Economia de Serviços

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O papel dos serviços na diversificação econômica: o caso dos Emirados Árabes Unidos

[Ver nota do editor]

Em 1971, quando os Emirados Árabes Unidos (EAU) se tornaram independentes, pela confederação de sete emirados que formavam o protetorado britânico dos Estados da Trégua, o Golfo Árabe era escassamente povoado, com atividade econômica concentrada na pesca e no comércio de pérolas. Com a ascensão da economia petrolífera, a região alterou-se substancialmente. Cerca de 10% das reservas mundiais de petróleo bruto atualmente conhecidas estão localizadas nos Emirados. Nos 40 anos após a independência do país, essas reservas permitiram a expansão real do PIB na ordem de 5,5% por ano.

Desde a década de 1990, o governo dos EAU tem buscado diversificar sua economia e reduzir sua dependência de petróleo. Atualmente, os Emirados são considerados um grande centro econômico no Golfo Árabe, e os investimentos de seus fundos soberanos destacam-se no mundo. A proporção do PIB gerada por setores não petrolíferos superou 69% em 2016, contra 53% em 2000. Embora a participação de setores não relacionada a hidrocarbonetos tenha aumentado no PIB, as receitas de exportação e do governo continuam concentradas em óleo e gás.

Figura: Crescimento do PIB dos EAU – Setor de Petróleo, Outros e Total

Fonte: UAE National Bureau of Statistics

Segundo estudo do FMI, há uma forte correlação entre diversificação e crescimento econômico sustentável, uma vez que economias baseadas em várias fontes de renda são menos vulneráveis a choques e ciclos econômicos. Evidências empíricas, no entanto, também atestam que a maioria das estratégias de diversificação para reduzir dependência do petróleo não foi bem-sucedida, com exceção dos casos da Noruega e do Canadá.

Obstáculos relacionados à “doença holandesa” dificultam a busca de fontes alternativas de renda, em decorrência de fatores como a volatilidade econômica induzida pela instabilidade das receitas do petróleo; efeitos acomodatícios das receitas do petróleo sobre instituições nacionais; e os riscos de as exportações de petróleo ocasionarem taxas de câmbio sobrevalorizadas. Como consequência, o êxito ou o fracasso de uma estratégia de diversificação depende de políticas econômicas que antecipem o futuro declínio nas receitas do petróleo.

O governo emirático tem buscado alcançar a diversificação sustentável pela implementação da UAE Vision 2021, que considera a inovação e o conhecimento como os principais motores da economia no futuro. De acordo com essa estratégia, os Emirados pretendem reduzir a participação das receitas do petróleo no PIB para apenas 5% em 2021, sobretudo por meio de investimentos em alta tecnologia e em serviços com elevado potencial de crescimento.

Significativos investimentos têm sido feitos em áreas como energia solar e logística portuária. Por conta de sua posição geográfica estratégica, entre a Europa e os principais mercados da  Ásia, os EAU também têm se destacado no setor de aviação, que já responde por 15% do PIB do país.

Lançada em 2016, a estratégia de impressão 3D da Dubai Future Foundation visa posicionar o emirado como um dos principais centros de tecnologia de impressão 3D em medicina; bens de consumo; e, especialmente, construção. Novas regulamentações municipais e diversas agências públicas, a exemplo da Dubai Electricity and Water Authority, devem contribuir para que, a partir de 2019,  2% dos edifícios de Dubai sejam total- ou parcialmente construídos por impressoras 3D. Segundo as metas propostas, esse número pode chegar a 25% em 2030, por meio de incentivos públicos e da esperada adesão da iniciativa privada.

Além dos desafios da “doença holandesa” para a diversificação econômica do país, os Emirados precisam superar problemas de produtividade. Apesar das altas taxas de crescimento desde os anos 2000, a produtividade do capital investido não tem crescido, e a produtividade do trabalho tem diminuído no mesmo período. Ainda que as exportações de serviços dos EAU venham aumentando, o saldo líquido de serviços é deficitário desde 1990. O país tem oportunidades e potencial para superar seus desafios pelo emprego de novas tecnologias.

É provável que a economia dos EAU continuará a depender do setor de hidrocarbonetos para impulsionar o crescimento e a diversificação nos próximos anos, mas os setores não petrolíferos poderão ganhar mais destaque, dado que, de fato, os projetos da UAE Vision 2021 deem os resultados esperados. A agregação de valor desses setores, sobretudo dos serviços, dependerá de fatores cuja eficiência se baseia crescentemente em ativos intangíveis, como conhecimento e infraestrutura.

O governo emirático deverá considerar que o conhecimento não é apenas produzido, mas também exportado. Como enfatizado em outros textos neste blog, a exportação de conhecimento decorre de serviços embutidos em produtos tangíveis, como design, royalties, marcas, e outros serviços profissionais e técnicos que agregam valor a bens. Para ter êxito, a estratégia de diversificação dos EAU, consequentemente, deve antecipar-se a tendências futuras e concentrar-se em setores inovadores e serviços que promovem o adensamento de valor nos bens.

Nota do editor: O autor é secretário executivo do Gabinete da Embaixada dos Emirados Árabes Unidos em Brasília.

Do que é feito um iPhone?

A resposta para a pergunta no título parece óbvia: metais, microchips, vidro e outros materiais comumente utilizados em eletrônicos. Porém, a resposta é mais complexa do que parece. Em 2011, três pesquisadores (Kraemer, Linden e Dedrik) estudaram a cadeia de produção do famoso celular da Apple e a composição do preço final do produto.

Nesse estudo, eles encontraram que os lucros da Apple representam quase 60% do preço final do produto (ver gráfico abaixo). As matérias-primas físicas supracitadas representavam 22% do preço; a mão de obra, 5%, enquanto os lucros de demais empresas na cadeia de produção respondiam por cerca de 15% do valor final. Os gastos com a mão de obra da China, onde é montada a maior parte dos iPhones, não representam 2% do preço final.

Nada mais esperado que a Apple, empresa que efetivamente pensou e lançou o iPhone, fique com a maior parte dos lucros e do valor final do produto. Vale a pena destacar, porém, as atividades que a empresa efetivamente realiza nessa cadeia: pesquisa & desenvolvimento (P&D), design, desenvolvimento de software, marketing e branding, e, em alguns casos, atividades de varejo, por meio de suas lojas próprias. Todas essas atividades são classificadas como de serviços. Embora a Apple seja uma empresa que desenvolve e lança produtos (computadores, smartphones, tablets, smartwatches, etc), ela efetivamente realiza atividade de serviços, que terminam “embutidos” nesses bens.

O exemplo do iPhone é ilustrativo de alguns processos em curso na economia atual. Talvez o mais óbvio deles seja a total desatualização dos conceitos de setores como áreas completamente distintas e separadas: está cada vez menos claro como separar serviços de indústria, indústria de agricultura, agricultura de serviços, etc. Os três tradicionais setores (serviços, indústria e agropecuária) estão progressivamente mais integrados e, em muitos casos, são quase indistinguíveis. Ao fabricar lâmpadas e equipamentos e depois prestar serviços de iluminação para cidades, a GE é uma empresa de indústria ou de serviços?

Um segundo e talvez mais relevante aspecto que o caso do iPhone traz é que o valor adicionado, nas cadeias de valor, está cada vez menos concentrado nas matérias-primas e na efetiva montagem (“manufatura”) de produtos, e mais em serviços de maior sofisticação. Esses serviços têm alto conhecimento abarcado e servem para diferenciar e agregar mais valor a produtos, aumentando o poder monopolista de seus produtores – são os chamados “serviços de agregação de valor”.

A “smiley curve” (ou “curva sorriso”), mostrada abaixo, apresenta bem esse processo, ainda que de maneira nocional. Em uma cadeia de produção, as atividades no começo e no final do processo de produção, predominantemente de serviços sofisticados (inovação, P&D, design, marketing, branding, etc) tendem a capturar mais valor do que aquelas no centro, predominantemente de manufatura e serviços básicos (logística, matérias-primas, produção, montagem, etc) e normalmente concentradas em países de renda baixa ou média, como o Brasil.

Aqui não se pretende desprezar a importância da indústria ou da agropecuária, pelo contrário: no século XXI, serviços ganham valor com a indústria (e a agropecuária) e vice-versa. Um aplicativo não tem valor sem um celular, assim como um celular não tem valor sem um aplicativo.

Esse processo de servitização da indústria (ou industrialização dos serviços) não é exclusivo de produtos ultrassofisticados como um smartphone. Segundo dados da Pesquisa Industrial Anual (PIA), do IBGE, em 2013, para cada R$ 1 de valor adicionado pela indústria brasileira, foram gastos R$ 0,70 em serviços, no processo produtivo.  E esse indicador é alto para segmentos tão distintos quanto extração de carvão mineral e fabricação de equipamentos de informática (Arbache e Moreira, no prelo).

Portanto, para crescer de maneira sustentável no século XXI, não servirão de nada estratégias como a atração de maquiladoras estrangeiras apenas para montar artigos tecnológicos no país. Estratégia mais interessante é enxergar o setor de serviços como um setor de soluções para os problemas dos demais segmentos (ou até mesmo de outras atividades de serviços), gerando uma maior integração de cadeias e o surgimento de serviços que efetivamente agreguem valor e contribuam para o aumento da competitividade e da produtividade da economia como um todo.

O que é commoditização digital?

A era digital está rompendo tudo: a natureza dos mercados e dos produtos, a forma de produzi-los, as formas de entrega e de pagamento, a escala do capital para se operar globalmente e os requerimentos de capital humano. A era digital também está promovendo a produtividade ao expor as empresas a novas ideias, tecnologias, práticas operacionais e de gestão e ao criar novos canais de acesso aos mercados. E tudo isto a custos relativamente baixos. Não é exagero prever que as empresas dependerão cada vez mais da inteligência artificial para rotinas básicas e também para atividades mais complexas. Em breve, versões mais avançadas de assistentes virtuais como os Siris e as Alexas serão parte do nosso dia-a-dia no trabalho, na escola, em casa e no lazer.

Embora a disseminação e a popularização da era digital sejam valiosas para a produtividade e para a geração de riquezas, é preciso ter em conta os limites daquele benefício para a competitividade. A “commoditização digital” refere-se ao impacto decrescente que a popularização do acesso e uso de tecnologias digitais padronizadas e de uso geral têm na produtividade. Tudo o mais constante, é razoável assumir que o impacto da adoção de uma nova tecnologia digital na competitividade de uma empresa de determinado segmento seguirá trajetória tal como descrita na figura 1 abaixo.

Enquanto poucas empresas têm acesso à nova tecnologia, seu impacto na produtividade deve aumentar rapidamente. Mas, à medida que o acesso e uso da tecnologia se disseminam, seu impacto marginal diminui e, eventualmente, se torna nulo. À medida que o benefício marginal decresce, o uso da tecnologia passa a se tornar requerimento de entrada no mercado. Ou seja, a tecnologia ajuda a colocar a empresa “no jogo”, mas não a qualifica a “ganhar o jogo”.

Pense no choque de produtividade que os PCs tiveram em meados dos anos 80 em atividades básicas como edição de textos, controle de estoques e gestão contábil. Naquela altura, o acesso àquelas tecnologias era limitado em razão do custo das máquinas e das poucas qualificações das pessoas para operar computadores. As poucas empresas e universidades que tinham acesso provavelmente experimentaram melhoria em indicadores de eficiência de tempo e desempenho. Porém, com o tempo, o emprego de PCs em atividades básicas passou a fazer pouca ou nenhuma diferença, já que eles praticamente se tornaram commodities.

Equipamentos de tecnologia da informação em geral, softwares padronizados de várias aplicações, sistemas e, claro, acesso à internet estão sujeitos à commoditização digital. O efeito-rede e o efeito-plataforma devem acelerar a commoditização digital de aplicativos e outros recursos livres ou de baixo custo disponíveis na internet.

Figura 1: Relação entre commoditização digital e competitividade

Fonte: elaboração própria

A commoditização digital ajuda a explicar o suposto paradoxo da literatura de estagnação secular que relaciona a popularização da tecnologia da informação com a desaceleração da taxa de crescimento da produtividade.

A commoditização digital tem aspectos importantes para o desenvolvimento. Isto porque, de um lado, a grande maioria das empresas é usuária de commodities digitais, enquanto, do outro lado, parcela bem menor é desenvolvedora e gerenciadora daquelas tecnologias, padrões e plataformas nas quais as commodities digitais são usadas. São estas as empresas que, de fato, tendem a capturar a maior parte dos benefícios privados das commodities digitais. Pense na Google, Amazon, Apple, Microsoft, Facebook, Baidu, Alibaba, SAP, Uber, Tencent, Cisco, Oracle, Huawei e outras empresas que estão estabelecendo padrões, criando plataformas e gerenciando os ambientes em que operam os negócios de terceiros.

Aquelas empresas atingiram nível tão elevado de captura dos benefícios privados das commodities digitais que elas se tornaram “superestrelas” com baixas possibilidades de serem contestadas por entrantes. Esta, aliás, é uma das explicações da perda do brilho dos “unicórnios”, startups que em pouco tempo chegavam a valer cerca de US$ 1 bilhão ou mais.

O encurtamento cada vez mais intenso dos ciclos tecnológicos aliado ao efeito-rede e efeito-plataforma estabelecem condições altamente assimétricas de competição que garantem o hiato tecnológico e de desempenho entre empresas usuárias e empresas desenvolvedoras e gerenciadoras de commodities digitais.

De fato, estamos vendo crescente divisão entre aqueles que usam e aqueles que desenvolvem e gerenciam tecnologias, padrões, regras e plataformas digitais. O primeiro grupo é composto majoritariamente por empresas de países emergentes e de alguns países ricos, como Portugal e Grécia. O segundo grupo é composto majoritariamente por empresas sediadas em alguns poucos países avançados e na China. Essa divisão tem implicações adversas importantes para as perspectivas de convergência da produtividade e da renda entre países e tem implicações relevantes para as políticas públicas e privadas.

Os esforços que muitos países emergentes estão fazendo para mobilizar recursos para ampliar as redes e a velocidade da internet, treinar pessoal, adquirir softwares e computadores para escolas e universidades, reduzir impostos de importação de equipamentos de informática e softwares e alterar legislações da área digital não deverão ser suficientes para reduzir o hiato tecnológico e de renda entre países.

Ao tempo em que devem popularizar o uso de commodities digitais, as políticas públicas terão que abraçar agendas muito mais ambiciosas e sofisticadas na área inovação e tecnologia se quiserem melhorar os prospectos de convergência tecnológica e de renda.

O processo de industrialização dos serviços

Analisando a demanda do consumidor, verifica-se que há uma mudança no seu padrão de consumo. Cada vez mais, os consumidores direcionam suas preferências aos produtos tecnológicos, e, quanto mais próximo da atualidade (em anos), maior a demanda dos consumidores por serviços sofisticados, corroborando o que foi apresentado em Eichengreen e Gupta (2014).

Esse é um processo natural de evolução da economia, pois, uma vez que a renda dos indivíduos aumenta, as economias tornam-se mais complexas, e a demanda por serviços movidos à informação também aumenta, principalmente a demanda por serviços tecnológicos. Tal alteração nas preferências do consumidor requer que as empresas se adaptem, direcionando a sua produção industrial à fabricação de bens com elevada participação dos serviços. Esse processo de produção aqui será chamado de dPSS (density Product and Service Systems), que é uma extensão do PSS (Product and Service Systems).

Em um post anterior, foi apresentado o espaço-indústria. Nesse modelo, ao se chegar a um certo nível de desenvolvimento, as regiões R3-R4, as economias passam a observar uma relação crescentemente simbiótica e sinergética entre serviços e indústria. Nesse estágio, bens industriais passam a ter desproporcionalmente mais valor por terem muitos serviços “embarcados” na sua composição. Esse processo de “servitização” dos produtos industriais eventualmente evolui para o PSS e, finalmente, para o dPSS.

Figura 1: O processo de dPSS (density Product Service Systems)

 

Fonte: elaboração própria

De acordo com Vandermerwe e Rada (1988), o processo de servitização consiste na oferta de bens pelas indústrias manufatureiras, que buscam aumentar a participação dos serviços nos seus negócios. Os autores justificam que as empresas percebem as mudanças no padrão de demanda do consumidor e buscam agregar valor às suas principais ofertas utilizando os serviços para aumentar a sua competitividade.

O PSS (Product Service System), segundo Goedkoop et al (1999), é uma combinação integrada entre produtos e serviços que, assim como a servitização, engloba uma estratégia competitiva. Mas, além de ser orientado por serviços, o PSS também decorre de uma maior demanda pela sustentabilidade ambiental. O PSS é um caso particular da servitização e é orientada pela funcionalidade do produto gerado e não somente pela oferta do bem. Ou seja, a empresa fabrica o produto e em seguida transfere a responsabilidade de uso para o consumidor final.

Já o dPSS é um caso particular do PSS, pois ele também é um bem industrial com serviços incorporados na sua fabricação. Nesse processo, tanto o produto industrial quanto os serviços são essenciais para a composição do preço final do produto. Dados precisos sobre o dPSS são difíceis de ser obtidos, uma vez que, com raras exceções, não se encontram informações suficientemente desagregadas para se saber ao certo o quanto de serviços está embutido no bem industrial.

O dPSS possui as seguintes características:

  • Assim como o PSS, o dPSS é caracterizado pela servitização dos produtos e produtização dos serviços;
  • Quanto mais serviços forem adicionados ao produto industrial, maior será o seu valor final;
  • Não há uma ordem cronológica do que é criado primeiro, se é o bem tradicionalmente industrial, ou se é o serviço a ser desenvolvido nesse produto, pois o importante é o resultado final da união;
  • Um choque positivo de dPSS direciona a economia ao desenvolvimento econômico;
  • E, o mais importante, o dPSS está diretamente relacionado ao processo descrito pelo espaço-indústria, no sentido de que as economias se desenvolvem passando pelo processo de dPSS mas, para isso, precisam alcançar a região R4, mesmo que por um atalho.

Entender o funcionamento do dPSS pode ser importante para melhor compreender o futuro do crescimento econômico, especialmente para os países que chegarem tarde na competição industrial e precisam buscar um atalho para o desenvolvimento. O fato de a indústria em quase todo o mundo em desenvolvimento e mesmo em muitos países ricos não estar em um estágio avançado de produção não implica que ela tenha perdido importância. O que ocorre é que o próprio conceito de indústria está mudando e o dPSS passará a ser cada vez mais a norma do setor.

Essa crescente demanda por serviços tecnológicos não pode ser desconsiderada. Caso as empresas e os trabalhadores não consigam acompanhar esse movimento, poderá haver, em um futuro próximo, um desequilíbrio de mercado. Tal desequilíbrio poderá gerar uma tendência de aumento do preço relativo dos serviços, pois, com a escassez de mão de obra em um setor altamente demandado, a tendência é que o salário desse setor se eleve e, como o salário sobe, os produtos se tornam mais caros para serem produzidos, implicando potencialmente no problema de Baumol cost disease.

Os serviços em 2016

Saíram na última semana os dados do produto interno bruto (PIB) do Brasil de 2016. Os resultados são, sem exagero, catastróficos. A economia brasileira registrou queda de 3,6% no ano, ligeiramente menos pior do que em 2015, quando a variação foi de -3,8%. Em dois anos, o PIB do país encolheu em 7,3%, voltando aos níveis de 2010. Se levado em conta o PIB per capita, mais adequado para medir a riqueza de um país, o cenário é ainda mais preocupante: queda de 9% desde 2013 e volta aos níveis de 2009. Em palavras simples, nos últimos anos, a economia brasileira voltou quase uma década no tempo.

Esse cenário crítico ainda demonstra poucos sinais claros e consistentes de melhora. É provável, porém, que o pior já tenha passado. Como discutido continuamente no blog, o setor de serviços responde por mais de 70% da economia, pelo maior número de empregos formais, está fortemente presente nas cadeias produtivas e, em geral, não é comercializável para além de fronteiras (um serviço de cabeleireiro, por exemplo, não pode ser ofertado a distância). Por todos esses motivos, e pelo fato de seu consumo ser muito sensível à renda e ao desempenho da atividade econômica, os serviços são altamente pró-cíclicos: quando a economia como um todo vai bem, eles vão bem; quando vai mal, eles também vão mal. Logo, o resultado dos serviços nas contas nacionais de 2016 não poderia ser diferente: queda de 2,7% na sua produção, voltando a níveis de 2011.

Com a exceção honrosa das atividades imobiliárias, que apresentaram ligeiro crescimento de 0,2%, todos os demais segmentos do setor de serviços encolheram em 2016 (ver gráfico abaixo). Os segmentos de comércio e de transporte, armazenagem e correios foram os mais afetados pela crise no setor: queda na atividade de 6,3% e 7,1% cada, respectivamente. Mesmo com resultados tão negativos, o setor de serviços como um todo apresentou resultados um pouco melhores (ou menos piores) que os setores da agropecuária (-6,6%) e indústria (-3,8%).

Com as mudanças no perfil de consumo e os avanços tecnológicos em curso, está claro que o crescimento dos países no século XXI dependerá, em grande parte, da capacidade de se produzir bens e serviços com cada vez mais conhecimento e tecnologias “embarcados”. Para isso, é preciso desenvolver um setor de serviços qualificado e mais integrado às cadeias de produção, em especial naquelas nas quais o Brasil apresenta vantagens comparativas estáticas e dinâmicas já reveladas.

É preciso colocar essa agenda como prioridade, ou correremos o risco de seguirmos eternamente suscetíveis aos custosos “voos de galinha”.

O Boeing Dreamliner e os riscos da descentralização da produção

A partir da década de 80, empresas multinacionais, com o objetivo de cortar custos e ganhar mais eficiência, passaram a decentralizar fortemente sua produção.[1] Uma empresa como a Nike, por exemplo, passou a concentrar as suas atividades de pesquisa, design, marketing, etc, na sua sede, nos Estados Unidos, enquanto que a fabricação e montagem dos produtos passaram a ser feitas em países em desenvolvimento, onde custos como os trabalhistas e tributários costumam ser mais atrativos.

A ideia por trás desse movimento era, além de economizar custos, obter ganhos com a especialização. Se no começo do século XX uma empresa como a Ford produzia desde a borracha dos pneus até a montagem final dos automóveis, no fim do século XX as empresas perceberam que algumas partes do processo de produção poderiam ser terceirizadas para empresas mais especializadas na parte específica do processo, seja ela a produção dos pneus ou a assessoria legal.

Dado esse contexto e o ambiente extremamente competitivo do mercado, a Boeing resolveu aplicar ao extremo esse conceito de descentralização da produção. Nascia a experiência produtiva do Boeing 787 Dreamliner. Segundo a empresa, o Dreamliner seria duplamente revolucionário: seria o primeiro avião comercial feito majoritariamente de fibra de carbono, o que o tornaria consideravelmente mais leve e econômico; e seria produzido de maneira “parceirizada”, em um modelo no qual os principais elos da cadeia de produção seriam “sócios” da Boeing, e não meros fornecedores.

Com o intuito de reduzir seu risco e tirar proveito de empresas especializadas, a Boeing decidiu fabricar o avião utilizando um “modelo de parceria global”, no qual algo entre 70% e 80% da produção seria terceirizada para empresas de ponta em diversos países[2] (TANG & ZIMMERMAN, 2009; MCKINSEY, 2012).

Em processos produtivos anteriores, a Boeing fazia todo o detalhamento das partes da aeronave, fabricava algumas delas internamente e encomendava outras dos seus fornecedores. Estes produziam-nas exatamente como desenhado pela Boeing que, por fim, montava o avião na sua fábrica. O Dreamliner, por sua vez, foi desenhado de maneira modular. Nesse sistema, grandes partes poderiam ser produzidas de forma independente e depois acopladas à aeronave (KOTHA & SRIKANTH, 2013).

Nesse modelo, a Boeing se limitava a determinar índices de performance que as partes deveriam atingir e os “parceiros” seriam responsáveis por todo o processo de pesquisa e desenvolvimento, financiamento, detalhamento do design, compra de matérias-primas e demais ferramentas necessárias para atingir a performance desejada pela Boeing. Esses parceiros estratégicos – cerca de 50 – gerenciariam suas próprias cadeias de fornecedores. Isso facilitaria e aceleraria a produção, pois os parceiros trabalhariam simultaneamente, e o processo de montagem teria seu tempo reduzido de 30 para 3 dias (TANG & ZIMMERMAN, 2009).

Figura 1 – Principais parceiros da Boeing na fabricação do Dreamliner, por país da empresa e parte da aeronave.

Fonte: Nolan e Kotha (2005), com base em dados da Boeing

Desde o início, o Dreamliner foi um sucesso de encomendas. Porém, no processo de produção, tamanha desverticalização começou a causar problemas. Atrasos e problemas diversos com os parceiros responsáveis pelos módulos da aeronave e seus fornecedores postergaram o lançamento do Dreamliner diversas vezes. O avião, que deveria fazer seu primeiro voo em agosto de 2007, acabou por fazê-lo somente em outubro de 2011 (FERREIRA, 2012).

Os atrasos ocorreram por motivos diversos: a empresa que produzia um software não conseguia programá-lo corretamente para o sistema de controle de voo produzido por outra companhia; algumas das partes, feitas por empresas distintas, não se encaixavam corretamente umas nas outras; alguns dos parceiros não conseguiam lidar com a maior independência e tiveram problemas com suas próprias cadeias de fornecedores. Para acelerar o processo, a Boeing acabou por comprar alguns desses parceiros e a acompanhar mais de perto os demais membros da cadeia, efetivamente “reverticalizando” parte da produção (FERREIRA, 2012; KOTHA & SRIKANTH, 2013).

Como se não bastassem os diversos problemas na produção, após ser lançado, o Dreamliner apresentou sérios defeitos, como vazamentos de combustível, incêndios e problemas diversos com baterias, turbinas, fuselagem, sistema elétrico e trem de pouso. Com tantos problemas, o Dreamliner ficou proibido de voar em todo o mundo por três meses em 2013. Esta foi a primeira vez desde 1979 que a FAA (órgão americano que regula e fiscaliza o mercado aéreo no país) proibiu um avião comercial de voar em todo o território norte-americano.

A bateria, principal fonte de problemas pós-lançamento e causa central da proibição de voo em 2013, foi encomendada pela Boeing a um de seus parceiros, a empresa francesa Thales. Esta, por sua vez, terceirizou o desenvolvimento e a produção da bateria para a empresa japonesa GS Yuasa. Já o carregador da bateria foi encomendado pela Thales à empresa americana Securaplane. Por fim, o sistema que monitora a bateria foi fabricado pela empresa japonesa Kanto. O distanciamento e o pouco controle da Boeing no processo de produção da bateria pode ter contribuído para as falhas.

No fundo, a história do Dreamliner é um exemplo dos riscos da descentralização excessiva. Por mais que o modelo totalmente verticalizado seja menos factível, eficiente ou desejável, o modelo excessivamente descentralizado também parece apresentar problemas, em especial no que concerne a dificuldades de coordenação.

Além disso, o Dreamliner é um exemplo claro de como a performance de uma empresa é afetada e, em certa medida, depende da performance de seus fornecedores e demais empresas com as quais ela interage. Assim, por mais eficiente e produtiva que seja uma empresa internamente, ela sempre dependerá parcialmente da performance de outras empresas.[3]

Não por acaso, algumas grandes multinacionais têm revisto seu modelo de produção nos últimos anos. A GE, por exemplo, retornou algumas linhas de produção da China para os EUA (muito antes de Trump ser eleito) por perceber que manter seus centros de pesquisa próximos à linha de produção é vantajoso para observar mais claramente erros, possibilidades de melhoria e adaptação às mudanças nas preferências do mercado. Além disso, em um mundo em que a diferenciação tem se tornado cada vez mais relevante para a competitividade, custos trabalhistas e tributários, por exemplo, estão perdendo importância.

Esse caso é importante para o Brasil, primeiramente porque aqui, também, a descentralização da produção é elevada e cresce e o aumento do consumo de serviços no processo de produção da indústria é parcialmente explicado por isto. Mas o caso é especialmente relevante porque a economia brasileira é desigual em diversos aspectos, inclusive na performance das empresas (MOREIRA, 2014; PORCILE & CATELA, 2012). Segundo dados da CEPAL & OCDE (2012), em média, no Brasil, microempresas têm produtividade do trabalho 10 vezes menor do que a de grandes empresas.

Com tamanha heterogeneidade de produtividade, mesmo as empresas de melhor performance podem estar sendo negativamente afetadas pelos elos menos produtivos de suas cadeias. Em suma, o aumento da produtividade brasileira passará, cada vez mais, por enfrentar a questão da heterogeneidade de performance de nossas empresas.

 

[1] Este post é baseado em um capítulo da dissertação do autor, “Descentralização da produção e produtividade no Brasil” (MOREIRA, 2015). An English version of this post can be found here.

[2] O nível de terceirização da produção dos aviões Boeing 737, modelo anterior ao Dreamliner, variava entre 35% e 55% (TANG & ZIMMERMAN, 2009).

[3] Essa hipótese é explorada por Moreira (2015).

 

Referências bibliográficas

CEPAL; OCDE. Perspectivas económicas de América Latina 2013 – Políticas de PYMES para el cambio estrutural. Santiago de Chile, 2012.

FERREIRA, M. J. B. Competências empresariais e políticas governamentais de apoio ao desenvolvimento aeroespacial: caso dos EUA. ABDI. Campinas-SP, 2012.

KOTHA, S.; SRIKANTH, K. Managing a global partnership model: lessons from the Boeing 787 ‘Dreamliner’ Program. Global Strategy Journal, vol. 3 (1), p. 41-66, fev. 2013.

MCKINSEY. Manufacturing the future: the next era of growth and innovation. Nov, 2012.

MOREIRA, R. F. C. A disparidade da produtividade das empresas brasileiras: possíveis determinantes, seu impacto nas cadeias de valor e na economia. In: SANTOS, C. A. (Org.). Pequenos Negócios: Desafios e Perspectivas – Encadeamento Produtivo. vol. 6, p. 52-67. Sebrae. Brasília-DF, 2014.

MOREIRA, R.F.C. Descentralização da produção e produtividade no Brasil. 2015. 103f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

NOLAN, R. L.; KOTHA, S. Boeing 787: The Dreamliner. Harvard Business School Compilation 305-101. Boston, abril de 2005.

PORCILE, G.; CATELA, E. Y. A. S. Heterogeneidade estrutural na produtividade das firmas brasileiras: uma análise para o período 2000-2008. Anais do XL Encontro Nacional de Economia. ANPEC, 2012.

TANG, C. S.; ZIMMERMAN, J. D. Managing new product development and supply chain risks: the Boeing 787 case. Supply Chain Forum – an International Journal. v. 10, n. 2, 2009.

 

O preço do desenvolvimento

O sistema de preços relativos é a linguagem universal dos mercados. Friedrich Hayek, economista da escola austríaca, consolidou a ideia de que os preços traduzem toda sorte de eventos que afetam a escassez de bens e serviços no mercado. Se por estiagem ou praga a lavoura do trigo ruir, pouco importa: se a oferta cai, o pão nosso de cada dia encarece. No português claro: quando bate no bolso, amigo, todo mundo entende!

David Ricardo, grande economista clássico, estabeleceu a relação entre preço e escassez. Quanto mais pão queremos, mais terras precisamos; a expansão da fronteira agrícola incorpora terras cada vez menos produtivas e a produtividade média das lavouras cai; nosso pão de cada dia encarece. A ideia de preços ricardianos é essa: no longo prazo, a expansão da fronteira agrícola e a exaustão das reservas minerais aumentariam a carestia pelas crescentes dificuldades técnicas e quedas de produtividade, ainda que no curto prazo flutuações de oferta e demanda (as intempéries comentadas acima) reduzam ou reforcem essa tendência. Hayek e Ricardo estão dizendo que os preços entregam informações de escassez imediata e também de tendência.

No caso dos produtos industrializados a formação de preços não é ricardiana. A indústria persegue avanços tecnológicos e ganhos de escala permanentemente. A expansão da produção industrial está intimamente associada ao aumento da produtividade – essa é a Lei de Kaldor-Verdoorn; a produção aumenta por efeitos dinâmicos (tecnologia) ou por efeitos estáticos (escala), e ambos levam à queda de custos. Assim, a tendência deflacionária da produção industrial é inerente ao desenvolvimento industrial de longo prazo.

No setor de serviços os preços sofrem de limitações de comercialização. Se sua banda larga é cara e lenta você não pode contratar uma barata e veloz do Japão. Os serviços são pouco mecanizáveis, pouco padronizáveis e, em sua maioria, não-comercializáveis para além-fronteiras; portanto, conformam mercados menos concorrenciais em relação aos produtos comercializáveis, que enfrentam preços formados no cenário internacional. Ceteris paribus, produtos não-comercializáveis apresentam trajetória inflacionária em relação ao de produtos comercializáveis, que sofrem a disciplina de preços imposta pela mecanização, padronização e ampla e acirrada concorrência internacional.

Quando essa dinâmica de preços é inserida na contabilidade nacional vintage para o cálculo do valor adicionado, o setor industrial perde participação. Ao longo de todo o pós-guerra, o setor de serviços ganhou participação no PIB de diversas economias – sobretudo as desenvolvidas – às custas da redução do setor industrial. O fato estilizado mais apontado na tese da desindustrialização é a queda do valor adicionado da indústria em proporção ao valor adicionado total da economia. A indústria cede espaço para o setor de serviços como centro dinâmico; no caso dos desenvolvidos, esse seria um fenômeno natural, sustentado pela noção de que a elasticidade-renda da demanda por serviços aumenta – enquanto a de bens cai – com o aumento da renda per capita; no caso dos países em desenvolvimento, a desindustrialização seria uma patologia veiculada pela globalização e por uso cada vez maior de tecnologias poupadoras de mão-de-obra. A narrativa desse parágrafo foi rasteiramente banalizada: “Indústria pra quê? Os países desenvolvidos são economias de serviços”.

Ledo engano. As séries históricas do PIB americano que mostram mudanças na composição do valor adicionado não diferenciam variações reais decorrentes do quantum de variações reais decorrentes de preços relativos, escondendo os padrões de evolução produtiva e as regras subjacentes à formação de preços específicos de cada setor, como mencionado acima. As séries do PIB repartem o valor agregado setorialmente, desconsiderada a indissociável conexão entre indústria e serviços. Não existe aplicativo sem smartphone. Observando o caso americano a partir da evolução dos preços relativos dos setores industrial e de serviços a história é outra.

O gráfico abaixo mostra como quantum e preço evoluem de formas distintas entre os setores e como essa combinação produz a visão de mudança estrutural da economia americana. Os índices de quantum (linhas pontilhadas) do valor adicionado dos serviços e da indústria apresentaram comportamentos semelhantes, ainda que o quantum de serviços tenha atingido um nível maior; no entanto, os índices de preços se comportam diametralmente, com 30 anos de estagnação no setor industrial e persistente elevação no setor de serviços.

LEÃO, R. Reinterpretando a mudança estrutural dos EUA: a conexão entre indústria e serviços [Dissertação apresentada ao Mestrado em Economia do Setor Público – UnB]. – Brasília – DF, 2016. – Orientador: Jorge Arbache.

A ideia de uma economia americana avançada e, portanto, em desindustrialização, advém da miopia das contas nacionais, mas, sobretudo, pela desconsideração de diferenciais de produtividade que determinam a estrutura de preços relativos entre bens e serviços. Mecanização e padronização são os pais da produtividade, e crescimento da produtividade significa aumento do produto por trabalhador, mas, também, significa redução de trabalhadores por unidade de produto. A quantidade de trabalho humano envolvido na indústria depende da maturidade tecnológica, o que significa dizer que o trabalho humano é uma peça nas engrenagens até que máquinas possam fazer o mesmo trabalho com mais acurácia, velocidade e, portanto, menores custos. Esse não é o caso de extenso número de atividades econômicas nas quais o trabalho humano é quase ou totalmente insubstituível – basicamente, os serviços (e os de agregação de valor, em especial); na dificuldade de mecanização, padronização e comercialização, o setor de serviços cresce com elevação de seus preços.

A desindustrialização não é o preço do desenvolvimento. O dinâmico setor de serviços dos países avançados é o reflexo da sofisticação industrial que alcançaram; sofisticação que gerou um mundo de desafios tecnológicos que apenas o trabalho humano poderia solucionar. Em língua morta: o setor industrial estimulou o progresso do setor de serviços.

Inovações tecnológicas e competição no setor bancário

Quando o banco concede um empréstimo, ele faz a seleção de clientes, canaliza recursos dos investidores para os clientes com melhor relação risco-retorno e, depois, os monitora. Os bancos são mais eficientes na seleção e monitoramento de clientes pela economia de escopo conferida por um relacionamento bancário. Uma única análise de crédito subsidia o oferecimento de diversos produtos, diluindo seus custos, e o próprio relacionamento torna mais barata a análise de crédito, pois gera, praticamente sem custos, informações úteis como o histórico de pagamentos e de uso de linhas de crédito.

No entanto, o custo de construção de um relacionamento bancário é afundado. Afinal, pela natureza das informações, sigilosas ou não-verificáveis, o banco não consegue ofertar um relacionamento com um cliente, mesmo que seus concorrentes se dispusessem a comprar e eles não o fariam. É um resultado clássico que se o preço refletir incertezas do comprador sobre a qualidade da mercadoria, o vendedor tem incentivo a vender as mercadorias da pior qualidade, levando o mercado a um equilíbrio em que só há mercado para as piores, mecanismo conhecido como seleção adversa.

Custos afundados são uma barreira à entrada e suavizam a competição. Um entrante potencial precisa de lucros no mínimo suficientes para cobrir os custos afundados – única forma de recuperá-los. Assim, quanto maior for o volume desses custos, maior o risco do entrante. Consequentemente, um mercado cujo acesso traz custos afundados é menos ameaçado por entrantes potenciais. No caso dos bancos, o custo afundado de construção de relacionamentos tem ainda um outro papel deletério ao spread.

Bancos criam liquidez, transformando ativos ilíquidos em instrumentos financeiros de maior liquidez. Naturalmente, para que se crie liquidez e que se cobre pelo serviço é necessário que o ativo não tenha liquidez originalmente. O ativo em questão são os empréstimos originados pelo banco e a iliquidez dos seus mercados secundários é causada pelo fato que o banco que os originou tem mais conhecimento sobre eles que os potenciais compradores. Outra vez, um mecanismo de seleção adversa entra em ação e o mercado perde liquidez, exigindo grandes descontos do vendedor.

Inovações tecnológicas têm o potencial de mitigar a seleção adversa e, portanto, intensificar a competição no setor bancário. Nesse sentido, cabe especular o potencial de uma análise de crédito que incorpore informações como o perfil nas redes sociais e o histórico de movimentação conforme dado pelo GPS do smartphone e gere um rating através de algoritmo desenvolvido com milhões de observações. É natural conjecturar que o gerente de relacionamento médio não teria vantagem frente a uma decisão automatizada, além de implicar em um custo maior ao longo do tempo.

Mesmo sem um serviço de análise de crédito tão abrangente, já é possível construir modelos competitivos de intermediação financeira menos dependentes de relacionamentos e, portanto, com menos custos afundados e menos barreiras à entrada. A proliferação de plataformas de distribuição é um exemplo. Hoje é possível aos bancos pequenos e médios captar recursos no varejo, mesmo sem qualquer outro tipo de relacionamento com o investidor. Da mesma forma, é possível investir em fundos lastreados em operações de crédito ou ainda conceder crédito diretamente em plataformas ditas peer-to-peer.

O relacionamento pode ser substituído por um rating. Afinal, parafraseando um esquete popular na crise, o banco regional alemão não compraria um derivativo de crédito vinculado ao mercado imobiliário americano se este não fosse endossado por um rating grau de investimento. A cobertura das agências de rating, por sua vez, depende do custo de se obter informações, que caiu enormemente graças à tecnologia. Os três maiores birôs de crédito nos EUA possuem mais de um bilhão de registros cada um, número difícil de se imaginar sem os avanços da informática.

Com mais informações, o mercado secundário de empréstimos fica mais líquido, o que diminui o spread bancário por dois canais. Parte do spread é a remuneração do banco pelo risco de liquidez que o cliente lhe transfere. Sendo o risco menor, menor o spread. Além disso, há o “efeito Tostines”: o mercado é líquido porque tem mais participantes ou tem mais participantes porque é líquido? Em outras palavras, a liquidez do mercado o torna atraente a uma gama maior de participantes, pressionando o spread via maior competição. O gráfico abaixo mostra como há uma relação negativa entre o percentual de ativos de instituições financeiras não bancárias como percentual do PIB e o spread bancário.

Para impulsionar essa dinâmica, políticas públicas podem ser vislumbradas em duas dimensões: desobstruindo o fluxo de informações para birôs de crédito, como foi feito com o cadastro positivo, e modulando a regulação, de modo que haja uma “caixa de areia” regulatória, na qual novos entrantes possam testar novos modelos de negócio em pequena escala antes de incorrerem integralmente nos custos de observância, que são necessários, mas afundados. Em relação a esse último ponto, medidas que imprimam segmentação e proporcionalidade ao arcabouço regulatório são muito bem-vindas.

Caio Praes é doutorando em economia pela Universidade de Brasília — UnB.

A baixa produtividade das MPEs no Brasil: ameaça ou oportunidade?

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea,  em parceria com a Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe – Cepal, produziu uma série de estudos que tinha como pano de fundo o resgate do conceito de heterogeneidade estrutural e que foram publicados em Por um Desenvolvimento Inclusivo: o caso Brasil (Infante, Mussi e Nogueira, 2015). A obra delineia um retrato da problemática da produtividade do trabalho no país e aponta o fato de que, a despeito das significativas mudanças estruturais verificadas ao longo de sua história, uma profunda dessemelhança nos níveis de produtividade do trabalho – tanto da perspectiva intersetorial quanto intrassetorial – se perpetua ao longo do tempo no país. O que se destacou nos trabalhos foi que o Brasil vive uma situação na qual, em primeiro lugar, a produtividade média do trabalho é consideravelmente inferior àquela observada nos países centrais da economia mundial. Em segundo, que, a despeito das significativas mudanças estruturais verificadas no país ao longo da história, uma profunda dessemelhança nos níveis de produtividade do trabalho – tanto da perspectiva intersetorial, quanto intrassetorial – se perpetua ao longo do tempo. Esta dinâmica se traduz no conceito cepalino de heterogeneidade estrutural (Tabela 1).

TABELA 1Razão entre a produtividade média do trabalho do quartil e a produtividade média do trabalho total da economia brasileira (2002-2009)

Quartil Nível de produtividade 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Alto 9,76 9,78 10,01 9,91 9,93 9,57 9,67 9,96
Médio-alto 2,83 2,89 2,80 2,72 2,62 2,53 2,51 2,51
Médio-baixo 1,19 1,18 1,15 1,16 1,13 1,08 1,03 1,01
Baixo 0,48 0,48 0,48 0,48 0,49 0,50 0,50 0,50

Fonte: Squeff e Nogueira (2015).

Além disso, a par do efeito direto que ações voltadas para o incremento de produtividade dos setores dos estratos inferiores trariam para a redução da heterogeneidade estrutural – e, consequentemente, o aumento da produtividade sistêmica da economia – há ainda um efeito indireto adicional. A teoria neoschumpeteriana supõe que as empresas inovadoras são capazes de produzir a disseminação do progresso técnico pelo conjunto do aparato produtivo do país: os transbordamentos. Estes se traduziriam em um aumento da produtividade sistêmica. Contudo, para que isso ocorra, é necessário que esse sistema econômico seja capaz de absorver estes transbordamentos, incorporando-os em seus processos. Em firmas que operam em níveis de produtividade tão baixo em relação aos segmentos de ponta e que indubitavelmente apresentam um enorme descompasso em termos de estoque de conhecimento, não se verifica a incorporação sequer de muitas das tecnologias mais triviais existentes. É, pois, difícil imaginar que segmentos tão distantes da vanguarda tecnológica sejam capazes de absorver as novas tecnologias geradas pelas empresas mais dinâmicas. Para que tais transbordamentos ocorram, é imprescindível a existência de um ambiente que lhes seja favorável.Constatou-se, também, que os estratos de produtividade mais alta de nossa economia não diferem de forma significativa dos países desenvolvidos. O baixo valor médio deste indicador deve-se, fundamentalmente, à produtividade extremante mais baixa apresentada pelos estratos inferiores. Observa, ainda, que esta situação é um importante obstáculo para a superação das desigualdades sociais no país. Diante disso, é fundamental identificar as possíveis alternativas para a superação desse quadro. Duas são as trajetórias possíveis: a estrutural, na qual se buscaria uma mudança na estrutura produtiva, de modo que os segmentos de mais alta produtividade aumentassem sua participação relativa no agregado; e a setorial, em que se buscaria uma elevação da produtividade dos segmentos menos produtivos. Porém, em função da composição dos estratos de baixa produtividade e de sua forma de inserção no mercado, não se pode esperar que a alternativa estrutural tenha viabilidade ao menos no curto ou médio prazos. Ademais, as firmas que compõem estes estratos não têm capacidade de absorver a mão de obra liberada pelos estratos inferiores, conduzindo assim a um quadro de desemprego. Resta, portanto, como alternativa capaz de promover um processo de desenvolvimento inclusivo no país a trajetória setorial. Neste caso, é necessário avaliar quais sãos as possibilidades e as oportunidades que os setores têm de elevar sua produtividade.

Assim, para melhor compreender a natureza das políticas que precisam ser formuladas e implementadas para a persecução da trajetória proposta, é preciso caracterizar quem são os agentes econômicos que conformam os estratos de baixa produtividade. A observação do conjunto das atividades menos produtivas da economia brasileira aponta que estas são as que concentram a maior parte das empresas de pequeno porte do país (Squeff e Nogueira, 2015). Além disso, desse grupo fazem parte as atividades mais significativas do setor de serviços: comércio; serviços de manutenção e reparação; serviços prestados às famílias e associativas; serviços de alojamento e alimentação; e serviços prestados às famílias. Assim, o segmento responsável por “puxar” a produtividade média da economia para baixo é exatamente o das micro e pequenas empresas, notadamente do setor de serviços. Poderia se chegar à conclusão de que estas empresas seriam um entrave para o desenvolvimento do país. Entendemos que não, pelo contrário. Elas são exatamente a oportunidade, o caminho a ser trilhado para a reversão do quadro atual. É natural a tendência de que as MPEs apresentem produtividades inferiores às das empresas de grande porte, uma vez que a intensidade de capital que caracteriza as grandes empresas normalmente conduz à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra. Entretanto, este hiato de produtividade entre firmas de diferentes portes não tem que ser, necessariamente, da magnitude do observado no Brasil. Comparações internacionais (OCDE e Cepal, 2012 e Nogueira e Pereira, 2015)  demonstram que o hiato de produtividade natural em empresas de diferentes portes é consideravelmente menor nos países da OCDE (ver gráfico abaixo). Há, inclusive, o caso da Noruega, onde as MPEs são mais produtivas que as empresas médias e grandes, e do Luxemburgo, em que as produtividades praticamente se igualam.

Gráfico 1 – Produtividade relativa em países selecionados da América Latina e da OCDE (em %*)

Fonte: OCDE e CEPAL (2012). *Produtividade das grandes empresas = 100%.

Os efeitos do significativo hiato de produtividade existente no Brasil são perversos em vários aspectos. A começar pela sua contribuição para a desigualdade social. Para além da questão social, as discrepâncias nas produtividades levam a um quadro no qual as MPEs articulam-se precariamente com as cadeias produtivas mais dinâmicas do aparato produtivo, reduzindo o potencial de crescimento e desenvolvimento do país. Em um círculo vicioso, a baixa produtividade atua como fator impeditivo do aumento desta própria produtividade, uma vez que resulta em uma baixa capacidade de absorção do progresso técnico. A questão é saber como superar essa realidade.

A baixa produtividade dessas empresas é resultado direto e imediato de uma problemática central: deficiências tecnológicas em seus processos produtivos e de gestão.  Este estudo apresenta como proposição o desenvolvimento de políticas voltadas Assim, é na direção da modernização desses processos que devem se dirigir as políticas públicas, em especial, as de fomento à inovação. E isso pode ser feito por meio da incorporação de tecnologias muitas vezes simples e baratas. Ou seja, políticas públicas fundamentadas em medidas de baixa complexidade e baixo custo podem ter grandes impactos na produtividade das empresas menores e, consequentemente, na produtividade sistêmica da economia brasileira. E isso não só como resultado do aumento da produtividade média decorrente da redução da heterogeneidade, mas também pelo desenvolvimento da dinâmica da economia como um todo, mediante uma melhor e mais qualificada articulação entre as empresas de diferentes portes, como observado nos países mais desenvolvidos. Além disso, no caso da realidade brasileira, essa incorporação de conteúdo técnico significa a adoção gradativa dessas tecnologias, processo que, uma vez associado à continuidade de políticas de distribuição de renda e de universalização do consumo, produziria um círculo virtuoso de evolução simultânea da produção, da renda, da demanda e do consumo, com um crescimento da produtividade do trabalho fundamentado no aumento do numerador (valor adicionado), e não na redução do denominador (pessoal ocupado), para, a partir daí, isto é, da conformação de um ambiente econômico propício, buscar-se uma mudança estrutural que privilegie os setores mais dinâmicos da economia.

Mauro Oddo Nogueira é Doutor pela UFRJ e Pesquisador do Ipea, tendo se dedicado, nos anos recentes, ao estudo da produtividade e da economia das empresas de pequeno porte.

 

Referências

INFANTE, Ricardo; MUSSI, Carlos; NOGUEIRA, Mauro Oddo (Ed.). Por um desenvolvimento inclusivo: o caso do Brasil. Santiago: Cepal; Brasília: OIT; Ipea, 2015.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  Uma reflexão sobre a problemática da baixa produtividade na economia brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2208).

NOGUEIRA, Mauro Oddo; PEREIRA, Larissa de Souza. As empresas de pequeno porte e a produtividade sistêmica da economia brasileira: obstáculo ou fator de crescimento? Boletim Radar – tecnologia, produção e comércio exterior, Brasília, n. 38, 2015.

OCDE – ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO; CEPAL – COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE.  Perspectivas económicas de América Latina 2013: políticas de pymes para el cambio estructural. Santiago: Naciones Unidas, 2012.

SQUEFF, Gabriel Coelho; NOGUEIRA, Mauro Oddo. A heterogeneidade estrutural no Brasil de 1950 a 2009. In: INFANTE, Ricardo; MUSSI, Carlos; NOGUEIRA, Mauro Oddo (Ed.). Por um desenvolvimento inclusivo: o caso do Brasil. Santiago: Cepal; Brasília: OIT; Ipea, 2015.

 

[OBS] Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que analisa o problema da baixa produtividade sistêmica da economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas a ser publicado como livro. As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

Os Serviços e a Indústria Química

Com o objetivo de se tornarem mais competitivos globalmente, segmentos da indústria brasileira começaram a implementar mudanças importantes nos últimos anos. Com a indústria química não foi diferente. Uma das principais mudanças foi a maior incorporação de serviços na comercialização de seus produtos.

A indústria química, segundo elo na cadeia de produção, tem como produto base commodities químicas utilizadas pelas empresas fabricantes de bens de consumo, como tintas, cosméticos, produtos de limpeza, etc. 

Figura 1 – Elos da cadeia da indústria petroquímica e química

De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM) a indústria química brasileira é a 6ª colocada em faturamento no ranking mundial. Em 2015, o segmento, no Brasil, faturou US$ 54,9 bilhões, com exportação de US$ 13,1 bilhões e importação de US$ 39,6 bilhões. Pelo significativo déficit na balança comercial do setor, é possível observar a pouca competitividade internacional da indústria química nacional. Matéria-prima cara, cadeias produtivas não integradas e altos custos de produção tornam as commodities químicas brasileiras praticamente inviáveis no mercado externo.

Atendendo basicamente ao mercado interno, a indústria química brasileira teve que se reinventar agregando valor aos seus produtos e focando na prestação de serviços para seus clientes. O que se observa neste setor é o desenvolvimento de especialidades químicas e químicos de fontes renováveis.

Aproveitando a biodiversidade brasileira e as pesquisas para combustíveis de fontes renováveis, a indústria química passou a desenvolver produtos que as serve, utilizando essas mesmas bases. Esses produtos, como o plástico verde e o eteno derivado de cana de açúcar, tornaram-se produtos específicos do Brasil, permitindo à indústria a entrada em um nicho de mercado, ligados aos valores de sustentabilidade. Os serviços nos elos da cadeia do setor também são, em geral, relacionados às questões ambientais, como a redução de emissões na fabricação e no uso pelo cliente e pelo consumidor.

Já nas especialidades químicas, a indústria tem agregado ainda mais serviços. As especialidades são produtos desenvolvidos a partir de demandas específicas dos clientes. O cliente demanda algo específico para seu produto e a indústria química faz a pesquisa e o desenvolvimento de matérias-primas que podem ser aplicadas. Além do desenvolvimento específico, a indústria presta assistência técnica para a aplicação correta da matéria-prima e a adequação do processo produtivo do cliente, visando otimizar a matéria-prima na produção.

As especialidades são produzidas em menor escala, em plantas multipropósitos, o que pode reduzir custos de produção, apesar de ter maior custo de desenvolvimento. Em geral, as empresas que demandam especialidades químicas estão dispostas a pagar pelo desenvolvimento específico.

As especialidades podem auxiliar a indústria brasileira a entrar de maneira mais substancial nas cadeias globais de valor. Indústrias químicas multinacionais podem atender outras indústrias em todo mundo, tornando-se fornecedores globais de determinadas especialidades, principalmente especialidades de fontes renováveis.

Uma das principais barreiras competitivas para essa indústria no Brasil é a infraestrutura insuficiente e de baixa qualidade, principalmente logística. Este é um gargalo que precisa ser resolvido o quanto antes, caso o Brasil queira se tornar um país com empresas globais no setor.

Observa-se a migração da indústria química fabricante de commodities para uma indústria química voltada cada vez mais para as especialidades, agregando mais serviços nos seus produtos. Esta agregação de valor por meio de serviços pode contribuir para aumentar a competitividade da indústria nacional no mercado internacional. É esperar para ver!

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