E a economia digital tem muito a contribuir na busca de soluções. Inteligência artificial, IoT, big data, cloud computing, realidade aumentada são algumas das tecnologias que, em um curto período, virarão serviços à disposição das plataformas de e-commerce. Elas deverão contribuir para melhorar a experiência do consumo online, reduzir custos de infraestrutura de rede e para trazer para esse mercado tanto novos usuários, como os que já compram online, mas que ainda procuram as lojas físicas para a maior parte das compras.

No caso do Brasil, muitas são as tecnologias que podem superar as desvantagens existentes numa compra online. Uma delas é a falta de contato com o produto. O Arkit, ferramenta de realidade virtual da Apple, está sendo utilizado por empresas como Ikea para que o cliente possa avaliar, por meio de um app, se o móvel que se deseja comprar se encaixa no local onde ele será colocado. O uso da automação e de algoritmos leva a quase zero o custo marginal de se adicionar novas interações, o que permite às plataformas de e-commerce suportar milhares de usuários. Ainda, o comércio eletrônico é capaz, por meio da tecnologia de RFID, de contornar questões como a informação sobre disponibilidade do produto. A coleta de big data e a posterior análise permite a extração de informações valiosas sobre o perfil dos consumidores, que possibilitam melhorar o posicionamento da marca frente às demandas presentes e futuras de seus clientes.

O efeito-rede existe em diversos mercados, mas é ainda mais relevante para se entender o poder das plataformas digitais, entre elas, as de e-commerce. O benefício de se usar um produto ou serviço dentro de uma plataforma cresce exponencialmente conforme se aumenta o número de usuários. E quanto mais pessoas usam uma plataforma, mais atrativa ela se torna. É o que acontece com plataformas como Ebay, Mercado Livre e OLX, que só geram os benefícios esperados para os consumidores em função do efeito-rede que conseguiram criar.

Como também já exposto por este blog, as plataformas são, provavelmente, o modelo de negócios de maior valor na era digital. Juntos, o efeito-rede e plataforma reforçam o poder que gigantes do comércio eletrônico têm sobre o mercado – as empresas fazem de tudo para manter o usuário navegando em sua plataforma, ganhando na geração de uma imensa quantidade de dados, os quais fornecem informações que serão usadas para fornecer novos serviços – reforçando a predominância da plataforma.

A essa infinidade de dados alia-se o uso de ferramentas como machine learning e engenharia de dados, as quais alavancam o conhecimento sobre o usuário e reforçam o ciclo de preponderância das plataformas. Um exemplo claro é a Amazon Prime, que inclui serviço de compras, entrega rápida, delivery de restaurantes, leitura de livros, audiobooks, streaming de series e filmes, música, compra integrada com o dispositivo Alexa, serviços domésticos e de reparos, entre tantos outros.

O que fica de lição ao se observar o que acontece nos demais mercados e também no Brasil é que as lojas físicas não podem prescindir da presença online. Vide o exemplo da Toys”R”Us, uma das maiores vendedoras de artigos infantis, que entrou com pedido de falência em setembro deste ano. Atribui-se a isto a forte concorrência com o e-commerce: o mercado de brinquedos, diferentemente de vários outros, adequa-se bem às vendas online e ao público de pais millennials sem tempo para ir a lojas físicas e mais habituado a executar as mais diversas atividades na internet. A empresa tentou ser fornecedora exclusiva de brinquedos para a Amazon em 2000, a qual foi processada em 2004 por descumprir o contrato. Com isso, a Toys”R”Us perdeu a oportunidade de desenvolver a sua própria plataforma de e-commerce há mais tempo. E quando acordou, já era tarde demais.

Conclusão: ainda estamos no ‘Day One’

Jeff Bezos, CEO da Amazon, tem uma célebre frase que resume a filosofia da empresa: “this is Day One ”. Isso significa que um mundo novo ainda está por vir em relação ao comércio eletrônico, à internet e à economia digital. Há, assim, um longo caminho a ser percorrido, tanto por economias mais maduras, como também pelas emergentes, até que o comércio eletrônico seja capaz de prover a melhor experiência para o consumidor a um baixo custo.

Para o Brasil, além da necessidade de ser avançar nas questões estruturais ligadas a serviços de custos, como logística e entrega, é preciso também ser capaz de olhar para fora, buscar novos modelos de negócios, novos mercados e novos serviços capazes de agregar valor ao que se entrega. O comércio eletrônico está só começando no Brasil. Devemos aproveitar o momento para traçar estratégias de crescimento que incluam novos mercados e que se projetem sobre novos modelos de negócios. Não dá mais para seguir a rota do foco no mercado interno – e muito menos repetir os velhos erros das industrias tradicionais.

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