Economia de Serviços

um espaço para debate

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Produtividade nos Serviços, Emprego e Desigualdade

Existe o consenso segundo o qual, sob uma perspectiva de longo prazo, reverter a quase estagnação, nos últimos 30 anos, da renda per capita no Brasil passa por materializar aumentos de produtividade sem os quais a retomada do crescimento seria efêmera ou circunstancial.

Dentro desse contexto muito geral, a produtividade nos serviços ocupa, por diversos motivos, um lugar particular e mais polêmico. Várias são as circunstâncias que nutrem essa singularidade. Talvez a mais abordada na literatura diga respeito às potencialidades (ou ausência de potencialidades) do setor serviços, por características intrínsecas ao mesmo, em incrementar sua produtividade. No caso de assumir uma hipótese pessimista, o desfecho natural seria a denominada “doença de Baumol”, circunstâncias nas quais os salários setoriais se elevariam sem a correspondente elevação na produtividade, com desdobramentos nos preços relativos, inflação, etc. Já abordamos em outro post deste blog (https://bit.ly/2MWI36M) o caráter simplista e reducionista desta interpretação, uma vez que a sua construção requer assumir que os ganhos de produtividade estão concentrados, exclusivamente, na indústria de transformação. Abstraindo esta possibilidade, a questão da produtividade nos serviços volta a recolocar-se e integra um dos quesitos a ser pesquisado dentro do debate que tenta identificar os gargalos a serem superados para a retomada do crescimento. Nesse sentido, a literatura no Brasil é ampla e consensual (podemos citar, a título de exemplo, Arbache (2015), Veloso; Cavalcanti; Matos; Pereira Coelho (2016)): a produtividade dos serviços no Brasil acompanha a estagnação da produtividade da economia em geral e está situada em um nível bem distante do patamar dos países mais desenvolvidos e mesmo de nações com desenvolvimento mais próximo.

Contudo, a questão da produtividade nos Serviços não está, exclusivamente, associada às questões que dizem respeito ao longo prazo. Aspectos pertinentes ao ciclo de curto prazo também não estão dissociados das possibilidades de o setor de serviços elevar sua oferta mediante a utilização mais eficiente dos insumos. No recente ciclo inflacionário (2010-2016) uma particular atenção foi dada à alteração dos preços relativos em favor dos serviços e, na evolução de seus preços, era identificada uma das fontes do não cumprimento das metas inflacionárias (Arbache (2016)). A questão é complexa e não pode estar restrita a uma suposta inelasticidade da oferta no curto prazo.

Contudo, matizes estruturais e conjunturais podiam estar se agregando (Menezes Filho (2013)). A primeira década dos anos 2000, com suas especificidades (um ciclo histórico no qual o aquecimento era dinamizado pelo aumento do consumo, dos salários, especialmente os próximos ao salário mínimo, e dos benefícios sociais), pode ter tido um particular impacto sobre a demanda por serviços (Matos dos Santos et. al. (2018)). Lembremos, por outra parte, que uma elevada elasticidade renda da demanda de serviços seria uma característica do crescimento, independentemente da estratégia ser ou não wage-led growth (Clark (1957)).

Dessa forma, a questão da produtividade nos serviços se coloca tanto a partir de uma perspectiva de longo prazo (objetivo de elevar a renda per capita potencial) como de curto prazo (administrar um aquecimento do nível de atividade com mínimos impactos sobre os patamares de inflação). Inclusive, com a crescente incorporação na oferta da indústria de transformação de componentes oriundos dos serviços, a própria produtividade do setor industrial dependeria da eficiência do terciário (no mínimo de uma parte dele, aquele que o complementa).

Dentro desse contexto geral, um recente documento do Departamento de Pesquisas do Banco de Investimento Natixis (https://bit.ly/2EGniYu) introduz uma perspectiva original, uma vez que relaciona a produtividade do setor serviços com desemprego da força de trabalho com pouca qualificação e os indicadores de desigualdade. O referencial para a reflexão são dois países (Japão e França), dois modelos diferentes, sendo que em um (Japão) a produtividade dos serviços seria baixa e no outro (França) elevada.

No caso do Japão, a produtividade na indústria de transformação seria tão elevada que sua competitividade não seria afetada pelo fraco desempenho dos serviços. Essa competitividade do setor secundário fica evidente quando o referencial é o indicador de saldo (positivo) do comércio de bens industriais com o mundo, que atinge 4,5% do PIB. O emprego industrial pode ser caracterizado como residual (15% dos ocupados), mas sua produtividade é crucial no equilíbrio do setor externo. Os salários do setor industrial são, em média, 20% superiores aos observados nos serviços.[1] Aqui, porém, temos uma hipótese não explícita na análise dos pesquisadores do Natixis: essa diferenciação entre rendimentos requer assumir que ou o mercado de trabalho é segmentado (hipótese plausível dada a forma de gerenciamento dos recursos humanos nas grandes firmas japonesas) ou estamos falando de qualidades de mão-de-obra diferentes (escolaridade/qualificação). A análise do banco sugere (implicitamente) que estamos diante de trabalhadores com capitais humanos diferentes, prevalecendo nos serviços um assalariado com baixa qualificação e, portanto, baixa produtividade. Assim, o setor de serviços seria intensivo em trabalho pouco qualificado ou sem experiência e, nessa perspectiva, as atividades terciárias se assemelhariam a “esponja”, absorvendo mão-de-obra não requerida pelo setor industrial e que poderia ser potencialmente vítima do desemprego. Os indicadores são, nesse sentido, eloquentes. A taxa de desemprego da PEA com 15 a 24 é de apenas 4,6% no Japão. Na França a mesma estatística assume um valor de 21,6%.[2]

Na medida em que, no país asiático, teríamos um mercado de trabalho diferenciado entre um espaço com bons empregos e elevada produtividade (indústria de transformação) e um outro com empregos de pouca remuneração e baixa produtividade, a dispersão de salários seria elevada. No Japão os assalariados com baixos rendimentos seriam quase 13% dos ocupados, na França 9%. [3] Esse fenômeno se aprofundaria no tempo na medida em que temos um setor com ganhos de produtividade dos quais se beneficiariam seus assalariados e um outro espaço com produtividade estagnada e fértil na geração de empregos.

Em termos mais gerais, a ineficiência nos serviços seria um “preço a ser pago” (um “imposto”) pela indústria de transformação para que a sociedade conviva com uma taxa de desemprego baixa ou, alternativamente, o “preço a ser pago” pelo setor industrial para a sociedade poder ofertar empregos que, não obstante serem de baixa produtividade, são aqueles que possibilitam absorver mão-de-obra com pouca qualificação. Uma vez que a produtividade na indústria de transformação japonesa é elevadíssima e crescente, sua competitividade externa (nos mercados mundiais) não estaria comprometida pelos custos a que é submetida.

No caso da França a lógica de funcionamento seria contrária: um setor de serviços muito eficiente, que não onera a indústria de transformação senão que complementa sua produtividade, sendo o custo uma elevadíssima taxa de desocupação daquelas pessoas com pouca qualificação. O percentual da força de trabalho francesa com menos de segundo grau completo que procura mas não acha um emprego é de 15,1% (2017), sendo de 10,8% a média dos países da OCDE. No caso dos indivíduos com ensino superior completo, a taxa de desemprego é de 4,7% (França) e 4,1% (média da OCDE). [4] Temos, assim, uma economia com elevada produtividade em todos os seus setores e que absorve mão-de-obra muito educada, sendo o ajuste realizado via taxa de desemprego da força de trabalho pouco qualificada.

Nesses casos, a desigualdade se alimenta pela qualidade do emprego (serviços), no caso do Japão, e pelo desemprego, no caso francês.

Essa discussão merece ser levada em consideração, no caso do Brasil, uma vez que, se as iniciativas para elevar a produtividade nos serviços chegam a se traduzir em resultados concretos, desdobramentos sobre a estrutura das taxas de desemprego e as desigualdades podem não ser desprezíveis. Logicamente, como sempre, seria interessante abrir o heterogêneo setor serviços entre aqueles nichos modernos, articulados com a indústria de transformação, integrantes dos circuitos mundiais de comércio, factíveis de incorporar as novas tecnologias, etc. daqueles subsetores associados a atividades para os quais as possibilidades de potenciais ganhos de produtividade são bem mais reduzidos e absorvem mão-de-obra com pouca qualificação. Seria interessante tentar identificar se nosso bom e velho trade-off entre equidade e eficiência não vai se insinuar por insólitas fendas.

Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

Bibliografia Citada.

Arbache, J., Produtividade no Setor Serviços, in De Neri; Cavalcanti (2015)

………………, O Problema de Inflação de Serviços. Blog Economia de Serviços. 14/01/2016. (Disponível em: https://bit.ly/2LuIu49; consultado em dezembro de 2018)

Clark, C.,The Conditions of Economic Progress. London: Macmillian. 1957.

Fernanda De Negri, F.; Cavalcante, L.R., (Org), Produtividade no Brasil: desempenho e determinantes . Determinantes. v. 2. Brasília: IPEA. 2015.

Matos dos Santos, D.H., et.al. A natureza da inflação de serviços no Brasil: 1999-2014 Economia e Sociedade. v. 27, n. 1. p.199-231. 2018.

Menezes Filho, N., Educação, produtividade e inflação. Valor Econômico. 19/04/2013. (Disponível em: https://bit.ly/2rLNB7j; consultado em dezembro de 2018).

Veloso, F.; Cavalcanti, P.; Matos, S.; Pereira Coelho, P., “Produtividade do Setor de Serviços no Brasil: Um Estudo Comparativo”. FGV. 2016. (Disponível em: https://bit.ly/2T3IECo; consultado em dezembro de 2018).

  1.  Fonte: Natixis/OCDE.
  2.  Fonte: Employment Outlook. OCDE. 2018. Os dados por nível de educação não são contabilizados para o Japão, uma vez que sua classificação (em termos de níveis de estudo) é particular e não possibilita uma comparação com os outros países da OCDE. Assim, utilizamos as faixas etárias para fins de confrontação e estamos supondo que as menores faixas etárias têm uma qualificação (dada pela experiência) menor.
  3. Fonte: Employment Outlook. OCDE. 2018. Esses dados correspondem ao ano de 2016. Segundo a classificação da OCDE, os baixos salários são definidos como sendo aqueles que correspondem a 2/3 do salário mediano.
  4.  Fonte: OCDE.

Um Nobel para a Economia de Serviços?

Em outubro deste ano o Prêmio Nobel de Economia foi concedido a Paul Romer (em conjunto com William Nordhaus) “for integrating technological innovations into long-run macroeconomic analysis.”[1] Os modelos de crescimento endógeno introduzidos por Romer na década de 1980 incorporaram explicitamente a decisão de firmas e indivíduos de investir em novas ideias e inovação. Na época, esta aparentemente óbvia contribuição significou um grande avanço sobre os modelos existentes que tratavam mudança tecnológica com algo exógeno. O fato de Paul Romer ser agraciado neste momento com o prêmio máximo na área das Ciências Econômicas pareceria indicar que esta linha de pesquisa está vibrante e repleta de conquistas. No entanto, este não é o caso. A concessão do Prêmio a ele já era esperada a vários anos. Ele conta inclusive que quando recebeu o telefonema na segunda-feira de manhã de 8 de outubro de 2018, achou que era um trote, pois há vários anos nesta época já vinha recebendo este tipo de brincadeira. Certamente a escolha do Sr. Romer é justa e merecida, mas não deve ser interpretada como chancelando a supremacia dos modelos por ele criados. De fato, a revista The Economist, na coluna Free Exchange do dia 13 de outubro analisa da seguinte forma o legado desta linha de pesquisa:

Os modelos de crescimento ‘endógenos’ produzidos pelo Sr. Romer, e por outros influenciados por ele, já foram aclamados como o passo crítico para entender os padrões de crescimento econômico em todo o globo. Estes modelos não atenderam à expectativa: conhecimento pode ser necessário para atingir crescimento, mas claramente não é suficiente. No entanto, as próprias limitações destes modelos têm sido importantes para levantar questões sobre as teimosas disparidades em taxas de crescimento entre países. … Ao provocar tais questões, o trabalho do Sr. Romer identificou uma rica veia para outros pesquisadores explorarem. (The Economist, Oct. 13, 2018, traduzido do inglês)[2]

E não é somente The Economist que pensa assim. Em uma entrevista concedida alguns anos atrás em Hong Kong, o próprio Paul Romer afirmou o seguinte sobre o estado da arte dos modelos de crescimento:

Nós tivemos um estouro de teorias de crescimento nas décadas de 1950 e 1960. Depois, crescimento saiu de moda. Teorias de crescimento endógeno surgiram no começo dos 1980 e perseguiram uma nova direção. Desde os 2000, a área de crescimento tem estado quieta. Há trabalho sendo feito em aplicações empíricas da teoria de crescimento, mas francamente eu acho que muito do que está sendo feito na direção de examinar os fundamentos do crescimento está perseguindo um beco sem saída. Assim, não é necessariamente algo ruim que a área esteja parada por um tempo. (Romer, 2015: 13, traduzido do inglês)[3]

Mais adiante ele deixa claro quais são estes esforços que estão explorando ‘becos sem saída’. Sem medo de controvérsias ele explicitamente critica três linhas de pesquisa proeminentes na área de crescimento, cada uma associada a outros nomes de peso: Jeffrey Sachs e o papel de ajuda internacional, Daron Acemoglu e James Robinson e a economia política do crescimento, e Esther Duflo e Abhijit Banerjee com experimentos randomizados.[4]

Mas se o Sr. Romer não tem mais fé e interesse na área de crescimento econômico, a qual área e temas ele tem dedicado sua mente ainda inquieta? Quando perguntado pelo entrevistador o que ele acha das três linhas de pesquisa mencionadas acima ele deixa claro: “Quer saber, eu não concordo com nenhuma destas três. Eu acho que urbanização é o que devemos estudar” (pg. 14). Ele nota que existe no mundo uma demanda não atendida por oportunidades urbanas para bilhões de pessoas. Muita desta demanda será atendida pelo aumento das cidades já existentes, mas uma parte significativa será, e já vem sendo, provida por novas cidades criadas especificamente com este propósito. Esta possibilidade tem um potencial maior do que praticamente qualquer outra política pública para afetar o bem-estar de enormes contingentes de pessoas no futuro, e por isto deveria ser um tema prioritário para economistas e outros especialistas. Há algum tempo, Paul Romer já vem trabalhando nesta área, não só no nível acadêmico, mas principalmente como ativista e perito, instigando e aconselhando governos. O Urbanization Project que fundou na New York University trabalha tanto com expansão urbana como com a criação de novas cidades, e tem o objetivo de “harness the growth of cities to speed up global progress.”[5]

Uma das principais vias pelas quais Romer vem explorando a noção de urbanização planejada como solução dos problemas econômicos de países e sociedades é através da criação de Charter Cities.[6] Inspiradas no papel que Hong Kong e Zonas Econômicas Especiais tiveram em fomentar a modernização e o crescimento econômico da China, as Charter Cities envolvem a construção de cidades novas a partir do zero em uma área concedida por um país e no qual o governo do país abriria mão de certa soberania permitindo a construção de leis, regras e governança diferentes do resto do país e que visassem criar um ambiente que atraísse voluntariamente investimentos, trabalhadores e moradores. A ideia é que não só o próprio ambiente fomentaria um ciclo virtuoso de migração e atividade econômica para se aproveitar das condições propícias criadas para este fim, mas eventualmente a cidade ‘contaminaria’ virtuosamente o resto da economia com seu exemplo e práticas. Romer esteve pessoalmente envolvido em um empreendimento de Charter City em Honduras, mas, fiel à sua personalidade contenciosa, abandonou o projeto quando sentiu que o governo Hondurenho quebrou sua promessa ao tentar interferir mais diretamente na criação da cidade. Atualmente há diversas outros projetos similares sendo perseguidos em outros países.

A ideia de planejar uma cidade a partir do zero é controversa. Opositores históricos a esta ideia, como Jane Jacobs[7] e James Scott[8] há tempos criticam a pretensão e arrogância embutida na ideia de achar que se pode controlar o sistema complexo que é uma cidade. O sub-título do livro de 1998 de James Scott expressa bem esta crítica: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Uma versão atual desta crítica está no livro de Geoffrey West (2018), Scale: The Universal Laws of Life, Growth, and Death in Organisms, Cities and Companies (Penguin Random House). Já uma visão mais simpática à ideia vem de outro economista renomado, Edward Glaser em (2011) Triumph of the City: How Our Greatest Invention Makes Us Richer, Smarter, Greener, Healthier, and Happier (Penguin Random House).

Seja como for, o ponto aqui é que a criação de uma nova cidade a partir de um terreno vazio para uma vibrante rede de infraestrutura, pessoas, firmas e atividades é necessariamente e acima de tudo um exercício em estabelecer e tecer uma gama intensamente diversificada e variada de serviços. É claro que o exercício envolve também criar de maneira pensada e planejada infraestrutura física (bairros, prédios, ruas, viadutos, etc.) e infraestrutura institucional (governo, polícia, tribunais, etc.) Mas, quase tudo que se pode imaginar acontecendo nesta futura cidade irá envolver serviços públicos e privados, que podem ser organizados e providos de maneira mais ou menos eficientes. A cidade precisa prever e prover habitação, transporte, comunicação, comércio, saúde, saneamento, educação, lazer, entre outros milhares de serviços que precisam ser coordenados entre si desde a fase de planejamento. O melhor ou pior funcionamento destes serviços irá afetar crucialmente a capacidade da nova cidade de atrair moradores e investidores, determinando assim a capacidade do empreendimento atingir o objetivo de melhorar a vida de grandes parcelas da população de seus países e de servir de exemplo para outras cidades vizinhas, conforme intenção declarada do projeto de Charter Cities. O tamanho do desafio e o tamanho do que está em jogo neste processo explica talvez por que alguém como Paul Romer teria dado as costas à linha de pesquisa que lhe rendeu tanto reconhecimento para se dedicar a algo ainda tão incipiente.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

Referências

  1. https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2018/press-release/
  2. https://www.economist.com/finance-and-economics/2018/10/13/paul-romer-and-william-nordhaus-win-the-economics-nobel .
  3. https://paulromer.net/interview-on-urbanization-charter-cities-and-growth-threory/index.html
  4. Paul Romer é um polemista inveterado. Tem alimentado uma briga acadêmica criticando figurões do nível de Robert Lucas, Ed Prescott e Thomas Piketty por ‘mathiness’, que é o seu termo para o abuso e mal uso de matemática em trabalhos acadêmicos com o intuito de esconder as falhas e premissas duvidosas (veja sua crítica em https://pubs.aeaweb.org/doi/pdfplus/10.1257/aer.p20151066). Mais recentemente, Romer foi despedido do cargo de Economista-chefe do Banco Mundial por brigas com vários membros do staff do banco sobre a qualidade da pesquisa realizada. Romer afirmou por exemplo que: “nunca em minha vida profissional eu encontrei tantos economistas profissionais que dizem tantas coisas que são fáceis e verificar e que acabam não sendo verdade.” (ver https://www.ft.com/content/be72f8e2-0144-11e8-9650-9c0ad2d7c5b5)
  5. http://www.stern.nyu.edu/experience-stern/about/departments-centers-initiatives/centers-of-research/urbanization-project .
  6. Sobre as Charter Cities, ver https://www.cgdev.org/article/charter-cities-qa-paul-romer.
  7. Jacobs, Jane. (1961) The Death and Life of Great American Cities. New York, Random House.
  8. Scott, James C.(1998) Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Yale University Press.

 

Cenário e perspectivas para o comércio de serviços no Brasil

Balanço de Pagamentos

O balanço de pagamentos (BP) de um país é o espelho contábil das transações entre seus residentes e não-residentes em um determinado período de tempo. Os resultados obtidos do BP possibilitam monitorar a magnitude e a direção do fluxo de recursos entre um determinado país e o restante do mundo (FEIJÓ et al., 2003).

Desconsiderando possíveis erros e omissões de mensuração, o BP pode ser dividido em três contas principais: (i) a conta capital; (ii) a conta financeira; e (iii) a conta corrente. Cada conta do BP é dividida entre receitas e despesas. As receitas são formadas pela soma de gastos de não-residentes no país do BP. Por outro lado, as despesas correspondem aos gastos dos residentes desse país no exterior.

O saldo de uma conta do BP consiste na subtração entre as suas receitas e despesas. Quando uma conta do BP apresenta saldo negativo, tem-se que a soma dos pagamentos vindos do exterior (por não-residentes) foi menor do que a soma dos pagamentos feitos para o exterior (por residentes). De maneira simplificada, no caso brasileiro, as receitas das contas do BP são mensuradas a partir do total de gastos no Brasil por estrangeiros; enquanto as despesas são representadas pelos gastos de brasileiros no exterior.

A mensuração do BP de cada país é padronizada conforme as regras dispostas no Manual de Balanço de Pagamentos e Investimento Internacional do Fundo Monetário Internacional (IMF, 2009). O BP brasileiro, por sua vez, tem o seu equilíbrio/saldo regulado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), sendo responsabilidade do Banco Central do Brasil (BCB) a compilação e publicação dos dados que o compõem[1].

Conta de serviços

A conta de serviços faz parte da conta corrente do BP. Para tal, compreende-se como “serviços” o conjunto das atividades que possam influenciar as condições de consumo ou comercialização de produtos ou ativos financeiros em um país (IMF, 2009). No caso brasileiro, esses serviços são divididos conforme as categorias listadas abaixo, na tabela 1.

Tabela 1 – Categorias, receitas, despesas e saldo da conta de serviços do BP brasileiro em 2017, em milhões de dólares.

Categorias Receitas Despesas Saldo
Aluguel de equipamentos $125,71 0,36% $16.963,68 24,83% -$16.837,97
Viagens $5.809,21 16,85% $19.001,63 27,81% -$13.192,42
Transportes $5.790,10 16,79% $10.765,30 15,76% -$4.975,20
Serviços de propriedade intelectual $642,16 1,86% $5.211,81 7,63% -$4.569,66
Telecomunicação, computação e informações $2.186,20 6,34% $3.859,36 5,65% -$1.673,16
Serviços governamentais $801,79 2,33% $2.035,92 2,98% -$1.234,13
Seguros $687,81 1,99% $1.358,43 1,99% -$670,61
Serviços culturais, pessoais e recreativos $313,08 0,91% $863,76 1,26% -$550,69
Serviços financeiros $679,07 1,97% $703,69 1,03% -$24,61
Serviços de manufatura sobre insumos físicos. $6,83 0,02% $1,65 0,00% $5,18
Construção $14,45 0,04% $1,44 0,00% $13,01
Serviços de manutenção e reparo $464,16 1,35% $206,38 0,30% $257,78
Outros serviços de negócio, inclusive arquitetura e engenharia $16.957,81 49,18% $7.355,76 10,77% $9.602,06
Total $34.478,39 100% $68.328,81 100% -$33.850,42

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a).

Observa-se que a conta de serviços brasileira de 2017 foi deficitária, registrando um montante de aproximadamente US$ -34 bilhões. De maneira simplificada, isso significa que o gasto com serviços por brasileiros no exterior superou o de estrangeiros no Brasil naquele ano. Portanto, podemos dizer que o país foi “importador de serviços” em 2017.

Atualmente, o Brasil é um dos maiores deficitários globais no setor de serviços (CNI, 2014; MDIC, 2018). As categorias da conta que mais contribuíram para esse déficit em 2017 foram as de aluguel de equipamentos, viagens, transportes e serviços de propriedade intelectual.

Contexto brasileiro

O histórico do BP brasileiro indica que o déficit da conta de serviços de 2017 não foi inédito na série de saldos do fluxo comercial dessa conta. Entre 1995 e 2004, o saldo em serviços se manteve em patamares próximos a US$ -5 bilhões. Nos 10 anos seguintes, registrou-se vertiginoso crescimento do déficit, aproximando-se de saldo de US$ -50 bilhões em 2014, conforme se observa no gráfico 1.

Gráfico 1 – Série histórica do saldo da conta de serviços do Brasil, por principais categorias, em milhões de dólares (2004-2017).

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a).

Entre 2005 e 2014, a categoria de viagens internacionais registrou o maior aumento na participação sobre o déficit de serviços no Brasil. Outra categoria que reforçou a negatividade da conta foi a de aluguel de equipamentos que, associada à dependência do setor de gás e petróleo de tecnologias estrangeiras, contabilizou déficits crescentes a partir de 2008 (CNI, 2014).

Cuiabano et al. (2013) estudaram a relevância das variações no câmbio e na renda para explicar o saldo decrescente da categoria “viagens” na conta de serviços brasileira até 2011. Conforme os autores, menores taxas de câmbio reais (fortalecimento da moeda nacional) tendem a reduzir o saldo da conta de serviços. Isso porque a valorização do real torna o gasto por brasileiros no exterior relativamente mais barato, o que incentiva a importação de serviços de outros países por parte do residente no Brasil. Ao mesmo tempo, o gasto em moeda estrangeira no Brasil se torna relativamente mais caro, um desincentivo às receitas da conta de serviços do país.

No que tange a variações na renda, aumentos da produção de um país tendem a incrementar gastos de seus residentes no exterior. Cuiabano et al. (2013) verificaram que a correlação entre acréscimos na renda doméstica e maiores déficits em viagens internacionais apresenta maior sensibilidade do que a de reduções na taxa de câmbio com o saldo dessa conta. Nesse sentido, espera-se que variações na renda possuam maior relação com mudanças no saldo da conta de serviços brasileira do que variações no câmbio; em módulo, a elasticidade-renda da demanda por serviços no Brasil é maior que a elasticidade-preço (câmbio).

Entre 2013 e 2016, a economia brasileira sofreu instabilidades que refletiram negativamente sobre a produção interna e a moeda nacional (recessão e desvalorização do real). Não obstante, o déficit da conta de serviços do país em 2016 foi aproximadamente um terço menor do que o déficit de 2013, reduzindo-se de patamares próximos a US$ -50 bilhões para cerca de US$ -30 bilhões.

Gráfico 2 – Saldo da conta de serviços, em milhões de US$, e variação do PIB brasileiros, em percentuais, entre 2009 e 2017.

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a) e IBGE (2018).

Do gráfico acima, também se verifica que a melhora dos indicadores de produção econômica em 2017 foi acompanhada de reversão da trajetória da curva do saldo da conta de serviços brasileira; com valor mais deficitário em relação ao ano de 2016.

No acumulado dos nove primeiros meses de 2017, registrou-se saldo de US$ -24.347 milhões na conta de serviços brasileira. No mesmo intervalo de 2018, o saldo da conta foi 1,9% menor, acumulando déficit de US$ -24.814 (BCB, 2018a). Como esperado, essa redução do saldo de serviços (aumento do déficit), acompanha expectativa de melhora dos indicadores de produção econômica: o acumulado do IBC-Br[2] registrou crescimento de 1,14% entre janeiro e setembro de 2018[3].

Perspectivas

Em setembro de 2017 foi criado o Grupo Técnico de Serviços (GT Serviços). Esse Grupo, alocado na Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (SE/Camex), busca promover a competitividade dos serviços brasileiros no exterior com o debate de políticas públicas para atender esse propósito (MDIC, 2018).

Nos últimos meses, a SE/Camex promoveu consulta pública para avaliação de proposta de Plano de Trabalho 2019/20 do GT Serviços. O plano compila uma série de medidas para desburocratizar o comércio de serviços no Brasil, com maior ênfase em simplificações tributárias a setores com alcance internacional[4]. Essa linha de atuação foi desenhada para reduzir as barreiras à participação brasileira no comércio de serviços, que são, hoje, de caráter essencialmente regulatório (PEREIRA, 2016).

Nesse sentido, segundo a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem espaço para promover maior produtividade na prestação e no comércio de serviços, podendo, para tal, utilizar-se das recentes inovações tecnológicas em informação e em comunicação (OECD, 2017). A melhora do país no ranking do relatório Doing Business 2019, do Banco Mundial, relata que alcançamos melhorias necessárias, mas ainda insuficientes, para destravar o setor (e o comércio) de serviços no país (WB, 2018).

Diante da conjuntura das contas públicas e da possível reforma administrativa à qual o Ministério da Indústria, Serviços e Comércio Exterior (MDIC) está sujeito nos próximos meses, cabe acompanhar se permanecerão a estrutura, as diretrizes e a continuidade dos trabalhos do GT Serviços. No caso de continuidade da política de promoção da competitividade, o maior desafio do Grupo será superar os entraves institucionais que limitam o fluxo comercial de serviços pelo país.

Segundo as últimas publicações do Relatório de Mercado Focus, espera-se relativa estabilidade das taxas de câmbio e crescimento do PIB, em aproximadamente 2,5% a.a., até 2020 (BCB, 2018b). Como vimos, nessas condições e considerando elevada elasticidade-renda da demanda por serviços no Brasil, a tendência é que a retomada do crescimento amplie o déficit na conta de serviços brasileira (CNI, 2014). Portanto, tudo o mais constante, uma maior participação do país como importador de serviços é garantida.

Luis Guilherme A. Batista é professor voluntário na Universidade de Brasília (UnB), bolsista da Capes, mestrando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Gestão Pública pela AVM, e bacharel em Ciências Econômicas pela UnB. Foi Coordenador de Projetos e Gestão de Indicadores do Ministério da Cultura, e Assistente no Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Atua nas áreas de defesa comercial e da concorrência.

Referências

Banco Central do Brasil [BCB]. (2018a). Série histórica do Balanço de Pagamentos – 6ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6). Visualizado em 05 de novembro de 2018. Disponível em https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/Seriehist_bpm6.asp.

BCB. (2018b). Focus – Relatório de Mercado. Visualizado em 14 de novembro de 2018. Disponível em https://www.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/readout/readout.asp.

Confederação Nacional da Indústria [CNI]. (2014). Serviços e Competitividade no Brasil, Brasília: CNI.

Cuiabano, S. M.; Bertussi, G. L.; Vasconcelos, E. B. X.; Machado, D. L. (2013). Saldo da Conta de Viagens Internacionais no Brasil: a Contribuição da Taxa de Câmbio Real Efetiva e da Renda. Revista Tempo do Mundo, v. 5, n. 1, pp. 89-108.

Feijó, C. A.; Ramos, R. L. O. [org.]. (2003). Contabilidade Social: a Nova Referência das Contas Nacionais do Brasil, Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª edição.

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World Bank Group [WB]. (2018). Doing Business in Brazil. Visualizado em 16 de novembro de 2018. Disponível em http://www.doingbusiness.org/en/data/exploreeconomies/brazil.

  1. Cf. Lei 4.595/64.
  2. Como o PIB referente ao 3º trimestre de 2018 não havia sido disponibilizado até a redação deste texto, o autor se baseou no Índice de Atividade Econômica do Banco Central, IBC-Br, indicador que é comumente utilizado como uma prévia do PIB.
  3. Cf. noticiado pelo O Estado de São Paulo em 16/11/2018. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,previa-do-pib-tem-recuo-de-0-09-em-setembro-ante-agosto-aponta-bc,70002610124.
  4. A proposta de Plano de Trabalho está disponível no sítio eletrônico da Consulta Pública SE/Camex 02/2018: http://camex.gov.br/noticias-da-camex/2097-consulta-publica-se-camex-n-02-gt-servicos.

Eles ficam altos? O Impacto do Acesso a Drogas nos Preços da Hospedagem

Poucos assuntos são tão presentes em cada esquina das cidades grandes de hoje em dia e possuem tão pouca pesquisa quanto as drogas. Temas mais convencionais, já consolidados na agenda mainstream, possuem dezenas de trabalhos com réplicas e tréplicas para cada variável, enquanto no que tange às drogas a literatura ainda se encontra no “O que são, o que comem e onde habitam?”

A ilegalidade na qual as drogas se encontram apresenta um grande entrave para a elaboração de estudos robustos e sem achismos, uma vez que informações se tornam praticamente inexistentes. A coleta de dados é bastante complicada, de forma que poucos conseguem fazê-la – como em Venkatesh e Levitt (2000). Isso faz com que as pesquisas fiquem um pouco limitadas, mas não menos interessantes. Até o momento, a maior parte das pesquisas se concentrava nas consequências orçamentárias da legalização (Miron, 2005) ou em questões de saúde e consumo (Bretteville-Jensen e Jacobi, 2011; Jacobi e Sovinsky, 2016; Palali e Van Ours, 2014). A pesquisa a ser tratada no resto deste texto, por exemplo, visa avaliar a existência de influência de Coffee Shops no mercado imobiliário de Amsterdam.

Os recentes movimentos de descriminalização e legalização da maconha têm servido como ótimo cenário para diversas pesquisas na área, tanto por trazerem consigo dados antes não existentes quanto por também proporcionarem grupos de controle e choques exógenos, em meio às mudanças legais. Até o momento, cada país que legalizou a maconha o fez à sua própria maneira, com modelos de legalização bastante heterogêneos. Todos eles têm como base, porém, a noção de que existe uma certa heterogeneidade entre os consumidores de cannabis e que a maior parte dos malefícios sociais vem, na verdade, do próprio fato da droga ser ilegal.

Miron e Zwiebel (1995) lançam um olhar econômico sobre o mercado das drogas. Para eles, pode-se classificar os consumidores em duas categorias, os dependentes químicos e os de uso recreativo. Estes, segundo os autores, respondem às mudanças nos preços das drogas assim como o consumidor mediano responde a mudanças em preços de bens “convencionais”, enquanto aqueles terão uma demanda pela droga muito mais inelástica. Isto é, responderão muito pouco a mudanças de preços, uma vez que o importante é saciar a necessidade química. Do lado da oferta, uma vez que todos os agentes ofertantes estão na ilegalidade, não há como solucionar disputas na justiça, como cobrança de dívidas, por exemplo. Além disso, uma vez na ilegalidade, cometer outro crime possui um custo adicional muito menor e é nessa situação que a violência se torna uma ferramenta factível para quem está no mercado das drogas. A grosso modo, para Miron e Zwiebel (1995), os maiores problemas relacionados às drogas – violência e criminalidade, resumidamente – são, na verdade, consequências de sua proibição, e não do consumo.

Este estudo ilustra de maneira breve o entendimento sobre as drogas que as autoridades responsáveis na Holanda passaram a ter, na década de 70. Durante os anos 70, começou-se a entender que o mais importante não era impedir o consumo de drogas em geral, como se é feito em quase todos os países hoje, mas sim garantir que os usuários e a sociedade como um todo sofressem os menores danos possíveis. Tendo isto em mente, era necessário mudar de um paradigma de guerra às drogas para um de redução de danos, no qual o Estado assiste à população em vez de puni-la.

Para adaptar e organizar as instituições à essa nova política de drogas, primeiro classificou-se as várias substâncias em dois grupos, baseado no nível de risco à sociedade em geral. O grupo I, com drogas tais como cocaína e LSD, por exemplo, contempla as substâncias cujo risco é reconhecido como inaceitável; já o grupo II, que engloba cannabis, seus derivados e alguns analgésicos, é composto pelas substâncias cujo risco é dado como tolerável.

Uma outra maneira que os holandeses encontraram para melhor controlar a forma pela qual o consumo de cannabis no país se daria foi a criação dos Coffee Shops. Os Coffee Shops são, basicamente, lojas que possuem permissão para vender cannabis e seus derivados e devem seguir uma série de restrições, tais como não vender bebidas alcoólicas; não vender para menores de idade e não permitir o consumo de outras drogas dentro do estabelecimento. Segundo as leis do país, o prefeito de cada cidade é quem decide se algum Coffee Shop pode ser aberto ou se algum deve ser fechado, de forma que o estoque de Coffee Shops nas cidades é completamente controlado pelas autoridades.

Desde seu início, a política de drogas é regularmente reavaliada a fim de corrigir aspectos antes não considerados pelas autoridades. Diferentemente de outros lugares onde a maconha foi legalizada, na Holanda até hoje os ganhos econômicos não são o ponto principal da política vigente, mas sim diminuir os danos das drogas e incômodos ao público. Dessa forma, o crescente turismo de drogas que se instalou no país acabou sendo malvisto por muitos políticos, de forma a pressionarem por medidas que aumentassem as restrições às drogas em gerais, principalmente a cannabis.

Junto a esse motivador, alguns grupos entenderam também que era necessário tomar medidas para diminuir a exposição de menores de idade à cannabis e seus derivados – embora exista estudos apontando diminuição do consumo da droga entre jovens (Simons-Morton, 2010). Como consequência dessa pressão, alguns prefeitos julgaram prudente criar cadastros de usuários, para permitir que apenas residentes comprassem na cidade, e outros acreditaram necessário fechar Coffee Shops próximos a escolas.

A cidade de Amsterdam começou a acatar essas mudanças a partir de 2011, sendo que os primeiros fechamentos se deram a partir de 2014. Os fechamentos foram realizados em função da distância que o Coffee Shop se encontrava da escola mais próxima, não podendo ficar a menos de 500m. Essa medida culminou no fechamento de cerca de 20 lojas baseado somente na distância para alguma escola.

O fato de os fechamentos se darem apenas devido ao posicionamento de escolas fez com que o choque no estoque de Coffee Shops da cidade pudesse ser considerado completamente exógeno aos estabelecimentos, isto é, não relacionados a eles.

Na literatura, é comum procurar impactos no mercado imobiliário quando se quer avaliar se determinada amenidade possui externalidades positivas ou negativas. Neste caso, nosso trabalho procurou avaliar se os Coffee Shops exercem alguma influência sobre os preços de imóveis ao seu redor. Para isso, utilizamos dados de aluguel de Airbnb na cidade, de 2014 até 2017, junto com informações espaciais como distância para transporte público; para o centro da cidade; quantidade de atrações turísticas nos arredores; índice de criminalidade da região, entre outras amenidades. A variável de interesse é o fato de ter o Coffee Shop mais próximo ao imóvel fechado ou não. Em outras palavras, temos uma variável binária que é igual a 1 caso o imóvel tenha tido o Coffee shop mais próximo dele fechado e 0 para o caso de o Coffee Shop mais próximo ter permanecido aberto.

Nós utilizamos um modelo de efeitos fixos, como de praxe na literatura de economia urbana, para quando se tem dados em painel, de forma que é possível controlar por fatores não observáveis porém constantes ao longo do tempo. Em um primeiro modelo, utilizamos apenas o fato de o Coffee Shop mais próximo ter fechado ou não. Em seguida, utilizamos essa informação junto com o fato de ele estar a menos de X metros do imóvel – variamos essa distância X de 250m até 1500m. Essa variação nos permite observar como a influência se comporta em distâncias variadas.
Nossos resultados mostram que ter o Coffee Shop mais próximo fechado fez com que os alugueis diminuíssem aproximadamente 2,5%, em média. Como é ilustrado na imagem, o fechamento de um Coffee Shop muito próximo possui uma influência significativamente maior no aluguel do que o fechamento de um Coffee Shop que se apresentava mais distante. O efeito do fechamento diminui de intensidade à medida que a distância aumenta até o ponto no qual deixa de ser significativo estatisticamente, para distâncias maiores de 500m.

Este resultado é bastante interessante pois, ao contrário do que muitos pensavam, é possível que a maconha tenha externalidades positivas em um cenário micro em uma cidade. Obviamente, esta pesquisa possui limitações, pois apenas com ela não é possível saber com certeza como os mercados reagiriam em outras cidades, por exemplo. Além disso, não é claro como imóveis regulares – fora da plataforma Airbnb – reagiriam, uma vez que é discutível se esse resultado é consequência do maior uso do Airbnb por turistas ou não, de forma que seria bastante interessante fazer este exercício com dados de imóveis convencionais.

Mesmo com todas essas limitações, esse estudo contribui para o início da construção de um conhecimento mais robusto sobre as drogas que foge de achismos e se baseia em dados e evidências. Ainda há muito o que se pesquisar sobre o assunto e como os mercados e agentes reagem às mudanças para assim podermos criar políticas que realmente contribuam para um melhor bem-estar da sociedade.

 Igor Koehne é mestrando em Teoria Econômica no Instituto de Pesquisas Econômicas/USP.

O desafio da governança regulatória

Em fevereiro deste ano, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou relatório econômico sobre o Brasil e uma das principais recomendações continuou sendo “aperfeiçoar a governança e reduzir a corrupção”, engrossando o coro de outras instituições e da academia no sentido de que é preciso reforçar o papel da governança regulatória no país.

Antes de falarmos sobre o que é governança regulatória e porque ela aparece com frequência nas recomendações de relatórios ou análises sobre a economia brasileira, é importante entender como surgiu a necessidade de se olhar para esse conceito. Na esteira das crises econômicas enfrentadas por boa parte dos países em desenvolvimento na década de 1980, o Estado se rendeu ao inevitável movimento de conceder à iniciativa privada a prestação de alguns serviços públicos. A teoria econômica deu suporte a esse movimento ao prever que essa relação público-privada seria benéfica para o bem-estar da população, para a sustentabilidade do investimento privado e também para a eficiência e qualidade do serviço prestado.

No entanto, segundo Correa et al. (2006), a transferência de ativos para a iniciativa privada pode não gerar as melhorias de bem-estar previstas na teoria econômica, caso não seja combinada com uma estrutura legal robusta, contratos apropriados e boa governança regulatória.

Então, o que é governança regulatória e por que ela é importante? Como o termo é amplo e, de certa forma, etéreo, são inúmeras as definições. Em comum é possível identificar a sua finalidade: garantir que a regulação seja bem concebida, implementada e que tenha enforcement. Como a governança pode alcançar esses objetivos? Para a OCDE (2012), ela precisa estar presente em todo o ciclo da política regulatória. Essa abordagem integrada implica em fortalecimento da coordenação, da comunicação, da consulta e da cooperação ao longo do ciclo da política pública.

No entanto, essas atividades não são necessárias apenas dentro de uma determinada agência reguladora, mas também entre diferentes instituições e esferas de governo. Quanto mais complexo o sistema, mais difícil de identificar os papeis de cada agente e fazê-los se comunicar e cooperar (a exemplo do caso brasileiro, no qual se tem agências reguladoras estabelecidas em diferentes níveis federativos e com competências superpostas).

De forma caricata e simplista, a situação é quase um problema de ação coletiva, no qual se sabe que a possibilidade de se obter um benefício para um grupo não é suficiente para gerar a ação coletiva necessária para o alcance desse benefício. Cada agência busca a melhor solução para os seus desafios regulatórios. Todavia, a falta de coordenação e cooperação pode gerar resultados ruins para a população.

E qual é a consequência de não se ter uma boa regulação? Quais são os custos associados à bad regulation e, consequentemente, quais são os benefícios de se investir em governança regulatória? Um cenário de alto risco regulatório eleva o custo do capital, o que resulta em um menor potencial de investimento e desenvolvimento tecnológico da economia. Com isso, projetos socialmente desejáveis não conseguem se financiar, tendo em vista o elevado retorno do capital exigido para compensar o risco regulatório e, além disso, o ambiente de negócios se torna pouco atrativo em razão da insegurança jurídica e do potencial de litígio que dela decorre.

Nessa linha, para melhorar o desempenho organizacional, reduzir conflitos, alinhar ações e trazer mais segurança para consumidores e investidores, os formuladores de política pública, a academia e demais órgãos de pesquisa se voltaram para o estudo e o desenvolvimento de estruturas de governança que maximizassem o benefício social esperado da regulação. De acordo com o Banco Mundial (2008), há um certo consenso de que governança importa para o desenvolvimento. Tal consenso é fruto, mesmo que não exclusivamente, do interesse em se trazer para a discussão evidências empíricas de que a boa governança está ligada ao desenvolvimento econômico.

Um dos exemplos mais bem sucedidos é o dos Indicadores de Governança Mundial (WGI) do Banco Mundial, que, ao fornecerem ferramentas para medir a governança e monitorar as alterações na sua qualidade (entre países e ao longo dos anos), servem de subsídio para orientar como as reformas de governança são projetadas, implementadas e avaliadas.

Observando a tendência do Brasil e da América Latina no item “qualidade regulatória” do WGI, é possível perceber que o país apresenta um desempenho, na média, inferior àquele da América Latina e do Caribe considerados de forma agregada. Desde 2013, o Brasil obteve resultados aquém daqueles alcançados em anos anteriores e aquém daqueles obtidos por países semelhantes. Esse desempenho, provavelmente, é reflexo da instabilidade política e do momento econômico pelo qual o país passa desde as eleições de 2014.

Entendido o papel da governança, vamos desconfiar de soluções “fáceis” ou “universais”, o que, às vezes, parece ser o caso associado à uma parte da literatura sobre o tema. A governança, per si, não é solução de todos os problemas, em especial para a corrupção, para os incentivos perversos das regras do serviço público e para os desafios intrínsecos à qualquer atividade regulatória.

Em julho deste ano, o IPEA publicou uma Nota Técnica que traz uma reflexão importante sobre essa questão. Em alguns casos, as recomendações de diversos órgãos ignoram gargalos e problemas estruturais do Estado. Os autores reforçam a impossibilidade de se “manter uma visão restrita de que a governança é apenas o resultado de um pacote de reformas e mudanças predefinidas e impostas de forma exógena por agentes que não consideram as particularidades do contexto político-institucional de atuação de cada organização do governo federal”. (IPEA, 2018)

Como dizia Descartes, não há solução fácil para um problema difícil. É fundamental compreender o sistema político-institucional dentro do qual os órgãos se inserem para que se construam soluções aplicáveis a cada contexto e para que a implementação de práticas de boa governança tenha como resultado uma política regulatória mais eficiente, trazendo de volta a confiança da iniciativa privada nas instituições e os resultados benéficos dessa relação público-privada.

Bruna de L. Araújo Souza é doutoranda em Economia na Universidade de Brasília (UnB). Mestre e Bacharel em Economia com interesse em regulação e parcerias público-privadas, em especial no setor de infraestrutura. Atualmente, é MSc candidate in Public Policy and Administration na London School of Economics and Political Science (LSE).

Fontes:

CORREA, P. et al. (2006). Regulatory governance in infrastructure industries: assessment and measurement of Brazilian regulators. Washington DC: The World Bank.

EBERHARD, A. (2007). Infrastructure regulation in developing countries: an exploration of hybrid and transitional models. In: Public-Private Infrastructure Advisory Facility (PPIAF) Working Paper no. 4. Washington, DC: World Bank.

IPEA. (2018). Governança pública: construção de capacidades para a efetividade da ação governamental. Nota Técnica n. 24. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8581/1/NT_24_Diest_Governan%C3%A7a.pdf

OECD. (2012). Recommendation of the council on regulatory policy and governance. Paris. Disponível em: http://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/2012-recommendation.htm

OECD (2018). Relatórios Econômicos OCDE – Brasil. Disponível em: https://www.oecd.org/eco/surveys/Brazil-2018-OECD-economic-survey-overview-Portuguese.pdf

WORLD BANK (2008). Governance Matters 2008. Disponível em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/pdf/WBI_GovInd08-5a.pdf

WORLD BANK (2018). Worldwide Governance Indicators. Disponível em: http://info.worldbank.org/governance/wgi/index.aspx#home

Agenda para competitividade no setor de serviços

O Brasil é um grande importador de serviços e opera recorrentemente com um dos maiores déficits globais neste setor (Em 2016, o Brasil foi o 21º maior importador de serviços, segundo Banco Mundial).

Em 2017, as importações de serviço foram de US$ 42,9 bilhões. As exportações foram de US$ 29,8 bilhões (MDIC, 2018), resultando um saldo negativo de US$ 13,1 bilhões. O déficit na balança de serviços foi quase 50% menor do que o registrado em 2016, quando as importações superaram as exportações em US$ 25 bilhões. Em 2015, o déficit foi de US$ 26,7 bilhões e em 2014, de US$ 27,7 bilhões.

O principal mercado das exportações brasileiras em 2017 foi os Estados Unidos. As vendas ao país somaram mais da metade do total exportado ( quase 54%). Os principais serviços exportados foram aqueles relacionados ao setor financeiro (quase 33%), seguidos dos serviços profissionais (19,8%) e os da Tecnologia da Informação (7%)

A diminuição do déficit deu-se também pelo aumento das exportações (em 2016, as vendas externas totalizaram US$ 18,6 bi e, em 2017 US$ 29,8 bilhões). Número que até então tinha se mantido praticamente estável nos anos anteriores (em 2014, as vendas externas somaram US$ 20,8 bilhões; em 2015, US$ 18,9 bi.) Para que esta tendência de alta seja uma constante estável, é necessário políticas capazes de promover a competitividade do setor como um todo, sem negligenciar políticas setoriais necessárias dada às especificidades de cada setor.

No Brasil, o setor exportador de serviços não enfrenta apenas barreiras externas de acesso a mercados, na medida em que os entraves internos são também responsáveis por dificultar e, em alguns casos, tornar inviável as exportações de serviços.

Em relação às barreiras externas, é importante mencionar a necessidade de se negociar acordos comerciais. O Brasil está atualmente negociando acordos com disposições relacionadas a serviços com a União Europeia, EFTA, México, Coreia do Sul, Chile e Canadá. Novas negociações que estão prestes a se iniciar também incorporarão o tema; como com Cingapura. É necessário, portanto, que sejam identificados interesses ofensivos e defensivos no setor de serviços no Brasil durante as negociações, de forma a garantir que esses acordos espelhem a realidade da economia de serviços no Brasil.

Em relação às barreiras internas, o setor exportador enfrenta problemas relacionados à burocracia, à incidência de tributos e à falta de financiamento para viabilizar as operações de exportação. As dificuldades perpassam, por exemplo, pela falta de uma definição clara de exportação de serviços no ordenamento jurídico brasileiro, dificuldade de enquadrar algumas exportações de serviços em operações beneficiárias de financiamento e de garantias à exportação, assim como a incidência de tributos internos na exportação/importação, contrariamente às disposições constitucionais, as quais excluem da incidência dos impostos nas operações de exportação de serviços.

Hoje, a única disposição que traz uma definição de exportação de serviços é a Lei Complementar nº 116/2003, que dispõe sobre o Imposto Municipal sobre serviços (ISSQN). Segundo o dispositivo, o imposto não incide sobre as exportações de serviços para o exterior do País, a não ser que elas sejam desenvolvidas no país, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.

A definição trazida por este normativo acaba sendo utilizada como parâmetro e como referência por outros dispositivos. A resolução do Simples Nacional também traz esta mesma disposição e o fisco federal se utiliza desta definição em algumas soluções de consulta.

A referência à Lei Complementar n. 116/2003 não seria problema, caso a definição não restringisse a interpretação do que é considerado ou não como uma exportação de serviços. Assim, ao utilizar como parâmetro a definição da Lei Complementar n. 116, exportações de serviços acabam sendo tributadas em nível municipal e federal e algumas operações acabam não sendo enquadradas como exportação de serviços para fins de obtenção de financiamento e garantia ás exportações.

A cobrança de tributos fere frontalmente a disposição constitucional de que os municípios deverão excluir da incidência de tributos municipais as exportações de serviços para o exterior (art. 156, § 3º, II da CF).

É necessário, portanto, alterar a definição de exportação presente na Lei Complementar n. 116/03, pois ela trará ganhos não apenas em termos de isenção de ISS. Na verdade, os benefícios são ainda maiores, pois o ISSQN, ao deixar de ser cobrado, também deixaria de compreender a base de cálculos de outros tributos. Ainda, com uma definição de serviços mais clara, será possível desenvolver políticas para o setor de forma mais eficaz.

É necessário, portanto, revisar a definição trazida pela Lei Complementar n. 116/2003. A nova definição de serviços deve levar em consideração os compromissos assumidos no âmbito do Acordo Geral do Comércio de Serviços da OMC (GATS), na medida em que tanto o Modo 01 quanto o Modo 02 referem-se a serviços executados no Brasil em benefício de pessoas estabelecidas no exterior.

Faz-se necessário, neste sentido, imprimir, em um eventual conceito de exportação de serviços, a ideia de que o “ consumo, fruição, uso, aproveitamento” do serviço ocorra no exterior, independentemente se realizado ou não no Brasil. Assim, é necessário assegurar que, ainda que o serviço seja prestado no Brasil, ele poderá ser considerado uma exportação, na medida em que ele é “ consumido” no exterior. Essa premissa, vale ressaltar, também está de acordo com as diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O setor exportador de serviços necessita de políticas capazes de promover a competitividade dos serviços brasileiros no mercado global. Por conta disso, foi criado, no âmbito da Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior, o Grupo Técnico de Serviços (GT Serviços), com o objetivo de discutir e propor políticas públicas, mais especificamente de comércio exterior, para o setor de serviços. A ideia é abarcar questões internas de competitividade que impactam as exportações e importações de serviços.

As atividades do GT perpassam por iniciativas que vão desde a melhoria do ambiente de negócios, medidas de financiamento e garantias às exportações, economia de serviço e comércio eletrônico, facilitação do comércio de Serviços e reforço de coordenação governamental.

É premente necessidade de políticas que confiram maior estabilidade e previsibilidade para o setor empresarial. Essas dificuldades fazem com que empresas brasileiras busquem se estabelecer em países que fazem fronteira com o Brasil para aproveitar das facilidades trabalhistas e tributárias desses países.

Natasha Martins do Valle Miranda é analista de comércio exterior, atualmente exerce a  função de Assessora Técnica na Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior. Possui Mestrado em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP) e gradução em direito.

 

 

Quais são os serviços mais importantes para o comércio no Brasil?

Partindo da hipótese que os serviços mais intensamente utilizados são os mais críticos para a competitividade do setor de comércio no Brasil, as Pesquisas Anuais do Comércio (PAC) do IBGE possuem informações úteis para a reflexão proposta. O comércio, setor que absorve cerca de 20% da mão de obra nacional, ganhou relevância ao longo das últimas duas décadas, passando de cerca de 8% para 14% do PIB[1].

Os segmentos empresariais do comércio são organizados e tabulados em três categorias distintas: comércio de veículos automotores, peças e motocicletas; comércio por atacado; e comércio varejista. Na PAC, essas categorias se desdobram em grupos, classes e subclasses de atividades: até 2007, a pesquisa possuía 15 grupos, 24 classes e 5 subclasses, enquanto, as mais recentes, 17 grupos, 24 classes e 5 subclasses. Entre 1996 e 2007, a estrutura das pesquisas teve como referência a CNAE versão 1.0, e a partir de 2008 foi substituída pela CNAE versão 2.0, dando origem a uma nova série, com maior nível de desagregação das atividades econômicas do que as versões anteriores. A divulgação do ano de referência 2008 apresentou resultados retroativos a 2007 utilizando a CNAE 2.0. Por isso, a junção das pesquisas exige a superação de um problema metodológico: a compatibilização setorial entre as classificações CNAE 1.0 e 2.0. Como não é possível fazer uma junção direta das versões, uma nova classificação foi criada para obter séries temporais mais longas. Feita uma análise das correspondências dos agrupamentos da PAC com seus códigos CNAE correspondentes com a utilização das notas metodológicas das Pesquisas, utilizou-se os dicionários “de-para” do CONCLA (IBGE) para analisar a relação entre os códigos CNAE nas duas versões. Por fim, uma agregação para criação da nova série foi necessária, resultando em uma nova classificação com 20 segmentos, conforme mostrado na tabela abaixo [2].

Em síntese, seguindo a classificação original da PAC, o primeiro segmento compreende a venda por atacado e a varejo de veículos automotores e motocicletas novos e usados e de peças e acessórios para esses veículos, possui cerca de 9% das empresas e do faturamento do setor, e firmas com tamanho médio entre 5 e 10 funcionários (2016). O comércio atacadista em geral é uma etapa intermediária da distribuição e está organizada para vender mercadorias em grandes quantidades a varejistas, a usuários industriais, agrícolas, comerciais, institucionais e profissionais. Na classificação criada, ele contém oito segmentos e o tamanho das firmas é naturalmente superior ao comércio varejista, tendo ambos os segmentos 45% do faturamento, porém o atacado com 8% do número de empresas. O comércio varejista, o último elo da cadeia de distribuição, possui em média firmas menores (com exceção dos supermercados e hipermercados, que possuem mais de 100 funcionários em média) e revende mercadorias novas e usadas principalmente ao público em geral, para consumo ou uso pessoal ou doméstico (tanto em lojas abertas quanto por internet, televisão, etc.).

Adaptando a metodologia de Arbache (2014) para os dados da PAC, foram construídas duas variáveis para entender a importância dos serviços para o setor: Consumo Intermediário (CI) e Consumo Intermediário de Serviços (CIS). O CI refere-se ao consumo de bens e serviços realizado para o funcionamento da atividade comercial, enquanto o CIS compreende apenas os itens de serviços do Cl [3]. A análise da relação entre CIS e CI mostra que o grau de serviços envolvidos no funcionamento das atividades de comércio no Brasil manteve-se relativamente estável no período de 2003 e 2016, com maior relevância dos serviços no comércio varejista (73% em 2016), seguido do comércio de veículos, peças e motocicletas (55%) e atacadista (50%).

As figuras abaixo mostram com mais detalhes a estrutura de serviços consumidos pelos três segmentos do comércio ao longo do tempo, para as empresas com 20 ou mais pessoas ocupadas.

Destaca-se a relevância dos serviços prestados por terceiros, aluguéis e publicidade e propaganda. Em conjunto, esses itens representam mais de 80% do consumo de serviços das empresas comerciais no Brasil. Além disso, de forma geral a estrutura se manteve ao longo do tempo, com destaque para a diminuição relativa dos gastos com correio, fax, telefone, internet, energia elétrica, gás, água e esgoto. Dentre os serviços terceirizados, predominam as despesas com fretes e carretos (distribuição de mercadorias vendidas) e serviços técnicos-profissionais prestados por empresas (serviços de informática, de auditoria, contábeis, jurídicos, consultorias, pesquisas de mercado etc.) em todos os grupos e subgrupos, que tiveram suas participações aumentadas ao longo do tempo.

Por fim, nota-se que o setor é heterogêneo, de modo que não há um modelo comum na distribuição dos principais serviços consumidos em segmentos que possuem padrões tecnológicos e estruturas de mercado diferentes. Por exemplo, no comércio por atacado de matérias primas agrícolas e animais vivos, que comercializa tipicamente commodities, as despesas de propaganda representaram 3% das despesas com serviços em 2016, enquanto que no atacado de produtos farmacêuticos, médicos, odontológicos e veterinários, elas foram de 37%.

Diante do exposto, verifica-se que a pergunta do título deste post não possui resposta singular, uma vez que a composição dos serviços varia no tempo conforme o segmento de comércio. Contudo, é possível afirmar, de modo geral, que a terceirização de serviços é de extrema relevância para o setor, em especial dos serviços técnico-profissionais e transporte rodoviário de cargas.

[1] Ver o post “Breve panorama sobre o setor de comércio no Brasil”, disponível em:  https://economiadeservicos.com/2018/06/12/breve-panorama-sobre-o-setor-de-comercio-no-brasil/.

[2] Nem todas as classes da seção G da CNAE fazem parte da PAC. Nas edições de 1996 a 2007, são excluídos, embora façam parta da seção G da CNAE 1.0, as classes 50.20-2 e 50.42-3; grupo 51.1; e os grupos 52.6 e 52.7.  Ademais, são excluídos do âmbito da PAC a partir de 2008, embora façam parte da seção G da CNAE 2.0, classes 45.20-0 e 45.43-9; e  grupo 47.9. Além disso, embora incluídos, os representantes comerciais foram desconsiderados neste estudo. Na correspondência entre CNAE 1.0 Classe e CNAE 2.0 Classe, os grupos 50.2, 52.6 e 52.7 da CNAE 1.0 possuem correspondência com outras seções da CNAE e com os grupos 45.2 e 47.9 da CNAE 2.0, que não fazem parte da PAC feita no âmbito da CNAE 2.0. Para verificação da compatibilização setorial, foi realizada uma comparação de todos os dados referentes ao ano de 2007, nas duas classificações (CNAE 1.0 e CNAE 2.0), com a versão criada. Embora haja algumas diferenças pontuais em algumas variáveis, as principais não apresentaram diferenças maiores que 5%.  Especificamente para o ano de 2007 foi utilizado a média dos resultados nas versões 1.0 e 2.0, na nova classificação. Ademais, a análise do número de firmas para o ano de 2007 nas duas classificações mostra que influência de efeito composição da mudança do número de firmas sob certa classificação setorial pode ser considerada irrelevante. Ademais, manteve-se a macroestrutura da classificação criada com aquelas originárias da PAC, ou seja, segmentos do mesmo ramo de atividade se mantiveram juntos dentro da nova classificação. A estrutura prévia foi mantida inalterada para três divisões. A atividade de Representantes comerciais e de agentes de comércio, que na CNAE 1.0 estava no âmbito da Pesquisa Anual de Serviços – PAS, passou, na CNAE 2.0, a ser investigada na PAC, porém foi excluída do escopo deste estudo. Por fim, cumpre destacar que o sistema de classificação industrial padrão (Standard Industrial Classification – SIC), no qual a CNAE se baseia, classifica as lojas de varejo e atacado de acordo com os tipos de mercadorias que estão sendo transferidos para o consumidor.

[3] Mais especificamente, “Corresponde à soma de compras de matérias-primas para fabricação própria e sua respectiva variação de estoques; compra de material de embalagem e outros materiais (de reposição, peças etc.) e sua respectiva variação de estoques; aluguéis de imóveis, veículos, máquinas e equipamentos; serviços prestados por terceiros; serviços de comunicação; energia elétrica, gás, água e esgoto e outras despesas operacionais”. Algumas dessas variáveis estão presentes nos resultados desagregados das empresas com mais de 20 pessoas ocupadas, mas outras não. A estratégia usada foi utilizar a soma das despesas totais no ano, exclusive o pagamento de impostos e taxas, mais o custo das matérias-primas e dos materiais de embalagem utilizados na atividade comercial. O detalhamento dos diversos itens de custos e despesas das empresas para estimar o consumo intermediário nos níveis mais detalhados é mostrado abaixo.

Referências Bibliográficas

Arbache, 2014. Confederação Nacional da Indústria. Serviços e Competividade no Brasil / Confederação Nacional da Indústria. – Brasília: CNI, 2014.

IBGE. Pesquisas Anuais de Comércio 1996-2016.

Simplificações Interpretativas, a Mãe de todos os Males e a Economia dos Serviços

Em 26 de julho, neste Blog,  publicamos um artigo (https://bit.ly/2MWI36M) no qual argumentamos que associar a intensificação das desigualdades, a dualização do mercado de trabalho, a perda de dinamismo nos ganhos de produtividade, etc. à crescente participação do setor serviços nas economias seria um reducionismo interpretativo factível de ser objetado  teoricamente, mas, sobretudo, empiricamente. Podiam existir elementos que associem ambos os fenômenos, mas seria simplista e pouco elucidativo fazer uma banal amálgama entre ambas tendências.

Quase exatamente um mês depois, o Departamento de Pesquisas do Banco de Investimento Natixis, em uma publicação enviada a seus clientes (https://bit.ly/2CsooqF) apresenta não unicamente uma interpretação radicalmente discrepante da nossa, senão que seus argumentos sintetizam com meridiana claridade essa fusão rudimentar que tentávamos relativizar.

Basicamente, os argumentos dos pesquisadores do Natixis apontam para paulatina transformação das economias contemporâneas em economias preponderantemente de serviços como sendo a origem de aspectos pouco desejáveis (redução do crescimento potencial, segmentação dos empregos, guerras comerciais, etc.) no contorno que vai adquirindo a modernização de nossas sociedades.

Quatro seriam dos desfechos mais controversos da desindustrialização das economias.  

A globalização e o comércio mundial seriam penalizados, uma vez que os serviços são preponderantemente “non-tradables”.  

Simultaneamente, a demanda de bens industrializados estaria perdendo fôlego por diversos fatores: saturação dos mercados mundiais, baixa elasticidade-renda por seus produtos, envelhecimento da população, etc.. As mesmas variáveis redundariam em um forte dinamismo na procura pela oferta proporcionada pelos serviços, fato que explicaria a crescente transformação das nossas sociedades em economias de serviços.   Sucede que essa saturação estaria induzindo a uma incessante guerra comercial pela conquista de um mercado mundial (de bens industrializados) cada vez menos dinâmico pelo lado da demanda e, simultaneamente, uma oferta crescente pelos ganhos de produtividade. Essa guerra forçaria aos gestores de política a apelar à utilização das taxas de câmbio, ao sistema tributário/subsídios e à redução de custos (via flexibilização da legislação trabalhista, por exemplo) a fim de conquistar ou manter a participação nos mercados mundiais de bens manufaturados.  

Uma vez que os serviços não seriam tão dinâmicos no tocante a ganhos de produtividade, essa idiossincrasia teria um corolário quase direto no mercado de trabalho.  A outra face da baixa produtividade seriam postos de trabalho que requerem trabalho não qualificado e, conseqüentemente, que pagam baixos salários. O “wageless growth” das últimas décadas seria uma das seqüelas da transformação da economia mundial em uma economia de serviços.

Por último, o quarto desfecho não desejável seria o comprometimento, no longo prazo, do crescimento potencial.  O setor agora mais dinâmico (os serviços), com seu anêmico aumento na produtividade, acabaria contaminando toda a economia, fato que explicaria a redução nos ganhos de produtividade quando a base de comparação são os supostos anos dourados da industrialização (entre o fim da segunda guerra mundial e o segundo choque do petróleo).

Resumindo, para o Departamento de Pesquisas do Natixis, na paulatina substituição do antigo núcleo dinâmico centrado na indústria de transformação pelo setor serviços estaria a raiz da maioria das disfuncionalidades que hoje singularizam a economia mundial.  Diagnóstico reducionista e simplista, mas com um algum apelo intuitivo e que goza de certo prestígio em nichos acadêmicos e instituições que defendem posições corporativas.

A análise divulgada pelo Natixis apresenta uma série de fragilidades que podem ser identificadas sem fazer apelo a sofisticados modelos teóricos ou a primorosas técnicas econométricas. Sem pretender esgotar o tema, vamos mencionar algumas delas.

Quando compara as trajetórias temporais, na maioria dos gráficos apresentados no informe a seus clientes, o Natixis segmenta setorialmente a economia em dois setores: indústria/não-indústria.  Um primeiro aspecto que não contribui para tornar o debate mais robusto empiricamente diz respeito a uma agregação um pouco esdrúxula, uma vez que tudo o que é não-indústria seria sinônimo de serviços, fusão pouco rigorosa tecnicamente.  Porém, assumamos que tudo o que é não-indústria seja serviços. Mesmo nesse caso, estaríamos diante de um conjunto tão heterogêneo que uma média seria pouco representativa do todo. Mencionamos em nosso artigo anterior neste Blog que o setor denominado serviços agrupa uma diversidade de segmentos que vão desde atividades umbilicalmente vinculadas à indústria de transformação, oferta comercializável nos mercados mundiais até mesmo aqueles subsetores que popularmente são assimilados ao setor terciário (fast-foods, serviços pessoais, etc.).  Ao avaliar o comportamento (em termos de PIB, produtividade, emprego, salários, etc.) de um aglomerado tão multifacetado vis-à-vis à indústria de transformação os resultados pouco elucidam.

Os gráficos apresentados pelo Natixis para provar suas hipóteses indicam uma “desindustrialização” do emprego e, coincidentemente, o período temporal escolhido corresponde a uma suposta precarização do mercado de trabalho (geração de postos de trabalho de baixa produtividade).  Sucede que a série histórica escolhida é posterior à década de 90. Em nosso artigo, indicamos que a “desindustrialização” do emprego é antiga, não começa nos anos 90 e já existia uma “desindustrialização” do emprego nos anos dourados das economias centrais. Se o horizonte escolhido fosse mais prolongado, essa superposição de fenômenos seria menos evidente e inibiria identificar relações de causalidade onde sequer existe correlação. Por outra parte, mesmo admitindo que ambos os fenômenos se registrem em paralelo, sabemos que correlação não implica ordem de causalidade.  

Mas conservemos os anos 90 como base de comparação.  Aceitemos esse início temporal e também admitamos que “não-indústria” é um agrupamento análogo ao setor serviços.  O Natixis parece aceitar o modelo canônico segundo o qual existe uma proximidade muito estreita entre salários e produtividade.  Nesse sentido, sempre segundo o Flash Economics do Natixis, a “desindustrializaçao” do emprego (que seria sinônimo de “servirização” dos postos de trabalho) estaria na origem do “wageless-growth”.  Como já mencionamos, uma vez que o setor mais dinâmico na geração de empregos é o serviços e este não apresenta expressivos ganhos de produtividade, o corolário óbvio seriam salários estagnados. Sucede que, nos gráficos apresentados pelo Natixis, a trajetória dos salários (a inclinação de sua evolução) nos serviços é bem próxima à observada no setor da indústria.  Existe um gap (favorável à indústria), mas a inclinação da evolução é similar. Em outros termos, as taxas de variação parecem bem próximas. Assim, se os salários estão determinados pela produtividade e estes tem uma variação equivalente, significa que os ganhos de produtividade evoluem de forma também próxima nos dois setores. Ou, em caso contrário, estamos diante do Modelo de Boumol: na hipótese de um mercado de trabalho não segmentado, os salários nos serviços (mesmo sem ganhos de produtividade) acompanham a produtividade da indústria.  Mas, neste caso, podemos até ter uma redução do crescimento potencial, mas não um mercado de trabalho dual e fica em aberto a plausibilidade de um “wageless-growth”.

A ambigüidade é ainda maior quando abandonamos a mediação dos salários para auferir a produtividade e diretamente visualizamos a trajetória da mesma. Nos próprios gráficos apresentados pelo Natixis, quando o referencial são as economias da OCDE parece existir uma ruptura total entre evolução dos salários e trajetória da produtividade.  Os salários crescem (como afirmamos) a taxas próximas nos dois setores (indústria/não-indústria), mas a produtividade da indústria aumenta de forma permanente ficando quase estagnada no setor serviços (não-indústria). Pergunta: por que na OCDE se verifica uma defasagem entre salários e produtividade nos serviços ? Aqui estamos no Modelo de Boumol na sua forma mais pura.  Os salários nos serviços estão sendo “puxados” pelos ganhos de produtividade na indústria ?

Direcionemos, agora, a nossa atenção para os dados da economia mundial, também apresentados pelo Natixis. Espanto: agora já não temos mais esse descasamento entre evolução da produtividade na indústria e a não-indústria e os salários acompanham a evolução da produtividade em ambos os setores. Quando a referência é a economia mundial deixa de ser relevante diferenciar setorialmente indústria/não-indústria e retomamos o modelo canônico em sua forma mais pura: salários e produtividade crescem a taxas próximas em ambos os setores.  Em outros termos: o comportamento de salários e produtividade correm pari-passu, não faz mais sentido segmentar.  

Digreção: o que diferencia as economias maduras da OCDE do resto do mundo?  Por que o Modelo de Boumol parece corresponder às economias mais desenvolvidas, mas não no restante do mundo ?  Por que os ganhos de produtividade nos serviços (não-indústria) acompanham a indústria nos países não-OCDE mas não nestes últimos ?  Será que estamos falando de “serviços” que são qualitativamente diferentes ? Os ganhos de produtividade na “não-indústria” nos dados da economia mundial, refletem a migração da força de trabalho da agricultura de subsistência para os espaços urbanos nos países em desenvolvimento (China por exemplo) ? Mas se a resposta a esta última pergunta é positiva, faz sentido a agregação em uma categoria “não-indústria” a um conjunto tão heterogêneo de atividades que abrange desde a agricultura de subsistência até a produção de softwares ?

Estas perguntas nos sugerem um espaço em aberto para pesquisas, onde temos mais perguntas que respostas.  Nesse sentido, a conclusão do Natixis (“The world’s transformation into a service economy can therefore be considered a negative development, if it leads to a non-cooperative policies, a slowdown in global trade, poor-quality jobs and weaker growth”) nos parece ousada, prematura, simplista e sua verificação empírica merece esforços mais aprimorados.  Por outra parte, se essa força gravitacional dos serviços é inexorável (até pelos motivos expostos pelo próprio Natixis) e os desdobramentos negativos, quais são os graus de liberdade para alterar os resultados desse processo ? Menor crescimento potencial, sociedades mais segmentadas, guerras comerciais se alastrando, etc., esse é o futuro vindouro e inevitável ?  Se todas essas disfuncionalidades têm como berço o setor de serviços, contornar essa prospecção passaria pelo voluntarismo de re-industrializar o mundo ?

Infraestrutura e serviços de infraestrutura: um breve olhar sobre o caso brasileiro

Tendo em vista a atual conjuntura brasileira de retomada ainda tímida de crescimento e grande restrição fiscal por parte do Estado, num contexto de teto de gastos públicos aprovado para as próximas duas décadas, o setor privado terá papel fundamental na realização de investimentos no país, em especial para os principais setores de infraestrutura, como é o caso dos setores de telecomunicações, energia, transportes e saneamento. Além disso, há ainda muito a melhorar na governança e atuação do setor público, com escolhas economicamente mais racionais de projetos, com a uniformização de práticas e a adoção de avaliações de impacto socioeconômico, por exemplo.

Mas o que é infraestrutura? Infraestrutura é “o conjunto de estruturas de engenharia e instalações – geralmente de longa vida útil – que constituem a base sobre a qual são prestados os serviços considerados necessários para o desenvolvimento produtivo, político, social e pessoal” (BID, 2000). Partindo desse conceito, podemos perceber complementariedade entre os chamados serviços de infraestrutura – que visam satisfazer às necessidades de um indivíduo ou de uma sociedade e são considerados serviços de interesse público; e a própria infraestrutura – que é a base física sobre a qual se dá a prestação destes serviços (IPEA, 2010).

Dessa forma, a infraestrutura seria representada por rodovias, ferrovias, terminais portuários e aeroviários, torres de telecomunicação, cabos de transmissão de energia elétrica (entre outros exemplos) que dão a possibilidade de oferta/prestação de serviços de infraestrutura. Já os serviços de infraestrutura são o frete rodoviário, ferroviário, aquaviário, aeroviário (transporte de mercadorias e/ou pessoas de um ponto a outro do território), o transporte urbano de uma cidade (linhas de ônibus, metrô e trens usados pelos cidadãos), os planos oferecidos por uma operadora de celular, etc. Todos esses exemplos de serviços se utilizam do capital físico instalado.

No setor de transportes, por exemplo, quando uma concessionária ganha uma licitação para a exploração da infraestrutura rodoviária e, portanto, passa a ter direitos e deveres contratuais firmados com o poder concedente (o Estado ou um representante do mesmo), todas as obras de manutenção, restauração e ampliação da capacidade da rodovia estarão incrementando os investimentos em infraestrutura, gerando então potencialmente maior estoque de capital fixo e adicionando estrutura física que será utilizada e usufruída pelos prestadores de serviço daquele setor e seus usuários de modo geral.

O setor de transportes, assim como outras áreas da infraestrutura – transportes, energia, saneamento e telecomunicações – possuem grande impacto no crescimento econômico de um país. Há vasta literatura que comprova que maiores investimentos em infraestrutura (fluxo) e maior estoque de capital fixo no setor (mais rodovias, maior capacidade energética instalada, etc.), ou seja, maior estoque de infraestrutura, levam a maior crescimento do produto e também elevam a produtividade, além de reduzirem a desigualdade de renda (Aschauer, 1989; Calderón e Servén, 2004; Ferreira e Maliagros, 1998).

Ainda, no caso específico do setor de transportes, os impactos são bastante relevantes, com efeitos de encadeamento para frente e para trás, relacionando-se ainda de modo importante com outros setores da economia. Para alguns produtos – como a soja e o milho – o valor final no porto é composto em mais da metade pelo chamado custo logístico. Portanto, mais uma vez, voltamos ao fato de que a infraestrutura física e seus serviços acessórios compõem o preço final dos produtos que produzimos e consumimos, seja para o consumo interno, seja para o consumo externo (por meio de exportações).

Dada a má qualidade média das rodovias brasileiras (comprovada pela série histórica das pesquisas anuais da CNT, com exceção das rodovias concedidas à inciativa privada, em especial as do estado de São Paulo) e sua relativa escassez (baixa densidade rodoviária quando comparada a outros países, com exceção também do estado de São Paulo), fatores esses somados ao fato de que cerca de 60% das cargas no Brasil são transportadas via modo rodoviário, percebemos que ainda temos muito a avançar nessa área.

A questão dos fretes, seu valor, sua rapidez, sua segurança, seu adequado manejo das mercadorias, o cumprimento de prazos, entre outros aspectos, ganhou notoriedade recentemente por conta da “greve dos caminhoneiros”, tendo já sido reportados impactos negativos dessa situação sobre o crescimento econômico do país (que foi revisado para baixo esse ano) e sobre a taxa oficial de inflação (que aumentou e elevou o índice esperado para o ano como um todo).

Isto posto, a infraestrutura (base física) precisa ser ampliada. Isso será feito, provavelmente e em grande parte, com a atuação do setor privado. Os programas de concessões foram intensificados nos últimos anos e muitos avanços foram feitos nos desenhos dos editais, contratos e regulamentos, como é o caso dos modos rodoviário e aeroviário. Aprimoramentos interessantes foram incorporados ao longo do tempo, como os gatilhos de demanda, o fator X, o fluxo de caixa marginal, entre outros. Ademais, maior participação do capital privado estrangeiro também tem sido verificada nos últimos 2 anos, tanto no setor de transportes quanto no setor elétrico. Nesse ponto, o papel maior do Estado daqui em diante seria de proporcionar condições macroeconômicas, institucionais e regulatórias apropriadas, robustas e condizentes com o objetivo de gerar incentivos e apoiar o investidor privado – seja ele de dentro ou de fora do país.

Em relação aos serviços de transporte de carga, em especial no caso dos fretes rodoviários, deveria tratar-se de mercado de livre concorrência, cujos preços deveriam seguir as forças de mercado (oferta e demanda). Por isso o “tabelamento de preços”, sancionado pelo Presidente da República em 09 de agosto de 2018, deve ser analisado de modo bastante crítico. O mais importante nesse caso é tentar ampliar e incentivar ganhos de produtividade no setor. Isso pode ser alcançado por meio de algumas inciativas distintas. A primeira seria aumentando o investimento na base física (melhorando a qualidade das rodovias, equipamentos, etc). A segunda forma seria ampliar a capacitação dos trabalhadores do setor (trabalhadores mais qualificados tendem a errar menos e terem melhores relações com seus clientes e fornecedores). A terceira seria promovendo melhorias institucionais, com ênfase na independência e profissionalização das agências reguladoras, tanto em âmbito federal, quanto estadual. Por fim, o incentivo à inovação permitiria o aumento na capacidade da prestação de serviços e até mesmo a abertura de novos mercados. Em resumo: avancemos na agenda de buscar maior produtividade!

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.

 

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Referências

Aschauer, D. (1989) “Is Public Expenditure Productive?” Journal of Monetary Economics, 23, pp. 177-200.

Calderón, C.; Servén, Luis. (2004). The Effects of Infrastructure Development on Growth and Income Distribution. Policy Research Working Paper; No.3400. World Bank, Washington.

Ferreira, P.C. and T. Maliagros (1998) “Impactos Produtivos da InfraEstrutura no Brasil — 1950/95”, Pesquisa e Planejamento Econômico, v.28, n.2, pp.315-338.

IPEA (2010). Infraestrutura Econômica no Brasil: diagnósticos e perspectivas para 2025. Livro 6, Volume 1. Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro.

Comércio exterior de serviços e balança de pagamentos no Brasil

A figura 1 mostra o comércio de serviços no Brasil desde 1976. O saldo do comércio de serviços foi sistematicamente negativo no período e observam-se dois movimentos de mudança de patamar do déficit: um a partir do final dos anos 1980 e um segundo, mais intenso, a partir de 2004. Em ambos os casos, o aumento do déficit se explica majoritariamente pelo crescimento das importações, o que deu origem a uma espécie de “boca de jacaré”. Em 2014, o déficit chegou a nada menos que US$ 48 bilhões. Ao que parece, teria havido mudança estrutural no comércio de serviços.

De fato, a elasticidade do crescimento das importações de serviços com relação ao crescimento do PIB é de 2,28 para o período completo. Já a elasticidade do crescimento das exportações é de 1,11. Teste de mudança estrutural sugere quebra da série em 2004. Recalculamos as elasticidades para antes e depois daquele ano e encontramos 1,37 e 4,28, e 0,13 e 3,38, respectivamente, para importações e exportações.

Esses números sugerem, primeiro, que as importações de serviços são mais sensíveis à atividade econômica que as exportações; segundo, que, embora ambas as variáveis tenham se tornado substancialmente mais sensíveis à economia a partir de 2004, o coeficiente de importações é significativamente maior que o de exportações; e, terceiro, caso a economia volte a crescer à taxas similares à do produto potencial, que é da ordem de 2,5%, então, tudo o mais constante, observaremos considerável elevação do déficit da conta de serviços.[1]

A figura 2 mostra o saldo comercial total e, separadamente, os saldos comerciais das contas de bens e de serviços. Observa-se que a conta de serviços exerce elevada e crescente influência no saldo comercial total. Embora a corrente de comércio de serviços seja de apenas 1/5 da corrente de comércio de bens, o déficit da conta de serviços praticamente determina o saldo comercial total.

A figura 3 mostra decomposição do saldo comercial total em seus componentes —  os saldos comerciais de bens e de serviços. Conforme sugerido acima, os saldos comerciais no Brasil são “pautados” pelo desempenho da conta de comércio de serviços. Assim, anos com saldos comerciais totais mais modestos ou até negativos são anos com relativamente elevados déficits comerciais da conta de serviços, e vice-versa.

Déficit na conta de serviços não é, necessariamente, um problema. Afinal, pode-se estar importando insumos que elevam a competitividade e a produtividade. Porém, ainda assim, preocupações emergem quando a conta de serviços segue trajetória sistemática de crescimento do déficit, o que pode dar origem à um constrangimento estrutural das contas externas que, eventualmente, pode vir a se tornar um “freio” ao próprio crescimento econômico. Este poderá ser o caso do Brasil.

De fato, para além de elasticidades e de patamar de déficit comercial já elevado, há razões para se esperar aceleração do déficit da conta de serviços ao longo dos próximos anos e, dentre elas, estão as que seguem:

  1. Os serviços estão se tornando tradable e muitos serviços que tradicionalmente são providos localmente por empresas nacionais ou estrangeiras estão, e cada vez mais, sendo providos a partir de terceiros países. Ali incluem-se serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos mas, também, serviços de custos. Essa mudança já está reescrevendo a geografia dos investimentos e do comércio do setor de serviços;
  2. Liderados pelos Estados Unidos, países ricos com fortes interesses ofensivos em serviços estão fazendo intensa pressão para a liberalização dos mercados de serviços e para a convergência técnica e regulatória do setor, que é, na prática, o fator mais determinante do comércio do setor ;
  3. Os preços relativos dos serviços, incluindo os com demanda mais inelástica, seguem trajetória de forte crescimento com relação a preços de manufaturas e de commodities, aumentando a parcela dos produtores, gestores e distribuidores de serviços no valor agregado, em detrimento dos compradores de serviços. A mudança de preços relativos se deve à fatores como concentração de mercados e imposição de padrões técnicos privados em serviços, que fomentam e garantem a formação de “quase-monopólios”;
  4. Devido à mudanças tecnológicas de produção e de gestão da produção, a parcela dos serviços, incluindo os digitais, na formação do valor adicionado de bens, commodities e outros serviços já é elevada, mas seguirá aumentando, beneficiando os produtores, distribuidores e gestores de serviços (pense na smile curve de cadeias globais de valor);
  5. O consumo B2C e B2B de serviços, incluindo os digitais, que já é elevado, deverá aumentar ainda mais ao longo dos próximos anos;
  6. O efeito-rede e o efeito-plataforma conferem enormes poderes para os desenvolvedores e gestores de plataformas e têm criado espaço para práticas discriminatórias que distorcem os mercados.

A ausência, no país, de políticas industriais, políticas de financiamento, políticas de investimentos e políticas de comércio exterior para o setor de serviços deverá aumentar a dependência de serviços importados e a fragilidade das contas externas. Assim, tudo o mais constante, o país terá que fazer enorme esforço exportador de bens e commodities para mitigar os crescentes déficits comerciais de serviços.

O tema é, certamente, complexo e, infelizmente, poucas pessoas se interessam pelo assunto. Mas o tempo não para e já passou da hora de colocarmos o setor de serviços nas agendas das políticas pública e privada.

  1. A mudança na trajetória das importações e das exportações de serviços a partir de 2014 se explica, ao menos em parte, pela recessão e pelo envolvimento de grandes empresas de engenharia brasileiras em problemas de governança, o que afetou consideravelmente as exportações de projetos e de outros serviços de engenharia.
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