Economia de Serviços

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Tag: Redes Complexas

O papel dos serviços na complexidade econômica – parte I

Este é um post de uma série no blog que abordará o papel da complexidade no desenvolvimento econômico. O primeiro texto introduziu o leitor à análise da complexidade por meio de cadeias produtivas, utilizando uma matriz mundial de insumo-produto, a WIOD. Os resultados do exercício proposto no primeiro texto apontaram para a capacidade das atividades industriais de servirem como hubs, de conectar setores, podendo funcionar como catalizadores de outras atividades. Esses resultados, entretanto, compõem apenas uma parte do quebra-cabeças do desenvolvimento econômico. O presente texto encaixará mais uma das inúmeras peças desse quebra-cabeças, respondendo (parcialmente) à seguinte questão: qual é o papel dos serviços na complexidade?

Antes de responder à questão, é importante lembrar que os serviços representam um espectro de atividades que não podem ser tratadas de maneira homogênea. Desta maneira, seguindo a proposta de Arbache, os serviços são divididos em duas categorias: serviços de valor e de custos. Serviços de valor são aqueles que contribuem para a customização e a diferenciação dos produtos, como P&D, design, projetos de engenharia, serviços técnicos especializados, serviços sofisticados de TI, softwares customizados, branding e marketing. Já o segundo grupo de serviços é composto por aqueles que afetam principalmente os custos de produção, como logística e transportes, infraestrutura, viagens e acomodação. As duas categorias de serviços se distinguem não somente pela natureza da atividade, como, também, pela função que elas desempenham na complexidade econômica.

A aplicação da metodologia de Hausmann e Hidalgo aos dados da WIOD permite identificar quais economias e quais atividades são as mais complexas sob a ótica de cadeias produtivas, levando em conta a gama complexa de conexões entre os setores ao longo do processo produtivo e capturando melhor o processo pelo qual se embute valor a produtos.

A WIOD compreende as relações de insumo-produto entre 56 setores de 43 países, totalizando 85% do PIB mundial.  Os setores foram classificados como serviços de valor, serviços de custos, industriais ou primários. Todas as economias da amostra são emergentes ou desenvolvidas. Portanto, os resultados desse exercício devem ser interpretados apenas para o estágio intermediário e o avançado de desenvolvimento.

Resumidamente, países que têm competitividade em atividades complexas tendem, também, a serem complexos. Desta maneira, é importante saber se algum dos quatro tipos de atividade é mais complexo.  A Figura 1 apresenta a complexidade média das atividades, de acordo com o setor de fornecimento e de demanda. O primeiro quadrante dessa figura é o que abarca os setores que possuem complexidade média positiva, tanto como fornecedores quanto como demandantes. Todos os serviços de valor – pintados de amarelo – estão incluídos no primeiro quadrante, indicando que essas atividades contribuem para a complexidade de um país. O segundo grupo de atividades que mais se destaca na Figura 1 são os serviços de custos, em laranja. Já os setores industriais e primários, pintados de azul e vermelho, respectivamente, apresentam, em geral, médias de complexidade negativas. Isto não significa que os setores industriais não tenham função no desenvolvimento de uma economia, algo que já foi parcialmente coberto no primeiro texto da série.

O Índice de Complexidade da Economia (ICE) revela a importância dos serviços de valor nos estágios mais avançados do desenvolvimento econômico de um país. A correlação do índice de serviços de valor* com o ICE e com o PIB per capita é de 0,82 e de 0,73, respectivamente. Os resultados não são surpreendentes, já que o desenvolvimento e a gestão de ideias e tecnologias, atividades tão importantes nas economias mais desenvolvidas, estão incluídas no bojo dos serviços de valor.

A Tabela 1 confronta, para 2014, o ranking de complexidade dos países de Hausmann e Hidalgo ao construído com os dados da WIOD. As diferenças entre esses rankings são bem representadas pelo caso do Japão. A economia japonesa é a mais complexa no exercício tradicional, que utiliza dados de exportação de bens. Entretanto, ao utilizar os dados de insumo-produto, que capturam melhor o papel dos serviços, o Japão cai para a 33ª posição de complexidade. Essa pode ser uma das razões para as quais a economia japonesa esteja encontrando dificuldades para crescer nas últimas décadas.

Os serviços de valor são uma peça-chave no quebra-cabeças do desenvolvimento econômico. Economias que têm competitividade nessas atividades tendem a ser mais complexas. Entretanto, o serviço de valor não é maná que cai do céu. Na verdade, sendo o desenvolvimento econômico resultado de um processo típico de sistemas complexos, é essencial observar que essas atividades necessariamente interagem com outras variáveis para produzir complexidade econômica.

Nesse âmbito, qual seria o papel dos serviços de custos para o desenvolvimento econômico? E o relacionamento entre indústria e serviços na trajetória do desenvolvimento econômico? A construção de um espaço-produto com dados de insumo-produto será vital para responder a estas questões, que serão elucidadas nos próximos posts sobre o tema.

*o índice de serviços de valor é a parcela dessas atividades no consumo intermediário

Fonte: Elaboração própria, WIOD. Foram calculadas as médias das complexidades da atividade de acordo com o setor de fornecimento e de demanda. A figura relaciona as complexidades médias por fornecimento e demanda, diferenciando o tipo de setor por cor. Em amarelo, estão os serviços de valor. Em laranja e azul, estão os serviços de custo e os setores industriais, respectivamente. Em vermelho, os setores primários.

Fonte: Elaboração própria, WIOD, Hausmann e Hidalgo (2014). A Tabela lista as posições das economias nos
rankings de complexidade. O Ranking WIOD é o proposto neste trabalho. Ranking HH segue a classificação de Hausmann e
Hidalgo (2014), com dados de exportação de bens. Não há disponibilidade de dados para Taiwan no ranking de Hausmann e Hidalgo.

 

A Economia Mundial como Rede Complexa

Esse é o primeiro de uma série de textos no blog que abordarão o papel da complexidade no desenvolvimento econômico. Complexidade é aquilo que se observa em um sistema composto por um grande número de agentes inter-relacionados, sem controle central, cujo comportamento global emergente não pode ser explicado ou previsto pela soma do comportamento individual dos agentes. O estudo da complexidade, bem como do mapeamento das interações em um sistema complexo, ou seja, das redes complexas, não é originário das ciências sociais. Dentre as aplicações de origem mais conhecidas, estão, por exemplo, pesquisas sobre a relação entre genes, proteínas e metabólitos para o compreender o funcionamento das células e pesquisas sobre as conexões neurológicas para entender as funções cerebrais. Nas últimas décadas, entretanto, a aplicação das redes complexas ganhou tração nas ciências sociais, sendo identificadas em cidades, na internet, no mercado financeiro, no comércio internacional, entre outros.

Aplicar conceitos de outros campos de estudo não é novidade para os economistas há um bocado de tempo: os pais do marginalismo, Walras e Jevons, revolucionaram nosso campo de estudo ao importarem da Física Mecânica as noções de equilíbrio estável e otimização restrita. Utilizando o instrumental de ciência de redes e complexidade, provavelmente o trabalho que até hoje obteve maior impacto na Economia é o de Hausmann e Hidalgo. Ao observar dados de exportação de bens, esses autores concluíram que o desenvolvimento econômico de um país está intimamente relacionado com o que ele produz. Países mais desenvolvidos seriam aqueles que produzem bens mais complexos, geralmente industriais, como máquinas e computadores, enquanto os menos desenvolvidos seriam especializados em produzir produtos primários, como soja.

Os primeiros passos dados para compreender a natureza do desenvolvimento econômico no âmbito da complexidade fizeram renascer o debate sobre o papel da indústria na trajetória virtuosa de acumulação de riqueza pelos países. Nesse primeiro artigo sobre o tema, proponho que alterar a base de dados do trabalho seminal de Hausmann e Hidalgo pode contribuir para esse debate, lançando algumas conclusões iniciais. Apesar do pioneirismo brilhante em se utilizar exportações de bens para observar o desenvolvimento de um país, esses dados ignoram as relações econômicas desempenhadas domesticamente, bem como a importância dos serviços para a geração de valor econômico, que representam quase 70% do produção mundial. Ademais, atrelar a geração de valor a bens finais também pode ser inadequado, uma vez que está cada vez mais relacionada ao conceito de atividades. Nesse sentido, observar a cadeia produtiva capturaria melhor o processo pelo qual se embute valor a produtos, levando em conta a gama complexa de conexões entre os setores ao longo do processo produtivo. A cadeia produtiva do iPhone, por exemplo, envolve pesquisa e desenvolvimento, design, desenvolvimento de plataforma e de sistema operacional, marketing, produção de semicondutores e de telas de LCD, montagem do produto e diversas outras atividades.

Para operacionalizar a análise de complexidade por meio de cadeias produtivas, utilizo uma matriz mundial de insumo-produto, a WIOD. Essa base de dados compreende as relações entre 56 setores de 43 países, totalizando 85% do PIB mundial. A WIOD apresenta a relação econômica que cada setor de cada país tem com todos os outros setores de todos os países. Para os 2408 “agentes” – setores produtivos – da economia mundial, há quase 6 milhões de conexões que compõem essa malha econômica. Após tratamento de dados*, restaram cerca de 30.000 conexões, com um número médio de conexões por setor-país igual a 18. Os dados da economia mundial de 2014 foram plotados no aplicativo de redes Gephi, via algoritmo de visualização OpenOrd. Veja o resultado abaixo.

Cada nó representa um setor de um país. O tamanho do nó é a soma das suas conexões, ou seja, tanto do que foi oferecido como do que foi demandado de insumos de outros setores. A cor de cada nó segue um algoritmo de detecção de comunidades de acordo com as relações que cada nó tem com seus pares. Como é de se esperar, a cadeia produtiva se organiza de maneira a possuir maior relacionamento entre setores do mesmo país. Dessa maneira, mesmo sem forçar tal resultado, há a formação de agrupamentos de mesma cor, que representam, ultimamente, um país. Os setores brasileiros – os nós verdes ao lado da China – possuem natureza marginal na cadeia global de valor. Estão pouco conectados a setores externos e, quando conectados, a poucos países. Curiosamente, o país mais conectado aos setores brasileiros é a China, não os Estados Unidos.

Note, também, a posição central dos setores estadunidenses na rede. Isso ocorre, em boa parte, devido à grande importância dos setores aos quais os setores americanos estão conectados. A eigencentralidade, uma das diversas medidas de importância de cada nó na rede, captura esse efeito “diga-me com quem andas que eu te direi quem és”. Já a centralidade de intermediação mede a capacidade de um nó de transmitir informação para toda a rede, como um broker. Se para “caminhar” entre dois nós quaisquer da rede, deve-se passar frequentemente por um nó específico, esse nó possuirá grande centralidade de intermediação.

De acordo com os resultados da Tabela 1 abaixo, os nós que possuem as maiores estatísticas de centralidade na rede são os setores industriais. Dessa maneira, a participação desses setores nas cadeias domésticas e globais de valor não somente revela a capacidade de contribuir diretamente à geração de valor, já que são os maiores nós da rede, como também a capacidade de conectar diversos setores ao longo do processo de produção, já que são os nós mais centrais da rede. O mais importante, certamente, é essa capacidade de servir como hubs, de conectar setores, pois ela amplifica o papel indutor que as atividades industriais possuem, similar à ideia de backward e forward linkages, proposta por Hirschman décadas atrás. Antes de fazer qualquer análise sobre a complexidade econômica das atividades industriais, é importante ressaltar, portanto, que essas atividades demandam e são demandadas por soluções que muitas vezes transbordam o seu escopo, gerando inovação e ganhos econômicos difusos. Não à toa, apesar de representar 15% do valor adicionado do PIB da União Europeia em 2015, a indústria correspondeu por 64% dos investimentos totais em P&D.

O estudo da economia mundial como rede complexa pode auxiliar a compreender a função que atividades econômicas desempenham nesse grande emaranhado produtivo. Estatísticas de redes apontam a importância das atividades industriais como conectores econômicos, podendo funcionar como catalizadores de outras atividades. Para escapar da armadilha da renda média e garantir o desenvolvimento econômico, seria suficiente, portanto, apenas industrializar um país? E qual seria o papel dos serviços? E o relacionamento entre indústria e serviços na trajetória do desenvolvimento econômico? Internalizar o instrumental de redes complexas parece ser importante para chegarmos um pouco mais perto de responder a essas perguntas. Entretanto, só conseguiremos usufruir eficientemente desse novo instrumental caso consigamos debater o problema de maneira agnóstica. Quem sabe, assim, para a ciência econômica, não se concretize a previsão de Stephen Hawking feita em 2000: I think the next century will be the century of complexity.

*O tratamento de dados consistiu em agrupar alguns setores para viabilizar a comparação entre setores de países e a aplicação de um filtro de US$200 milhões para facilitar a visualização da rede.