Economia de Serviços

um espaço para debate

Page 22 of 38

O preço do desenvolvimento

O sistema de preços relativos é a linguagem universal dos mercados. Friedrich Hayek, economista da escola austríaca, consolidou a ideia de que os preços traduzem toda sorte de eventos que afetam a escassez de bens e serviços no mercado. Se por estiagem ou praga a lavoura do trigo ruir, pouco importa: se a oferta cai, o pão nosso de cada dia encarece. No português claro: quando bate no bolso, amigo, todo mundo entende!

David Ricardo, grande economista clássico, estabeleceu a relação entre preço e escassez. Quanto mais pão queremos, mais terras precisamos; a expansão da fronteira agrícola incorpora terras cada vez menos produtivas e a produtividade média das lavouras cai; nosso pão de cada dia encarece. A ideia de preços ricardianos é essa: no longo prazo, a expansão da fronteira agrícola e a exaustão das reservas minerais aumentariam a carestia pelas crescentes dificuldades técnicas e quedas de produtividade, ainda que no curto prazo flutuações de oferta e demanda (as intempéries comentadas acima) reduzam ou reforcem essa tendência. Hayek e Ricardo estão dizendo que os preços entregam informações de escassez imediata e também de tendência.

No caso dos produtos industrializados a formação de preços não é ricardiana. A indústria persegue avanços tecnológicos e ganhos de escala permanentemente. A expansão da produção industrial está intimamente associada ao aumento da produtividade – essa é a Lei de Kaldor-Verdoorn; a produção aumenta por efeitos dinâmicos (tecnologia) ou por efeitos estáticos (escala), e ambos levam à queda de custos. Assim, a tendência deflacionária da produção industrial é inerente ao desenvolvimento industrial de longo prazo.

No setor de serviços os preços sofrem de limitações de comercialização. Se sua banda larga é cara e lenta você não pode contratar uma barata e veloz do Japão. Os serviços são pouco mecanizáveis, pouco padronizáveis e, em sua maioria, não-comercializáveis para além-fronteiras; portanto, conformam mercados menos concorrenciais em relação aos produtos comercializáveis, que enfrentam preços formados no cenário internacional. Ceteris paribus, produtos não-comercializáveis apresentam trajetória inflacionária em relação ao de produtos comercializáveis, que sofrem a disciplina de preços imposta pela mecanização, padronização e ampla e acirrada concorrência internacional.

Quando essa dinâmica de preços é inserida na contabilidade nacional vintage para o cálculo do valor adicionado, o setor industrial perde participação. Ao longo de todo o pós-guerra, o setor de serviços ganhou participação no PIB de diversas economias – sobretudo as desenvolvidas – às custas da redução do setor industrial. O fato estilizado mais apontado na tese da desindustrialização é a queda do valor adicionado da indústria em proporção ao valor adicionado total da economia. A indústria cede espaço para o setor de serviços como centro dinâmico; no caso dos desenvolvidos, esse seria um fenômeno natural, sustentado pela noção de que a elasticidade-renda da demanda por serviços aumenta – enquanto a de bens cai – com o aumento da renda per capita; no caso dos países em desenvolvimento, a desindustrialização seria uma patologia veiculada pela globalização e por uso cada vez maior de tecnologias poupadoras de mão-de-obra. A narrativa desse parágrafo foi rasteiramente banalizada: “Indústria pra quê? Os países desenvolvidos são economias de serviços”.

Ledo engano. As séries históricas do PIB americano que mostram mudanças na composição do valor adicionado não diferenciam variações reais decorrentes do quantum de variações reais decorrentes de preços relativos, escondendo os padrões de evolução produtiva e as regras subjacentes à formação de preços específicos de cada setor, como mencionado acima. As séries do PIB repartem o valor agregado setorialmente, desconsiderada a indissociável conexão entre indústria e serviços. Não existe aplicativo sem smartphone. Observando o caso americano a partir da evolução dos preços relativos dos setores industrial e de serviços a história é outra.

O gráfico abaixo mostra como quantum e preço evoluem de formas distintas entre os setores e como essa combinação produz a visão de mudança estrutural da economia americana. Os índices de quantum (linhas pontilhadas) do valor adicionado dos serviços e da indústria apresentaram comportamentos semelhantes, ainda que o quantum de serviços tenha atingido um nível maior; no entanto, os índices de preços se comportam diametralmente, com 30 anos de estagnação no setor industrial e persistente elevação no setor de serviços.

LEÃO, R. Reinterpretando a mudança estrutural dos EUA: a conexão entre indústria e serviços [Dissertação apresentada ao Mestrado em Economia do Setor Público – UnB]. – Brasília – DF, 2016. – Orientador: Jorge Arbache.

A ideia de uma economia americana avançada e, portanto, em desindustrialização, advém da miopia das contas nacionais, mas, sobretudo, pela desconsideração de diferenciais de produtividade que determinam a estrutura de preços relativos entre bens e serviços. Mecanização e padronização são os pais da produtividade, e crescimento da produtividade significa aumento do produto por trabalhador, mas, também, significa redução de trabalhadores por unidade de produto. A quantidade de trabalho humano envolvido na indústria depende da maturidade tecnológica, o que significa dizer que o trabalho humano é uma peça nas engrenagens até que máquinas possam fazer o mesmo trabalho com mais acurácia, velocidade e, portanto, menores custos. Esse não é o caso de extenso número de atividades econômicas nas quais o trabalho humano é quase ou totalmente insubstituível – basicamente, os serviços (e os de agregação de valor, em especial); na dificuldade de mecanização, padronização e comercialização, o setor de serviços cresce com elevação de seus preços.

A desindustrialização não é o preço do desenvolvimento. O dinâmico setor de serviços dos países avançados é o reflexo da sofisticação industrial que alcançaram; sofisticação que gerou um mundo de desafios tecnológicos que apenas o trabalho humano poderia solucionar. Em língua morta: o setor industrial estimulou o progresso do setor de serviços.

Nem formal, nem informal, o Brasil é semiformal [parte I]

Ver nota do autor

Há um fenômeno que permeia todo o espaço econômico da realidade brasileira e que não foi, até hoje, objeto da merecida atenção: a ele damos o nome de “semiformalidade”. É composta, por um lado, por agentes que pertencem ao universo formal, mas que executam parte de suas operações no âmbito da informalidade. Trata-se de empresas que, a despeito de serem formalmente estabelecidas (empresas com CNPJ), não incluem parte de suas operações em seus registros contábeis (transações realizadas sem a emissão do comprovante fiscal, ou Nota Fiscal) e/ou possuem em seus quadros trabalhadores sem contrato formal de trabalho (Carteira de Trabalho assinada). Essa forma de contratação passou a ser reconhecida como “trabalho informal” pela OIT desde 2003 (ILO, 2003). Há, ainda, empresas que remuneram seus trabalhadores em valores efetivos que são superiores àqueles que constam de seus registros contábeis e dos respectivos contratos de trabalho – prática usual no comércio, em que a remuneração variável (comissões de vendas) é paga à margem dos registros oficiais. Esse conjunto de práticas é conhecido pelos nomes de transações por fora ou caixa 2.

Observe-se que tais transações podem se dar tanto em uma relação com outras empresas formais que também atuam na semiformalidade (operações conhecidas como meia nota), quanto com empresas informais, trabalhadores autônomos ou pessoas físicas, sejam atuando como compradores, sejam como fornecedores. Nas grandes cidades brasileiras é sabido que muitos comerciantes “tradicionais”, ou seja, com estabelecimentos comerciais formalmente estabelecidos, empregam vendedores ambulantes (os camelôs), geralmente informais, para venderem suas próprias mercadorias posicionando-os em frente às suas lojas. Seu objetivo não é somente a evasão fiscal, mas também – e principalmente – ocupar uma posição de mercado que, se não fosse ocupada por ele mesmo, seria por um outro qualquer, que concorreria com ele em sua própria porta.

Em que pese não existirem estatísticas que dimensionem com precisão essas operações e seus perfis, a observação da realidade e os “constrangimentos legais” existentes no país nos levam a supor com razoável segurança que sua intensidade é inversamente correlacionada com o porte da empresa. Particularmente no universo das pequenas e microempresas, é um fato notório que, para muitas delas, seus demonstrativos contábeis não têm nenhuma relação com a realidade. Acreditamos ainda que o fenômeno se dá com maior intensidade no setor de serviços, particularmente no comércio.

Outro ponto importante na construção da semiformalidade a ser mencionado relaciona-se com as práticas gerenciais, muitas delas desenvolvidas a partir dos componentes culturais da sociedade: os sistemas informais (até mesmo rudimentares) de controle das operações. Há até uma expressão que designa essa situação como o “controle no papel de pão”, uma metáfora que se refere às firmas que registram suas operações em folhas soltas de papel avulso, alegoricamente o papel usado nos embrulhos de pão. Essa prática não está, necessariamente, associada ao emprego do “caixa 2”, pois os resultados finais apurados nas transações assim registradas podem vir a ser transferidos para os registros contábeis oficiais. Portanto, seu objetivo precípuo não é, necessariamente, a sonegação tributária. É, em grande medida, uma prática de caráter social e que é um componente do arcabouço simbólico do imaginário do povo brasileiro. Essa prática é a tal ponto reconhecida no país que chega mesmo a fazer parte dos atrativos de alguns estabelecimentos. No bar carioca Bip Bip, por exemplo, um dos mais tradicionais da cidade do Rio de Janeiro, as bebidas são servidas pelos próprios clientes, que as retiram pessoalmente da geladeira ou prateleiras e anotam seus nomes e seu consumo diretamente em um caderno colocado sobre uma mesa próxima à entrada do bar; anotação que serve de controle para a cobrança da conta (Silva, 2014).

A semiformalidade é, portanto, construída a partir de atividades formais que, de alguma maneira, conseguem espaços de operação na economia formal. Uma das possibilidades é a existência de agentes informais que transacionam com agentes formais por meio das operações “por fora” descritas acima. Há também os casos em que, a despeito de sua situação de informal, o agente consegue, quando necessário, revestir de “legalidade” algumas de suas operações. Isso se dá principalmente no setor de serviços e o principal instrumento, nesse caso, é a compra de Notas Fiscais emitidas por empresas formais (transação conhecida como barriga de aluguel): a empresa formal emite a Nota Fiscal ou Recibo relativo à transação efetuada pelo agente informal e este assume o pagamento dos impostos correspondentes. Esse pagamento, dependendo da relação existente entre os envolvidos, pode ser com ou sem ágio.

Uma outra situação começou a se tornar mais visível a partir da criação da figura do Microempreendedor Individual, o MEI (Brasil, 2008). Este dispositivo, que entrou em vigor a partir de 01 de Julho de 2009, pretende oferecer condições especiais de legalização (ou formalização) principalmente para o trabalhador autônomo que vem atuando informalmente, sendo este seu alvo principal, porém não exclusivo. O sistema adota um processo de registro extremamente simplificado e que pode ser feito em poucos passos pela Internet, reduzindo sobremaneira os custos de transação para a formalização. Além de oferecer inúmeras vantagens de caráter tributário para o MEI, que visam aprofundar a prevalência do princípio da progressividade na tributação das pessoas jurídicas, o programa tem por objetivo incluir esses trabalhadores no sistema de proteção social por maio da criação de condições especiais de contribuição[2], possibilitando que se integrem ao sistema previdenciário. Espera-se que a possibilidade de operar no mundo formal – possuindo um CNPJ e emitindo Nota Fiscal – seja capaz de melhorar as condições de operação e competitividade desses trabalhadores e, por conseguinte, também sua renda.

No entanto, o programa do MEI é subordinado à Lei Geral das MPEs. Em consequência disso, os MEIs estão submetidos às mesmas exigências que as MPEs em geral. Esta lei não trata apenas de tributos, seu texto também sugere a simplificação e a unificação de licenças (alvará, bombeiros, vigilância sanitária, meio ambiente etc.) e processos para a abertura, manutenção e encerramento das MPEs, visando reduzir os entraves burocráticos e os custos de abertura dessas empresas. A palavra “sugere” não aparece aqui por acaso. O arranjo federativo brasileiro impõe inúmeras barreiras para a universalização da aplicação dos princípios que regem a Lei Geral e o estatuto do MEI, implicando no que chamamos de “formalidade pela metade”. Um exemplo pode ser o de uma van que vende sanduíches nas ruas sem as devidas licenças: o seu proprietário pode possuir o registro como MEI, sendo portanto “formal” do ponto de vista federal; entretanto não possui nem licença da Vigilância Sanitária, nem Alvará de funcionamento, permanecendo, assim, “informal” do ponto de vista estadual e municipal. Esta é mais uma faceta do problema da integração e coordenação vertical das políticas públicas.

O registro da semiformalidade, em certa medida, já havia sido feito por Souza, Feijó e Nascimento e Silva (2006), quando propuseram um sistema de “classificação de níveis” para a informalidade brasileira, sugerindo que os diversos ramos de atividades cobertos pela pesquisa Ecinf 1997 fossem classificados como sendo de Alta Informalidade; Média Informalidade; ou Baixa Informalidade. Essa classificação teria como base caraterísticas observadas no conjunto de empresas de cada ramo no que concerne a seis atributos: 1 – Nível de receita; 2 – Posição do proprietário (conta própria ou empregador); 3 – Local de Funcionamento (domicílio, sem local fixo ou com local fixo); 4 – Mercado Consumidor (pessoas diversas ou clientes fixos); 5 – Controle de Contas (sem nenhum registro, controle pelo proprietário ou existência de contador); 6 – Constituição Jurídica (com ou sem registro formal, isto é, CNPJ). As inúmeras possibilidades de combinação desses seis atributos em seus diversos possíveis graus permitem ter uma ideia da conformação desse espaço que vai desde uma total e completa informalidade até a rigorosa formalidade. Nesse trabalho, os autores destacam que o universo da informalidade, considerado a partir do duplo enfoque propugnado pela OIT, deva ser considerado como parte integrante da estrutura formal, subordinado ao processo de desenvolvimento da economia.

Em outro estudo, Feijó, Nascimento e Silva e Souza (2009, p. 331) assumem como hipótese de trabalho “que, assim como a fronteira entre o trabalho formal e o informal não é bem demarcada, dentro do setor informal também podemos encontrar um continuum de situações em que pressupostos de um trabalho descente estão mais ou menos presentes”. Chamam ainda a atenção para o fato de que a própria OIT considera que “entre a economia formal e a informal não existe um limite claro que as separe”.

Fica evidente que na economia brasileira não há dois espaços “paralelos”: o mundo formal e o informal. Conforme o que está apresentado em maiores detalhes em texto deste autor que trata especificamente da informalidade, estes espaços se imbricam e se complementam na semiformalidade, conformando um único sistema socioeconômico. Essa realidade é análoga àquela descrita por Cacciamali (2001) ao tratar especificamente da questão do trabalho, na qual a autora afirma que os denominados setores formais e informais do mercado de trabalho expressam-se como um continuum de relações existentes nesse mercado, e não como dois setores dicotômicos ou duais.

Assim, entendemos, a semiformalidade como um espaço construído a partir de dois movimentos convergentes e complementares (figura 1).

FIGURA 1 – Representação esquemática da semiformalidade

Elaboração do autor.

Compreender essa realidade é essencial para a compreensão do nosso país, independentemente de quaisquer juízos que se façam dela. O fato é que o Brasil é um país que é o país que é! E é este país que precisa ser mais bem compreendido, assumido como tal e desenvolvido a partir de suas características próprias.

Em um próximo post veremos o papel relevante que o setor de serviços desempenha na conformação desse construto.

 

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008. Altera a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, altera as Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2008.

CACCIAMALI, Maria Cristina. Padrão de acumulação e processo de informalidade na América Latina: Brasil e México. Pesquisa & Debate, v. 12, n. 1, ano 19. São Paulo: PUC-SP, 2001.

FEIJÓ, Carmem Aparecida; NASCIMENTO E SILVA, Denise Britz do; SOUZA, Augusto Carvalho. Quão heterogêneo é o setor informal brasileiro? Uma proposta de classificação de atividades baseada na Ecinf. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, 2009.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Economia informal urbana 1997 – Ecinf. Rio de Janeiro: IBGE, 2003.

ILO – INTERNATIONAL LABOR OFFICE. Seventeenth International Conference for Labor Statisticians. Report of the Conference. Geneve: ILO, 2003.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  A Problemática do Dimensionamento da Informalidade na Economia Brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2221).

SILVA, Priscilla. Bar do Bip Bip traz a alma do Rio de Janeiro e se confunde com a história do Brasil. Olhar Conceito, 13 jan. 2014. 

SOUZA, Augusto Carvalho; FEIJÓ, Carmem Aparecida; NASCIMENTO E SILVA, Denise Britz do. Níveis de informalidade na economia brasileira. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 37, n. 3 , 2006.

NOTAS:

Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).

As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

[2] Quando de sua criação, o MEI poderia contribuir para o sistema previdenciário (Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) com base em uma alíquota de 11,0% do Salário Mínimo. A partir de 2011 esta alíquota foi reduzida para 5,0%.

Boletim de Serviços – Fevereiro de 2017

O Boletim de Serviços de fevereiro de 2017 está disponível, clique aqui para acessá-lo. Alguns dos destaques:

  • Em novembro, a receita nominal do setor de serviços registrou variação positiva de 8,29% no acúmulo anual, enquanto o volume de atividades contraiu 7,64%.
  • A inflação acumulada em 12 meses do setor de serviços foi de 7,03% em 2016.
  • O setor de serviços fechou mais de um milhão de postos de trabalho em 2016, contribuindo com 74% do total de vagas fechadas no país.
  • O déficit da balança de serviços foi de US$ 30 bilhões no acumulado no ano
  • O IDE em serviços contabilizou melhora de 10% e comparação com dezembro de 2015.

Para acessar a metodologia e as séries históricas em excel, acesse: https://economiadeservicos.com/boletim.

A importância das telecomunicações para o crescimento econômico

Conforme exposto no post de Giovanini e Arend, o setor de serviços é essencial para o crescimento econômico, na medida em que aumenta a produtividade industrial. Este argumento, similar ao apresentado por Arbache (2016), parece também se aplicar especificamente ao setor de telecomunicações no Brasil, conforme mostrado a seguir.

Ao longo do tempo, como esperado, o aumento do acesso à Internet foi acompanhado de aumento no consumo de bens industriais necessários para se usufruir do serviço de telecomunicações, como os computadores pessoais. Veja a figura abaixo.

Figura 1. Número de Computadores pessoais e Usuários de Internet

Já o aumento da oferta de serviços de comunicações móveis foi acompanhado de inovações de máquinas que se deslocam no espaço, como laptops e tablets. A demanda destes produtos industriais aumentou, substituindo, em parte, a dos antigos PCs. Concomitantemente, o acesso à internet via Banda Larga Móvel cresceu, substituindo o acesso discado. Veja as ilustrações abaixo.

Estimativas da OCDE revelam que conexões à Internet promovem exportações de produtos a preços mais altos em diversos setores de manufatura, principalmente eletrônicos. Além disso, um aumento na densidade de telecomunicações de 10% está associado a preços entre 2% e 4% mais elevados no setor eletrônico e a um aumento no comércio intra-indústria deste setor, entre 7% e 9%.

No Brasil, de acordo com a Telebrasil e Teleco (2016), somente em 2015, o setor de telecomunicações movimentou R$ 232 bilhões, ou 4% do PIB nacional, além de ter sido responsável por R$ 28,6 bilhões investidos no ano, o equivalente a 3% da Formação Bruta de Capital Fixo. Segundo estimativas da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (ABINEE), a indústria de bens de telecomunicação passou a ser, em 2016, a de maior faturamento no setor da indústria eletroeletrônica.

Em comparação com outros países, o Brasil obteve a quinta maior receita mundial de telecomunicações no varejo em 2015, segundo a Ofcom (reguladora de comunicações do Reino Unido). O país está entre os 10 com maior número de linhas de telefones celulares ativas no mundo, sendo a maior parte delas pré-pagas, ou seja, das mais baratas para o consumidor. Em 2015, de acordo com a Anatel, existiam 125 celulares ativos para cada 100 brasileiros, isto é, mais de uma linha para cada pessoa. Esses dados evidenciam a importância das comunicações na vida da população brasileira, que parece priorizar a compra de serviços de telecomunicações, em detrimento de outros gastos.

Tal prioridade é observável em todas as regiões do País, para ambos os sexos e em todas as classes sociais. Ademais, o desenvolvimento das comunicações móveis tem colaborado com a inclusão social e democratização do acesso aos serviços digitais (OCDE, p.36) na medida em que o acesso à Internet realizado exclusivamente por meio do celular é mais frequente entre a população de baixa renda e entre os usuários residentes nas regiões cuja infraestrutura de internet fixa é mais precária, como no Nordeste, Norte e nas zonas rurais, tal como apontado no estudo TIC Domicílos 2015, do Comitê Gestor da Internet (CGI).

Está clara a contribuição do setor de telecomunicações para o PIB, investimentos, inclusão social e bem-estar da população, que só tende a aumentar, considerando a evolução do setor e as preferências do consumidor. Portanto, políticas que incentivem a ampliação do acesso à internet e o desenvolvimento do setor são cruciais para o crescimento sustentado, e o aprimoramento do setor por meio de políticas de organização, fomento e adaptação às características nacionais pode ser uma eficaz estratégia de catch-up.

Débora Albuquerque é economista e mestranda em telecomunicações e redes de comunicação de dados pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em economia e finanças, exerce a profissão no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC)

 

A contradição entre o discurso protecionista e a ascensão da economia digital

A teoria normativa da política comercial sugere que as barreiras ao comércio internacional devem ser idealmente inexistentes. Conceitos-chave, como o modelo ricardiano de vantagens comparativas e o modelo Heckscher-Ohlin da dotação relativa dos fatores de produção, defendem que a ausência dessas barreiras evita distorções e permite alocação de fatores produtivos da maneira mais eficiente possível. Em conformidade com esses preceitos, as principais economias do mundo optaram pela gradual redução de tarifas internacionais nas rodadas de negociação do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), posteriormente substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Essa redução de tarifas foi um dos fatores que contribuiu para intensificar a globalização econômica, expandir a atividade industrial para novas fronteiras geográficas e, consequentemente, fragmentar as cadeias produtivas e dinamizar a economia mundial. Durante seis décadas, entre 1945 e 2005, o intercâmbio global de bens e o fluxo de investimentos estrangeiros cresceu de forma espetacular, a taxas superiores ao crescimento das economias, e favoreceu a retirada de milhões de pessoas da pobreza.

Com o desencadeamento da crise dos subprimes, em 2008, esse crescimento do fluxo de bens, no entanto, foi interrompido. Conforme estimativas da OMC, o comércio mundial apenas cresceu 1,7% em 2016, inferior à expansão econômica global (2,2%), e o quinto ano seguido em que o fluxo de bens cresceu abaixo de 3%. Como agravante, o plebiscito a favor do “Brexit”, a recente retirada dos Estados Unidos da Parceria Transpacífico (TPP) por decreto presidencial e as ameaças de políticas protecionistas pelo presidente Donald Trump sugerem crescente hostilidade à globalização e o fim do paradigma de produção fragmentada em cadeias globais de valor. Embora esses prenúncios pareçam bastante desalentadores, é provável que a redução no dinamismo do comércio global apenas expresse parte das tendências e das alterações na economia global.

Enquanto o intercâmbio de bens entre os países vem perdendo vigor, diversas mudanças nos padrões de consumo têm aumentado a relevância do comércio de serviços e de produtos tecnológicos intensivos em serviços, que requerem fatores como softwares, design, marcas para agregarem valor, a exemplo de smartphones. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essas transformações significam que, por valor adicionado, os serviços já representam mais de 50% do comércio, com tendência crescente na próxima década. Essa provável maior importância dos serviços deve ser reforçada pela ascensão da economia digital, que está criando oportunidades para novos modelos de negócios.

Segundo um estudo da consultoria McKinsey, entre 2005 e 2014 o fluxo global de dados cresceu 45 vezes. Com a expansão da infraestrutura de conectividade e do modelo de código aberto de software, além de menores custos de computadores e de tecnologias relacionadas, esse fluxo deve aumentar em mais nove vezes até 2021.

Fontes: TeleGeography, Global Bandwidth Forecast Service, McKinsey Global Institute analysis

Embora esse acelerado crescimento do fluxo de dados tenha suscitado preocupações em relação ao risco de “protecionismo digital”, o controle do fluxo global de dados e do intercâmbio de serviços pela economia digital é mais difícil de ser implementado. Diferentemente do caso das teorias clássicas de comércio e das propostas de taxação de importações de bens e componentes, o estabelecimento de impedimentos ao comércio digital, inclusive de medidas de censura e de regulamentação dos direitos de privacidade, é uma questão bem mais complexa. Visto que dados podem ser gerados, armazenados e acessados em qualquer lugar, políticas de protecionismo que empregam uma visão fundamentada em termos de território e fronteira nacional, como as barreiras econômicas sugeridas pela administração Trump, tendem a ser menos eficazes.

São justamente as tendências da economia digital e as considerações no que se refere ao protecionismo que levaram 12 países do Pacífico a negociarem novas normas de comércio de serviços e padrões para o fluxo internacional de dados com vistas a alcançarem vantagens competitivas. Apesar de os Estados Unidos, surpreendentemente, terem renunciado à possibilidade de cimentarem seu domínio mundial na economia digital, os demais Estados-parte parecem ter reconhecido a oportunidade de seguir adiante com a TPP. Uma possível continuidade do TPP permitirá que economias dependentes de exportações, como o Japão e a Austrália, dinamizem seu comércio em um momento em que o intercâmbio de bens apresenta seu pior desempenho em décadas. Também proporcionará a opção de que outros países da região, a exemplo da China e da Coreia do Sul, se juntem ao acordo e de que os Estados Unidos, eventualmente, voltem a ser parte do acordo.

Daniel Köhler Leite é bacharelado em Economia na Universidade de Munique, mestrando em Economia na UnB e secretário executivo do Gabinete da Embaixada dos Emirados Árabes Unidos em Brasília.

Inovações tecnológicas e competição no setor bancário

Quando o banco concede um empréstimo, ele faz a seleção de clientes, canaliza recursos dos investidores para os clientes com melhor relação risco-retorno e, depois, os monitora. Os bancos são mais eficientes na seleção e monitoramento de clientes pela economia de escopo conferida por um relacionamento bancário. Uma única análise de crédito subsidia o oferecimento de diversos produtos, diluindo seus custos, e o próprio relacionamento torna mais barata a análise de crédito, pois gera, praticamente sem custos, informações úteis como o histórico de pagamentos e de uso de linhas de crédito.

No entanto, o custo de construção de um relacionamento bancário é afundado. Afinal, pela natureza das informações, sigilosas ou não-verificáveis, o banco não consegue ofertar um relacionamento com um cliente, mesmo que seus concorrentes se dispusessem a comprar e eles não o fariam. É um resultado clássico que se o preço refletir incertezas do comprador sobre a qualidade da mercadoria, o vendedor tem incentivo a vender as mercadorias da pior qualidade, levando o mercado a um equilíbrio em que só há mercado para as piores, mecanismo conhecido como seleção adversa.

Custos afundados são uma barreira à entrada e suavizam a competição. Um entrante potencial precisa de lucros no mínimo suficientes para cobrir os custos afundados – única forma de recuperá-los. Assim, quanto maior for o volume desses custos, maior o risco do entrante. Consequentemente, um mercado cujo acesso traz custos afundados é menos ameaçado por entrantes potenciais. No caso dos bancos, o custo afundado de construção de relacionamentos tem ainda um outro papel deletério ao spread.

Bancos criam liquidez, transformando ativos ilíquidos em instrumentos financeiros de maior liquidez. Naturalmente, para que se crie liquidez e que se cobre pelo serviço é necessário que o ativo não tenha liquidez originalmente. O ativo em questão são os empréstimos originados pelo banco e a iliquidez dos seus mercados secundários é causada pelo fato que o banco que os originou tem mais conhecimento sobre eles que os potenciais compradores. Outra vez, um mecanismo de seleção adversa entra em ação e o mercado perde liquidez, exigindo grandes descontos do vendedor.

Inovações tecnológicas têm o potencial de mitigar a seleção adversa e, portanto, intensificar a competição no setor bancário. Nesse sentido, cabe especular o potencial de uma análise de crédito que incorpore informações como o perfil nas redes sociais e o histórico de movimentação conforme dado pelo GPS do smartphone e gere um rating através de algoritmo desenvolvido com milhões de observações. É natural conjecturar que o gerente de relacionamento médio não teria vantagem frente a uma decisão automatizada, além de implicar em um custo maior ao longo do tempo.

Mesmo sem um serviço de análise de crédito tão abrangente, já é possível construir modelos competitivos de intermediação financeira menos dependentes de relacionamentos e, portanto, com menos custos afundados e menos barreiras à entrada. A proliferação de plataformas de distribuição é um exemplo. Hoje é possível aos bancos pequenos e médios captar recursos no varejo, mesmo sem qualquer outro tipo de relacionamento com o investidor. Da mesma forma, é possível investir em fundos lastreados em operações de crédito ou ainda conceder crédito diretamente em plataformas ditas peer-to-peer.

O relacionamento pode ser substituído por um rating. Afinal, parafraseando um esquete popular na crise, o banco regional alemão não compraria um derivativo de crédito vinculado ao mercado imobiliário americano se este não fosse endossado por um rating grau de investimento. A cobertura das agências de rating, por sua vez, depende do custo de se obter informações, que caiu enormemente graças à tecnologia. Os três maiores birôs de crédito nos EUA possuem mais de um bilhão de registros cada um, número difícil de se imaginar sem os avanços da informática.

Com mais informações, o mercado secundário de empréstimos fica mais líquido, o que diminui o spread bancário por dois canais. Parte do spread é a remuneração do banco pelo risco de liquidez que o cliente lhe transfere. Sendo o risco menor, menor o spread. Além disso, há o “efeito Tostines”: o mercado é líquido porque tem mais participantes ou tem mais participantes porque é líquido? Em outras palavras, a liquidez do mercado o torna atraente a uma gama maior de participantes, pressionando o spread via maior competição. O gráfico abaixo mostra como há uma relação negativa entre o percentual de ativos de instituições financeiras não bancárias como percentual do PIB e o spread bancário.

Para impulsionar essa dinâmica, políticas públicas podem ser vislumbradas em duas dimensões: desobstruindo o fluxo de informações para birôs de crédito, como foi feito com o cadastro positivo, e modulando a regulação, de modo que haja uma “caixa de areia” regulatória, na qual novos entrantes possam testar novos modelos de negócio em pequena escala antes de incorrerem integralmente nos custos de observância, que são necessários, mas afundados. Em relação a esse último ponto, medidas que imprimam segmentação e proporcionalidade ao arcabouço regulatório são muito bem-vindas.

Caio Praes é doutorando em economia pela Universidade de Brasília — UnB.

Globalização Financeira e Überfremdung – O que a história pode nos contar?

Situada entre meados do século XIX e a Primeira Guerra Mundial, a primeira era da globalização financeira foi marcada por um crescimento sem precedente dos fluxos internacionais de capital. À época, os escassos controles sobre a entrada de capital estrangeiro eram exercidos com a finalidade de limitar a influência estrangeira sobre empresas e setores relevantes da economia de maneira a evitar submissão aos países exportadores de capital. Por exemplo, em 1909, a Alemanha estabeleceu limites ao controle das minas de carvão por estrangeiros.

O reestabelecimento dos fluxos de capital após a Primeira Guerra Mundial levou o mesmo país a cunhar o termo überfremdung, que significa “superestrangeirização”, para traduzir as preocupações sobre uma entrada excessiva de capital estrangeiro na década de 1920. Essas preocupações se solidificariam com a crise alemã do início dos anos 1930 e o seu alastramento ao continente europeu, relegando os fluxos de capital ao papel de desestabilizadores econômicos. O que sucedeu, nos países avançados, foi uma escalada de controles de capital (e protecionismo comercial) que só começaria a ser substancialmente revertida na década de 1970.

O abandono do padrão dólar-ouro, a crescente internacionalização da atividade comercial, o desejo europeu de integração regional e o advento de teorias econômicas liberais contribuíram para que os controles de capital nas economias avançadas fossem retirados gradualmente. No começo da década de 2000, tornaram-se basicamente inexistentes, assim como na primeira era da globalização financeira. Da mesma maneira, os membros da OCDE retiraram a maioria das restrições ao investimento estrangeiro direto (IED), uma forma específica de controle de capital. A überfremdung se perderia do domínio da linguagem econômica para adquirir significado em outras temáticas, como imigração e xenofobia. Entretanto, desdobramentos recentes apontam que a expressão alemã poderá renascer no contexto da globalização financeira.

Lançado em 2015, o plano decenal Made in China 2025 procura subir um degrau e colocar o país na vanguarda da Indústria 4.0. Em 2016, as aquisições de empresas estrangeiras, um dos instrumentos para atingir o objetivo chinês, somaram aproximadamente US$56 bilhões na União Europeia e nos Estados Unidos e estão sofrendo crescente resistência política nessas economias. Um caso emblemático é a compra da produtora de chips alemã Aixtron pela chinesa Fujian, que recebeu o veto presidencial americano no mês passado – o terceiro na história do país –, alegadamente por questões de segurança nacional.

Historicamente, restrições ao IED se concentraram em setores ligados à segurança nacional e geralmente oligopolizados, como transporte e energia. Entretanto, assegurar a integridade nacional pode, aparentemente, se tornar indissociável de impedir a estrangeirização de ativos em setores estratégicos da economia. A transferência de nacionalidade do ativo é ainda mais dificultada se a natureza da cooperação econômica externa do país investidor estiver em cheque. Sendo o carvão insumo essencial para o desenvolvimento da indústria alemã no começo do século XX, entende-se, assim, a imposição pelo país de limites ao controle de suas minas por estrangeiros. Ademais, a medida visava conter a influência da então rival política e econômica, a França.

O carvão não possui hoje o mesmo papel na geração de riqueza que tinha um século atrás: o combustível de uma economia avançada passou a ser a combinação virtuosa entre indústria e serviços, fornecendo produtos especializados, de alto valor agregado. O desafio para a transição econômica chinesa não reside, portanto, apenas em balancear a economia a favor do consumo, mas, também, em alterar a estrutura econômica para elevar a densidade industrial e fortalecer a geração de serviços de valor. Se, por um lado, a aquisição de empresas estrangeiras de alta tecnologia é considerada fundamental à transição chinesa, por outro, pode afetar a estrutura econômica e arriscar a competitividade de alguns países avançados, suscitando questionamentos quanto à conveniência da operação.

A alegada concorrência desleal chinesa, haja vista o forte envolvimento estatal na política industrial e a assimetria na abertura ao IED, fortalece ainda mais a argumentação a favor de restrições às aquisições estrangeiras, que vem ganhando ímpeto no alto escalão político das economias avançadas. O ministro da economia alemão, Sigmar Gabriel, e a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, se declararam favoráveis à reintrodução de controles de capital ao se defrontarem com um arcabouço regulatório que, após décadas de liberalização financeira, dificulta exercer escrutínio sobre a aquisição de empresas por estrangeiros. Entretanto, os recentes desdobramentos permitem apenas conjecturar se o veto de Barack Obama marcará o ressurgimento dos controles ao investimento estrangeiro.

A intensificação da integração internacional econômica nas últimas cinco décadas, que tem como um dos pilares a liberalização das transações financeiras, é apontada como uma das razões para o recente fortalecimento do próprio sentimento antiglobalização. O apoio popular ao protecionismo nos países avançados já foi internalizado nas campanhas políticas e poderá ser institucionalizado futuramente. Ainda que cautelosamente, é inevitável comparar o atual momento à Grande Depressão, cujo desfecho impediu a manutenção da ordem financeira internacional liberal precedente. Somando-se ao contexto atual o inerente embate entre as economias avançadas e a China, fica a interrogação: estaria a überfremdung lentamente retornando à linguagem econômica?

Renan Abrantes de Sousa é mestrando em Economia na UnB e analista no Banco Central do Brasil.

O Fim do TPP?

O Presidente Trump cumpriu promessa de campanha e uma das suas primeiras medidas foi a retirada dos Estados Unidos daquele que é amplamente visto como o mais ambicioso e abrangente acordo comercial jamais desenhado, o Trans-Pacific Partnership (TPP). O principal argumento utilizado pela nova administração é o de que o TPP seria prejudicial para os trabalhadores americanos, notadamente os da manufatura.

Figura – Mapa de países que estariam no TPP

Mapa retirado de China-US Trade Law

A decisão é surpreendente porque as mudanças propostas pelo TPP, sob liderança americana, nos parâmetros que governam o comércio e o investimento seriam imensas, uma espécie de “game-changer“, o que levou muitos analistas a concluírem que o acordo inauguraria uma nova geração nas relações econômicas entre os países. De fato, o impacto potencial do acordo seria de tal monta que levou o Presidente Obama a dizer que “the TPP means America will write the rules of the road in the twenty-first century”.

A surpresa é ainda maior em razão de que os temas que mais profundamente seriam afetados pelo TPP são serviços, propriedade intelectual e economia digital, áreas que os Estados Unidos são supercompetitivos e, portanto, as que mais proporcionariam ganhos para o país, inclusive na forma de criação de muitos empregos.

Os principais exercícios econométricos sugerem que os ganhos comerciais do TPP para os Estados Unidos seriam modestos, o que pode ter contribuído para reduzir apoio ao acordo. No entanto, essas estimações não levam em conta benefícios diretos e indiretos de mais difícil mensuração, como aqueles proporcionados pela convergência regulatória e de padrões, novos mecanismos de soluções de controvérsias e economia digital, nem tampouco consideram os serviços “embarcados” nos bens. Por isto, parece bastante razoável considerar que os cálculos dos benefícios do TPP para os Estados Unidos estariam largamente subestimados.

O argumento de que o fim do TPP poderá redirecionar investimentos e criar empregos na manufatura americana é questionável. Há crescente consenso de que a expansão significativa de empregos na manufatura é objetivo pouco plausível nos dias de hoje, sobretudo para países em estágios avançados de desenvolvimento econômico e tecnológico. Isto se deve às novas tecnologias de produção e de organização da produção que são, por natureza, cada vez mais poupadoras de mão de obra. A popularização dos robôs e a internet das coisas são somente a ponta deste iceberg.

A crescente importância dos serviços como insumos de produção, a relação cada vez mais sinergética e simbiótica entre bens e serviços para criar valor, as mudanças demográficas e as mudanças nas preferências dos consumidores em favor de serviços fortalecem a ideia de que a relevância desse setor para a geração de riquezas e empregos deverá aumentar ainda mais ao longo das próximas décadas.

A decisão de retirada do acordo também surpreende em razão do hercúleo esforço negociador feito pela administração anterior para concluir e ratificar o TPP, naquela que seria uma das maiores realizações do Presidente Obama na área econômica e, certamente, a sua maior realização na área do comércio e dos investimentos.

Por fim, a mudança de planos também surpreende em razão de seus potenciais efeitos associados à China.  Países do TPP já estão até considerando outros arranjos de acordos regionais em detrimento dos interesses geopolíticos e econômicos dos Estados Unidos no Pacífico.

Se o acordo seria tão potencialmente benéfico para os Estados Unidos, como, então, explicar a sua retirada do TPP? O principal suspeito são insatisfações setoriais a itens específicos do TPP. Dentre os mais conhecidos estão a indústria farmacêutica, que se revoltou contra o período negociado de proteção intelectual para drogas biológicas, e a indústria do tabaco, que se revoltou contra a não inclusão do setor no mecanismo de solução de controvérsias em eventuais disputas entre a indústria e Estados soberanos. O significativo poder de lobby daqueles setores teria levado congressistas a reduzirem apoio ao acordo.

Será o fim do TPP? É muito improvável. O mais provável é que a arquitetura básica do acordo seja preservada e, eventualmente, ajustada para refletir as demandas setoriais americanas, servindo então como ponto de partida para novas negociações comerciais bilaterais e até regionais.

É difícil imaginar que um acordo que praticamente sedimentaria a liderança americana em nível global nas áreas que mais crescem e que mais influências terão no século XXI seja abandonado. O que provavelmente veremos é um TPP “repaginado” e, talvez, ainda mais alinhado com os interesses americanos.

Nota: as opiniões aqui expostas não necessariamente representam as visões das instituições às quais o autor está ligado.

Acordos de comércio de serviços de fato liberalizam o mercado?

A importância crescente do setor de serviços na participação do PIB e na criação de emprego é uma das grandes tendências da economia mundial. Não surpreendentemente, acordos comerciais de serviços também têm ganhado um aumento expressivo de importância e interesse por parte dos países. Esses acordos buscam a expansão do comércio de serviços e do desenvolvimento econômico por meio da progressiva liberalização comercial. No entanto, uma questão que a princípio parece tautológica, permeia toda essa discussão: os acordos comerciais de serviços de fato promovem a liberalização do mercado de serviços?

O GATS, criado em 1995 durante a Rodada Uruguai, estabeleceu muitas bases sobre as quais hoje são negociados os acordos internacionais de comércio de serviços: a classificação em 4 modos de prestação; o reconhecimento de 12 categorias de setores e 155 subsetores; e as cláusulas de não discriminação: tratamento nacional[1] e acesso a mercados[2]. As negociações do GATS tiveram êxito no estabelecimento da estrutura e dos princípios do Acordo.

Diante da paralisação da Rodada Doha, os países, em especial os desenvolvidos, têm aumentado o nível de importância de acordos regionais em suas políticas comerciais. De acordo com a OMC, em 2011 já haviam sido notificados 87 acordos regionais com compromissos em serviços. Ademais, há os que ainda não estão em vigor, dentre os quais merecem destaque o TPP (que ontem teve sua continuidade posta em dúvida, por conta de decisão dos EUA de sair das negociações), a Aliança do Pacífico e o TiSA.

Alguns trabalhos acadêmicos têm sido feitos com o intuito de analisar se houve liberalização de mercado nas negociações do GATS e de acordos regionais/preferenciais de serviços. Hoekman (1996) fez um esforço empírico e calculou índices que representariam a liberalização de fato de países da União Europeia no GATS. A sua conclusão foi de que a Rodada Uruguai não entregou nenhuma liberalização do setor de serviços[3], apesar de ter gerado algum benefício associado ao travamento das condições de acesso a mercado.

Com relação aos acordos regionais/preferenciais, Sauvé e Shingal (2011) e Mattoo e Sauvé (2010) chegam a conclusões similares: ao invés da entrega de liberalização do setor de serviços, o benefício gerado por esses acordos decorre principalmente do travamento do marco regulatório existente no país. O que de fato os acordos regionais/preferenciais têm logrado em atingir além do GATS é uma consolidação mais atualizada do marco regulatório dos países, decorrente de recentes reformas unilaterais promovidas.

Dada a importância do setor de serviços, por que os acordos comerciais, tanto o GATS quanto os acordos regionais/preferenciais, falham em entregar a liberalização de mercado a que se propõem? A explicação reside em uma característica intrínseca dos serviços: enquanto na negociação de acordos de comércio de bens a moeda de troca são tarifas de importação, em negociações de acordos de comércio de serviços a moeda de troca é a regulação doméstica.

Não obstante, muitos economistas acreditam que acordos de serviços liberalizam o mercado de serviços. Argumentam que, ao ficar de fora dessa nova grande rede de acordos regionais/preferenciais de liberalização do setor de serviços, o Brasil estaria perdendo um grande potencial de inserção no comércio internacional. Na teoria, esse argumento parece fazer sentido: assim como é possível estabelecer diferentes alíquotas do imposto de importação para produtos de origens distintas, por que não seria possível também estabelecer diferentes exigências com relação a prestadores de serviços de acordo com sua origem?

No entanto, quando se pensa na aplicabilidade prática desse argumento, percebe-se como seria difícil (ou até mesmo impraticável) a liberalização do mercado de serviços para apenas algumas origens. Para discriminar prestadores de serviços conforme a origem, seria necessário fazê-lo em sua regulamentação nacional. Tomemos como exemplo a participação de capital estrangeiro em companhias aéreas, hoje em no máximo 20% no Brasil, estabelecido por Lei Ordinária nº 7.565, de 1986. Um eventual compromisso de liberalização do setor aéreo brasileiro em acordo preferencial de serviços exigiria modificação do texto dessa Lei Ordinária. E esse seria apenas um dos muitos compromissos feitos pelo Brasil no acordo. Imaginemos quantos mais compromissos seriam feitos e que gerariam necessidade de alteração da legislação nacional, algumas restrições ainda mais difíceis de mudar, como as constitucionais de propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora (artigo 222 da CF) e de participação de empresas de capital estrangeiro na assistência à saúde (artigo 199 da CF).

A partir do argumento acima se percebe a dificuldade em se liberalizar o mercado de serviços a partir de acordos comerciais, em especial bilaterais/preferenciais. É nesse sentido que a maior parte dos países que fizeram importantes liberalizações no seu setor de serviços o fizeram unilateralmente[4].

Contudo, se por um lado acordos de serviços não liberalizam o mercado de serviços, por outro lado há importantes benefícios que decorrem da negociação desses acordos. Três benefícios imediatos decorrem da assinatura de um acordo de serviços.

O primeiro é o travamento (lock-in) do marco regulatório daquele país. Isto quer dizer que, a partir do momento da assinatura do acordo, aquele país não poderá adotar medidas mais discriminatórias com prestadores de serviços estrangeiros do que aquelas já existentes e inscritas em suas listas. O segundo é o ganho de transparência e segurança jurídica que decorre da adoção de listas negativas. A consolidação do marco regulatório dos países em uma lista padronizada em muito facilita a vida de prestadores de serviços e investidores estrangeiros. Um terceiro benefício que decorre da negociação de um acordo de serviços advém da adoção de um “marco geral”, que estabelece padrões internacionais de conduta para os participantes, além de servir como um “guarda-chuva” para potenciais acordos posteriores de cooperação, facilitação, reconhecimento mútuo, etc.

O Brasil, por exemplo, atualmente ainda negocia acordos de serviços em listas positivas. Um importante próximo passo seria a adoção de listas negativas para negociação, visto que essas são dotadas de maior transparência e segurança jurídica. Ademais, a elaboração da lista negativa brasileira seria uma boa oportunidade para o governo, em contato com seus órgãos reguladores e setor privado, rever todo o seu marco regulatório doméstico, podendo identificar possíveis oportunidades e pontos para liberalização unilateral. Afinal, por que não negociar?

 

*Este post é baseado em texto da mesma autora, publicado no site Brasil, Economia e Governo, que pode ser acessado aqui.

Daniela Ferreira de Matos é Mestre em Economia pela Unb e Analista de Comércio Exterior no Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).

Referências

Francois, Joseph, and Bernard Hoekman. “Services trade and policy.” Journal of Economic Literature 48.3 (2010): 642-692.

Hoekman, Bernard. “Assessing the general agreement on trade in services.” The Uruguay Round and the developing countries 996.1 (1996): 89-90.

Mattoo, Aaditya and Pierre Sauvé. “The Preferential Liberalization of Services Trade”, NCCR Working Paper No 2010/13 (May), Bern: World Trade Institute. (2010), http://www.nccr-trade.org/publication/the-preferential-liberalization-of-services-trade-lessons-from-practice/

Sauvé, Pierre and Shingal Anirudh. “Reflections on the Preferential Liberalization of Services Trade”. World Trade Institute. (2011), https://mpra.ub.uni-muenchen.de/32816/

[1] Tratamento nacional: um compromisso em tratamento nacional implica que um membro não pode adotar medidas discriminatórias que beneficiem prestadores de serviços domésticos frente aos estrangeiros.

[2] Acesso a mercados: o compromisso de acesso a mercados está relacionado a um compromisso de não criar certos tipos de medidas que dificultem ou impeçam o acesso de um prestador de serviço estrangeiro ao mercado doméstico. Os tipos de medidas que os países se comprometem a não adotar estão listadas no inciso 2 do Artigo XVI do GATS.

[3] Aqui é importante deixar clara a exceção de países que aderiram tardiamente a OMC (latecomers). Esses países tiveram que assumir compromissos determinados pelos países integrantes, de maneira que de fato fizeram compromissos de liberalização.

[4] Uma importante exceção à essa regra é a Costa Rica, que aproveitou a assinatura de acordo comercial de serviços para comover o seu congresso e implementar importantes iniciativas liberalizantes no setor de serviços. Maiores detalhes desse caso podem ficar para um próximo post.

A visão vintage do nosso tempo

O pensamento humano precisa criar padrões, classificações, definições e caracterizações. É a forma que encontramos para entender o mundo ao nosso redor. A ciência da economia não é diferente e também estabeleceu sua própria esquadria para tratar seu objeto de análise. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a ONU liderou a construção do Sistema de Contas Nacionais (SCN) para mensurar o valor agregado das economias. Naquele momento, as divisões setoriais bem demarcadas entre setores primário, secundário, terciário e suas subdivisões eram inovadoras.

Os economistas tinham um sistema de registro que enquadrava empresas em setores e técnicas de análise – como a matriz insumo-produto – que rastreavam insumos e produtos finais que fluíam de uma empresa a outra, de um setor a outro. Naquela época, o SCN foi pensado para dar conta das necessidades… daquela época. As maiores economias do mundo eram industriais e a noção de que indústrias adquirem insumos (físicos e intangíveis) de outras empresas e os processam em produtos finais era bem aderente à realidade. O conceito de valor adicionado caiu como uma luva nessa forma de enxergar a realidade: valor adicionado = produção bruta – insumos. Simples: daquilo que eu produzo, subtraio o que “gastei” e restará aquilo que adicionei.

Daquele momento em diante a economia evoluiu para longe desse modelo, pelo menos nas economias mais avançadas e, sobretudo, nos EUA. A sofisticação industrial e tecnológica das últimas décadas abriu um mundo de atividades econômicas que se encarregaram da provisão de soluções de mercado que já não cabiam dentro de uma unidade empresarial e, até mesmo, de uma classificação setorial. Os serviços ganharam importância e o SCN recebeu vários “puxadinhos” ao longo do tempo para acomodar uma onda de novas atividades produtivas impossíveis de serem previstas no nascedouro do SCN. Esses improvisos conceituais (ainda que de alta complexidade) permaneceram com a mesma estrutura lógica de rigidez setorial e a pesquisa econômica passou a fotografar o novo mundo com câmeras antigas. Criamos a visão vintage do nosso próprio tempo.

A fluidez da atividade econômica nos tempos de hoje já não conhece a distinção de bens e serviços, seja na ideia de serviços inseridos em bens – smartphones e carros autônomos os melhores exemplos – seja na ideia de business services que permeiam o tecido industrial com soluções de todo tipo – customização em massa, por exemplo.

Os serviços não ganharam importância frente à indústria, mas com a indústria e por causa da indústria, pois os desafios tecnológicos cada vez mais parecidos com ficção científica já não podiam ser resolvidos pela Gerência de P&D da Indústria Ltda. Centros de P&D das grandes corporações industriais tornaram-se operadores econômicos em redes de criação de tecnologias e foram bem-sucedidos em encontrar soluções onde menos se poderia imaginar, se a imaginação se valesse de conceitos antigos.

O fato preocupante é que o crescente anacronismo entre a economia real e sua forma de registro estatístico pode ter levado a pesquisa econômica a interpretar um novo mundo com premissas do passado. O não entendimento dos novos conceitos de produção e da crescente interdependência entre diversas atividades produtivas estabeleceu um debate que contrapôs serviços e indústria equivocadamente. A crescente importância do setor de serviços está associada à sofisticação industrial e não à sua falência.

O antigo é sempre charmoso, mas seu lugar é no passado. O SCN está muito evoluído e intensamente refinado, conferindo um charmoso rigor metodológico ao registro da atividade econômica. Entretanto, pode não ser o sistema ideal para os novos tempos. Precisamos de novas lentes para enxergar o novo mundo. É necessário repensar a estrutura lógica de registro da atividade produtiva a partir de rotas tecnológicas e simbioses produtivas que não se enquadram em limites setoriais.

Rafael Leão é Mestre em Economia pela UnB e integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atualmente está como Coordenador de Informações e Estudos Estratégicos no MDIC.
« Older posts Newer posts »