Economia de Serviços

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A Rainha Vermelha no Antitruste

Ainda me lembro do tempo em que o Facebook não existia. Também lembro a economia de palavras nas ligações internacionais em que cada segundo tinha peso de ouro. Hoje, Facebook e WhatsApp estão ambos no meu celular, à disposição para facilitar diferentes tipos de interação a quase nenhuma ou mesmo a muitas milhas de distância.

O tema deste post é a junção desses dois gigantes. Ou melhor, do gigante Facebook e do pequeno gigante, WhatsApp, cujo faturamento à época da operação não atingia os patamares de notificação de muitas autoridades antitruste, inclusive do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)[1]. O ano era 2014, ano da fatídica Copa do Mundo no Brasil e da sanção do nosso Marco Civil da Internet. O Facebook anunciara sua intenção de adquirir o WhatsApp em fevereiro e tanto a Federal Trade Commission (FTC) quanto a European Comission (Comissão Europeia), as autoridades antitruste dos Estados Unidos e da União Europeia, respectivamente, aprovaram a operação sem restrições. E o que levou essas duas autoridades a tal decisão?

No caso do FTC, não há documentos públicos que detalhem as motivações da autoridade (salvo melhor juízo ou melhor busca no Google ou no buscador de sua escolha). A Comissão Europeia, por sua vez, explicitou o caminho de análise que a levou a aprovar a operação sem restrições. É esse caminho, ou ao menos parte dele, que convidamos o leitor a trilhar[2]:

A Comissão Europeia avaliou se a operação traria potenciais problemas concorrenciais com foco em 3 mercados:

  1. Comunicação de consumidores (consumer communications services)
  2. Rede sociais (social networking services)
  3. Publicidade online (online advertising services)

Neste post, discutiremos um pouco dos mercados “1” e “3”.

No caso de comunicação de consumidores, um dos focos da autoridade europeia foi definir o mercado relevante para análise em termos de produto. Por exemplo, seriam serviços de comunicação eletrônica tradicionais como SMS, ligações de voz e email substitutos dos aplicativos de comunicação Facebook Messenger e WhatsApp? Seriam estes dois últimos competidores próximos entre si? Quanto menos substitutos para esses serviços, maior a probabilidade de exercício de poder de mercado pelas empresas que se uniam, uma vez que os consumidores “não teriam para onde fugir” em caso de piora dos serviços, por exemplo.

Algumas possíveis segmentações do mercado de comunicação consideradas pela Comissão, mas descartadas, foram por tipo de usuário (consumidor x empresas), funcionalidade (mensagem de texto, mensagem por foto, vídeo etc.) e sistema operacional. Uma segmentação relevante foi a de plataforma, ou seja, se o serviço estava disponível em smartphones, computadores etc. Finalmente, a Comissão preferiu não adotar uma definição precisa do mercado relevante, mas utilizar a visão mais restrita e, portanto, mais conservadora para sua análise: a do mercado de “aplicativos de comunicação para smartphones”.

Para a avaliação dos efeitos da operação sobre esse mercado, três fatores merecem destaque: switching costs; multihoming e efeitos de rede:

Switching costs referem-se a custos de mudança, ou seja, qual o custo que um usuário teria para deixar de usar um aplicativo de comunicação e passar a utilizar outro? Se os serviços do Facebook Messenger ou do WhatsApp se deteriorassem após a operação, qual seria o custo do usuário para migrar para outro aplicativo? Quanto mais altos esses custos, maiores os riscos da operação.

Com base em sua análise, a Comissão entendeu que os switching costs eram baixos, tendo em vista que (i) todos os aplicativos de comunicação eram oferecidos de graça ou a preços muito baixos; (ii) que o download de tais aplicativos era realizável com facilidade em smartphones, e que mais de um aplicativo poderiam coexistir no mesmo aparelho sem tomar muito de sua capacidade; (iii) que, uma vez instalados, os usuários podiam trocar de aplicativo rapidamente; (iv) que a utilização de tais aplicativos requeria custos mínimos de aprendizagem; e (v) que informações e reviews sobre novos aplicativos de comunicação estavam facilmente disponíveis em lojas de aplicativos.

Além disso, a Comissão obteve evidências de que os usuários geralmente realizavam multi-homing, isto é, que os usuários tinham instalado e utilizavam no mesmo aparelho celular diferentes aplicativos de comunicação: entre 80% e 90% dos usuários na Espaço Econômico Europeu usavam mais de um aplicativo de comunicação por mês, enquanto 50% a 60% usavam mais de um desses serviços em base diária.

Outro fator importante na análise da Comissão foi verificar se havia evidência de que o Facebook Messenger ou o WhatsApp viessem pré-instalados em grande parte dos celulares. Caso sim, poderia haver switching costs mais relevantes, tendo em vista o “viés do status quo” associado ao comportamento inercial dos consumidores. Como não houve evidências nesse sentido, a Comissão entendeu que os switching costs eram relativamente baixos.

Por outro lado, a Comissão reconheceu a existência de switching costs associados à necessidade de recriar a rede de contatos em caso de troca de aplicativo de comunicação, isto é, custos associados aos efeitos de rede. Efeitos de rede ocorrem quando o valor de um produto ou serviço aumenta com o número de usuários do produto ou serviço. Quanto mais usuários uma plataforma de comunicação possui, mais interessante ela se torna para os usuários. Qual o valor de um telefone, por exemplo, se não temos a quem ligar? Qual o valor de estar numa rede social, em que nenhum dos nossos contatos está?

A Comissão entendeu que a existência de efeitos de rede de fato gerava switching costs para o usuário e poderia constituir uma barreira à entrada de um concorrente. Contudo, mitigou a importância desse efeito, tendo em vista que o setor era altamente dinâmico, que os outros fatores descritos anteriormente minimizavam os switching costs e que não havia outras barreiras à entrada/expansão significativas. Além disso, nem o Facebook nem o WhatsApp (as ditas Requerentes) detinham controle de alguma parte essencial da rede ou de algum dos sistemas operacionais. Em outras palavras, a Comissão entendeu que os efeitos de rede não eram suficientes para blindar as Requerentes das pressões competitivas advindas de aplicativos concorrentes e de potenciais entrantes.

Em contrapartida, a Comissão também avaliou se a operação poderia aumentar tais efeitos de rede, o que ocorreria se houvesse algum tipo de integração entre o Facebook e o WhatsApp. Uma das possibilidades dessa integração seria a comunicação entre plataformas, que permitisse que usuários do Facebook e do WhatsApp se comunicassem entre si. Contudo, as Requerentes informaram que tal integração enfrentava dificuldades técnicas significativas, tendo em vista dois pontos principais: (i) a necessidade de realizar a correspondência (matching) entre os IDs dos usuários; e (ii) a arquitetura técnica diferente utilizada pelo Facebook e pelo WhatsApp, esta última baseada na nuvem, enquanto aquela não.

Um dos obstáculos associados ao matching era que o identificador do Facebook se baseava em um Facebook ID, enquanto o identificador do WhatsApp se baseava em um número de telefone. Assim, no caso de integração, os usuários teriam que aceitar manualmente esse matching, o que poderia levar parte deles – aqueles insatisfeitos com a integração – a deixar os serviços.

A Comissão avaliou, então, que tal integração parecia improvável, dada sua viabilidade técnica remota e os riscos associados a ela. Além disso, considerou que, mesmo que houvesse integração, o potencial aumento dos efeitos de rede seria mitigado pela sobreposição significativa entre as bases de usuários do Facebook e WhatsApp.

O terceiro mercado analisado foi o de publicidade online. Para essa discussão, é importante introduzir o conceito de plataformas de múltiplos lados. O Facebook, assim como o Google e Uber, são exemplos de plataformas de múltiplos lados. De forma bastante simplificada, isso significa que essas plataformas servem como matchmakers que unem diferentes grupos de usuários.

No caso do Facebook, quando utilizamos as funcionalidades de rede social, somos um dos lados da plataforma. Utilizamos os serviços do Facebook, sem a necessidade de pagar alguma taxa monetária pelo serviço. Mas como qualquer outro negócio, o Facebook precisa se monetizar. Isso é feito no outro lado da plataforma, composto pelos anunciantes que pagam ao Facebook para veicular anúncios para os seus usuários. Portanto, o que o Facebook faz é o match entre nós, usuários, e os anunciantes.

Ora, mas o WhatsApp não tinha e ainda não tem serviços de publicidade. Por que, então, esse lado poderia ter relevância para a análise antitruste? Uma das respostas é justamente a possibilidade de o WhatsApp passar a ter publicidade após a operação. A outra é Big Data. O que torna o Facebook tão competitivo em direcionar anúncios específicos a cada um de nós é que ele conhece (até muito bem) a cada um de nós. Além de todos os dados cadastrais que fornecemos, toda vez que clicamos em algum link no Facebook, ou demoramos um pouco mais num post, revelamos um pouco de nossos interesses e particularidades.

Esses dados associados à utilização de algoritmos permitem à máquina aprender um pouco mais sobre nós (é o tal do machine learning), conseguindo nos direcionar conteúdo e anúncios cada vez mais personalizados. A integração da base de dados do Facebook com a do WhatsApp poderia, portanto, gerar uma vantagem competitiva para o Facebook, que lhe permitiria melhor direcionar anúncios e obter poder de mercado em anúncios online. A detenção de todos esses dados poderia, assim, erguer barreiras à entrada para outros competidores.

A conclusão da Comissão Europeia foi que, mesmo com a integração, continuaria a existir um número significativo de provedores alternativos de anúncios direcionados (pense no Google, por exemplo) e que uma parcela significativa dos dados de usuários úteis para direcionamento de publicidade não era de exclusividade do Facebook, não havendo, portanto, um problema concorrencial.

Assim, já em 2014 a Comissão aprovou a operação e o Facebook adquiriu o WhatsApp. Como apresentado, em sua decisão, a Comissão considerou que não haveria viabilidade técnica de unir as bases de dados do Facebook e do WhatsApp, e que, conforme informado pelas Requerentes, não haveria intenção de o WhatsApp passar a atuar em plataformas de computador.

Como sabemos, hoje os serviços já são integrados e é possível utilizar o WhatsApp pelo computador. Esse foi um dos motivos que levou a Comissão Europeia a aplicar ao Facebook a primeira multa por enganosidade desde a Lei de Fusões de 2004.

Essa multa, de 110 milhões de euros[3], deveu-se ao fato de as Requerentes terem sido enganosas ou negligentes ao afirmar que não seria possível integrar os dados das duas plataformas. O que é interessante também, é que a Comissão não voltou atrás na sua decisão. Isso porque, como explicado, ela já afirmara que, mesmo que fosse possível unir as duas bases, ainda assim a operação não geraria problemas concorrenciais.

Hoje, mais da metade do mercado de anúncios nos Estados Unidos é concentrado nas mãos de Facebook e Google[4]. Isso nos traz algumas questões:

https://contentstorage-nax1.emarketer.com/9dc078228b3f9ba47487e4717565a97a/235954

Fonte: https://www.emarketer.com/content/google-and-facebook-s-digital-dominance-fading-as-rivals-share-grows (Acesso em 09 de outubro de 2018).

A operação terá tornado o Facebook mais apto para rivalizar com o Google pelo lado de anúncios ou terá apenas reforçado um duopólio? Já possuindo uma base de usuários muito grande à época da operação, teria o WhatsApp conseguido expandir seus serviços e tornar-se um novo entrante no mercado de redes sociais para rivalizar com o Facebook, caso não tivesse sido por este adquirido? Qual terá sido o efeito da operação sobre fatores não-preço, como privacidade? O que terá incitado o post de um dos fundadores do WhatsApp, que deixou o Facebook no final de 2017: #deletefacebook?

Fonte: https://www.theguardian.com/technology/2018/mar/20/facebook-cambridge-analytica-whatsapp-delete Acesso em 09 de outubro de 2018.

Outra pergunta que o leitor atento deve estar a se fazer é… e o que tem a Rainha Vermelha a ver com este post? Ao trilhar o caminho da decisão da Comissão Europeia, foi possível nos deparar com novos termos, que só recentemente adentraram o vocabulário antitruste. Switching costs, efeitos de rede, multihoming, big data, todos esses são conceitos que vêm ganhando destaque com o avanço da economia digital e que motivaram a Autoridade de Concorrência alemã, por exemplo, a editar uma emenda[5] à sua legislação antitruste para que esses tópicos sejam levados em consideração na análise de “poder de mercado” em mercados digitais.

Para quem não se recorda da estória, a Rainha Vermelha explicava à maravilhada Alice que era preciso correr tanto quanto possível para permanecer no mesmo lugar[6]. O que vimos é que também no antitruste, essa máxima é válida: para as autoridades da concorrência, escritórios, estudiosos do assunto, você, estimado leitor, e, claro, as próprias empresas de tecnologia.

Patrícia A. Morita Sakowski é técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e exerce a função de Economista-Chefe Adjunta no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Possui mestrado em economia pela Hitotsubashi University (Tóquio-Japão) e gradução em economia pela Universidade de São Paulo (FEA-USP).
  1. “Segundo o artigo 88 da Lei 12.529/2011, com valores atualizados pela Portaria Interministerial 994, de 30 de maio de 2012, devem ser notificados ao Cade os atos de concentração, em qualquer setor da economia, em que pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios total no Brasil, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões, e pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios total no Brasil, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.” (http://www.cade.gov.br/servicos/perguntas-frequentes/perguntas-sobre-atos-de-concentracao-economica Acesso em 09 de outubro de 2018)
  2. Este post traz apenas alguns aspectos da Decisão da Comissão Europeia. Para a análise detalhada, ver http://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m7217_20141003_20310_3962132_EN.pdf
  3. Ver mais detalhes em http://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m8228_493_3.pdf
  4. Fonte: https://www.appnexus.com/sites/default/files/whitepapers/guide-2018stats_2.pdf (slide 49). Acesso em 09 de outubro de 2018.
  5. https://www.clearygottlieb.com/~/media/organize-archive/cgsh/files/2017/publications/alert-memos/2017_06_28-germany-adjusts-arc.pdf(3a) In particular in the case of multi-sided markets and networks, in assessing the market position of an undertaking account shall also be taken of: 1. direct and indirect network effects, 2. the parallel use of services from different providers and the switching costs for users, 3. the undertaking’s economies of scale arising in connection with network effects, 4. the undertaking’s access to data relevant for competition, 5. innovation-driven competitive pressure.http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_gwb/englisch_gwb.html#p0066
  6. http://www.alice-in-wonderland.net/wp-content/uploads/through-the-looking-glass.pdf (“Now, HERE, you see, it takes all the running YOU can do, to keep in the same place.” p. 17)

 

Agenda para competitividade no setor de serviços

O Brasil é um grande importador de serviços e opera recorrentemente com um dos maiores déficits globais neste setor (Em 2016, o Brasil foi o 21º maior importador de serviços, segundo Banco Mundial).

Em 2017, as importações de serviço foram de US$ 42,9 bilhões. As exportações foram de US$ 29,8 bilhões (MDIC, 2018), resultando um saldo negativo de US$ 13,1 bilhões. O déficit na balança de serviços foi quase 50% menor do que o registrado em 2016, quando as importações superaram as exportações em US$ 25 bilhões. Em 2015, o déficit foi de US$ 26,7 bilhões e em 2014, de US$ 27,7 bilhões.

O principal mercado das exportações brasileiras em 2017 foi os Estados Unidos. As vendas ao país somaram mais da metade do total exportado ( quase 54%). Os principais serviços exportados foram aqueles relacionados ao setor financeiro (quase 33%), seguidos dos serviços profissionais (19,8%) e os da Tecnologia da Informação (7%)

A diminuição do déficit deu-se também pelo aumento das exportações (em 2016, as vendas externas totalizaram US$ 18,6 bi e, em 2017 US$ 29,8 bilhões). Número que até então tinha se mantido praticamente estável nos anos anteriores (em 2014, as vendas externas somaram US$ 20,8 bilhões; em 2015, US$ 18,9 bi.) Para que esta tendência de alta seja uma constante estável, é necessário políticas capazes de promover a competitividade do setor como um todo, sem negligenciar políticas setoriais necessárias dada às especificidades de cada setor.

No Brasil, o setor exportador de serviços não enfrenta apenas barreiras externas de acesso a mercados, na medida em que os entraves internos são também responsáveis por dificultar e, em alguns casos, tornar inviável as exportações de serviços.

Em relação às barreiras externas, é importante mencionar a necessidade de se negociar acordos comerciais. O Brasil está atualmente negociando acordos com disposições relacionadas a serviços com a União Europeia, EFTA, México, Coreia do Sul, Chile e Canadá. Novas negociações que estão prestes a se iniciar também incorporarão o tema; como com Cingapura. É necessário, portanto, que sejam identificados interesses ofensivos e defensivos no setor de serviços no Brasil durante as negociações, de forma a garantir que esses acordos espelhem a realidade da economia de serviços no Brasil.

Em relação às barreiras internas, o setor exportador enfrenta problemas relacionados à burocracia, à incidência de tributos e à falta de financiamento para viabilizar as operações de exportação. As dificuldades perpassam, por exemplo, pela falta de uma definição clara de exportação de serviços no ordenamento jurídico brasileiro, dificuldade de enquadrar algumas exportações de serviços em operações beneficiárias de financiamento e de garantias à exportação, assim como a incidência de tributos internos na exportação/importação, contrariamente às disposições constitucionais, as quais excluem da incidência dos impostos nas operações de exportação de serviços.

Hoje, a única disposição que traz uma definição de exportação de serviços é a Lei Complementar nº 116/2003, que dispõe sobre o Imposto Municipal sobre serviços (ISSQN). Segundo o dispositivo, o imposto não incide sobre as exportações de serviços para o exterior do País, a não ser que elas sejam desenvolvidas no país, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.

A definição trazida por este normativo acaba sendo utilizada como parâmetro e como referência por outros dispositivos. A resolução do Simples Nacional também traz esta mesma disposição e o fisco federal se utiliza desta definição em algumas soluções de consulta.

A referência à Lei Complementar n. 116/2003 não seria problema, caso a definição não restringisse a interpretação do que é considerado ou não como uma exportação de serviços. Assim, ao utilizar como parâmetro a definição da Lei Complementar n. 116, exportações de serviços acabam sendo tributadas em nível municipal e federal e algumas operações acabam não sendo enquadradas como exportação de serviços para fins de obtenção de financiamento e garantia ás exportações.

A cobrança de tributos fere frontalmente a disposição constitucional de que os municípios deverão excluir da incidência de tributos municipais as exportações de serviços para o exterior (art. 156, § 3º, II da CF).

É necessário, portanto, alterar a definição de exportação presente na Lei Complementar n. 116/03, pois ela trará ganhos não apenas em termos de isenção de ISS. Na verdade, os benefícios são ainda maiores, pois o ISSQN, ao deixar de ser cobrado, também deixaria de compreender a base de cálculos de outros tributos. Ainda, com uma definição de serviços mais clara, será possível desenvolver políticas para o setor de forma mais eficaz.

É necessário, portanto, revisar a definição trazida pela Lei Complementar n. 116/2003. A nova definição de serviços deve levar em consideração os compromissos assumidos no âmbito do Acordo Geral do Comércio de Serviços da OMC (GATS), na medida em que tanto o Modo 01 quanto o Modo 02 referem-se a serviços executados no Brasil em benefício de pessoas estabelecidas no exterior.

Faz-se necessário, neste sentido, imprimir, em um eventual conceito de exportação de serviços, a ideia de que o “ consumo, fruição, uso, aproveitamento” do serviço ocorra no exterior, independentemente se realizado ou não no Brasil. Assim, é necessário assegurar que, ainda que o serviço seja prestado no Brasil, ele poderá ser considerado uma exportação, na medida em que ele é “ consumido” no exterior. Essa premissa, vale ressaltar, também está de acordo com as diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O setor exportador de serviços necessita de políticas capazes de promover a competitividade dos serviços brasileiros no mercado global. Por conta disso, foi criado, no âmbito da Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior, o Grupo Técnico de Serviços (GT Serviços), com o objetivo de discutir e propor políticas públicas, mais especificamente de comércio exterior, para o setor de serviços. A ideia é abarcar questões internas de competitividade que impactam as exportações e importações de serviços.

As atividades do GT perpassam por iniciativas que vão desde a melhoria do ambiente de negócios, medidas de financiamento e garantias às exportações, economia de serviço e comércio eletrônico, facilitação do comércio de Serviços e reforço de coordenação governamental.

É premente necessidade de políticas que confiram maior estabilidade e previsibilidade para o setor empresarial. Essas dificuldades fazem com que empresas brasileiras busquem se estabelecer em países que fazem fronteira com o Brasil para aproveitar das facilidades trabalhistas e tributárias desses países.

Natasha Martins do Valle Miranda é analista de comércio exterior, atualmente exerce a  função de Assessora Técnica na Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior. Possui Mestrado em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP) e gradução em direito.

 

 

Infraestrutura e serviços de infraestrutura: um breve olhar sobre o caso brasileiro

Tendo em vista a atual conjuntura brasileira de retomada ainda tímida de crescimento e grande restrição fiscal por parte do Estado, num contexto de teto de gastos públicos aprovado para as próximas duas décadas, o setor privado terá papel fundamental na realização de investimentos no país, em especial para os principais setores de infraestrutura, como é o caso dos setores de telecomunicações, energia, transportes e saneamento. Além disso, há ainda muito a melhorar na governança e atuação do setor público, com escolhas economicamente mais racionais de projetos, com a uniformização de práticas e a adoção de avaliações de impacto socioeconômico, por exemplo.

Mas o que é infraestrutura? Infraestrutura é “o conjunto de estruturas de engenharia e instalações – geralmente de longa vida útil – que constituem a base sobre a qual são prestados os serviços considerados necessários para o desenvolvimento produtivo, político, social e pessoal” (BID, 2000). Partindo desse conceito, podemos perceber complementariedade entre os chamados serviços de infraestrutura – que visam satisfazer às necessidades de um indivíduo ou de uma sociedade e são considerados serviços de interesse público; e a própria infraestrutura – que é a base física sobre a qual se dá a prestação destes serviços (IPEA, 2010).

Dessa forma, a infraestrutura seria representada por rodovias, ferrovias, terminais portuários e aeroviários, torres de telecomunicação, cabos de transmissão de energia elétrica (entre outros exemplos) que dão a possibilidade de oferta/prestação de serviços de infraestrutura. Já os serviços de infraestrutura são o frete rodoviário, ferroviário, aquaviário, aeroviário (transporte de mercadorias e/ou pessoas de um ponto a outro do território), o transporte urbano de uma cidade (linhas de ônibus, metrô e trens usados pelos cidadãos), os planos oferecidos por uma operadora de celular, etc. Todos esses exemplos de serviços se utilizam do capital físico instalado.

No setor de transportes, por exemplo, quando uma concessionária ganha uma licitação para a exploração da infraestrutura rodoviária e, portanto, passa a ter direitos e deveres contratuais firmados com o poder concedente (o Estado ou um representante do mesmo), todas as obras de manutenção, restauração e ampliação da capacidade da rodovia estarão incrementando os investimentos em infraestrutura, gerando então potencialmente maior estoque de capital fixo e adicionando estrutura física que será utilizada e usufruída pelos prestadores de serviço daquele setor e seus usuários de modo geral.

O setor de transportes, assim como outras áreas da infraestrutura – transportes, energia, saneamento e telecomunicações – possuem grande impacto no crescimento econômico de um país. Há vasta literatura que comprova que maiores investimentos em infraestrutura (fluxo) e maior estoque de capital fixo no setor (mais rodovias, maior capacidade energética instalada, etc.), ou seja, maior estoque de infraestrutura, levam a maior crescimento do produto e também elevam a produtividade, além de reduzirem a desigualdade de renda (Aschauer, 1989; Calderón e Servén, 2004; Ferreira e Maliagros, 1998).

Ainda, no caso específico do setor de transportes, os impactos são bastante relevantes, com efeitos de encadeamento para frente e para trás, relacionando-se ainda de modo importante com outros setores da economia. Para alguns produtos – como a soja e o milho – o valor final no porto é composto em mais da metade pelo chamado custo logístico. Portanto, mais uma vez, voltamos ao fato de que a infraestrutura física e seus serviços acessórios compõem o preço final dos produtos que produzimos e consumimos, seja para o consumo interno, seja para o consumo externo (por meio de exportações).

Dada a má qualidade média das rodovias brasileiras (comprovada pela série histórica das pesquisas anuais da CNT, com exceção das rodovias concedidas à inciativa privada, em especial as do estado de São Paulo) e sua relativa escassez (baixa densidade rodoviária quando comparada a outros países, com exceção também do estado de São Paulo), fatores esses somados ao fato de que cerca de 60% das cargas no Brasil são transportadas via modo rodoviário, percebemos que ainda temos muito a avançar nessa área.

A questão dos fretes, seu valor, sua rapidez, sua segurança, seu adequado manejo das mercadorias, o cumprimento de prazos, entre outros aspectos, ganhou notoriedade recentemente por conta da “greve dos caminhoneiros”, tendo já sido reportados impactos negativos dessa situação sobre o crescimento econômico do país (que foi revisado para baixo esse ano) e sobre a taxa oficial de inflação (que aumentou e elevou o índice esperado para o ano como um todo).

Isto posto, a infraestrutura (base física) precisa ser ampliada. Isso será feito, provavelmente e em grande parte, com a atuação do setor privado. Os programas de concessões foram intensificados nos últimos anos e muitos avanços foram feitos nos desenhos dos editais, contratos e regulamentos, como é o caso dos modos rodoviário e aeroviário. Aprimoramentos interessantes foram incorporados ao longo do tempo, como os gatilhos de demanda, o fator X, o fluxo de caixa marginal, entre outros. Ademais, maior participação do capital privado estrangeiro também tem sido verificada nos últimos 2 anos, tanto no setor de transportes quanto no setor elétrico. Nesse ponto, o papel maior do Estado daqui em diante seria de proporcionar condições macroeconômicas, institucionais e regulatórias apropriadas, robustas e condizentes com o objetivo de gerar incentivos e apoiar o investidor privado – seja ele de dentro ou de fora do país.

Em relação aos serviços de transporte de carga, em especial no caso dos fretes rodoviários, deveria tratar-se de mercado de livre concorrência, cujos preços deveriam seguir as forças de mercado (oferta e demanda). Por isso o “tabelamento de preços”, sancionado pelo Presidente da República em 09 de agosto de 2018, deve ser analisado de modo bastante crítico. O mais importante nesse caso é tentar ampliar e incentivar ganhos de produtividade no setor. Isso pode ser alcançado por meio de algumas inciativas distintas. A primeira seria aumentando o investimento na base física (melhorando a qualidade das rodovias, equipamentos, etc). A segunda forma seria ampliar a capacitação dos trabalhadores do setor (trabalhadores mais qualificados tendem a errar menos e terem melhores relações com seus clientes e fornecedores). A terceira seria promovendo melhorias institucionais, com ênfase na independência e profissionalização das agências reguladoras, tanto em âmbito federal, quanto estadual. Por fim, o incentivo à inovação permitiria o aumento na capacidade da prestação de serviços e até mesmo a abertura de novos mercados. Em resumo: avancemos na agenda de buscar maior produtividade!

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.

 

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Referências

Aschauer, D. (1989) “Is Public Expenditure Productive?” Journal of Monetary Economics, 23, pp. 177-200.

Calderón, C.; Servén, Luis. (2004). The Effects of Infrastructure Development on Growth and Income Distribution. Policy Research Working Paper; No.3400. World Bank, Washington.

Ferreira, P.C. and T. Maliagros (1998) “Impactos Produtivos da InfraEstrutura no Brasil — 1950/95”, Pesquisa e Planejamento Econômico, v.28, n.2, pp.315-338.

IPEA (2010). Infraestrutura Econômica no Brasil: diagnósticos e perspectivas para 2025. Livro 6, Volume 1. Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro.

Comércio exterior de serviços e balança de pagamentos no Brasil

A figura 1 mostra o comércio de serviços no Brasil desde 1976. O saldo do comércio de serviços foi sistematicamente negativo no período e observam-se dois movimentos de mudança de patamar do déficit: um a partir do final dos anos 1980 e um segundo, mais intenso, a partir de 2004. Em ambos os casos, o aumento do déficit se explica majoritariamente pelo crescimento das importações, o que deu origem a uma espécie de “boca de jacaré”. Em 2014, o déficit chegou a nada menos que US$ 48 bilhões. Ao que parece, teria havido mudança estrutural no comércio de serviços.

De fato, a elasticidade do crescimento das importações de serviços com relação ao crescimento do PIB é de 2,28 para o período completo. Já a elasticidade do crescimento das exportações é de 1,11. Teste de mudança estrutural sugere quebra da série em 2004. Recalculamos as elasticidades para antes e depois daquele ano e encontramos 1,37 e 4,28, e 0,13 e 3,38, respectivamente, para importações e exportações.

Esses números sugerem, primeiro, que as importações de serviços são mais sensíveis à atividade econômica que as exportações; segundo, que, embora ambas as variáveis tenham se tornado substancialmente mais sensíveis à economia a partir de 2004, o coeficiente de importações é significativamente maior que o de exportações; e, terceiro, caso a economia volte a crescer à taxas similares à do produto potencial, que é da ordem de 2,5%, então, tudo o mais constante, observaremos considerável elevação do déficit da conta de serviços.[1]

A figura 2 mostra o saldo comercial total e, separadamente, os saldos comerciais das contas de bens e de serviços. Observa-se que a conta de serviços exerce elevada e crescente influência no saldo comercial total. Embora a corrente de comércio de serviços seja de apenas 1/5 da corrente de comércio de bens, o déficit da conta de serviços praticamente determina o saldo comercial total.

A figura 3 mostra decomposição do saldo comercial total em seus componentes —  os saldos comerciais de bens e de serviços. Conforme sugerido acima, os saldos comerciais no Brasil são “pautados” pelo desempenho da conta de comércio de serviços. Assim, anos com saldos comerciais totais mais modestos ou até negativos são anos com relativamente elevados déficits comerciais da conta de serviços, e vice-versa.

Déficit na conta de serviços não é, necessariamente, um problema. Afinal, pode-se estar importando insumos que elevam a competitividade e a produtividade. Porém, ainda assim, preocupações emergem quando a conta de serviços segue trajetória sistemática de crescimento do déficit, o que pode dar origem à um constrangimento estrutural das contas externas que, eventualmente, pode vir a se tornar um “freio” ao próprio crescimento econômico. Este poderá ser o caso do Brasil.

De fato, para além de elasticidades e de patamar de déficit comercial já elevado, há razões para se esperar aceleração do déficit da conta de serviços ao longo dos próximos anos e, dentre elas, estão as que seguem:

  1. Os serviços estão se tornando tradable e muitos serviços que tradicionalmente são providos localmente por empresas nacionais ou estrangeiras estão, e cada vez mais, sendo providos a partir de terceiros países. Ali incluem-se serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos mas, também, serviços de custos. Essa mudança já está reescrevendo a geografia dos investimentos e do comércio do setor de serviços;
  2. Liderados pelos Estados Unidos, países ricos com fortes interesses ofensivos em serviços estão fazendo intensa pressão para a liberalização dos mercados de serviços e para a convergência técnica e regulatória do setor, que é, na prática, o fator mais determinante do comércio do setor ;
  3. Os preços relativos dos serviços, incluindo os com demanda mais inelástica, seguem trajetória de forte crescimento com relação a preços de manufaturas e de commodities, aumentando a parcela dos produtores, gestores e distribuidores de serviços no valor agregado, em detrimento dos compradores de serviços. A mudança de preços relativos se deve à fatores como concentração de mercados e imposição de padrões técnicos privados em serviços, que fomentam e garantem a formação de “quase-monopólios”;
  4. Devido à mudanças tecnológicas de produção e de gestão da produção, a parcela dos serviços, incluindo os digitais, na formação do valor adicionado de bens, commodities e outros serviços já é elevada, mas seguirá aumentando, beneficiando os produtores, distribuidores e gestores de serviços (pense na smile curve de cadeias globais de valor);
  5. O consumo B2C e B2B de serviços, incluindo os digitais, que já é elevado, deverá aumentar ainda mais ao longo dos próximos anos;
  6. O efeito-rede e o efeito-plataforma conferem enormes poderes para os desenvolvedores e gestores de plataformas e têm criado espaço para práticas discriminatórias que distorcem os mercados.

A ausência, no país, de políticas industriais, políticas de financiamento, políticas de investimentos e políticas de comércio exterior para o setor de serviços deverá aumentar a dependência de serviços importados e a fragilidade das contas externas. Assim, tudo o mais constante, o país terá que fazer enorme esforço exportador de bens e commodities para mitigar os crescentes déficits comerciais de serviços.

O tema é, certamente, complexo e, infelizmente, poucas pessoas se interessam pelo assunto. Mas o tempo não para e já passou da hora de colocarmos o setor de serviços nas agendas das políticas pública e privada.

  1. A mudança na trajetória das importações e das exportações de serviços a partir de 2014 se explica, ao menos em parte, pela recessão e pelo envolvimento de grandes empresas de engenharia brasileiras em problemas de governança, o que afetou consideravelmente as exportações de projetos e de outros serviços de engenharia.

Por que mais recursos, leis, dados, e peritos não significam melhores serviços ou políticas públicas?

Uma fatia supreendentemente grande da atividade econômica mundial se concentra em um pequeno número de mega-projetos. Estes são projetos “de larga escala e alta complexidade que custam mais do que 1 bilhão de US$, demoram vários anos para serem desenvolvidos e construídos, e envolvem múltiplos stakeholders públicos e privados, sendo transformacionais e impactando milhões de pessoas” (Flyvbjerg, 2014, p. 6). Exemplos de mega-projetos são a Estação Espacial Internacional (custo previsto US$150 bilhões), Dubailand (um parque de atrações em Dubai, custo US$ 64 bilhões), e a ponte Hong-Kong-Macau (US$ 10.6 bilhões) (Desjardins, 2017). No Brasil temos mega-projetos antigos, como a construção de Brasília e a Transamazônica, recentes, como Belo Monte e a Copa do Mundo, e planejados para o futuro, como o trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro e a transposição do Rio São Francisco. Segundo Flyvbjerg (2014) o gasto com mega-projetos já alcança 8% do PIB mundial e está crescendo. A prevalência deste tipo de empreitada se deve aos ‘quatro sublimes’ que atraem uma coalizão diversas de atores. O ‘sublime’ tecnológico atrai engenheiros e apaixonados por tecnologia; o ‘sublime’ político atrai os políticos; o ‘sublime’ econômico atrai os empresários, banqueiros, investidores, sindicatos e consultores; e o ‘sublime’ estético atrai aqueles que gostam de desenho icônicos.

À primeira vista mega-projetos não parecem ter muito a ver com serviços, pois tendem a ser grandes, circunscritos e materiais. No entanto, uma segunda reflexão revela que envolvem uma variada e complexa rede de serviços para serem projetados, construídos, operados e mantidos. Além disto, muito deles são essencialmente plataformas que ofertam uma gama de serviços, por exemplo, o parque de Dubailand ou o aeroporto Internacional Beijing Daxing sendo construído na China. Sendo assim, qualquer problema ou ineficiência que possa ser identificada na concentração tão grande de recursos, esforço e atividade econômica em um pequeno número de projetos também seria um problema relevante para o setor de serviços. E de fato existem problemas.

Flyvberg (2014) coletou dados de todos mega-projetos dos últimos 70 anos e chegou à seguinte conclusão:

Sucesso na realização de um mega-projeto é tipicamente definido como ocorrendo quando um projeto é entregue dentro do orçamento, dentro do prazo estipulado e com os benefícios prometidos. Se, como parece ser o caso, aproximadamente um em dez projetos está dentro do orçamento, um de dez está dentro do prazo, e um em dez entrega os benefícios prometidos, então aproximadamente um em mil projetos é um ‘sucesso’, definido como cumprindo as três condições. Mesmo se estes números estiverem errados por um fator de dois – tal que dois, e não só um de cada dez projetos cumpra cada condição – orçamento, prazo e benefícios, respectivamente – então a taxa de sucesso ainda seria deprimente, agora oito de cada mil projetos (Flyvbjerg, 2014, p. 11, tradução minha).

 

Por que sempre dá errado?

É claro que não são só mega-projetos que falham. Em “Por que Políticas Públicas Falham” (disponível em http://bpmmueller.wixsite.com/bernardo-mueller) eu discuto por que políticas públicas em geral são tão propensas a deixar de atingir um ou mais dos objetivos almejados. E além de mega-projetos e de políticas públicas, projetos privados de todos tamanhos também costumam decepcionar. Nenhuma reforma da minha casa saiu dentro do prazo, dentro do orçamento ou dentro do esperado.

Parte da explicação para tanta ineficiência, decepção e desperdício é óbvia. Todas as fases de concepção, projeção, implementação e operação destes projetos e políticas públicas são permeadas de incompetência, ignorância, corrupção, interesse próprio e custos de transação. Ou seja, eles difíceis de fazer e repletos de incentivos perversos. Porém, o ponto central do argumento aqui é que mesmo que consigamos resolver ou drasticamente atenuar todos estes problemas, ainda assim continua sendo o caso que os projetos e políticas falharão em grande medida.

Isto se dá por que estas atividades se dão em contextos de sistemas complexos, que por sua natureza não podem ser controlados nem previstos. Sistemas complexos são caracterizados por uma interação de grandes números de agentes heterogêneos, agindo localmente, seguindo regras simples, sem informação do todo, e sem controle centralizado, com a interação dando emergência a padrões, ordem, estruturas, e funcionalidades em um nível macro, que não foram planejadas nem previstas, e muitas vezes nem compreendidas, pelos agentes individualmente. Exemplos de sistemas complexos são a economia, uma cidade, um cérebro, o sistema imunológico, uma firma, um protesto, um formigueiro, uma rede social, linguagem, etc. Em todos casos a chave é o nível de interconexão, diversidade, conectividade e adaptabilidade dos agentes. Um momento de reflexão deixa claro que projetos ou políticas públicas se realizam em sistemas complexos. Serviços em particular fazem parte de redes complexas que conectam diferentes provedores com usuários em estruturas específicas que cumprem funcionalidade não-desenhadas e emergentes.

Se projetos, políticas públicas e serviços são tão propensos a ineficiência, desperdício e falhas, o que podemos fazer a respeito? A reação instintiva de economistas, administradores, juristas, jornalistas e outros peritos costuma ser sugerir que se empregue mais esforço, mais recursos, mais leis, mais dados, mais computadores, mais boa vontade e mais empenho para fazer as coisas funcionarem desta vez. Ou seja, faça o que já vinha fazendo, mas faça mais e melhor. Certamente, estas coisas podem ajudar em certa medida. Mas quando se trata de sistemas complexos há uma complexidade irredutível que não pode ser eliminada. Esta complexidade vem da natureza do sistema. Em particular, a abordagem tradicional de economistas e formuladores de políticas públicas não é apropriada para lidar com este tipo de problema. A abordagem tradicional é linear, reducionista, gaussiana, estática, ergódiga (presume que o futuro será igual ao passado) e em grande medida ignora as interações que são o foco do problema. Teoria da Decisão, por exemplo, que é uma das pedras fundamentais destas abordagens, requer que se compare os custos e os benefícios de todas as situações que podem vir a ocorrer, levando em conta as probabilidades de cada estado do mundo. Mas em um sistema complexo, não só não se sabe o que vai acontecer, como não se sabe o que possivelmente pode vir a acontecer.

TI é a solução?

Diante da inutilidade de muito de nosso conhecimento para melhorar o desempenho de políticas, projetos e serviços, o que pode ser feito? Será que novas tecnologias de informação como Inteligência Artificial, Big Data, Machine Learning, blockchain, redes neurais, além de aplicativos e sabe-se lá o que irá surgir no futuro, podem ser a solução? De fato, muitas destas técnicas e processos tem características que as tornam bons instrumentos para lidar com sistemas complexos. Em “Por que as Políticas Públicas Falham” eu descrevo algumas abordagens modernas que parecem promissoras para lidar com este problema por não precisarem de previsão ou controle do sistema. No entanto, a minha conclusão ali é que mesmo se estas técnicas e instrumentos consigam melhorar nossa capacidade de criar, implementar e gerir projetos, políticas e serviços, jamais termos o nível de controle que a abordagem tradicional supõe ser possível. Mesmo com abordagens mais adequadas à sistemas complexos, há limites ao que pode ser conseguido. No final das contas, será necessário adotar uma postura de maior modéstia epistemológica e reconhecer nossas limitações, admitindo que o nível de controle e agência que costumamos almejar, não podem ser realizados.

Isto não quer dizer que não há nada que se possa fazer. Sistemas complexos podem ser influenciados e cutucados para evitar alguns tipos de resultados e induzir outros, mesmo que não seja possível impor uma sintonia mais fina. O importante é reconhecer a natureza de um sistema complexo quando se lida com um, e usar as intervenções próprias a um sistema com tais características, que algumas vezes pode ser simplesmente não fazer nada.

Salto no escuro ou humildade epistemológica?

Na década de 1960 Albert Hirschman notou um padrão em diversos projetos que ele visitou em diferentes países em suas viagens como um economista interessado em desenvolvimento econômico. Os países embarcavam em grandes e ambiciosos projetos, como grandes represas ou novas indústria, com um otimismo ingênuo que não via a complexidade e dificuldade inerente à empreitada. Ele cunhou a expressão “Hiding Hand Principal” para se referir, em uma alusão à Adam Smith, a esta tendência de formuladores de política e gerentes de projetos de subestimar o nível de incertezas e complicações inerentes no projeto em que embarcavam (Hirschman, 1967). Segundo ele, se esta realidade fria não fosse mascarada pelo otimismo simplista dos atores, poucos projetos seriam tentados. E embora os projetos, de fato, frequentemente não atingiam seus objetivos, eles muitas vezes levavam o país a uma situação não antecipada que permitia lampejos de criatividade para adaptar o projeto para outros fins que se mostravam viáveis ao longo da jornada.

A atitude de Hirschman combina em parte com o argumento apresentado aqui. Embora ele não usasse a teoria de sistemas complexos em sua análise, a ideia de que há uma incerteza fundamental por trás de projetos e políticas públicas é parecida. No entanto, a recomendação de política é bem diferente. Enquanto Hirschman reage à impossibilidade de prever o futuro e de controlar um sistema complexo sugerindo um salto no escuro com a esperança de que no final tudo vai dar certo, eu estou sugerindo ser mais realista com o que pode ser atingido e adaptar o alcance e a natureza da intervenção à esta realidade, mesmo que signifique que não possamos fazer tudo que gostaríamos de fazer.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

Referências

Flyvbjerg, B. (2014). What you Should Know About Mega-Projects and Why: An Overview. Project Management Journal, 45(2), 6-19.

Flyvbjerg, B., & Sunstein, C. R. (2016). The Principle of the Malevolent Hiding Hand; or, the Planning Fallacy Writ Large. Social Research, 83(no. 4, Winter), 979-1004.

Hirschman, A. O. (1967). The Principle of the Hiding Hand: Brookings Institution.

Mueller, B. (2018). Por que Políticas Públicas Falham. Working paper Departamento de Economia, Universidade de Brasília. http://bpmmueller.wixsite.com/bernardo-mueller

Globalização e a escada íngreme da tecnologia

A edição de abril do “World Economic Outlook (WEO)” do FMI trouxe um capítulo sobre como a globalização vem contribuindo para uma difusão de conhecimento pelos líderes tecnológicos mais rápida do que anteriormente. A difusão tecnológica transfronteiriça não só contribuiu para o aumento dos níveis de produtividade doméstica nas economias avançadas e emergentes, mas também facilitou uma reformulação parcial do mapa da inovação tecnológica, com alguns beneficiários se tornando novas fontes significativas de pesquisa e desenvolvimento (P & D) e patentes. Cabe a nós entender o que seria necessário para que essa mudança no cenário da inovação fosse ainda mais ampla.

A globalização difundiu conhecimento e tecnologia …

Maior comércio, investimento estrangeiro direto e uso internacional de patentes disseminaram mais intensamente o conhecimento e a tecnologia através das fronteiras. Um duplo dividendo pode potencialmente ser derivado de tal característica: como a tecnologia é tipicamente “não-rival” em seu uso, sua difusão pode levar a aumentos de resultados médios a custos relativamente baixos; além disso, seu uso múltiplo pode gerar efeitos de rede positivos por meio da polinização cruzada.

Os fluxos de conhecimento do exterior podem ter impacto tanto na produtividade, através da adoção de tecnologias estrangeiras no processo de produção, como – combinados com P & D interna – em inovação (Gráfico 1).

O WEO estima que, nas economias de mercado emergentes, “de 2004 a 2014, o conhecimento estrangeiro foi responsável por cerca de 0,7 ponto percentual do crescimento anual da produtividade do trabalho, ou 40 por cento do crescimento observado da produtividade setorial, comparado com o crescimento anual de 0,4 ponto percentual durante 1995–2003″ (Gráfico 2). Segundo o relatório, esses resultados permanecem robustos mesmo quando a China é excluída, o que indica que os efeitos da produtividade foram amplos entre as economias emergentes.

Além disso, o relatório mostra um quadro de mudança na constelação internacional de fontes de inovação tecnológica, à medida que os gastos com P & D crescem rapidamente na China e os estoques de patentes internacionais se acumulam na Coreia (Gráfico 3). Esses países se juntaram aos líderes tradicionais em setores como equipamentos elétricos e ópticos e, especialmente, na Coreia, em equipamentos de máquinas.

Isso aconteceu mesmo enquanto, desde o início da década de 2000, as economias tradicionais de fronteira passaram por uma desaceleração nos aumentos de produtividade da mão-de-obra e na produtividade total dos fatores, ao mesmo tempo em que houve um crescimento mais lento das patentes e, em certa medida, menor investimento em P&D. Duas linhas de explicação para tal têm sido oferecidas, vale dizer: refletem uma lacuna de tempo na transição entre a terceira e a quarta revoluções industriais ou manifestam um declínio secular nas oportunidades de levar a produtividade adiante. De qualquer maneira, como assinalei em 2010, as prevalentes lacunas de convergência tecnológica e a não-rivalidade no uso de tecnologias existentes ofereceram às economias de mercado emergentes a oportunidade de continuar avançando mesmo com o ritmo desacelerando na fronteira (Canuto, 2010).

O WEO também traz à tona os resultados de um exercício empírico mostrando os efeitos positivos da competição internacional em inovação e difusão tecnológica. Isso poderia ser considerado um canal adicional através do qual a globalização estaria reforçando os incentivos para inovar e adotar tecnologias do exterior.

… Mas existem requisitos locais para subir na escada de capacidades de inovação

Não obstante a melhoria dos fluxos transfronteiriços de conhecimento pela globalização, a simples interconectividade não gera automaticamente os aumentos de produtividade e a inovação local. Qualquer aplicação de tecnologia incorpora um conteúdo “tácito” e localmente específico – idiossincrático – que não pode ser adquirido ou transferido por meio de manuais ou qualquer outra forma codificável de transmissão de conhecimento. Esse conhecimento não pode ser tornado “explícito” em blueprints e, portanto, não pode ser perfeitamente difundido como informação pública ou propriedade privada. Tem de ser desenvolvido localmente (Canuto, 1995).

Há um aumento dos requisitos em termos de conhecimento tácito e idiossincrático e de desenvolvimento local de capacidades quando se pensa em produção, adoção de tecnologia e invenção, como mostrado no Gráfico 4. Pode-se também considerar típica para os retardatários uma evolução que geralmente começa com a produção e a adoção de tecnologia antes da invenção. Esse foi exatamente o caso da Coréia e da China, que empreenderam esforços para desenvolver capacidades de inovação após intenso aprendizado pelo uso e adaptação de tecnologias existentes.

O sucesso em montar e ascender na escada rolante de capacidades depende da presença de um amplo conjunto de complementaridades, na ausência das quais o retorno do investimento no desenvolvimento de capacidades é dificilmente obtido. O acesso a finanças, infraestrutura, mão de obra qualificada e práticas gerenciais e organizacionais importa. Soluções para falhas de mercado que geram desincentivos ao acúmulo de conhecimento também devem estar presentes. Além disso, os custos de transação associados ao ambiente de negócios – comércio internacional, contratação de mão de obra, execução de contratos, etc. – não podem ser muito altos (Canuto, Dutz & Reis, 2010).

Como a presença de tais complementaridades não é fenômeno generalizado, pode-se entender porque a mudança internacional na paisagem da inovação tem sido limitada. Também explica o que Cirera & Maloney (2017), do Banco Mundial, chamaram de paradoxo da inovação: os níveis de investimento relacionados à inovação nas economias em desenvolvimento não são proporcionais aos altos retornos que se espera acompanharem a adoção de tecnologias disponíveis e a convergência tecnológica. A globalização pode disseminar o conhecimento, mas não necessariamente vem com o que é necessário para desfrutar completamente disso.

Câmbio: a falsa discussão sobre o verdadeiro problema

Elon Musk, o visionário (e bilionário) fundador do PayPal, da Tesla Motors e da SpaceX, é considerado um verdadeiro gênio. Questionado pelo Curador do TED Talks, Chris Anderson, em um dos eventos da marca, sobre a fonte de sua genialidade, Elon Musk respondeu o seguinte:

“Well, I do think there’s a good framework for thinking. (…) that is, boil things down to their fundamental truths and reason up from there, as opposed to reasoning by analogy (…), which essentially means copying what other people do with slight variations.”

Possivelmente, esse é o melhor conselho para abordarmos questões centrais do Brasil, e aqui nos dedicaremos ao câmbio: à ideia de que os países cambiam bens e serviços (muito mais bens do que serviços, e essa é uma observação que o leitor não deve esquecer para o resto da leitura) e o que condiciona que eles sejam cambiados de uma maneira e não de outra (por uma taxa, e não por outra).

“Boiling things down to their fundamental truths…”

A intuição mais fundamental sobre câmbio é a relação entre os preços de produtos comercializáveis e os preços de produtos não-comercializáveis em uma economia. Repare: a Carros S.A. vende carros no mundo todo e concorre com outras montadoras; o preço dos carros converge em todos mercados; a diretoria está decidindo se constrói sua nova fábrica em Springfield ou em Pindorama. Numa reunião estratégica, um dos diretores diz:

“Não podemos errar na escolha do local de investimento! Uma vez localizados, não poderemos cambiar as estradas esburacadas por estradas boas; não poderemos cambiar a energia elétrica vacilante por energia estável; quando formos exportar nossos carros, não poderemos cambiar o porto de Anjos pelo porto de Los Santeles. Não poderemos também escolher sob qual sistema tributário operaremos e em qual justiça vamos pelear.”

Uma vez que a Carros S.A. venderá seus carros pelo mesmo preço em todos lugares do mundo (lei do preço único), a decisão de investimento entre Springfield e Pindorama será determinada pela relação preço/qualidade daquele conjunto de fatores não-comercializáveis que afetam diretamente o sucesso da sua fábrica, mas que são próprios de cada lugar.

A noção de paridade está implícita nessa alegoria. A Carros S.A. está investigando se condições de mercado imóveis entre territórios afetam de maneira idêntica ou não suas operações fabris. Se não forem idênticas, um dos territórios demandará mais esforço do que o outro para que a Carros S.A. produza a mesma coisa.

“… and reason up from there…”

É muito frequente a análise da relação entre a taxa de câmbio e os preços relativos internos de uma economia pela abordagem dos diferenciais de produtividade entre setores comercializáveis e não-comercializáveis. Paul Samuelson e Bela Balassa estudaram esse assunto nos anos 60 e demonstraram que o mercado de câmbio equilibrava a demanda e a oferta de divisas estrangeiras em consonância com a corrente de comércio exterior – evidentemente, com os setores comercializáveis.

Como havia nítidas diferenças de produtividade entre os setores comercializáveis dos diversos países, isso explicaria porque os preços relativos de setores não-comercializáveis eram tão discrepantes entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Uma vez que o setor comercializável dos desenvolvidos era mais produtivo que o setor comercializável dos países em desenvolvimento, o mercado de trabalho em cada grupo de países gerava uma convergência específica de salários pagos entre todos os setores da economia. Isso explicava por que serviços idênticos presentes em todo mundo, de qualidade similar, pagavam, em paridade poder de compra (PPC), salários tão díspares, e por que a taxa de câmbio raramente refletia o equilíbrio de oferta e demanda de moeda estrangeira que propiciasse o mesmo poder de compra de bens e serviços em países distintos.

William Baumol, também nos anos 60, chegou à mesma conclusão que seus colegas, porém por outros caminhos e tentando entender outro problema. Baumol previa uma crise de urbanização como consequência dos diferenciais de evolução de produtividade entre bens (comercializáveis) e serviços (não-comercializáveis). As elevações salariais do setor comercializável eram antecedidas por elevações proporcionais de produtividade – decorrentes de avanços tecnológicos –, o que não ocorria no setor não-comercializável, que tendia a uma estagnação de produtividade em função da dificuldade de substituição de trabalhadores por máquinas. Baumol percebeu que quanto maiores os avanços tecnológicos do setor de bens, maiores seriam os custos (ganhos salariais sem contrapartida de produtividade) no restante da economia.

“… as opposed to reasoning by analogy.”

Os ganhos de produtividade ocorrem no setor comercializável da economia, mas sua gênese reside em um conjunto de condições e mercados majoritariamente não-comercializáveis. Esqueçamos aqui os serviços de consumo familiar (os serviços permanentemente usados como exemplo, como cabeleireiro, encanador, etc.) e foquemos nos serviços empresariais e em condições sistêmicas de competitividade (infraestrutura e instituições) e rememoremos o caso da Carros S.A. Se todos os serviços e infraestruturas que gravitam em torno do setor industrial são paritariamente mais caros num país do que em outro (mesmo preço, mas qualidades distintas, ou mesma qualidade com preços distintos), a taxa de câmbio PPC (ou câmbio real) será estruturalmente desfavorável a empreendimentos no setor industrial.

Cada vez mais ganha espaço a teoria da complexidade econômica na explicação do desenvolvimento econômico. Quanto mais diversa e complexa uma matriz produtiva, maior a renda per capita das nações. Ou seja, quanto mais variados e sofisticados os produtos e serviços que uma sociedade é capaz de fazer, mais produtiva ela é e, portanto, mais desenvolvida. Afinal de contas, o que determina a capacidade de uma sociedade produzir uma variedade de bens e serviços sofisticados?

As capabilities – ou competências – empresariais e tecnológicas determinam a sofisticação e a variedade de bens e serviços produzidos por uma economia. Infelizmente, essas competências são tácitas, demandam muito tempo e/ou muito esforço para se desenvolverem, e não são facilmente transplantáveis entre os povos.

Voltemos à reunião estratégica da Carros S.A., na qual outro diretor argumentou o seguinte:

“Devemos observar muito atentamente os preços que nos serão cobrados, pois não se trata apenas de ter serviços bons ou ruins, mas a que preço vamos adquirí-los. Minha equipe observou que os serviços de engenharia e automação de Springfield nos custarão $ 1,2 milhões ao ano, enquanto em Pindorama os mesmíssimos serviços custarão $ 1 milhão. Contudo, a qualidade dos serviços de Springfield nos permitirá produzir 13 mil carros, enquanto a qualidade dos serviços de Pindorama nos permitirá produzir 10 mil carros. Assim, em Springfield, cambiaremos $ 92,3 por carro, enquanto em Pindorama cambiaremos $100,0 por carro. Meu voto é por Springfield!”

Então perceba a sutileza de uma análise sobre câmbio. Balassa, Samuelson e Baumol, ao exemplificarem suas teses com serviços de consumo familiar, implicitamente estão estabelecendo padrões idênticos de qualidade (e produtividade): cortar cabelo é a mesma coisa em qualquer lugar do mundo, e, portanto, basta observar o preço real do corte de cabelo para obter a informação de apreciação ou depreciação cambial de uma economia. Mas se exemplificarmos essas teses com consumo intermediário de serviços empresariais por empresas industriais, imediatamente temos que trazer a qualidade/produtividade para entender se o preço é caro ou barato, ou se o câmbio dessa economia está apreciado ou depreciado.

O câmbio real no Brasil é sobrevalorizado porque temos um setor de serviços que oferta soluções numa razão preço/qualidade superior ao de vários de nossos concorrentes. Nosso setor industrial fica estrangulado porque concorre aqui e lá fora com preços determinados globalmente, mas depende de serviços e infraestrutura prestados localmente. Então, se quisermos nos reindustrializar, só temos duas saídas: ou desvalorizamos o câmbio nominal na marra, ou criamos uma política industrial focada na criação de capabilities empresariais e tecnológicas em torno de um competitivo setor de serviços industriais.

Rafael Leão é Mestre em Economia pela UnB e integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Paulo Gala é Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EESP) de São Paulo, onde leciona desde 2002. Autor do blog paulogala.com.br

Quais serviços de infraestrutura e para que fim? Parte II

Em post anterior, discutimos a necessidade de se ser mais seletivo na priorização de carteiras de infraestruturas em países com grande hiato e carência de investimentos no setor. Neste post, seguimos discutindo o tema.

É consenso na literatura que infraestruturas aumentam a produtividade e o investimento. De fato, ao aumentarem o acesso e reduzirem os custos de transporte, de comunicação e de energia, investimentos em infraestruturas reduzem custos de produção e elevam o valor adicionado, o que impacta as métricas de produtividade e aumenta as margens, incentivando novos investimentos.

Mas há que se diferenciar os impactos das infraestruturas na competitividade absoluta e na relativa, bem como nos benefícios privado e social.

Infraestruturas que impactam majoritariamente custos, como uma ferrovia que transporta cargas da mina ao porto, colocam os produtores no jogo da competição ao elevar o benefício privado e a competitividade absoluta. Isto ocorre notadamente em setores comoditizados, cujo valor de mercado do bem está dado.

Já infraestruturas que incentivam a agregação de valor e a diferenciação de produtos e têm muitas externalidades, como um rodoanel ou redes de banda larga, impactam também os benefícios sociais e podem ajudar a elevar a competitividade relativa. Ou seja, além de ajudar a colocar os produtores no jogo, essa classe de infraestruturas pode ajuda-los a ganhar o jogo da competição.

Em países com forte escassez de recursos e grande demanda reprimida por infraestruturas, o custo marginal de uma determinada infraestrutura será tanto menor quanto maior for o impacto no benefício social. Pense, por exemplo, no impacto que a oferta abundante de energia elétrica pode vir a ter ao viabilizar, digamos, a agregação de valor da produção agrícola de uma região. Nesse caso, ao contribuir para a elevação do valor da produção, a oferta de energia poderá viabilizar economicamente, por exemplo, a construção de uma ferrovia ligando aquela região ao porto, já que o valor da carga transportada aumentou.

Países que buscam a convergência de renda per capita com países desenvolvidos e a participação na economia mundial em etapas mais avançadas das cadeias globais de valor deveriam, portanto, focar na relação entre infraestruturas e competitividade relativa.

Infelizmente, a equação da priorização de carteiras de investimentos em infraestruturas é ainda mais complexa do que parece. Straub (2008)[1], por exemplo, mostra que cerca de 50% dos projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento têm pouco ou nenhum impacto no PIB, o que indica graves deficiências na escolha daquelas daquelas carteiras e na implementação dos projetos.

O que fazer? Por óbvio, o problema varia de país para país, mas a atenção aos seguintes pontos pode ser útil.

Fragmentação, complementaridade e sinergias. Dentre as explicações para o modesto impacto dos investimentos em infraestrutura na economia estão a fragmentação dos projetos e a pouca ou nenhuma sinergia e complementariedade entre eles. A fragmentação ocorre, sobretudo, por falta de planejamento em níveis federal e subnacional e falta de coordenação entre unidades do próprio governo e entre os governos e o setor privado. A falta de planejamento leva não apenas à fragmentação, mas, também, ao não sequenciamento adequado dos projetos de infraestrutura para potencializar os seus impactos.

Serviços e não somente infraestrutura física. Projetos de infraestrutura têm que focar na potencialização da utilidade que geram para os agentes econômicos, sejam eles consumidores ou firmas. Isso leva a que os projetos de infraestrutura tenham que ser analisados também pelo seu componente intangível. Os benefícios de uma nova rodovia, por exemplo, serão maiores quando, para além de viabilizar a conectividade física, também viabilizarem serviços complementares, como banda larga ao longo do curso da via, serviços de energia, de segurança, de apoio logístico, dentre outros que agregam valor e façam daquela rodovia mais do que um meio para levar uma carga do ponto A para o ponto B. De fato, já há farta evidência empírica mostrando que projetos de infraestrutura intensivos em capital intangível têm maiores impactos na produtividade e na competitividade relativa.

Tecnologia e não apenas menor custo. É preciso que carteiras de infraestruturas priorizem o uso de novas tecnologias, sejam elas construtivas, de serviços de gestão, manutenção e de provisão de bens públicos e privados. Afinal, aqueles projetos são oportunidades únicas para se incentivar o emprego de novas tecnologias e podem funcionar como polo radiador de incentivos a investimentos sofisticados, geração de riquezas e capacitação.

Monitoramento e avaliação de projetos. É preciso avaliar com maior atenção o que deu certo e o que deu errado em projetos de infraestrutura, tanto no próprio país como no exterior, de forma a se evitar repetir erros e deixar de otimizar as chances de acertos.

Futuro e não apenas o passado. Mais que mirar no atendimento dos velhos gargalos de logística, é preciso que o planejamento combine esforços na provisão de serviços de conectividade física e também não física e mirem em atividades que apontem para o futuro, como serviços sofisticados e economia digital.

Implementação e pós-implementação. Para além de melhorar a implementação de projetos, é preciso maior foco na recuperação das infraestruturas já existentes e na sua manutenção, de forma a que se reduzam os custos dos projetos e se amplifiquem os seus benefícios sociais.

Por fim, é preciso se repensar as métricas convencionais de identificação dos benefícios das infraestruturas. Afinal, muitos benefícios sociais importantes nem sempre são de fácil identificação e mensuração. De outra forma, há espaço para o desenvolvimento de metodologias mais sofisticadas e flexíveis de mensuração das contribuições das infraestruturas para a economia e para a sociedade.

[1] S. Straub, Infrastructure and growth in developing countries: recent advances and research challenges, World Bank Policy Paper No. 4460, 2008.

O que é transformação digital?

No contexto atual, no qual empresas tradicionais estão enfrentando forte concorrência de startups ou das grandes empresas de tecnologia, muito tem se falado sobre “transformação digital”. Mas, o que isso significa? De acordo com Khan (2016), transformação digital é o “processo acelerado de adaptação técnica de indivíduos, empresas, sociedades e países à digitalização de tudo.”

A título de exemplo, é assustador o impacto que o smartphone teve na sociedade global em pouco mais de dez anos de existência. Na imagem ao fim deste post, há uma propaganda de 1991 da Radio Shack, uma das maiores redes varejistas eletrônicos nos EUA à época. Nela, 13 dos 15 produtos ofertados são facilmente encontrados em smartphones. A eleição no país mais rico do mundo pode ter sido decidida em grande medida por uma plataforma que começou há 14 anos com o simples propósito de conectar estudantes de Harvard. Redes sociais foram o motor de uma das maiores ondas revolucionárias do Oriente Médio, a chamada Primavera Árabe. Uma empresa de tecnologia da Califórnia compete diretamente com taxistas ao redor do mundo. E por aí vai.

Os exemplos de como as tecnologias digitais têm impactado o mundo são praticamente infinitos. O fato é que as empresas tradicionais que quiserem sobreviver a esse mundo cada vez mais digital têm e terão que se transformar e se adaptar constantemente. Portanto, para empresas, “transformação digital” se refere, principalmente, a se tornarem capazes de se adaptarem a um cenário cada vez mais mutável. David L. Rogers, em seu livro de 2016  “The digital transformation playbook: rethink your business for the digital age”[1], apresenta cinco grandes áreas em que a transformação digital é mais evidente: consumidores, competição, dados, inovação e valor.

Na parte de consumidores, o que é mais destacado é como eles, os consumidores, têm se tornado mais influentes nas decisões de outros consumidores. Atualmente, restaurantes, hotéis, bancos e negócios de qualquer setor sabem (ou deveriam saber) que a sua reputação pode ser profundamente abalada por resenhas negativas em plataformas como o Google, Facebook, Tripadvisor ou ReclameAqui. Por outro lado, se, antes, o fluxo de valor era unidirecional, no sentido empresa-cliente, hoje, ele é recíproco. Um hotel oferece valor (estadia) para um cliente e recebe valor (reputação) do cliente que o resenha. Por fim, nesta área, vale ressaltar a expectativa cada vez mais presente da customização em massa. Da mesma forma que um usuário do Netflix espera que a sua experiência seja customizada especificamente para ele, cada vez mais o consumidor espera o mesmo de cada serviço e produto que ele adquire, seja ele presencial ou digital.

Na área de competição, destaca-se cada vez mais a competição entre empresas aparentemente de setores distintos. Atualmente, uma empresa de tecnologia norte-americana (AirBnB) compete com uma pousada brasileira. O Google compete até com médicos, ao dar informações cada vez mais detalhadas a respeito de doenças, seus sintomas e tratamentos. Ao mesmo tempo, há, em alguns casos, cooperação entre competidores em áreas-chave. Por exemplo, Google, Facebook, Amazon, IBM e Microsoft cooperaram para estabelecer padrões éticos para o uso da Inteligência Artificial. Por fim, no mundo digital, a competição pode ser difusa, mas há tendência, em vários mercados, de um cenário de winner-takes-all por conta dos efeitos-rede e dos modelos de negócio de plataforma.

Os dados também são um componente importante da transformação digital. Até pouco tempo atrás, dados eram caros de se obter e gerenciar. Atualmente, os dados estão cada vez mais abundantes e a principal dificuldade é transformar dados em valor, algo que as gigantes da tecnologia já conseguem fazer com maestria. Só é possível atender à já mencionada demanda por customização com a análise contínua de dados sobre o usuário. Como exemplo disto, basta lembrar o tanto que o Cambridge Analytica declarava conhecer sobre os usuários do Facebook. Segundo foi revelado, com poucos likes, é possível conhecer alguém mais profundamente do que os amigos e familiares da pessoa.

A formas de se inovar também têm mudado consideravelmente. Atualmente, é muito mais barato, rápido e fácil testar ideias. Entre startups, é comum lançar uma página anunciando um serviço que ainda nem existe para medir o interesse dos consumidores na ideia e colher feedback antes mesmo de se começar a desenvolver a ideia.

Outra mudança é o foco no problema. Atualmente, empresas que dominam mercados iniciaram atacando um problema claro e comum aos consumidores: o Uber começou a atuar pois percebeu que táxi era algo caro e burocrático e não resolvia eficientemente o problema do transporte individual; o AirBnB começou pois viu que os hotéis não eram suficientes e nem baratos em grandes cidades; o Google percebeu que, à época, ainda era difícil de se encontrar respostas na Internet, etc. Por fim, as empresas inovadoras têm menos foco no produto “finalizado” e se concentram em lançar um produto minimamente viável (MVP) que resolva um problema específico para aprender com o uso pelo cliente e evoluir constantemente. Serviços como Facebook, Whatsapp e outros têm atualização quase diária, ou seja, nunca têm um produto “pronto”.

Outra área afetada pela digitalização de tudo é o valor. Antes, a proposta de valor de uma empresa era facilmente compreendida: uma empresa automobilística entregava carros como valor. Hoje, uma empresa como a Amazon entrega qual valor exatamente? A empresa, que começou como uma simples loja de livros online, tornou-se megavarejista; fabricante de hardwares que entregam conveniência (Kindle, Amazon Echo, etc); espaço em nuvem para empresas; entre outras atividades, e está constantemente buscando novas formas de entregar valor para os seus clientes. Nas palavras de Rogers (2016), se, no passado, o sucesso permitia a complacência, hoje, “só os paranóicos sobrevivem.” Na visão do autor, as empresas que não buscarem novas formas de gerar valor para os seus clientes provavelmente morrerão antes do que esperam.

Com tantas mudanças, é importante ressaltar que, em geral, a mudança na estratégia e no modelo de negócios de uma empresa costuma ser mais relevante do que a tecnologia em si para responder aos desafios que resultam da digitalização de tudo. Essa é a conclusão de estudo do MIT com Deloitte feito com empresas do mundo inteiro e bem sintetizado e debatido em artigo de Sílvio Meira (2017), do Porto Digital. Afinal, o que há de mais disruptivo no modelo Uber não é a tecnologia em si, mas, sim, o seu uso para viabilizar um modelo de negócios que resolve um problema do dia-a-dia de maneira exponencial.

Em tempos de commoditização digital, se as empresas brasileiras quiserem ter relevância no mercado global, não bastará a elas utilizar as últimas tecnologias. Será preciso usá-las para oferecer produtos e serviços de maneira inovadora.

Imagem – Propaganda da Radio Shack de 1991. 13 dos produtos vendidos estão atualmente embutidos ou vendidos como aplicativos em smartphones

[1]No Brasil, o livro foi traduzido como “Transformação digital: Repensando o seu negócio para a era digital” (Autêntica Business, 2017)

Migração e comércio de serviços

A oferta de serviços a serem transacionados no mercado internacional é – como de um modo geral ocorre com as mercadorias – fortemente determinada pelas vantagens comparativas de um país. Estas, por sua vez, em geral guardam relação com a disponibilidade de fatores de produção, embora possam ser alteradas ao longo do tempo por medidas de política. A existência de economias de escala em alguns setores ou a existência de estruturas concentradas de mercado são elementos que podem vir a influenciar o grau de especialização de uma economia, na sua inserção internacional.

No entanto, e à diferença do que ocorre com mercadorias, no comércio de serviços a relação de economias de escala com o desempenho exportador não é imediata nem assegurada.

Há casos, por exemplo – à diferença de empresas manufatureiras – em que as empresas produtoras de serviços de fato experimentaram desempenho decrescente, ao tentar se diversificar no mercado internacional. Isso pode ser devido (Capar, Kotabe (2003)) a que: i) diversos países mantêm controle estrito sobre o investimento em diversos setores de serviços, ii) os serviços ofertados por empresas transnacionais aos consumidores locais podem ter de sofrer um grau maior de adaptação do que o que se observa com produtos industrializados, dadas as diferenças linguísticas e culturais ou iii) diversos serviços requerem simultaneidade na produção e consumo, tornando necessário, portanto, que a empresa fornecedora mantenha um unidade local.

Além disso, os serviços frequentemente demandam trabalho específico que demanda habilidades específicas. Isso os torna menos suscetíveis de capturar economias de escala do que, por exemplo, a produção de manufaturas.

Essas peculiaridades da produção e comercialização de serviços, associadas à característica de que as barreiras ao seu comércio são predominantemente associadas a legislações e práticas internas de cada país, fazem com que as transações em serviços possam ser influenciadas por elementos como a migração de fatores produtivos e a produção em cadeias de valor.

Aqui não se trata de considerar os chamados “Modo 3” (presença comercial – oferta de serviços de parte de um profissional estabelecido em um país no território de outro país) ou “Modo 4” (presença de pessoas naturais – serviços ofertados por nacionais de um país no território de outro país) da Organização Mundial do Comércio, mas simplesmente o aumento da disponibilidade de oferta de indivíduos de outros países, que tomaram a decisão de migrar.

Suponha que os profissionais sejam pagos segundo sua produção marginal, num modelo com dois países. Isso pode ser representado como na figura a seguir. Os gráficos mostram a quantidade de trabalho no eixo horizontal e o produto marginal no eixo vertical.

Suponha que o País A tem um estoque inicial de 0LA e o País B um estoque de OLB. 0LA é claramente maior que OLB: o fator mão-de-obra é mais abundante no País A do que em B. O fator trabalho é mais barato em A. Isso é representado pelo nível de remuneração inicial em A, correspondente a wA, mais baixo do que o salário médio wB, pago aos trabalhadores no País B.
Suponha que não existam restrições à migração. A informação relativa a esse diferencial de remunerações motivará os trabalhadores do País A a migrarem para o País B.

À medida em que os trabalhadores migrem do País A para o País B, o número de trabalhadores no País A será reduzido para OL’ A < OLA, ao mesmo tempo em que haverá maior disponibilidade de trabalhadores no País B: sua força de trabalho aumentará de OLB para OL’ B.

Como resultado da menor disponibilidade de trabalhadores no País A, o fator trabalho se tornará mais caro e os ganhos com salário serão elevados de wA para w’ A. Pelo mesmo processo, e em sentido inverso, a maior disponibilidade de trabalhadores no País B tenderá a reduzir o nível de salário médio para w’ B.

É mais provável que nem w’ A nem w’ B sejam atingidos, uma vez que por hipótese não há restrições ao movimento de trabalhadores entre os dois países, e é razoável supor alguma reversão do processo migratório.

Em teoria, haverá algum ponto de equilíbrio intermediário, resultante do movimento em ambas direções. Isso é provável que ocorra quando o estoque de trabalhadores no País A atingir LAE no País A e LBE no País B. De ser assim, as remunerações médias dos trabalhadores em ambos os países tenderão ao nível de wAE no País, semelhante ao nível de wBE no País B.

E o que isso tem a ver com o comércio de serviços?

Mais uma vez, a teoria do comércio de mercadorias pode ajudar. A influência do processo migratório sobre a composição do comércio externo é o foco do chamado Teorema de Rybczynski.

Segundo essa formulação, um aumento exógeno na oferta de um fator de produção, por exemplo, mão-de-obra, numa dada economia, fará com que aumente a produção e a exportação dos produtos em cujo processo produtivo o fator trabalho é empregado de maneira mais intensiva, pelo simples fato de que esse fator terá se tornado mais barato. Essa economia desenvolverá (ou intensificará) vantagem comparativa em produtos intensivos em trabalho.

A mesma lógica se aplica, evidentemente, se em lugar de migração de trabalhadores ocorrer um aumento significativo no influxo de capital: a produção e as exportações do país se tornarão mais intensivas em capital.

Essa lógica pode ser adaptada a um movimento de número expressivo de trabalhadores, de tal modo que isso venha a afetar a estrutura produtiva da economia receptora. Da mesma forma, algo nessa mesma linha pode ser inferido para o caso de movimentos migratórios de trabalhadores com qualificação específica, como advogados ou engenheiros.

Um exemplo de migração com efeito sobre a prestação de serviços é o comércio de atletas. Em alguns países a seleção nacional, por exemplo, de futebol, é composta por indivíduos nascidos em outros países. Em alguns casos, tem sido a presença de jogadores estrangeiros que possibilitou alguns times a adquirirem dimensão internacional. Um exemplo da lógica de Rybczynski.
Trabalhadores migrantes podem substituir trabalhadores nativos no desempenho de atividades no exterior, por exemplo, gerando um efeito de redução de custos que pode contribuir para elevar a produtividade das empresas. Além disso, trabalhadores estrangeiros podem contribuir para reduzir custos comerciais, ao melhorar os fluxos de informação.

No que se refere especificamente à exportação de serviços, essa é uma atividade que pode demandar a superação de barreiras, como um melhor entendimento das idiossincrasias dos países de destino. Nesse sentido, os imigrantes provenientes desses países podem desempenhar um papel importante, ao contribuir para melhorar esse grau de conhecimento. A comercialização de serviços, ao demandar conhecimento do idioma e expressões locais, peculiaridades institucionais e práticas de outro país, pode se beneficiar de maneira expressiva da ajuda de migrantes.

Um estudo feito para o Reino Unido (Ottaviano/ Peri/ Wright (2015)) encontrou evidência empírica de que os imigrantes efetivamente ajudaram a reduzir custos, portanto a elevar a produtividade das empresas exportadoras. Ao proporcionarem conhecimento específico sobre seus países de origem, contribuíram para estimular exportações.

Segue-se, portanto, que o influxo de mão-de-obra numa economia estimula a exportação de serviços que são mais dependentes de custos do trabalho e de atributos específicos que podem ser proporcionados pelos migrantes.

Segundo o modelo de Rybczynski, é razoavelmente previsível que o país que absorve migrantes será beneficiado pela adaptação de sua pauta de exportações, e ganhará com a nova estrutura produtiva.

No caso das transações em serviços, isso se reflete nos menores custos para obter um conjunto de informações importantes para a comercialização. Num ambiente com dois países de tamanho distinto, isso significa que o país maior será mais provavelmente aquele que atrairá mão-de-obra, portanto tenderá a se beneficiar dos novos tipos de serviços que podem ser exportados.

Esta é uma dimensão adicional de análise que considera o diferencial de condições entre os países participantes do mercado internacional de serviços, e com isso enfatiza as diferenças no potencial de competitividade.

 

REFERÊNCIA

Ottaviano, G., Peri, G., Wright, G. (2015), Immigration, Trade and Productivity in Services: Evidence from UK Firms, NBER Working Paper # 21200, May

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