Economia de Serviços

um espaço para debate

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O ensejo protecionista de Trump e o futuro do emprego nos EUA

Em seu governo, Trump mantém um discurso carregado de práticas protecionistas em relação ao comércio internacional, em conformidade com sua campanha presidencial. Muitas de suas ações vão no sentido de desmontar o legado de seu antecessor e, mais do que isso, desafiam fenômenos marcantes da economia global das últimas décadas, como a globalização, a interdependência e até o curso das revoluções tecnológicas e digitais. Dentre esses atos, estão a retirada dos Estados Unidos do Acordo Trans-Pacífico (TPP), as críticas direcionadas ao NAFTA e certa coerção a grandes montadoras para que mantenham as suas plantas industriais nos EUA.

A principal justificativa de Trump para tais atos e para os vários outros que poderão vir – cujas consequências para o mundo ainda são incertas – é a de aumento e/ou recuperação de empregos nos EUA, sobretudo para a classe média na produção do setor manufatureiro. Nos discursos do presidente, no entanto, há uma simplificação muito grande da complexidade da economia atual, em grande parte moldada pela globalização, tecnologia e serviços.

Em relação às tendências para o emprego, há grandes desafios críticos para a administração de Trump perante esse objetivo no médio prazo, sendo muitos deles ligados às transformações estruturais que tem ocorrido na economia norte-americana.

Apesar de não haver redução da produção manufatureira dos Estados Unidos, é mais do que evidente que nas últimas décadas houve um aumento da importância do setor de serviços em termos de agregação de valor “embarcados” no produto. Razões para isso não faltam, e destacam-se duas: primeira, o aumento de renda da população tende a aumentar a demanda por serviços de qualidade, como cuidados com a saúde; e, segundo,  a competitividade no setor manufatureiro demanda cada vez mais uma íntima relação com o setor de serviços, tornando-os, sob diversos aspectos, praticamente inseparáveis. Nesse sentido, serviços tais como pesquisa e desenvolvimento, engenharia de software, marketing e “health care”, por exemplo, tornam-se campos nos quais haveria maior perspectiva de geração de emprego, cuja oferta não supre a demanda.

A figura abaixo mostra a evolução dos principais setores em termos de emprego para cada estado americano em quatro tempos. Nota-se que pelo menos desde 1990, o setor manufatureiro foi perdendo constantemente participação relativa para o comércio de varejo. ‘Relativa’ também porque um setor não necessariamente cresce às custas de outro setor. A indústria manufatureira permaneceu como maior empregador em 2013 apenas em estados próximos da região “Rust Belt”, como Michigan, Iowa, Wisconsin, Indiana e Kentucky, e outros mais ao sul do país, como Alabama e Mississípi. Estes últimos são estados que não se destacam por dinamismo econômico e estão entre as mais baixas rendas per capita do país. Do outro lado, segundo o Bureau of Labor Statistics, em 2013, o setor de cuidados de saúde e assistência social era predominante em 34 estados, sendo que no moderno estado de Nova York é o setor predominante desde 1992.

Figura – Setores responsáveis pela maior parte do emprego por estado americano

A redução da participação relativa do setor manufatureiro é um marco da transição do sistema de riqueza industrial para a de economia do conhecimento. Em países de economia madura, dificilmente a produção manufatureira tradicional, de chão de fábrica, responderá de forma ascendente pela maior parte dos empregos. Países como a Alemanha – de alta participação do setor manufatureiro no PIB comparado a outros países desenvolvidos – têm reconhecido que, sem a incorporação de serviços de qualidade aos seus bens manufaturados (assim como sem a benesse do mercado europeu para as suas exportações), o país não conseguirá manter altos índices de competitividade na “Indústria 4.0”, ameaçando, assim, inclusive, os próprios ganhos salariais no setor de manufaturados.

De fato, o eleitor mediano de Trump não vem dos setores mais sofisticados voltados para serviços avançados e indústria de média/alta tecnologia, que são setores de alto desempenho na economia americana e mundial. Mas, com os novos modelos de negócios e revoluções tecnológicas, o hiato de salários entre os trabalhadores de alta e de baixa qualificação tende a aumentar, elevando ainda mais a preocupante desigualdade de renda. Seria mais razoável a utilização de recursos e esforços em um programa de requalificação de trabalhadores para reingressarem no mercado de trabalho com habilidades mais requeridas na economia moderna, mesmo que não seja efetivado na velocidade desejada.

O retorno aos EUA de etapas de processos produtivos que foram terceirizadas para o Leste Asiático na “fase de ouro” das cadeias globais de valor poderia ser feito pelas novas tecnologias de produção, reduzindo a fragmentação espacial da produção, e possibilitaria a produção fisicamente próxima do mercado consumidor. É incerto, no entanto, a velocidade com que esses processos se dariam, e se as normas e instituições internacionais contrarrupturas radicais poderiam adiar ou interromper tais mudanças.

Pode ser que o método da coerção realizado até aqui por Trump — discriminação contra produtos estrangeiros, privilégios tributários e investimentos em infraestrutura — traga de volta alguns empregos tradicionais para o solo americano sob o slogan “buy American, hire American”. Entretanto, é improvável que haverá geração significativa de empregos no setor manufatureiro, assim como é improvável que haverá prosperidade duradoura numa economia que se fecha.

Em algum momento, Trump terá que lidar de frente com o lado mais sofisticado e dinâmico da economia contemporânea, os serviços.

Jean Santos Lima é Doutorando em Relações Internacionais na UnB e se dedica ao estudo e pesquisa sobre Desenvolvimento Comparado, Globalização, e Política Internacional.

Os serviços em 2016

Saíram na última semana os dados do produto interno bruto (PIB) do Brasil de 2016. Os resultados são, sem exagero, catastróficos. A economia brasileira registrou queda de 3,6% no ano, ligeiramente menos pior do que em 2015, quando a variação foi de -3,8%. Em dois anos, o PIB do país encolheu em 7,3%, voltando aos níveis de 2010. Se levado em conta o PIB per capita, mais adequado para medir a riqueza de um país, o cenário é ainda mais preocupante: queda de 9% desde 2013 e volta aos níveis de 2009. Em palavras simples, nos últimos anos, a economia brasileira voltou quase uma década no tempo.

Esse cenário crítico ainda demonstra poucos sinais claros e consistentes de melhora. É provável, porém, que o pior já tenha passado. Como discutido continuamente no blog, o setor de serviços responde por mais de 70% da economia, pelo maior número de empregos formais, está fortemente presente nas cadeias produtivas e, em geral, não é comercializável para além de fronteiras (um serviço de cabeleireiro, por exemplo, não pode ser ofertado a distância). Por todos esses motivos, e pelo fato de seu consumo ser muito sensível à renda e ao desempenho da atividade econômica, os serviços são altamente pró-cíclicos: quando a economia como um todo vai bem, eles vão bem; quando vai mal, eles também vão mal. Logo, o resultado dos serviços nas contas nacionais de 2016 não poderia ser diferente: queda de 2,7% na sua produção, voltando a níveis de 2011.

Com a exceção honrosa das atividades imobiliárias, que apresentaram ligeiro crescimento de 0,2%, todos os demais segmentos do setor de serviços encolheram em 2016 (ver gráfico abaixo). Os segmentos de comércio e de transporte, armazenagem e correios foram os mais afetados pela crise no setor: queda na atividade de 6,3% e 7,1% cada, respectivamente. Mesmo com resultados tão negativos, o setor de serviços como um todo apresentou resultados um pouco melhores (ou menos piores) que os setores da agropecuária (-6,6%) e indústria (-3,8%).

Com as mudanças no perfil de consumo e os avanços tecnológicos em curso, está claro que o crescimento dos países no século XXI dependerá, em grande parte, da capacidade de se produzir bens e serviços com cada vez mais conhecimento e tecnologias “embarcados”. Para isso, é preciso desenvolver um setor de serviços qualificado e mais integrado às cadeias de produção, em especial naquelas nas quais o Brasil apresenta vantagens comparativas estáticas e dinâmicas já reveladas.

É preciso colocar essa agenda como prioridade, ou correremos o risco de seguirmos eternamente suscetíveis aos custosos “voos de galinha”.

Os serviços incluídos nos carros autônomos

Quem não gostaria de parar de procurar vagas de estacionamento? Ou até mesmo de parar de dirigir em um engarrafamento longo e exaustivo? Enquanto a maioria dos consumidores aguarda pela chegada dos carros autônomos, as montadoras estão buscando cada vez mais agradar os seus clientes, oferecendo mimos tecnológicos. Uma das novidades é o assistente para estacionamento (park assistance), que é um comando que permite que o automóvel estacione sozinho. No Brasil, o Ford Focus Titanium Plus e alguns carros importados já possuem essa tecnologia. O Smile drive permite a conexão entre o carro e as redes sociais. Ele se conecta ao carro via bluetooth podendo compartilhar os caminhos percorridos, fazer check-in, postar fotos, enviar áudios, postar um texto, entre outros.

No mundo da tecnologia, as inovações têm surgido cada vez mais rapidamente. No mercado de automóveis não é diferente. Com tantas mudanças, Governos têm que agir mais rápido para atualizar sua normas e regras. A Alemanha e a França, por exemplo, já anunciaram que pretendem utilizar rotas para testar carros autônomos. Alguns países, se quiserem fazer o mesmo, terão que adaptar suas regulamentações para poder utilizar esses carros.

Os carros autônomos são mais um exemplo de bens industriais com alta proporção de serviços incorporados na sua fabricação. Como já explorado aqui no blog, esses serviços podem ser classificados como serviços de custo (ajudam a reduzir custos de produção), ou de agregação de valor, a depender de sua função no processo produtivo. No caso dos serviços embutidos nos carros autônomos, estes são majoritariamente de agregação de valor, já que, o valor do bem final (carro) será maior quanto mais desses serviços forem integrados na sua fabricação.

As grandes empresas perceberam o novo padrão do consumidor, que busca adquirir mais serviços tecnológicos. Com isso, essas empresas estão investindo alto em carros que podem, de alguma forma, trafegar sozinhos. O Pilot Assist é um serviço mais próximo dos carros autônomos. Com essa tecnologia os carros podem dirigir sozinhos na estrada, mantendo a sua posição na faixa e uma distância segura entre os carros.

Recentemente, a Tesla anunciou o lançamento de um carro quase autônomo, que prevê acidentes na pista, medindo precisamente a distância entre os veículos e a sua velocidade, bem como os obstáculos à frente. De acordo com a empresa: “a total autonomia permitirá a qualquer Tesla ser substancialmente mais seguro do que um condutor humano, baixar o custo financeiro dos transportes para quem tem um carro e oferecer mobilidade on-demand de baixo custo para quem não tem”. À medida que as empresas investem na pesquisa de carros autônomos, esses carros ficam cada vez mais eficientes e precisam cada vez menos de humanos em seus testes.

Figura 1. Tecnologias de um carro autônomo

Fonte: Product Design and Development (PDD)

De acordo com Wei, Pissardini e Fonseca (2013), alguns benefícios esperados com a chegada dos carros autônomos são:

1 – Redução de acidentes – pois serão quase que completamente eliminados os fatores erro e emoção;

2 – Melhoria do trânsito – em decorrência da organização e disciplina para o tráfego, gerada pela automação;

3 – Melhoria no ambiente de direção – pois não será preciso depender do ofuscamento dos faróis gerados por carros na direção oposta, já que toda a informação estará contida no para-brisas do carro.

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) fabricaram, em 2013, o primeiro carro autônomo do Brasil, um Palio Weekend, que circulou cerca de 5,5km na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo. Esse mesmo grupo de pesquisa desenvolveu o primeiro caminhão autônomo da América Latina. Além da USP, pelo menos outras duas universidades brasileiras, a UFES, no Espírito Santo, e a UFMG, em Minas Gerais, têm projetos de pesquisa nessa área.

Porém, pelo seu custo elevado, esse tipo de pesquisa não é tão simples de se manter. O mercado automobilístico brasileiro tem reduzido a sua receita nos últimos anos, e, para além da crise, essa pode ser consequência de uma mudança no perfil do consumidor atual. Um estudo realizado pela Deloitte, em 2014, mostra que o consumidor brasileiro procura veículos com tecnologia voltada à segurança. Além da busca por segurança, os consumidores brasileiros parecem mais conscientes em relação ao alto custo de aquisição e manutenção de um automóvel. Essa é uma consequência da geração atual, que, muitas vezes, prefere abrir mão de adquirir um veículo para obter mais praticidade, trocando a necessidade de possuir um bem para simplesmente ter acesso a ele, por meio de serviços como o Uber.

Por conta desse processo, dificilmente a indústria automobilística venderá tantos de veículos como no passado. Mas certamente haverá mercado para carros autônomos, cada vez mais inteligentes, e com mais serviços embutidos. Nesse mercado promissor, empresas tradicionais do setor, como a Toyota, General Motors e outras já competem diretamente com empresas tradicionalmente de software e tecnologia, como Uber, Google e Baidu. Ainda não está certo qual dos dois grupos sairá vencedor, mas o consumidor certamente sairá beneficiado.

Boletim de Serviços – Março de 2017

O Boletim de Serviços de março de 2017 está disponível, clique aqui para acessá-lo. Alguns dos destaques:

  • A receita nominal do setor de serviços registrou contração de 1,43% em dezembro, na comparação anual, enquanto o volume de atividade contraiu 5,72%
  • A inflação de serviços atingiu 4,84% no acumulado em 12 meses
  • O primeiro mês de 2017 registrou o encerramento de 69 mil vagas de trabalho no setor de serviços
  • O déficit da balança de serviços foi de US$ 2,4 bilhões em janeiro
  • O IDE em serviços contabilizou crescimento de 353% na comparação anual

Para acessar a metodologia e as séries históricas em excel, acesse: https://economiadeservicos.com/boletim.

Chamada de trabalhos – VI Conferência REDLAS 2017, San José, Costa Rica

A Rede Latino-Americana e Caribenha de Pesquisa sobre Serviços (REDLAS) é uma comunidade de pesquisadores e especialistas ativamente envolvidos no estudo do comércio de serviços e a formulação de políticas públicas. Seus membros provêm de um amplo campo acadêmico: administração de empresas, economia, geografia, ciências políticas e sociologia. Em sua maioria, esses pesquisadores estão em universidades ou centros de estudos, enquanto outros trabalham em governos, organismos internacionais e no setor privado.

A REDLAS já organizou cinco conferências, que ocorreram no Brasil (2010), Chile (2012), México (2014), Uruguay (2015) e Brasil (2016). A REDLAS é uma associação com personalidade jurídica no Chile, e tem contado com o apoio da Associação Europeia de Estudos em Serviços (RESER).

A próxima conferência da REDLAS, com tema “Tendências e perspectivas para a produção e o comércio de serviços na América Latina e no Caribe”, ocorrerá em San José, na Costa Rica, nos dias 21 e 22 de setembro de 2017. A chamada de trabalhos (que devem ser escritos em inglês ou espanhol) já está aberta, e os resumos devem ser enviadas para revistaae@itcr.ac.cr até 15 de maio de 2017. Mais informações em http://conferenciaredlas2017.blogspot.com

Isso não é uma revolução

A história vive do drama. Não é incompreensível que muitos acreditem que a história da humanidade tenha sido escrita com sangue; afinal de contas, os eventos definidores desses milhares de anos sempre tiveram seus capítulos bélicos. Os momentos revolucionários, então, nem se fale. Esse conceito histórico de revolução sempre nos remete ao drama das rupturas entre o antigo e o novo, com a subversão dos valores, das crenças e seus significados.

A palavra revolução é muito forte e carregada de simbolismo, e definições de dicionário nem de perto dão conta da importância do seu correto emprego. Na verdade, os dicionários até estimulam seu uso vazio, associando o termo a revolta, transformação ou indignação. Não existe Indignação Francesa ou Revolução dos Farrapos. Também não existe Transformação Industrial.

Em economia, o termo revolução é pouco usado. Seu uso clássico está na expressão Revolução Industrial. Corretamente empregado, a meu ver, pois radicalizou a forma como o trabalho humano se posiciona no funcionamento da economia e conjugou com a Revolução Francesa uma subversão completa das estruturas sociais, políticas, econômicas e morais de um mundo rural e agrícola para outro industrial e urbano. Tudo mudou depois da Revolução Industrial. O uso do termo em desdobramentos posteriores é incorreto; a segunda e a terceira revoluções industriais foram períodos relevantes, mas inseridos numa onda revolucionária do capitalismo. Ávidos em nos enxergar em um momento crucial e dramático da história humana, muitos acreditam viver uma revolução industrial, com o setor de serviços solapando a importância do setor industrial. Devagar com o andor…

Os fatores que conduziram a humanidade do mundo rural e agrícola para o mundo urbano e industrial foram revolucionários. A indústria não evoluiu da agricultura; um conjunto mínimo de inovações radicais (a máquina a vapor o seu maior emblema) para facilitar a extração de carvão mineral surgiu apesar de qualquer dinâmica produtiva no campo – ainda que o campo tenha se valido desses avanços décadas a frente. Não é esse o caso da “transição” do mundo industrial para o mundo atual (se é que podemos falar nisso); o mundo dos serviços está se tornando cada vez mais proeminente pela inédita sofisticação produtiva (relativamente ao seu próprio tempo, obviamente) do mundo industrial.

Kuznets, economista russo radicado nos EUA e ganhador do Nobel de Economia em 1971, em sua contribuição seminal para o debate do desenvolvimento econômico e mudanças estruturais, mostrou os conflitos sociais distributivos – de renda, de poder, de prestígio – advindos da ascensão e queda de estruturas produtivas. Kuznets afirma que:

“O crescimento econômico, por sua vez, provoca um declínio na posição relativa de um grupo após outro – de agricultores, de pequenos produtores, de proprietários de terras – uma mudança que não é facilmente aceita e, de fato, como a história nos ensina, muitas vezes resistida. A modificação contínua da posição relativa preexistente dos vários grupos econômicos traz em si a semente do conflito – apesar dos aumentos na renda absoluta de todos os grupos. Em alguns casos, esses conflitos descambaram para a guerra civil…” (Kuznets, 1973, p. 252)

A Guerra Civil Americana, a Revolução Francesa, e tantos outros eventos marcantes da era moderna estiveram, de fato, associados a essas rupturas estruturais da economia; ainda é cedo para conclusões, mas essa não parece ser a situação do momento atual. A preocupação com o aparente desprestígio do setor industrial em nada se assemelha aos conflitos apontados por Kuznets. Essa preocupação é mais bem explicada pela incompreensão da natureza evolutiva que o setor de serviços tem a partir do setor industrial do que por um conflito entre classes capitalistas antagônicas. Supostos defensores da indústria e supostos defensores dos serviços estão presos à falácia de que indústria é coisa do passado; na verdade, talvez a indústria nunca tenha sido tão do futuro quanto agora.

Os líderes industriais e os líderes do setor de serviços não são os equivalentes contemporâneos dos landlords e industriais ingleses do século XIX, a burguesia e a nobreza francesa do século XVIII ou os escravocratas e abolicionistas americanos. Estes sim estavam em lados opostos da história, contra ou a favor de estruturas econômicas (e também políticas e sociais) concorrentes e dispostos a arcar com as últimas consequências para triunfarem. O time dos Revolucionários e o time dos Reacionários estavam perfeitamente caracterizados naqueles casos. Pelo menos até hoje, indústria e serviços jogam no mesmo time, e o que estamos vivendo, apesar de fantástico, é mais um desdobramento evolutivo da Revolução Industrial.

O Boeing Dreamliner e os riscos da descentralização da produção

A partir da década de 80, empresas multinacionais, com o objetivo de cortar custos e ganhar mais eficiência, passaram a decentralizar fortemente sua produção.[1] Uma empresa como a Nike, por exemplo, passou a concentrar as suas atividades de pesquisa, design, marketing, etc, na sua sede, nos Estados Unidos, enquanto que a fabricação e montagem dos produtos passaram a ser feitas em países em desenvolvimento, onde custos como os trabalhistas e tributários costumam ser mais atrativos.

A ideia por trás desse movimento era, além de economizar custos, obter ganhos com a especialização. Se no começo do século XX uma empresa como a Ford produzia desde a borracha dos pneus até a montagem final dos automóveis, no fim do século XX as empresas perceberam que algumas partes do processo de produção poderiam ser terceirizadas para empresas mais especializadas na parte específica do processo, seja ela a produção dos pneus ou a assessoria legal.

Dado esse contexto e o ambiente extremamente competitivo do mercado, a Boeing resolveu aplicar ao extremo esse conceito de descentralização da produção. Nascia a experiência produtiva do Boeing 787 Dreamliner. Segundo a empresa, o Dreamliner seria duplamente revolucionário: seria o primeiro avião comercial feito majoritariamente de fibra de carbono, o que o tornaria consideravelmente mais leve e econômico; e seria produzido de maneira “parceirizada”, em um modelo no qual os principais elos da cadeia de produção seriam “sócios” da Boeing, e não meros fornecedores.

Com o intuito de reduzir seu risco e tirar proveito de empresas especializadas, a Boeing decidiu fabricar o avião utilizando um “modelo de parceria global”, no qual algo entre 70% e 80% da produção seria terceirizada para empresas de ponta em diversos países[2] (TANG & ZIMMERMAN, 2009; MCKINSEY, 2012).

Em processos produtivos anteriores, a Boeing fazia todo o detalhamento das partes da aeronave, fabricava algumas delas internamente e encomendava outras dos seus fornecedores. Estes produziam-nas exatamente como desenhado pela Boeing que, por fim, montava o avião na sua fábrica. O Dreamliner, por sua vez, foi desenhado de maneira modular. Nesse sistema, grandes partes poderiam ser produzidas de forma independente e depois acopladas à aeronave (KOTHA & SRIKANTH, 2013).

Nesse modelo, a Boeing se limitava a determinar índices de performance que as partes deveriam atingir e os “parceiros” seriam responsáveis por todo o processo de pesquisa e desenvolvimento, financiamento, detalhamento do design, compra de matérias-primas e demais ferramentas necessárias para atingir a performance desejada pela Boeing. Esses parceiros estratégicos – cerca de 50 – gerenciariam suas próprias cadeias de fornecedores. Isso facilitaria e aceleraria a produção, pois os parceiros trabalhariam simultaneamente, e o processo de montagem teria seu tempo reduzido de 30 para 3 dias (TANG & ZIMMERMAN, 2009).

Figura 1 – Principais parceiros da Boeing na fabricação do Dreamliner, por país da empresa e parte da aeronave.

Fonte: Nolan e Kotha (2005), com base em dados da Boeing

Desde o início, o Dreamliner foi um sucesso de encomendas. Porém, no processo de produção, tamanha desverticalização começou a causar problemas. Atrasos e problemas diversos com os parceiros responsáveis pelos módulos da aeronave e seus fornecedores postergaram o lançamento do Dreamliner diversas vezes. O avião, que deveria fazer seu primeiro voo em agosto de 2007, acabou por fazê-lo somente em outubro de 2011 (FERREIRA, 2012).

Os atrasos ocorreram por motivos diversos: a empresa que produzia um software não conseguia programá-lo corretamente para o sistema de controle de voo produzido por outra companhia; algumas das partes, feitas por empresas distintas, não se encaixavam corretamente umas nas outras; alguns dos parceiros não conseguiam lidar com a maior independência e tiveram problemas com suas próprias cadeias de fornecedores. Para acelerar o processo, a Boeing acabou por comprar alguns desses parceiros e a acompanhar mais de perto os demais membros da cadeia, efetivamente “reverticalizando” parte da produção (FERREIRA, 2012; KOTHA & SRIKANTH, 2013).

Como se não bastassem os diversos problemas na produção, após ser lançado, o Dreamliner apresentou sérios defeitos, como vazamentos de combustível, incêndios e problemas diversos com baterias, turbinas, fuselagem, sistema elétrico e trem de pouso. Com tantos problemas, o Dreamliner ficou proibido de voar em todo o mundo por três meses em 2013. Esta foi a primeira vez desde 1979 que a FAA (órgão americano que regula e fiscaliza o mercado aéreo no país) proibiu um avião comercial de voar em todo o território norte-americano.

A bateria, principal fonte de problemas pós-lançamento e causa central da proibição de voo em 2013, foi encomendada pela Boeing a um de seus parceiros, a empresa francesa Thales. Esta, por sua vez, terceirizou o desenvolvimento e a produção da bateria para a empresa japonesa GS Yuasa. Já o carregador da bateria foi encomendado pela Thales à empresa americana Securaplane. Por fim, o sistema que monitora a bateria foi fabricado pela empresa japonesa Kanto. O distanciamento e o pouco controle da Boeing no processo de produção da bateria pode ter contribuído para as falhas.

No fundo, a história do Dreamliner é um exemplo dos riscos da descentralização excessiva. Por mais que o modelo totalmente verticalizado seja menos factível, eficiente ou desejável, o modelo excessivamente descentralizado também parece apresentar problemas, em especial no que concerne a dificuldades de coordenação.

Além disso, o Dreamliner é um exemplo claro de como a performance de uma empresa é afetada e, em certa medida, depende da performance de seus fornecedores e demais empresas com as quais ela interage. Assim, por mais eficiente e produtiva que seja uma empresa internamente, ela sempre dependerá parcialmente da performance de outras empresas.[3]

Não por acaso, algumas grandes multinacionais têm revisto seu modelo de produção nos últimos anos. A GE, por exemplo, retornou algumas linhas de produção da China para os EUA (muito antes de Trump ser eleito) por perceber que manter seus centros de pesquisa próximos à linha de produção é vantajoso para observar mais claramente erros, possibilidades de melhoria e adaptação às mudanças nas preferências do mercado. Além disso, em um mundo em que a diferenciação tem se tornado cada vez mais relevante para a competitividade, custos trabalhistas e tributários, por exemplo, estão perdendo importância.

Esse caso é importante para o Brasil, primeiramente porque aqui, também, a descentralização da produção é elevada e cresce e o aumento do consumo de serviços no processo de produção da indústria é parcialmente explicado por isto. Mas o caso é especialmente relevante porque a economia brasileira é desigual em diversos aspectos, inclusive na performance das empresas (MOREIRA, 2014; PORCILE & CATELA, 2012). Segundo dados da CEPAL & OCDE (2012), em média, no Brasil, microempresas têm produtividade do trabalho 10 vezes menor do que a de grandes empresas.

Com tamanha heterogeneidade de produtividade, mesmo as empresas de melhor performance podem estar sendo negativamente afetadas pelos elos menos produtivos de suas cadeias. Em suma, o aumento da produtividade brasileira passará, cada vez mais, por enfrentar a questão da heterogeneidade de performance de nossas empresas.

 

[1] Este post é baseado em um capítulo da dissertação do autor, “Descentralização da produção e produtividade no Brasil” (MOREIRA, 2015). An English version of this post can be found here.

[2] O nível de terceirização da produção dos aviões Boeing 737, modelo anterior ao Dreamliner, variava entre 35% e 55% (TANG & ZIMMERMAN, 2009).

[3] Essa hipótese é explorada por Moreira (2015).

 

Referências bibliográficas

CEPAL; OCDE. Perspectivas económicas de América Latina 2013 – Políticas de PYMES para el cambio estrutural. Santiago de Chile, 2012.

FERREIRA, M. J. B. Competências empresariais e políticas governamentais de apoio ao desenvolvimento aeroespacial: caso dos EUA. ABDI. Campinas-SP, 2012.

KOTHA, S.; SRIKANTH, K. Managing a global partnership model: lessons from the Boeing 787 ‘Dreamliner’ Program. Global Strategy Journal, vol. 3 (1), p. 41-66, fev. 2013.

MCKINSEY. Manufacturing the future: the next era of growth and innovation. Nov, 2012.

MOREIRA, R. F. C. A disparidade da produtividade das empresas brasileiras: possíveis determinantes, seu impacto nas cadeias de valor e na economia. In: SANTOS, C. A. (Org.). Pequenos Negócios: Desafios e Perspectivas – Encadeamento Produtivo. vol. 6, p. 52-67. Sebrae. Brasília-DF, 2014.

MOREIRA, R.F.C. Descentralização da produção e produtividade no Brasil. 2015. 103f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

NOLAN, R. L.; KOTHA, S. Boeing 787: The Dreamliner. Harvard Business School Compilation 305-101. Boston, abril de 2005.

PORCILE, G.; CATELA, E. Y. A. S. Heterogeneidade estrutural na produtividade das firmas brasileiras: uma análise para o período 2000-2008. Anais do XL Encontro Nacional de Economia. ANPEC, 2012.

TANG, C. S.; ZIMMERMAN, J. D. Managing new product development and supply chain risks: the Boeing 787 case. Supply Chain Forum – an International Journal. v. 10, n. 2, 2009.

 

Medidas alternativas do tamanho do setor de serviços

Este blog tem discutido diversas métricas — participação no PIB e no emprego total, contribuição para o valor adicionado da indústria manufatureira, destino dos investimentos diretos estrangeiros, entre outras – que comprovam que o setor de serviços se tornou o maior e o mais influente setor da economia. Tem discutido, ainda, que isto estaria ocorrendo não apenas nos países avançados, mas, também, em praticamente todos os países, incluindo até os mais pobres da África Subsaariana.

Mas variáveis menos convencionais também estão apontando evidências naquela mesma direção. Considere o caso das marcas. O mais recente ranking das marcas mais valiosas mostra que bancos, seguros, logística, comércio, entretenimento, sistemas de pagamento, tecnologia e telecom representavam 74% do valor total das 100 marcas mais valiosas do mundo em 2016. Das 10 marcas globais mais valiosas, nove eram dos setores de tecnologia e telecom — Google, Apple, Microsoft, AT&T, Facebook, Visa, Amazon, Verizon e IBM. McDonald’s quebrou a regra. Mas nem sempre foi assim (ver figura abaixo). Em 2006, aquelas mesmas categorias de serviços respondiam por 55% do valor das marcas mais valiosas.

Se, de um lado, marcas dos setores com a “cara” do século XXI estão ganhando relevância, de outro lado, setores convencionais e com a “cara” do século XX estão perdendo relevância. Em 2006, 13 marcas de carros listavam entre as 100 mais valiosas do mundo e respondiam por 11,6% do valor total. Em 2016, apenas seis marcas de carros figuravam dentre as mais valiosas e respondiam por apenas 3,5% do total.

Em 2006, as 100 marcas mais valiosas valiam US$ 1,44 trilhão. Em 2016, elas valiam US$ 3,36 trilhões, um incremento nominal de 132% — para referência, a inflação em dólar no mesmo período foi de 19%. A supervalorização das marcas é reflexo direto da consolidação e da globalização dos mercados e do aumento da parcela dos serviços na composição do valor final dos bens. É, também, um dos sintomas mais visíveis e mensuráveis das mudanças estruturais por que passam as economias em favor dos serviços.

O que explica o avassalador crescimento do valor das marcas de serviços? São muitas as explicações, mas, dentre elas, estão as mudanças nas preferências dos consumidores em favor de serviços, incluindo tecnologia, telecom e entretenimento, o aumento da participação dos serviços no valor adicionado de outros setores, o encurtamento do ciclo de vida das novas tecnologias, que dá elevado poder de monopólio às “superestrelas”, as novas tecnologias de produção e de gestão da produção, como as cadeias globais de valor, que aumentam a importância de serviços como seguros e logística, a ascensão da economia de plataformas e o caráter cada vez mais comercializável internacionalmente dos serviços. Esses fatores ajudam a garantir o crescimento e consolidar a posição dos serviços na economia mundial.

Ter marcas influentes e valiosas reflete a posição dos países na “cadeia alimentar” e sugere a conformação da estrutura das economias e as perspectivas de crescimento econômico. A China, que está passando por intensa reestruturação em favor de bens e serviços de mais alto valor adicionado e se lançando como competidor global em vários segmentos, já está se estabelecendo como país de marcas globais. Tencent, China Mobile, Alibaba, ICBC, Baidu, CRB e Huawei são algumas das suas marcas mais conhecidas. Hoje, a China já tem quase duas dezenas de marcas dentre as mais valiosas e domina largamente o ranking de marcas da Ásia.

Já o Brasil, ainda não se deu conta da importância e contribuição das marcas como instrumento de geração de emprego e renda e de inserção internacional “pela porta da frente”. Experiência, temos – pense nas sandálias Havaianas. A despeito de sermos, de longe, a maior economia da América Latina, o México tem marcas muito mais valiosas que as nossas. Potencial não falta. O Brasil poderia trabalhar para construir marcas globais em áreas como, por exemplo, cafés, rede de cafés, alimentos processados, alimentos com base em proteínas, moda praia, design, projetos de engenharia, dentre outras áreas em que já temos vantagem comparativa estática e dinâmica revelada. Enfim, precisamos de mais, muitas mais “Havaianas”.

 

Participação nas 100 marcas globais mais valiosas, por categoria (%)

Nem formal, nem informal, o Brasil é semiformal [Parte III – O caso do Carnaval]

[Ver nota do autor]

 

Em um post anterior, apresentamos um exemplo de como a cadeia de produção e consumo indústria globalizada vai se integrando à informalidade e acaba por construir a semiformalidade na economia brasileira. Todavia, esse processo também se desenvolve a partir de um caminho inverso: a semiformalidade também se conforma em uma trajetória que parte do mundo informal em direção ao formal.

Para exemplificar esse processo, observaremos aqui o que talvez seja o caso mais emblemático da imbricação entre setores formais e informais da economia nacional: as escolas de samba. Roberto DaMatta (2000) afirma que o carnaval é o espaço privilegiado capaz que equacionar as contradições entre a “casa” e a “rua”, os dois elementos que, ao se confrontarem, dariam origem ao “dilema brasileiro” e cuja articulação e equalização permitiria o que o autor chama de “atualização” desses supostos dois “brasis” tão diferentes entre si.

Nós, aqui, sugerimos que o carnaval – talvez até mesmo por conta dessa característica apontada pelo autor – é também o espaço privilegiado do equacionamento e atualização do formal com o informal, o que o transforma no processo paradigmático da expressão econômica desse “dilema brasileiro” e de como este se atualiza no contexto da produção e distribuição de riquezas por intermédio da conformação da semiformalidade.

Nascidas nas favelas do Rio de Janeiro[1], as escolas de samba floresceram, em seus primeiros anos, no contexto extralegal que caracteriza tais áreas, no qual predominam as atividades econômicas e moradias informais. Em um dado momento de sua trajetória, por razões cuja descrição foge ao escopo deste post, parte substancial de seu financiamento passou a ser feita pelos banqueiros do Jogo do Bicho. Este consiste em uma loteria privada e é há décadas uma atividade ilegal no país. Junto com o financiamento, o controle administrativo da maioria das escolas de samba passou para a mão desses chamados “bicheiros” ou “banqueiros do bicho”: indivíduos que controlam essa modalidade de jogo (DaMatta e Soáres, 1999). Além de ilegal de per si, o Jogo do Bicho possui também notórias ramificações em diversas atividades do crime organizado.

De início, perseguida pela polícia, essa modalidade de atividade carnavalesca foi, com o passar dos anos, sendo cada vez mais tolerada. A partir do momento em que adquiriu dimensão expressiva no carnaval da cidade, foi incorporada ao calendário de eventos oficiais do carnaval carioca. Desde então, o Estado passou não só a financiar parte dos seus desfiles, como também a estabelecer as regras que disciplinam o desfile e a competição que se realiza entre essas agremiações. O passo seguinte no processo evolutivo foi a aquisição, por parte da grande mídia – especialmente da televisão – dos direitos de transmissão do desfile de escolas de samba, transformando-o em um de seus mais importantes produtos, inclusive para exportação. Ao mesmo tempo, somou-se interesse semelhante e complementar por parte da indústria fonográfica, que explora um rentável mercado de comercialização dos sambas-enredo.

Na continuidade da evolução, os desfiles de escolas de samba se transformaram também no principal produto da indústria de turismo carioca, que chega mesmo a incluir o direito de participação nos desfiles em seus “pacotes”. Esse direito é adquirido por turistas de todo o mundo nas operadoras/agências a valores que chegam a ultrapassar os US$ 500 por pessoa. Dados seus interesses, todos esses setores passaram a influenciar também a própria dinâmica dos desfiles. Paralelamente, à medida que estes foram adquirindo notoriedade, outros setores formais também começaram a ter interesse, como estratégia de marketing, em se incorporar ao evento na condição de patrocinadores. Um dos que merece destaque é o setor de bebidas. Em especial, as grandes cervejarias passaram a disputar ferrenhamente o direito de patrocinar a realização dos desfiles, bem como as transmissões de TV.

O passo final da absorção dos desfiles pelo mundo formal foi a substituição de uma parte do financiamento direto das escolas de samba, até então subsidiado pelos “bicheiros” e pelo governo municipal da cidade, por patrocínios (muitas vezes não explícitos) de diversas das escolas de samba por parte de empresas dos mais diferentes ramos, assim como por governos de administrações públicas de unidades subnacionais da federação em ações para atrair o turismo. Em ambos os casos, os patrocinadores impõem à escola o tema (o “enredo”) que será apresentado pela escola em seu desfile, utilizando-se assim do próprio desfile da escola como mídia de promoção.

Observe-se que foi um processo de aglutinação de interesses e esforços. As comunidades originais, assim como o Jogo do Bicho, não foram alijadas do comando das escolas de samba. Os novos agentes que passaram a participar não foram absorvidos por “substituição”, mas por “incorporação” à dinâmica do evento.

Hoje, parte significativa da produção dos desfiles das escolas de samba continua ocorrendo nos universos informal e semiformal. A confecção de fantasias é feita por costureiras autônomas, geralmente das próprias comunidades nas quais as escolas estão sediadas, e quase sempre à margem do sistema tributário oficial. Situação semelhante se verifica na construção dos carros alegóricos. A organização e preparação de cada escola contam com profissionais contratados formalmente (alguns com remunerações muito elevadas, como no caso dos carnavalescos mais famosos, cujos salários rivalizam com os dos astros do esporte e da música pop), profissionais contratados sem vínculo formal e até mesmo trabalho voluntário realizado por membros das comunidades.

Assim, o desfile de escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro movimenta diretamente dezenas de milhões de dólares, emprega milhares de pessoas em contratos permanentes e temporários, parte com contrato formal de trabalho e parte sem, e conta com a participação voluntária de outros tantos milhares.

Em suma, uma parcela da operação dessas agremiações envolve o Estado, outra envolve desde grandes corporações transnacionais até microempresas; outra continua se desenvolvendo no universo informal; e parte ainda é operada pelo Jogo do Bicho. Desse modo, em cada uma dessas agremiações encontram-se operando, conjunta e articuladamente, a informalidade absoluta; a semiformalidade; o crime organizado; o Estado; e empresas formais e semiformais de todos os portes e dos mais variados setores, incluindo grupos transnacionais. E isso tudo dando forma a organizações que fogem consideravelmente ao modelo racional-legal weberiano, mas cuja capacidade de produção se equipara, como demonstra Souza (1989) em sua interessante obra Engrenagens da Fantasia: engenharia, arte e convivência – a produção nas Escolas de Samba, àquela das organizações mais bem estruturadas do ponto de vista das modernas tecnologias de gestão. Isso também pode ser depreendido pelo livro Sem Segredo: estratégia, inovação e criatividade, de Paulo Barros (2013). Este último, por sinal, é um daqueles carnavalescos regiamente remunerados aos quais fizemos referência anteriormente.

DaMatta (2000), em seu estudo sobre o carnaval, chama a atenção para o fato de que se trata de uma festa de “inversão”, na qual tem lugar um processo de catarse social. Ou seja, é um momento no qual os participantes manifestam-se frequentemente por meio de uma troca em seus papéis sociais, por exemplo, a doméstica fantasiada de rainha ao lado do patrão, fantasiado de mendigo. E é justamente por esse processo de inversão que conseguimos constatar na arquitetura organizacional responsável pela construção da festa aquilo que é imanente – mas não assumido – das regras de “operação” da nossa sociedade.

Como afirma Maria Laura Cavalcanti (in Gomes, Barbosa E Drummond, 2001):

O carnaval, “comentário complicado sobre o mundo social brasileiro”, dramatiza e acomoda a tensão entre o princípio hierárquico e o princípio igualitário, ambos cruciais na sociedade nacional. […] A pergunta sobre a nacionalidade […] torna o carnaval símbolo integrador de uma imagem de Brasil na coerência aprisionante de um dilema. Mas esse dilema, feito da superposição dos sistemas de valores hierárquico e igualitário, é sobretudo a fonte do movimento da sociedade brasileira, que se resolve desdobrando-se num sistema ritual e simbólico altamente criativo e original (p. 155).

Assim, não é por acaso que essa fusão dos princípios constituidores da sociedade brasileira se manifesta de forma tão explícita na própria organização do carnaval. Sendo esta a principal manifestação da cultura popular nacional, é nela que o referencial simbólico nacional encontra seu veículo mais poderoso de expressão. E é nela também que encontramos uma representativa síntese da construção do espaço econômico da nação.

Mais um exemplo que merece destaque, e que também ocupa espaço proeminente no contexto cultural brasileiro, é o das feiras e mercados. Estes são, também, um locus privilegiado da manifestação da semiformalidade no qual, por sua abrangência territorial, pela concentração espacial e diversidade das atividades, dos agentes envolvidos e de suas relações, a semiformalidade se desenvolve em sua plenitude. Note-se que estes mercados se constituem essencialmente com operações de serviços.

Em um estudo que teve como objeto a Feira de Caruaru (e sua articulação com a Feira da Sulanca) e o Mercado Ver-o-Peso, de Belém, Souza et al. (2012) deixam visível a articulação e a complementaridade entre os setores formais e informais na construção de um sistema único que se desenvolve nesses espaços. Do ponto de vista da oferta, esses espaços operam como pontos de distribuição de produtos de praticamente todas as espécies, indo desde bens manufaturados por grandes indústrias e branding companies[2] (além, evidentemente, do contrabando, da falsificação e da pirataria desses produtos), até produtos agropecuários originários de estabelecimentos familiares de subsistência. O processo de distribuição envolve desde grandes atacadistas, a fornecimento direto pelo produtor. As operações de venda final ao consumidor envolvem desde empresas com porte razoavelmente grande, que controlam diretamente dezenas de pontos de vendas ou operam por meio de mecanismos de sociedades cruzadas que implicam controle indireto também de dezenas de pontos de venda, até ambulantes que oferecem suas mercadorias pelos corredores desses estabelecimentos.

Essa dinâmica se reproduz por todo o país em feiras e “mercados municipais” que se replicam em diversas capitais e cidades de maior porte, como, por exemplo, além dos citados, os mercados municipais de São Paulo, de Porto Alegre, e o Mercado Modelo, de Salvador; em pequenas feiras e mercados de cidades menores; no “camelódromo” da Rua Uruguaiana e no “Calçadão de Madureira”, no Rio de Janeiro; na Rua Santa Efigênia e no Brás, em São Paulo; na “Feira do Importados”, em Brasília; e em tantos outros locais. Em todos eles o que se observa é um sistema que forma um continuum integrado de produção e distribuição, que envolve desde grandes firmas essencialmente formais, até o autônomo individual essencialmente informal, a produção artesanal ou a agropecuária familiar, até incluir mesmo atividades ilícitas. Do ponto de vista do trabalho, envolve também desde o trabalho formal (com contrato de trabalho), até o trabalho precário, o autônomo e o trabalhador semiformal, que possui contrato de trabalho, mas tem parte significativa de sua remuneração “paga por fora”. E, mais uma vez, atividades ilícitas por envolverem trabalho escravo utilizado na produção de muitos dos bens ali comercializados, como é o conhecido caso da indústria têxtil.

A partir desses exemplos, podemos aquilatar a dimensão ocupada pela semiformalidade no Brasil e seu papel como integrador dos universos formal e informal, complementares e componentes essenciais de um único sistema socioeconômico. Como destaca Cacciamali (2007):

[Há uma] subordinação do “Setor Informal” ao padrão e ao processo de desenvolvimento capitalista a nível nacional e internacional. Tal subordinação ocorre em função do ritmo próprio da dinâmica capitalista, que flui ao toque das grandes firmas e dos grupos oligopolistas que, em países periféricos, se encontram, muitas vezes, vinculados ao capital estrangeiro e, em geral, reforçados pelas políticas de governo (p. 150).

Um último ponto a ser abordado concerne à necessidade de uma segmentação clara entre os espaços da informalidade e semiformalidade e o espaço da criminalidade. A despeito das frequentes ligações que as atividades informais ou semiformais acabam muitas vezes estabelecendo com a criminalidade, é possível separar claramente pela sua natureza as que têm origem na realidade cultural e socioeconômica do país, daquelas que são operadas pelo crime organizado – ou “crime negócio”. Este tem objetivos exclusivamente econômicos, ou seja, a acumulação individual sem nenhum caráter de “compensação social”, como é, por exemplo, o caso do comércio internacional de drogas, que estabelece, conforme descrito por Saviano (2014), uma profunda articulação com a economia formal, com destaque para o mercado financeiro global.

REFERÊNCIAS

BARROS, Paulo. Sem segredo: estratégia, inovação e criatividade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Lumiar, 1996.

CACCIAMALI, Maria Cristina. (Pré-)Conceito sobre o setor informal, reflexões parciais embora instigantes. Revista Econômica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2007.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

DAMATTA, Roberto e SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia; DRUMMOND, José Augusto. (Orgs.) O Brasil não é para principiantes: Carnavais, malandros e heróis, 20 anos depois. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  A construção social da informalidade e da semiformalidade na economia brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2237).

ROLLI, Claudia. Marca de luxo é ligada a trabalho degradante. São Paulo: Folha de São Paulo (27/07/2013), 2013. 

SAVIANO, Roberto. Zero Zero Zero. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SOUZA, Hamilton Moss de. Engrenagens da fantasia: engenharia, arte e convivência – a produção nas Escolas de Samba. Rio de Janeiro: Ed. Bazar das Ilusões, 1989.

SOUZA, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).

As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

[1] A primeira escola de samba do Brasil, a Deixa Falar, foi fundada por Ismael Silva e outros em 1928 no bairro do Estácio (região das favelas do Morro do Estácio e São Carlos). A ela se seguiram a Cada Ano Sai Melhor, o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e a Vai Como Pode. As duas últimas perduram até hoje – a Vai Como Pode foi depois rebatizada como Grêmio Recreativo e Escola de Samba Portela (G. R. E. S. Portela) – sendo ambas, atualmente, as notórias agremiações do carnaval carioca (Cabral, 1996).

[2] Empresas transnacionais que tem sua marca como “produto principal”. Suas operações se concentram no desenvolvimento de produtos, no marketing e na distribuição, normalmente terceirizando todo o processo de produção e logística. Como principais exemplos podem ser citados as grifes internacionais; os artigos esportivos; computadores e software; e telefones celulares.

Nem formal, nem informal, o Brasil é semiformal [Parte II – Um caso]

[Ver nota do autor]

Vimos, em um post anterior uma descrição conceitual do que chamamos de “semiformalidade”. Agora apresentaremos um exemplo de como esse constructo se desenvolve na realidade do espaço econômico brasileiro. Se observarmos com cuidado as cadeias de produção e de consumo de vários setores da economia nacional, constataremos que a complementaridade entre formal-semiformal-informal se reproduz em muitas delas. No entanto, alguns desses casos podem ser considerados como paradigmáticos. Descreveremos aqui o caso da cadeia de produção e consumo do automóvel, um dos bens de maior “desejo” na sociedade brasileira.

A figura 1 e o quadro 1 apresentam uma representação esquemática da estrutura da cadeia de produção e de consumo que se desenvolve a jusante da indústria do automóvel. No esquema, estão apresentados apenas alguns dos componentes dessa cadeia que, evidentemente, é bem mais complexa do que aquilo que está aqui representado. Além disso, as características atribuídas a cada um dos agentes da cadeia são as que nós consideramos como dominantes; isto é, características que podem ser encontradas com razoável frequência nesses agentes e cuja constatação pode ser feita tanto pela observação direta, quanto por registros da imprensa.

FIGURA 1 – Cadeia de Produção e Consumo a Partir dos Automóveis

Elaboração do autor

QUADRO 1 – Cadeia de Produção e Consumo a Partir dos Automóveis

Elaboração do autor

Nessa cadeia podemos ver, em primeiro lugar, o conjunto de serviços prestados aos proprietários de veículos. Inicialmente, temos os serviços de reparos automotivos [A]. Existem, como prestadores desses serviços, oficinas autorizadas pelos fabricantes, todas elas formais e operando, a princípio, integralmente na formalidade. Existem também as pequenas oficinas independentes; são empresas com existência formal (CNPJ), mas que em muitos casos têm boa parte de suas operações na semiformalidade (isto é, sem Nota Fiscal). Finalmente, temos as oficinas conhecidas como de “fundo de quintal”; oficinas sem existência legal, muitas operando até mesmo nas vias públicas.

As autopeças [B] utilizadas pelas oficinas podem provir de um mercado formal, no qual são comercializadas as chamadas “peças originais”, produzidas por fabricantes “reconhecidos” pelas montadoras de veículos e que possuem autorização para utilizarem suas marcas. Além desse, há também o “mercado paralelo”, caracterizado por autopeças que são cópias das “originais”, mas provenientes de fabricantes não reconhecidos e que possuem variados níveis de qualidade. Além de parte desse mercado operar na semiformalidade, há contendas legais acerca do uso de marcas e desenhos industriais, com destaque para uma disputa no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre a Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças (Anfape) e as montadoras Ford, Fiat e Volkswagen que, em 2010, foi decidida em Averiguação Preliminar favoravelmente à primeira (D’Araújo, 2015). Há, ainda, os desmanches de carros (ou “ferros-velhos”), que comercializam peças e componentes usados oriundos, a princípio, de veículos acidentados. Nesse mercado, é possível encontrar empresas com registro legal (CNPJ), mas que, em geral, operam na semiformalidade, e empresas informais, isto é, sem existência legal. Além disso, nesse segmento ocorrem também operações criminosas, nas quais são comercializadas peças de veículos roubados. Estas são realizadas tanto por empresas formais, quanto por organizações informais.

Ainda nos serviços, existem aqueles que são prestados aos proprietários de automóveis nas ruas das cidades [C]. Relacionamos, em primeiro lugar, os serviços de estacionamento. Nesse grupo, podem ser encontradas os concessionários oficiais de estacionamento, que operam dentro da formalidade sob concessão das prefeituras. A esses, somam-se os guardadores autônomos de veículos; categoria essencialmente semiformal, uma vez que são também “legitimados” pelas prefeituras. Há ainda os chamados “flanelinhas”, que são também guardadores autônomos, mas que não são cadastrados (“legitimados”) pelos governos municipais. Finalmente, há um esquema de extorsão travestido de serviço de guarda e estacionamento: são indivíduos que, a partir de uma ameaça velada ou explícita de perpetrarem danos ao veículo, exigem uma determinada quantia para “vigiar” o carro estacionado. É uma prática análoga ao notório “seguro” oferecido pelas diversas “Máfias” aos comerciantes de suas áreas de atuação (Saviano, 2008). Além da guarda, nesta mesma categoria de serviços, há a lavagem de automóveis. Quando executados por empresas formais, é prática corrente a subnotificação fiscal (semiformalidade). Também é um serviço que pode ser encontrado sendo prestado em vias públicas de modo totalmente informal. Por fim, registramos uma prática frequente nas grandes cidades, que é a lavagem de para-brisas de veículos nos sinais de trânsito, oferecida em sua totalidade por menores carentes em troca de algumas moedas.

O segundo elo da cadeia que relacionamos é o de fornecimento de combustíveis (gasolina, álcool, diesel e GLP). Ele é composto, primeiramente, pelo varejo de combustíveis [D]: os postos de abastecimento. Salvo exceções, são empresas formalmente estabelecidas e cuja maior parte das operações comerciais ocorrem dentro das normas legais de registros fiscais. Todavia, é muito comum que essas empresas façam uso de empregados sem contratos formais de trabalho e sem o cumprimento de inúmeras obrigações trabalhistas, caracterizando-se, portanto, como atuando na semiformalidade nesse aspecto específico. Há ainda, e é fato frequentemente registrado nesse mercado, a ocorrências de venda de combustíveis adulterados com a adição de diversas outras substâncias (na maioria dos casos, álcool na gasolina). Nestes casos, ultrapassa-se a extralegalidade para se ingressar no mundo do crime.

Os postos de combustíveis usualmente aceitam como meio de pagamento os cartões de débito e de crédito [E]. As operadoras desses cartões são empresas multinacionais vinculadas às instituições bancárias do país. São, portanto, empresas essencialmente formais e os registros dessas transações, até onde se saiba, se dão dentro do mais estrito cumprimento da legislação fiscal. Porém, todas essas operadoras terceirizam seus serviços de teleatendimento [F]. Jessé de Souza e Ricardo Visse (Souza et al., 2012) descrevem as características de precarização do trabalho formal que se desenvolve nas empresas que prestam esse tipo de serviço. A essa análise, acrescentamos aqui o fato notório de que muitas dessas empresas, visando burlar as obrigações legais trabalhistas, contratam seus operadores de atendimento na forma “contratos de estágio universitário”, o que caracteriza mais um caso de semiformalidade em razão da precarização das relações de trabalho. Essa situação suscitou até mesmo a promulgação de um novo dispositivo legal, a Lei Nº 11.788/2008 (Brasil, 2008), como uma tentativa de coibir tal prática.

Na continuidade dessa cadeia, temos a produção de combustíveis [G], na qual novamente a semiformalidade se manifesta nas relações de trabalho: nas usinas de álcool e fazendas de cana-de-açúcar [H] frequentemente são verificadas condições de trabalho precário, inclusive com registros de exploração de trabalho escravo, o que constitui atividade criminosa. Fazendo parte dessa mesma cadeia, existem as refinarias e empresas e exploração de petróleo [I]. Esse segmento é dominado quase que exclusivamente por uma empresa estatal, que é a maior empresa do país (a Petrobrás), e por grandes corporações transnacionais, caracterizando-se, portanto, por operar – ao menos em tese – na mais estrita formalidade. Complementando esse ramo da cadeia, podemos ver os centros de pesquisa da indústria de petróleo [J], atividade que envolve institutos pesquisa, centros de P&D de empresas, e universidades. Nessas instituições são desenvolvidas tecnologias extremamente sofisticadas, que vão desde técnicas para exploração de petróleo em águas profundas, ao desenvolvimento de combustíveis de alta performance para a Fórmula 1. Ou seja, as atividades mais “nobres” e sofisticadas de todo o complexo econômico. Neste segmento, é comum a existência de serviços de consultoria altamente especializada prestada por indivíduos autônomos, mas que são contratados como se fossem pessoas jurídicas, mascarando assim relações de trabalho sujeitas a regulação específica.

O último ramo da cadeia aqui considerado é o relativo à regulação do uso dos automóveis. Consiste, basicamente, no licenciamento de veículos e na habilitação de condutores [K]. Ambas são atividades privativas do Estado. No entanto, há a possibilidade de intermediação [L]. No caso das habilitações, essa intermediação é obrigatória, uma vez que o candidato à licença de condutor deve necessariamente frequentar um curso de formação oferecido por uma autoescola, que são empresas privadas, homologadas pelo poder público e que tendem a operar na formalidade. No entanto, a existência de um comércio criminoso de carteiras de habilitação (concessão da licença sem que o candidato se submeta aos exames necessários) é fato amplamente conhecido e noticiado. Já para o processo de licenciamento anual (e transferência de propriedade) de veículos, a intermediação não é obrigatória, podendo o cidadão cuidar pessoal e diretamente de todos os trâmites. Entretanto, em face de entraves burocráticos e da frequente precariedade no atendimento, é comum que o proprietário do veículo recorra a um despachante, os quais, comumente, desenvolvem parte de suas operações na informalidade.

A partir desse exemplo – que possui um representativo peso na economia nacional – podemos constatar como, partindo de empresas transnacionais e atividades de altíssimo conteúdo tecnológico, passando pelo Governo, e chegando até a serviços prestados por indivíduos nas vias públicas da cidade, a formalidade e a informalidade, através de um processo de simbiose, se imbricam e se complementam na construção do espaço da semiformalidade.

Outra constatação é o relevante papel do setor de serviços nesse construto, mesmo quando se trata da cadeia de produção e consumo de um produto (um bem) típico da manufatura.

Há, ainda, a possibilidade do caminho inverso, no qual a construção da semiformalidade e seu imbricamento em uma cadeia de produção e consumo se dão a partir de uma trajetória que parte do mundo informal em direção ao formal. Mas este será assunto para um outro post

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei do Estágio. Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes; altera a redação do art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996; revoga as Leis nos 6.494, de 7 de dezembro de 1977, e 8.859, de 23 de março de 1994, o parágrafo único do art. 82 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e o art. 6o da Medida Provisória no2.164-41, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Brasília, 2008..

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

D’ARAÚJO, Juliana Rafaela Sara Sales. A interatividade entre direito antitruste e propriedade intelectual: A aplicabilidade do controle concorrencial sobre o exercício de direito industrial e análise do caso Anfape. 2015. Monografia (Especialização) – Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  A construção social da informalidade e da semiformalidade na economia brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2237).

SAVIANO, Roberto. Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

SOUZA, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

 

NOTAS:

Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).

As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

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