Carlos Alberto Ramos [1]

 

Existe certo consenso sobre a existência da tendência de crescente desigualdade nos últimos 40 anos nos países centrais. As pesquisas empíricas identificaram diversas raízes na explicação desse fenômeno, causas que vão desde o impacto das novas tecnologias no perfil de demanda de mão-de-obra (Goldin, C.; Katz (2008), Acemoglu (2002)), passam pela introdução de robôs na indústria manufatureira e seu impacto no emprego e salários (Acemoglu; Restrepo (2017), Acemoglu (2017)) e chegam interpretações mais heterodoxas como a de Piketty (2013).

Esse aumento na dispersão dos rendimentos se observou em paralelo a uma alteração nas dinâmicas setoriais de emprego. O estoque de assalariados na Indústria de Transformação registra tendência de queda e é crescente a importância do emprego nos serviços. Esse deslocamento setorial seria mais acentuado em países que seriam pioneiros (talvez por esse vanguardismo) no processo de industrialização. Na Alemanha, a quantidade de assalariados na Indústria de Transformação (IT) representava em torno de 40% do emprego total em 1970, ano que podemos identificar como sendo o ápice do estilo de desenvolvimento pós-segunda guerra mundial. Um quarto de século depois o percentual apenas ultrapassa os 20%. Na Inglaterra, a “desindustrialização” do emprego também é particularmente acentuada (35% e 16%, respectivamente), tendência similar nos EUA (27% e 12%, respectivamente). [2]

A perda de relevância da Indústria de Transformação na geração de empregos ao se verificar em paralelo com uma crescente desigualdade abre espaço para uma reação quase intuitiva: estaria na “desindustrialização” do emprego a raiz última do aumento da polarização no mercado de trabalho?

Diversos são os argumentos que poderiam ser esgrimidos para ancorar essa relação de causalidade. Vamos citar alguns deles, mencionando suas fragilidades.

O mais usual faz uma associação direta entre emprego industrial e emprego de “qualidade”. Contrariamente, o setor serviços se caracterizaria pela “precariedade” dos vínculos. Deixando de lado, de forma momentânea, a necessidade de qualificação desses adjetivos (“qualidade”, “precariedade”, etc.), as séries não parecem indicar um nexo direto entre a redução das desigualdades no período que vai dos anos 40 ao 70 do século passado com uma crescente importância do emprego na Indústria de Transformação. Observemos dois aspectos. Em nenhum momento da história o emprego na IT foi majoritário. Tomemos o caso dos EUA. Desde um máximo de quase 40% a começos do século passado se inicia uma continua queda até 27,3% no ano de 1970. [3] Ou seja, o período considerado dourado em termos de crescimento e desconcentração de renda (entre a segunda guerra mundial e meados dos anos 70), a IT apresenta uma contínua queda na sua relevância como geradora de postos de trabalho. Na Inglaterra, o percentual de ocupados na IT atinge máximos de em torno de 40% em meados de século passado, sendo o emprego nos serviços sempre superior. Entre 1960 e 1970 se inicia uma queda (em termos absolutos) do número de empregados na IT e essa redução não redundou em alterações do Gini, que se manteve em torno de 0,26. [4]  Ou seja, associar a desindustrialização do emprego à precarização dos postos de trabalho e, imediatamente, fazer um nexo com as crescentes desigualdades dos últimos 40 anos ou ao “wageless growth” merece certo cuidado.

Uma segunda linha interpretativa diz respeito à queda no poder de barganha dos assalariados quando transitamos de empregos industriais a postos de trabalho nos serviços. O emprego na IT nuclearia grandes unidades de produção com significativos contingentes de trabalhadores, o que viabilizaria a união dessa mão-de-obra em sindicatos com elevado poder de negociação. Contrariamente, nos serviços prevaleceriam pequenas e dispersas unidades de produção que ocupariam reduzidos estoques de empregados. Essa característica tornaria o poder de barganha dos sindicatos menor e até mesmo dificultaria a sua proporia existência. Acompanhando essa matriz interpretativa, a desindustrialização do emprego teria como contrapartida uma queda na capacidade de negociar salários e, nesse sentido, a trajetória na composição setorial do emprego das últimas décadas teria contribuído para o crescimento das desigualdades. Neste caso, os dados parecem ancorar este diagnóstico. A densidade sindical (percentual de assalariados afiliados a um sindicato) vem caindo desde os anos 70 do século passado e a abrangência das negociações coletivas também registra tendência de queda. [5] Fica em aberto determinar a importância do ganho de participação dos serviços na geração de emprego na redução do grau de sindicalização. Lembremos que a elevação do desemprego, a concorrência internacional, etc. são outras tantas variáveis que podem estar contribuindo a essa nova configuração de barganha.

A essa considerações teóricas e empíricas podemos contrapor diversas outras. Vamos mencionar algumas delas.

Essa segmentação industria/serviços seria maniqueísta. A articulação entre a IT e os serviços seria evidente na crescente participação destes últimos no valor agregado da primeira, chegando a mais de 25% (IMF (2018)). Essa ““servicification of manufacturing” não permitiria seccionar um binômio “bons postos de trabalho”/IT versus “vagas precárias”/serviços.

A segunda observação diz respeito à necessidade de definir com algum grau de objetividade o conceito de “bom posto de trabalho” e “emprego precário”. As variáveis usualmente utilizadas para tipificar a qualidade de um posto de trabalho são: condições de trabalho, satisfação com as tarefas realizadas, monotonia, estabilidade, autonomia, salários indiretos, insalubridade, flexibilidade no tempo de trabalho, etc. [6] As pesquisas indicam que uma segmentação entre bons empregos no setor industrial e empregos precários no setor de serviços não pode ser taxativa. Se a rotatividade, o emprego temporário e a tempo parcial são mais usuais no setor de serviços, simultaneamente programas de treinamento são mais freqüentes e as condições de trabalho mais favoráveis aos assalariados. Por outra parte, controladas as características pessoais, os salários são próximos. [7]  Esta proximidade se observa tanto nos países centrais (OCDE (2001), IMF (2018)) como no Brasil (Alvarez (2017)).

Por último, merece reflexão um usual mecanicismo histórico que associa o processo de desenvolvimento, de longo prazo, com uma transição setorial do emprego. Assim, as etapas que as sociedades teriam percorrido seriam a transição de um período no qual a agricultura seria o setor dominante para uma sociedade urbana-industrial e, posteriormente, se constataria o ingresso a um pós-modernismo no qual os empregos e as atividades nos serviços seriam hegemônicos. A primeira transição teria possibilitado ganhos de produtividade elevados, empregos “clássicos” (assalariado industrial com contratos por tempo indeterminado e sindicalizados) e uma redução da dispersão dos rendimentos. A terceira etapa, na qual os serviços seriam hegemônicos, a “precariedade” das vagas geradas estaria comprometendo os ganhos em termos de igualdade e mesmo não estariam alheios às raízes da diagnosticada “estagnação secular” (Gordon (2017)). Existem contribuições teóricas sugerindo que essa caracterização mecanicista do processo de desenvolvimento pode ter sido reducionista em excesso, podendo ser vislumbradas experiências nas quais sociedades agrícolas abertas ao comercio mundial abriram espaço para um setor de serviços que, posteriormente, alavancou a industrialização (Thomé; Galiani; Heymann; Dabús (2008)).

Dos argumentos apresentados nos parágrafos anteriores podemos concluir que seria prematuro atribuir à IT uma superioridade qualitativa na oferta de emprego. Concentrar nesse setor os “bons postos de trabalho” e identificar os serviços com a “precarização das ocupações” constitui uma simplificação que não ajuda a avançar a fronteira do conhecimento na área. Existem complementações entre a IT e os serviços, sendo questionável o realismo de segmentos com reduzidos vasos comunicantes. As exportações mundiais apresentam uma crescente participação dos serviços (IMF (2018)). A caricatura de uma IT “tradable”, capaz de gerar ganhos de produtividade via mercados mundiais e possibilitando a oferta de empregos de qualidade versus um setor de serviços reduzido a satisfazer o mercado interno, com escassos ganhos de produtividade e pressões de salários (como o Modelo de Baumol predizia) merece ser repensado. Talvez seja necessário redefinir a categorização setorial, uma vez que hoje são classificadas como serviços desde atividades como finanças e business até serviços de restaurantes e hotéis. Dada essa diversidade, uma média pode deixar de ter a representatividade desejada.

Como balanço podemos concluir sobre a conveniência de superar estereótipos e direcionar os esforços a pesquisas teóricas e empíricas nessa área.

Bibliografia Citada

Acemoglu, D., “Technical Change, Inequality, and the Labor Market” Journal of Economic Literature. v.40. p,70-72. 2002.

——————-, “Automation and the Future of Jobs” Technology and Academic Policy. June, 2017. (Disponível em: https://bit.ly/2uxXAi8; consultado em Julio de 2018).

——————-; Restrepo, P. “Robots and Jobs: Evidence from US Labor Markets” NBER. Working Paper No. 23285. March 2017. (Disponível em: http://www.nber.org/papers/w23285; consultado em Julio de 2018).

Alvarez, J., “Structural Transformation and the Agricultural Wage Gap” IMF Working Paper 17/289. 2017.

Goldin, C.; Katz, L.F., The Race between Education and Technology. Massachuttes (USA):Belknap Press. 2008.

Gordon, R.J., The Rise and Fall of American Growth: The U.S. Standard of Living since the Civil War. New Jersey:Princeton University Press. 2017.

IMF, World Economic Outlook. Chapter 3. 2018.

Lebergott, S., Labor Force and Employment, 1800–1960, in Brady, D.S., (Ed.) Output, Employment, and Productivity in the United States after 1800. NBER. 1966. (Disponível em: http://www.nber.org/chapters/c1567.pdf; Consultado em Julio de 2018).

OCDE, Employment Outlook 2014. Paris:OCDE. 2014.

——–, Employment Outlook 2001. Chapter 3 (The Characteristics and Quality of Service Sector Jobs). Paris: OCDE. 2001.

Piketty, T., Le Capital au XXIe Siècle. Paris:Editions du Seuil. 2013.

Thomé, F.; Galiani, S.; Heymann, D.; Dabús, C., “On the emergence of public education in land-rich economies” Journal of Development Economics. v.86. p.434-46. 2008.

  1. Fonte: US. Department of Labor, Bureau of Labor Statistics. Essa desindustrialização do emprego é uma tendência mundial. As exceções estão situadas quase todas em Ásia (China, Tailândia, Indonésia, etc.). Ver IMF (2018).
  2. Ver https://www.census.gov/prod/99pubs/99statab/sec31.pdf (Consultado em Julho de 2018).
  3.  Fonte: IFS (Institute for Fiscal Studies), UK.
  4.  Ver OCDE (2014). Logicamente, que esta tendência à “desindiscalização” tem nuances segundo cada país.
  5.  Ver OCDE (2001).
  6.  Essa proximidade depende muito do sub-setor nos serviços, sugerindo uma pronunciada heterogeneidade.
Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.