Em 2012 James Robinson e Daron Acemoglu lançaram o livro Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity and Poverty que foi um sucesso imediato, não só no mercado acadêmico, mas também no mercado editorial geral. A hipótese central do livro é que instituições, e não cultura, geografia, ou sorte, são a causa fundamental do crescimento econômico de longo prazo. Era essencialmente a mesma mensagem que algumas décadas de literatura da nova economia das instituições já havia desenvolvido (Douglass North, Ronald Coase, Oliver Williamson e Elinor Ostrom): que instituições abertas e inclusivas, caraterizadas por impessoalidade e rule-of-law e acompanhadas por freios e contrapesos sobre o poder do Estado, são imprescindíveis para que um país se torne verdadeiramente desenvolvido. Eles mostram através de inúmeros exemplos históricos e dados comparativos que somente um pequeno grupo de países em todo mundo conseguiu atingir este tipo de desenvolvimento, enquanto a grande maioria, onde prevalecem instituições extrativas e acesso limitado a mercados econômicos e políticos, falharam.
Com o sucesso do livro os autores foram convidados a dar palestras e apresentações em vários lugares diferentes. Na época, eu devo ter ouvido mais de uma dezenas de palestras via podcasts ou no Youtube. Dado o nível dos autores e sua segurança na exposição de seus argumentos, sempre havia a sensação de que o público estava convencido. Mas inevitavelmente, quando o moderador abria o microfone para a sessão de perguntas do público, vinha a mesma pergunta avassaladora que fazia muitos reconsiderar sua posição: “Mas então como vocês explicam a China? É uma ditadura, com instituições fechadas, extrativas e excludentes, e, no entanto, é o país que mais cresce no mundo há muito tempo e logo será o país mais rico do mundo.” Os autores sempre davam a mesma resposta, na linha desta argumentação em seu Why Nations Fail Blog:
When economic institutions take steps towards greater inclusivity — which has happened many times in history and is exactly what happened in China starting in 1978 — this can usher a rapid period of economic growth. Where political institutions come in is that inclusive economic institutions can emerge and encourage growth in the short run but cannot survive in the long run under extractive political institutions. It is for this reason that the rapid growth of China over the last three decades isn’t an exception to our theory.
E eles seguem com o seguinte desafio: Se a China continuar a crescer por mais várias décadas e chegar a níveis de PIB per capita comparáveis aos dos EUA e da Alemanha, mantendo o tempo todo o mesmo tipo de instituições políticas autoritárias e extrativas, então isto refutaria a sua teoria. É assim que deve ser a ciência, sujeita à falsificação pelas evidências. No entanto, naquelas palestras esta resposta dos autores não parecia convencer muitas pessoas. Afinal a China não parava de crescer e de deslumbrar o mundo com sua capacidade de exceder todas as expectativas. Talvez instituições sejam importantes, mas a China seja um caso especial que desafia as explicações convencionais.
Este ainda não é o momento de tirar a prova e ver quem vence o desafio. A transição da China ainda está se processando e não é possível ainda tirar conclusões definitivas. A China já está alcançando os EUA em termos de PIB nominal, mas ainda está mais ou menos no mesmo nível do Brasil em termos per capita. Como diz o desafio, trata-se de uma questão de longo prazo (várias décadas) e não de conjuntura. No entanto, pode ser interessante ver como estão evoluindo algumas variáveis da economia e sociedade chinesa para termos uma ideia de como vai a contenda até agora.
Não é preciso fazer muito esforço para argumentar que a trajetória ascendente da China continua forte. Sua economia continua crescendo a altas taxas independente de crises mundiais. Em janeiro deste ano um artigo de capa da The Economist explica How China Could Dominate Science. No mesmo mês uma nave Chinesa foi a primeira a aterrissar no lado escuro da lua. Dos 20 prédios mais altos do mundo 10 estão na China (11 se contar um em Taiwan). As companhias de tecnologia da informação da China já rivalizam as ocidentais, com o trio BAT (Baidu, Alibaba e Tencent) valendo atualmente acima de um trilhão de dólares.
Em novembro, de 2017 eu estive na China pela primeira vez, para uma conferência em Shenzhen. Nesta cidade, mais jovem do que Brasília, porém já com uma população de mais de 12 milhões de pessoas, eu quase me convenci de que Acemoglu e Robinson estavam errados. A cidade era imensa, moderna, agradável e bonita. Além disto, os anfitriões nos levaram para visitar o moderníssimo trem-bala que estavam prestes a inaugurar, ligando à cidade a Guangzhou em menos de 50 minutos (em vez de duas horas) Um país que tinha a capacidade de fazer cidades e infraestrutura assim certamente tornar-se-ia em pouco tempo um país desenvolvido.
Mas apesar de todo este deslumbre, havia alguma coisa errada. Demorou até que eu conseguisse perceber o que era, mas logo ficou claro: onde estão os pobres? Embora a China tenha bolsões de prosperidade, como Shenzhen, ainda é um país predominantemente pobre. O fato de não haver pobres em Shenzhen não era algo natural. Cidades de países pobres costumam ser feias e sujas exatamente por que os pobres migram para as cidades em busca de melhores oportunidades e serviços públicos. Se não havia mendigos ou favelas em Shenzhen não era por que eles não quisessem estar lá, mas por que lá há acesso limitado às cidades, algo que só pode ser mantido com mão de ferro. Da mesma forma, as ferrovias, hidroelétricas e prédios não deviam tanto à engenharia chinesa como à capacidade de construir sem ter que se preocupar com questões de direitos de propriedade, direitos humanos e maio ambiente.
Estas questões ilustram por que é tão difícil prever quem está vencendo o desafio. Por um lado, há diversas evidências de progresso, crescimento e prosperidade. Por outro, há desigualdade, exclusão e acesso limitado. Sempre é possível imaginar que um dos lados eventualmente irá prevalecer, extinguindo o outro. Talvez seja preciso primeiro crescer para depois redistribuir como afirmava Delfim Neto na década de 1970 e Ronald Reagan na de 1980 com trickle-down economics. Pode ser que democracia e direitos humanos sejam bens de luxo, cujo consumo só aumenta à medida que a renda suba suficientemente. Sob esta perspectiva, à medida que a população chinesa enriquecesse, surgiria uma grande classe média que demandaria voz, participação e rule-of-law.
Um artigo recente no The Economist nota que a mesma dúvida sobre a trajetória futura da China já existiu com relação à União Soviética. Nas décadas de 1950 e 1960 muitos observadores ocidentais, inclusive o eminente economista Paul Samuelson, achavam que a União Soviética estava mostrando uma forma superior de organizar a economia e que estava fadada a dominar o mundo. Assim como a China, a União Soviética atingiu maiores taxas de produtividade e de crescimento transferindo pessoas do campo para as cidades. Porém lá, este tipo de crescimento eventualmente se esgotou, e o efeito das instituições fechadas e extrativas foi exatamente o que as teorias institucionalista previam.
Seria a China diferente? Certamente há bastante diferenças. A China possui uma economia essencialmente capitalista e está integrada na economia global. Sabemos muito mais sobre a China hoje do que sabíamos sobre a União Soviética. Mas, e quanto às instituições políticas? Existe alguma evidência de alguma abertura política ou na direção de mais voz, inclusão e participação da população? Estes são os elementos chave na teoria do Acemoglu e Robinson, sem os quais, segundo eles, a China não poderia sustentar o crescimento recente.
Em um post não é possível considerar toda a evidência que seria necessário para resolver esta questão. Vejamos, no entanto, quatro fatos sobre a evolução recente das instituições políticas Chinesas, escolhidos, admitidamente, com um certo viés de confirmação. São todos elementos que refletem mudanças recentes nas instituições políticas Chinesas:
- Em Fevereiro de 2015 o Partido Comunista Chinês eliminou a regra que limitava o Presidente a um mandato único. Isto permitirá a Xi Jinping permanecer indefinidamente no poder. Como a China já era uma ditadura, pode não parecer uma mudança particularmente importante. Outras mudanças simultâneas, porém, sugerem uma centralização e endurecimento contrários à aparente abertura que muitos desejavam ver. Em outubro de 2017, a Constituição do Partido Comunista adicionou um novo princípio aos 23 já existentes. O novo princípio estabelece o conjunto de normas de comportamento e crenças conhecido por Xi Thought, como guia para o socialismo com características chinesas para a nova era. Já existe um instituto de Xi Jinping Thought com o objetivo de desaminar este conhecimento nas universidades e entre a juventude. Four legs good, two legs bad! Four legs good, two legs bad!
- Hoje o setor privado é responsável por 80% da produção industrial chinesa. Embora o Presidente Xi costume enaltecer este setor em seu discurso, tem havido uma clara tendência de aumento da interferência e usurpação do Estado em firmas privadas, muitas vezes para favorecer as grandes empresas estatais. Isto inclui desde interferência política nas decisões das firmas, pressão para incluir membros do Partido Comunista nas diretorias e até a compra forçada da empresa. O fenômeno é tão prevalecente que tem até um nome; guojin mintui, ou seja, ‘o Estado avança enquanto o setor privado se retraí’. Está certo que isto costuma acontecer em vários países. O Brasil, por exemplo, tem sua própria versão de guojin mintui tupiniquim. A questão de quão nocivo isto possa ser para a eficiência, investimento e inovação no longo prazo talvez dependa da existência de salvaguardas e freios e contrapesos que os empresários e investidores possuam para recorrer contra abusos e injustiças (Levy and Spiller, 1996). No Brasil existe um judiciário independente, uma imprensa livre, um ministério público atuante, uma sociedade civil organizada e participante, e eleições periódicas. Na China não há nada disso.
- O crescimento econômico chinês gera prosperidade e confortos, mas naturalmente tem os seus descontentes. O Partido Comunista permite protestos de massa, e eles existem em grande número. Não se tem números muito claros pois o Ministério da Segurança Pública parou de divulgar dados e vários pesquisadores e ONGs que tentam documentar os protestos costumam ser presos ou reprimidos. Em geral, os protestos permitidos são aqueles que não são percebidos como ameaça, em particular protestos que não tem alcance nacional. O Partido Comunista até encoraja protestos locais – muitas vezes relacionados à propriedade da terra, poluição ou escolas – como uma forma de controlar e monitorar políticos locais.
- A China construiu mais arranha-céus em 2018 do que qualquer outro lugar no mundo ou da história de acordo com o Council of Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH). São 88 prédios de mais de 200 metros. Isto pode parecer uma coisa boa. Existe porém uma maldição dos arranha-céus (skyscraper effect) segundo a qual a construção de arranha-céus em um país costuma levar a recessão. Esta regularidade empírica foi notada primeiro pelo economista Andrew Lawrence em 1999. Não se trata de superstição ou mandinga. O efeito atua através de distorções nos mercados de crédito, capital, terra e trabalho, além do gasto público, assim como a realização de Olimpíadas costuma deixar um contra-intuitivo legado negativo nos países hospedes.
Possivelmente, daqui a cinco ou dez anos iremos olhar para trás e estes quatro pontos terão sido pequenos percalços eventualmente superados por uma China próspera, dominante e democrática. Se este for o caso, Acemoglu e Robinson não terão sido refutados. As instituições políticas terão mudado e permitido que um crescimento de curto prazo se tornasse desenvolvimento de longo prazo. Se, porém, estes quatro indícios recrudescerem e forem seguidos de outros desenvolvimentos semelhantes, e isto provar ser um empecilho à transição chinesa, mantendo o país em uma armadilha da renda média (middle-income trap), eles não terão sido refutados. Façam as suas apostas.
https://www.area148.com/the-babel-syndrome/
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