Economia de Serviços

um espaço para debate

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Simplificações Interpretativas, a Mãe de todos os Males e a Economia dos Serviços

Em 26 de julho, neste Blog,  publicamos um artigo (https://bit.ly/2MWI36M) no qual argumentamos que associar a intensificação das desigualdades, a dualização do mercado de trabalho, a perda de dinamismo nos ganhos de produtividade, etc. à crescente participação do setor serviços nas economias seria um reducionismo interpretativo factível de ser objetado  teoricamente, mas, sobretudo, empiricamente. Podiam existir elementos que associem ambos os fenômenos, mas seria simplista e pouco elucidativo fazer uma banal amálgama entre ambas tendências.

Quase exatamente um mês depois, o Departamento de Pesquisas do Banco de Investimento Natixis, em uma publicação enviada a seus clientes (https://bit.ly/2CsooqF) apresenta não unicamente uma interpretação radicalmente discrepante da nossa, senão que seus argumentos sintetizam com meridiana claridade essa fusão rudimentar que tentávamos relativizar.

Basicamente, os argumentos dos pesquisadores do Natixis apontam para paulatina transformação das economias contemporâneas em economias preponderantemente de serviços como sendo a origem de aspectos pouco desejáveis (redução do crescimento potencial, segmentação dos empregos, guerras comerciais, etc.) no contorno que vai adquirindo a modernização de nossas sociedades.

Quatro seriam dos desfechos mais controversos da desindustrialização das economias.  

A globalização e o comércio mundial seriam penalizados, uma vez que os serviços são preponderantemente “non-tradables”.  

Simultaneamente, a demanda de bens industrializados estaria perdendo fôlego por diversos fatores: saturação dos mercados mundiais, baixa elasticidade-renda por seus produtos, envelhecimento da população, etc.. As mesmas variáveis redundariam em um forte dinamismo na procura pela oferta proporcionada pelos serviços, fato que explicaria a crescente transformação das nossas sociedades em economias de serviços.   Sucede que essa saturação estaria induzindo a uma incessante guerra comercial pela conquista de um mercado mundial (de bens industrializados) cada vez menos dinâmico pelo lado da demanda e, simultaneamente, uma oferta crescente pelos ganhos de produtividade. Essa guerra forçaria aos gestores de política a apelar à utilização das taxas de câmbio, ao sistema tributário/subsídios e à redução de custos (via flexibilização da legislação trabalhista, por exemplo) a fim de conquistar ou manter a participação nos mercados mundiais de bens manufaturados.  

Uma vez que os serviços não seriam tão dinâmicos no tocante a ganhos de produtividade, essa idiossincrasia teria um corolário quase direto no mercado de trabalho.  A outra face da baixa produtividade seriam postos de trabalho que requerem trabalho não qualificado e, conseqüentemente, que pagam baixos salários. O “wageless growth” das últimas décadas seria uma das seqüelas da transformação da economia mundial em uma economia de serviços.

Por último, o quarto desfecho não desejável seria o comprometimento, no longo prazo, do crescimento potencial.  O setor agora mais dinâmico (os serviços), com seu anêmico aumento na produtividade, acabaria contaminando toda a economia, fato que explicaria a redução nos ganhos de produtividade quando a base de comparação são os supostos anos dourados da industrialização (entre o fim da segunda guerra mundial e o segundo choque do petróleo).

Resumindo, para o Departamento de Pesquisas do Natixis, na paulatina substituição do antigo núcleo dinâmico centrado na indústria de transformação pelo setor serviços estaria a raiz da maioria das disfuncionalidades que hoje singularizam a economia mundial.  Diagnóstico reducionista e simplista, mas com um algum apelo intuitivo e que goza de certo prestígio em nichos acadêmicos e instituições que defendem posições corporativas.

A análise divulgada pelo Natixis apresenta uma série de fragilidades que podem ser identificadas sem fazer apelo a sofisticados modelos teóricos ou a primorosas técnicas econométricas. Sem pretender esgotar o tema, vamos mencionar algumas delas.

Quando compara as trajetórias temporais, na maioria dos gráficos apresentados no informe a seus clientes, o Natixis segmenta setorialmente a economia em dois setores: indústria/não-indústria.  Um primeiro aspecto que não contribui para tornar o debate mais robusto empiricamente diz respeito a uma agregação um pouco esdrúxula, uma vez que tudo o que é não-indústria seria sinônimo de serviços, fusão pouco rigorosa tecnicamente.  Porém, assumamos que tudo o que é não-indústria seja serviços. Mesmo nesse caso, estaríamos diante de um conjunto tão heterogêneo que uma média seria pouco representativa do todo. Mencionamos em nosso artigo anterior neste Blog que o setor denominado serviços agrupa uma diversidade de segmentos que vão desde atividades umbilicalmente vinculadas à indústria de transformação, oferta comercializável nos mercados mundiais até mesmo aqueles subsetores que popularmente são assimilados ao setor terciário (fast-foods, serviços pessoais, etc.).  Ao avaliar o comportamento (em termos de PIB, produtividade, emprego, salários, etc.) de um aglomerado tão multifacetado vis-à-vis à indústria de transformação os resultados pouco elucidam.

Os gráficos apresentados pelo Natixis para provar suas hipóteses indicam uma “desindustrialização” do emprego e, coincidentemente, o período temporal escolhido corresponde a uma suposta precarização do mercado de trabalho (geração de postos de trabalho de baixa produtividade).  Sucede que a série histórica escolhida é posterior à década de 90. Em nosso artigo, indicamos que a “desindustrialização” do emprego é antiga, não começa nos anos 90 e já existia uma “desindustrialização” do emprego nos anos dourados das economias centrais. Se o horizonte escolhido fosse mais prolongado, essa superposição de fenômenos seria menos evidente e inibiria identificar relações de causalidade onde sequer existe correlação. Por outra parte, mesmo admitindo que ambos os fenômenos se registrem em paralelo, sabemos que correlação não implica ordem de causalidade.  

Mas conservemos os anos 90 como base de comparação.  Aceitemos esse início temporal e também admitamos que “não-indústria” é um agrupamento análogo ao setor serviços.  O Natixis parece aceitar o modelo canônico segundo o qual existe uma proximidade muito estreita entre salários e produtividade.  Nesse sentido, sempre segundo o Flash Economics do Natixis, a “desindustrializaçao” do emprego (que seria sinônimo de “servirização” dos postos de trabalho) estaria na origem do “wageless-growth”.  Como já mencionamos, uma vez que o setor mais dinâmico na geração de empregos é o serviços e este não apresenta expressivos ganhos de produtividade, o corolário óbvio seriam salários estagnados. Sucede que, nos gráficos apresentados pelo Natixis, a trajetória dos salários (a inclinação de sua evolução) nos serviços é bem próxima à observada no setor da indústria.  Existe um gap (favorável à indústria), mas a inclinação da evolução é similar. Em outros termos, as taxas de variação parecem bem próximas. Assim, se os salários estão determinados pela produtividade e estes tem uma variação equivalente, significa que os ganhos de produtividade evoluem de forma também próxima nos dois setores. Ou, em caso contrário, estamos diante do Modelo de Boumol: na hipótese de um mercado de trabalho não segmentado, os salários nos serviços (mesmo sem ganhos de produtividade) acompanham a produtividade da indústria.  Mas, neste caso, podemos até ter uma redução do crescimento potencial, mas não um mercado de trabalho dual e fica em aberto a plausibilidade de um “wageless-growth”.

A ambigüidade é ainda maior quando abandonamos a mediação dos salários para auferir a produtividade e diretamente visualizamos a trajetória da mesma. Nos próprios gráficos apresentados pelo Natixis, quando o referencial são as economias da OCDE parece existir uma ruptura total entre evolução dos salários e trajetória da produtividade.  Os salários crescem (como afirmamos) a taxas próximas nos dois setores (indústria/não-indústria), mas a produtividade da indústria aumenta de forma permanente ficando quase estagnada no setor serviços (não-indústria). Pergunta: por que na OCDE se verifica uma defasagem entre salários e produtividade nos serviços ? Aqui estamos no Modelo de Boumol na sua forma mais pura.  Os salários nos serviços estão sendo “puxados” pelos ganhos de produtividade na indústria ?

Direcionemos, agora, a nossa atenção para os dados da economia mundial, também apresentados pelo Natixis. Espanto: agora já não temos mais esse descasamento entre evolução da produtividade na indústria e a não-indústria e os salários acompanham a evolução da produtividade em ambos os setores. Quando a referência é a economia mundial deixa de ser relevante diferenciar setorialmente indústria/não-indústria e retomamos o modelo canônico em sua forma mais pura: salários e produtividade crescem a taxas próximas em ambos os setores.  Em outros termos: o comportamento de salários e produtividade correm pari-passu, não faz mais sentido segmentar.  

Digreção: o que diferencia as economias maduras da OCDE do resto do mundo?  Por que o Modelo de Boumol parece corresponder às economias mais desenvolvidas, mas não no restante do mundo ?  Por que os ganhos de produtividade nos serviços (não-indústria) acompanham a indústria nos países não-OCDE mas não nestes últimos ?  Será que estamos falando de “serviços” que são qualitativamente diferentes ? Os ganhos de produtividade na “não-indústria” nos dados da economia mundial, refletem a migração da força de trabalho da agricultura de subsistência para os espaços urbanos nos países em desenvolvimento (China por exemplo) ? Mas se a resposta a esta última pergunta é positiva, faz sentido a agregação em uma categoria “não-indústria” a um conjunto tão heterogêneo de atividades que abrange desde a agricultura de subsistência até a produção de softwares ?

Estas perguntas nos sugerem um espaço em aberto para pesquisas, onde temos mais perguntas que respostas.  Nesse sentido, a conclusão do Natixis (“The world’s transformation into a service economy can therefore be considered a negative development, if it leads to a non-cooperative policies, a slowdown in global trade, poor-quality jobs and weaker growth”) nos parece ousada, prematura, simplista e sua verificação empírica merece esforços mais aprimorados.  Por outra parte, se essa força gravitacional dos serviços é inexorável (até pelos motivos expostos pelo próprio Natixis) e os desdobramentos negativos, quais são os graus de liberdade para alterar os resultados desse processo ? Menor crescimento potencial, sociedades mais segmentadas, guerras comerciais se alastrando, etc., esse é o futuro vindouro e inevitável ?  Se todas essas disfuncionalidades têm como berço o setor de serviços, contornar essa prospecção passaria pelo voluntarismo de re-industrializar o mundo ?

Serviços, leis de Kaldor e eficiência schumpeteriana

A literatura econômica kaldoriana considera a indústria o setor mais dinâmico, responsável pela disseminação do progresso técnico e pela capacidade de geração de crescimento endógeno e autossustentado. Para essa literatura o setor de serviços não apresenta ganhos de produtividade e não é capaz de gerar crescimento econômico persistente (KALDOR, 1966).

No período recente cresceu internacionalmente a literatura que defende a existência de uma relação de interdependência entre o setor de serviços intermediários e a indústria. As evidências encontradas por esta literatura mostram que o crescimento da produção industrial depende do crescimento do setor de serviços intermediários, sendo a expansão deste setor que viabiliza o surgimento de inovações, o crescimento e o aumento da produtividade da indústria. A ideia principal é a de que no processo de mudança estrutural, atividades mais nobres dos setores industriais e de serviços, intensivas em tecnologia e conhecimento, co-evoluem. Na trajetória de desenvolvimento das nações, a partir de determinado momento histórico, faz-se necessária a existência de uma elevada simbiose entre indústria e serviços, na medida em que atividades manufatureiras passam a demandar mais serviços especializados.

No artigo “Contribution of services to economic growth: Kaldor’s fifth law?” Adilson Giovanini e Marcelo Arend (autores deste post) questionam a existência de uma nova lei de Kaldor. Esta lei evidenciaria que à medida que os países se industrializam e passam a fabricar produtos cada vez mais sofisticados, se elevaria a demanda por maior volume de conhecimento. O desenvolvimento de um setor de serviços intermediários, especializado no fornecimento de soluções tecnológicas e gestão deste conhecimento, viabilizaria a fabricação de manufaturas avançadas e complexas.

Esta hipótese foi testada através da estimação de modelos VAR em painel para oito países desenvolvidos (Japão, Estados Unidos, Dinamarca, Espanha, França, Reino Unido, Itália e Holanda) no período 1980-2009. Os resultados estimados corroboraram a hipótese levantada. O crescimento do setor de serviços intermediários contribui para o crescimento da produtividade industrial; do valor adicionado industrial per capita e da complexidade econômica dos países em análise. Com isto, dadas as devidas ressalvas, os resultados apresentam elementos iniciais favoráveis para a defesa de que os serviços avançados também atuam como um “motor do crescimento econômico”.

A partir dessas conclusões é possível explorar em mais detalhes o “espaço-indústria”, desenvolvido por Arbache (2012), com “pitadas teóricas” da literatura schumpeteriana e estruturalista. O espaço-indústria é constituído por quatro quadrantes que mostram diferentes processos de mudanças estruturais. No quadrante R1 a população é predominantemente rural e a agropecuária é o setor dominante. Neste quadrante o país se encontra preso na armadilha da renda baixa (RODRIK, 2014). Em perspectiva schumpeteriana, tal como Dosi, Pavitt e Soete (1993), podemos derivar que países nesse estágio de seu desenvolvimento possuem exclusivamente eficiência ricardiana, pois a alocação de fatores se realiza em perfeita concordância com o princípio das vantagens comparativas estáticas.

Figura 1 – Espaço-Indústria

Fonte: Adaptado de Arbache (2012)

 

 

 

 

 

 

 

O quadrante R2 é caracterizado pela crescente demanda por produtos industriais básicos e pelo desenvolvimento de uma indústria de baixo valor adicionado e serviços gerais. Nessa trilha, muitos países superam a armadilha da pobreza, com crescimento acelerado proporcionado por um processo de industrialização. As clássicas leis de Kaldor explicam perfeitamente o caminho percorrido até o quadrante R2. Também, poderíamos considerar que nesse processo a eficiência keynesiana funcionaria como um “motor” do crescimento da renda per capita. A condição de eficiência keynesiana implica que a estrutura produtiva abarque cada vez mais ramos que tenham elevada elasticidade-renda da demanda. Isso quer dizer que o país está internalizando setores nos quais a demanda e os mercados crescem rapidamente, abrindo, consequentemente, oportunidades de vendas e de lucros maiores (DOSI; PAVITT; SOETE, 1993). Aliada ao processo de industrialização, a diversificação produtiva amplia-se, conforme demonstrado por Imbs e Wacziarg (2003).

A passagem para o quadrante R3 e deste para o R4 é um caminho que poucos países conseguiram fazer. Muitos países entram em relativa estagnação de seu nível de renda per capita nesse estágio (armadilha da renda média), inclusive apresentando regressão de sua estrutura produtiva, fenômeno associado ao processo de desindustrialização prematura.

Ademais, a região R4 representa o estágio mais avançado do desenvolvimento industrial. Neste quadrante, o processo de expansão da densidade industrial continua e é acompanhado pela existência de demanda mais do que proporcional por serviços intensivos em conhecimento, ao passo que a participação da indústria “tradicional” declina (ARBACHE, 2012). No quadrante R4, se encontram os países industrializados, que possuem renda elevada. Seguindo a linha argumentativa de Imbs e Wacziarg (2003), este quadrante também é caracterizado por relativo retorno à especialização produtiva. A demanda por serviços avançados cresce, de modo que estes países se caracterizam pela fabricação de serviços conectados a manufaturas de elevada complexidade econômica. Pode-se defender, a partir das conclusões de Rodrik (2014), que os países que migram para os quadrantes R3 e R4 são aqueles que conseguiram desenvolver as capacitações necessárias para o desenvolvimento do setor de serviços intermediários e produtos complexos. O “segredo” da prosperidade de alguns países em detrimento dos demais se encontraria em capacidades organizacionais, de distribuição do conhecimento entre os trabalhadores e de utilização coletivamente de volumes maiores de conhecimento.

É nesse momento que consideramos que eleva-se a necessidade de maior simbiose entre a indústria e o setor de serviços, conforme exposto no inicio desse artigo. A saída do quadrante R2, em direção ao R3 e R4, pressupõe a conquista da eficiência schumpeteriana. A eficiência schumpeteriana supõe que existam, na estrutura produtiva, setores nos quais o progresso técnico e os ganhos de produtividade são especialmente elevados. A definição de eficiência schumpeteriana prescreve um padrão de especialização baseado na exportação de produtos para os quais se identifique um elevado grau de oportunidade, apropriabilidade e cumulatividade tecnológica (DOSI; PAVITT; SOETE, 1993). Stojkoski et al. (2016) mostram que os países que apresentam maior exportação de serviços apresentam índices mais elevados de complexidade. Ademais, seus resultados mostram que as economias cuja pauta de exportação é baseada em serviços têm estrutura produtiva mais complexa e maior potencial de crescimento no longo prazo.

Sociedades complexas, com estruturas produtivas complexas, possuem eficiência schumpeteriana. São países que enfrentaram seus processos de desindustrialização, porém sem estagnação de seus níveis de renda. Tais processos deram-se com elevação da densidade industrial e crescimento do setor de serviços intermediários. Portanto, as leis de Kaldor também são válidas para economias com elevada participação do setor de serviços no produto e no emprego, desde que possuam estruturas produtivas complexas e com eficiência schumpeteriana.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARBACHE, J. Industrial-Space and Industrial Development [Mimeo]. Departamento de Economia, Universidade de Brasília, 2012.

DOSI, G.; PAVITT, K.; SOETE, L. La economía del cambio técnico y el comercio internacional. México: Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, 1993.

GIOVANINI, AdilsonAREND, Marcelo. CONTRIBUTION OF SERVICES TO ECONOMIC GROWTH: KALDOR’S FIFTH LAW?. RAM, Rev. Adm. Mackenzie [online]. 2017, vol.18, n.4, pp.190-213. ISSN 1678-6971.  http://dx.doi.org/10.1590/1678-69712017/administracao.v18n4p190-213.

IMBS, J. e WACZIARG, R. Stages of diversification. American Economic Review, v. 93; n. 1, p. 63-86, 2003.

KALDOR, Nicholas. Causes of the slow rate of economic growth of the United Kingdom: an inaugural lecture. Cambridge University Press, 1966.

RODRIK, Dani. The past, present, and future of economic growth. Challenge, v. 57, n. 3, p. 5-39, 2014.

STOJKOSKI, Viktor; UTKOVSKI, Zoran; KOCAREV, Ljupco. The Impact of Services on Economic Complexity: Service Sophistication as Route for Economic Growth. PloS one, v. 11, n. 8, 2016.

Câmbio: a falsa discussão sobre o verdadeiro problema

Elon Musk, o visionário (e bilionário) fundador do PayPal, da Tesla Motors e da SpaceX, é considerado um verdadeiro gênio. Questionado pelo Curador do TED Talks, Chris Anderson, em um dos eventos da marca, sobre a fonte de sua genialidade, Elon Musk respondeu o seguinte:

“Well, I do think there’s a good framework for thinking. (…) that is, boil things down to their fundamental truths and reason up from there, as opposed to reasoning by analogy (…), which essentially means copying what other people do with slight variations.”

Possivelmente, esse é o melhor conselho para abordarmos questões centrais do Brasil, e aqui nos dedicaremos ao câmbio: à ideia de que os países cambiam bens e serviços (muito mais bens do que serviços, e essa é uma observação que o leitor não deve esquecer para o resto da leitura) e o que condiciona que eles sejam cambiados de uma maneira e não de outra (por uma taxa, e não por outra).

“Boiling things down to their fundamental truths…”

A intuição mais fundamental sobre câmbio é a relação entre os preços de produtos comercializáveis e os preços de produtos não-comercializáveis em uma economia. Repare: a Carros S.A. vende carros no mundo todo e concorre com outras montadoras; o preço dos carros converge em todos mercados; a diretoria está decidindo se constrói sua nova fábrica em Springfield ou em Pindorama. Numa reunião estratégica, um dos diretores diz:

“Não podemos errar na escolha do local de investimento! Uma vez localizados, não poderemos cambiar as estradas esburacadas por estradas boas; não poderemos cambiar a energia elétrica vacilante por energia estável; quando formos exportar nossos carros, não poderemos cambiar o porto de Anjos pelo porto de Los Santeles. Não poderemos também escolher sob qual sistema tributário operaremos e em qual justiça vamos pelear.”

Uma vez que a Carros S.A. venderá seus carros pelo mesmo preço em todos lugares do mundo (lei do preço único), a decisão de investimento entre Springfield e Pindorama será determinada pela relação preço/qualidade daquele conjunto de fatores não-comercializáveis que afetam diretamente o sucesso da sua fábrica, mas que são próprios de cada lugar.

A noção de paridade está implícita nessa alegoria. A Carros S.A. está investigando se condições de mercado imóveis entre territórios afetam de maneira idêntica ou não suas operações fabris. Se não forem idênticas, um dos territórios demandará mais esforço do que o outro para que a Carros S.A. produza a mesma coisa.

“… and reason up from there…”

É muito frequente a análise da relação entre a taxa de câmbio e os preços relativos internos de uma economia pela abordagem dos diferenciais de produtividade entre setores comercializáveis e não-comercializáveis. Paul Samuelson e Bela Balassa estudaram esse assunto nos anos 60 e demonstraram que o mercado de câmbio equilibrava a demanda e a oferta de divisas estrangeiras em consonância com a corrente de comércio exterior – evidentemente, com os setores comercializáveis.

Como havia nítidas diferenças de produtividade entre os setores comercializáveis dos diversos países, isso explicaria porque os preços relativos de setores não-comercializáveis eram tão discrepantes entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Uma vez que o setor comercializável dos desenvolvidos era mais produtivo que o setor comercializável dos países em desenvolvimento, o mercado de trabalho em cada grupo de países gerava uma convergência específica de salários pagos entre todos os setores da economia. Isso explicava por que serviços idênticos presentes em todo mundo, de qualidade similar, pagavam, em paridade poder de compra (PPC), salários tão díspares, e por que a taxa de câmbio raramente refletia o equilíbrio de oferta e demanda de moeda estrangeira que propiciasse o mesmo poder de compra de bens e serviços em países distintos.

William Baumol, também nos anos 60, chegou à mesma conclusão que seus colegas, porém por outros caminhos e tentando entender outro problema. Baumol previa uma crise de urbanização como consequência dos diferenciais de evolução de produtividade entre bens (comercializáveis) e serviços (não-comercializáveis). As elevações salariais do setor comercializável eram antecedidas por elevações proporcionais de produtividade – decorrentes de avanços tecnológicos –, o que não ocorria no setor não-comercializável, que tendia a uma estagnação de produtividade em função da dificuldade de substituição de trabalhadores por máquinas. Baumol percebeu que quanto maiores os avanços tecnológicos do setor de bens, maiores seriam os custos (ganhos salariais sem contrapartida de produtividade) no restante da economia.

“… as opposed to reasoning by analogy.”

Os ganhos de produtividade ocorrem no setor comercializável da economia, mas sua gênese reside em um conjunto de condições e mercados majoritariamente não-comercializáveis. Esqueçamos aqui os serviços de consumo familiar (os serviços permanentemente usados como exemplo, como cabeleireiro, encanador, etc.) e foquemos nos serviços empresariais e em condições sistêmicas de competitividade (infraestrutura e instituições) e rememoremos o caso da Carros S.A. Se todos os serviços e infraestruturas que gravitam em torno do setor industrial são paritariamente mais caros num país do que em outro (mesmo preço, mas qualidades distintas, ou mesma qualidade com preços distintos), a taxa de câmbio PPC (ou câmbio real) será estruturalmente desfavorável a empreendimentos no setor industrial.

Cada vez mais ganha espaço a teoria da complexidade econômica na explicação do desenvolvimento econômico. Quanto mais diversa e complexa uma matriz produtiva, maior a renda per capita das nações. Ou seja, quanto mais variados e sofisticados os produtos e serviços que uma sociedade é capaz de fazer, mais produtiva ela é e, portanto, mais desenvolvida. Afinal de contas, o que determina a capacidade de uma sociedade produzir uma variedade de bens e serviços sofisticados?

As capabilities – ou competências – empresariais e tecnológicas determinam a sofisticação e a variedade de bens e serviços produzidos por uma economia. Infelizmente, essas competências são tácitas, demandam muito tempo e/ou muito esforço para se desenvolverem, e não são facilmente transplantáveis entre os povos.

Voltemos à reunião estratégica da Carros S.A., na qual outro diretor argumentou o seguinte:

“Devemos observar muito atentamente os preços que nos serão cobrados, pois não se trata apenas de ter serviços bons ou ruins, mas a que preço vamos adquirí-los. Minha equipe observou que os serviços de engenharia e automação de Springfield nos custarão $ 1,2 milhões ao ano, enquanto em Pindorama os mesmíssimos serviços custarão $ 1 milhão. Contudo, a qualidade dos serviços de Springfield nos permitirá produzir 13 mil carros, enquanto a qualidade dos serviços de Pindorama nos permitirá produzir 10 mil carros. Assim, em Springfield, cambiaremos $ 92,3 por carro, enquanto em Pindorama cambiaremos $100,0 por carro. Meu voto é por Springfield!”

Então perceba a sutileza de uma análise sobre câmbio. Balassa, Samuelson e Baumol, ao exemplificarem suas teses com serviços de consumo familiar, implicitamente estão estabelecendo padrões idênticos de qualidade (e produtividade): cortar cabelo é a mesma coisa em qualquer lugar do mundo, e, portanto, basta observar o preço real do corte de cabelo para obter a informação de apreciação ou depreciação cambial de uma economia. Mas se exemplificarmos essas teses com consumo intermediário de serviços empresariais por empresas industriais, imediatamente temos que trazer a qualidade/produtividade para entender se o preço é caro ou barato, ou se o câmbio dessa economia está apreciado ou depreciado.

O câmbio real no Brasil é sobrevalorizado porque temos um setor de serviços que oferta soluções numa razão preço/qualidade superior ao de vários de nossos concorrentes. Nosso setor industrial fica estrangulado porque concorre aqui e lá fora com preços determinados globalmente, mas depende de serviços e infraestrutura prestados localmente. Então, se quisermos nos reindustrializar, só temos duas saídas: ou desvalorizamos o câmbio nominal na marra, ou criamos uma política industrial focada na criação de capabilities empresariais e tecnológicas em torno de um competitivo setor de serviços industriais.

Rafael Leão é Mestre em Economia pela UnB e integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Paulo Gala é Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EESP) de São Paulo, onde leciona desde 2002. Autor do blog paulogala.com.br

Indústria ou serviços? Afinal, qual é a participação da indústria na economia?

Muito tem se falado sobre o encolhimento da indústria manufatureira brasileira. Opiniões divergentes abundam. Uns dizem que o encolhimento da indústria fragiliza a economia nacional. Outros acham que a indústria já não importa e tomam o caso dos Estados Unidos como referência.

Mas, afinal, o que se passa com a nossa indústria? A partir das contas nacionais, o IBGE identifica que a indústria representaria algo em torno de 11% a 12% do PIB. Como já foi quase três vezes maior e a participação segue um padrão de queda quase monotônico desde os anos 1980, então muitos analistas acreditam que o país estaria passando por um processo de  desindustrialização. O professor da Universidade de Cambridge, Ha-Joon Chang, por exemplo, caracteriza o recuo da indústria no Brasil como um dos maiores movimentos de desindustrialização jamais registrados.

A atual participação da indústria americana no PIB é similar à brasileira, sendo que lá ela também já foi substancialmente maior. Porém, para Dani Rodrik, diferentemente dos Estados Unidos, o Brasil estaria experimentando um processo de desindustrialização prematura, já que ainda é um país emergente.

De fato, a despeito das supostas similaridades das participações da indústria dos dois países no PIB, é preciso se levar em conta as substanciais diferenças entre os dois casos. Enquanto a queda da participação da indústria americana no PIB foi acompanhada de significativo aumento da densidade industrial, a queda da participação no Brasil foi acompanhada de estagnação da densidade — a densidade americana é, hoje, mais de quatro vezes maior que a brasileira e a diferença segue aumentando. Já a participação no PIB dos serviços utilizados como insumos de produção, tais como os serviços de custos e de agregação de valor, é quase duas vezes maior nos Estados Unidos do que no Brasil.

Logo, as evidências sugerem que a indústria americana mobiliza e articula uma extensa cadeia de valor e produz bens de muito mais alto valor adicionado que a brasileira.

É preciso, ainda, considerar que a indústria americana se estende mundo afora, com gigantesca presença global através das suas multinacionais e que é parte ativa de muitas das mais influentes cadeias globais de valor, como a automobilística, a química, a eletrônica e a aeronáutica. A contabilização da indústria americana operando no seu próprio e em terceiros territórios indica que os Estados Unidos têm, juntamente com a China, as duas mais poderosas indústrias manufatureiras do globo.

Indicadores menos convencionais, como emprego de engenheiros, patentes depositadas e encomenda e financiamento do P&D do setor de serviços, sugerem que a indústria americana tem vasta contribuição para a inovação e para a tecnologia e é mobilizadora de recursos para o P&D.

Pense, agora, na Google, Amazon, Microsoft, Uber e Apple, que estão entre as mais valiosas empresas globais de serviços. Um olhar mais cuidadoso mostra que essas empresas são, e cada vez mais, desenvolvedoras de bens industriais que trazem consigo elevadíssima porção embarcada de serviços e alta tecnologia.

Nada disto está colocado para o Brasil. Logo, comparar Brasil com Estados Unidos é como comparar laranjas com maçãs.

Isto posto, é difícil concluir que o caso do Brasil é similar ao dos Estados Unidos. Pelo contrário, o que parece é que a indústria americana estaria passando por um sofisticado processo de transformação baseado numa relação sinergética e simbiótica com os serviços para criar valor em nível global.

Em tempos de densidade industrial e de profundas transformações nas tecnologias de produção e de gestão da produção e no conceito de produto industrial, a comparação da participação da indústria no PIB ou mesmo a comparação do perfil geral da produção de países pode pouco ou nada dizer.

Os serviços podem substituir as manufaturas como mecanismo de desenvolvimento?

A indústria manufatureira cumpriu papel especial como veículo para a criação de empregos, aumentos de produtividade e crescimento nas economias não avançadas a partir de meados do século passado. Primeiro na América Latina, seguida pela Ásia e pela renovação dos sistemas de produção na Europa Oriental, a expansão dos níveis de produção manufatureira serviu como canal para transferir mão-de-obra de ocupações de baixa produtividade para atividades usando tecnologias mais modernas provenientes do exterior.

A facilidade de transferência através das fronteiras adquirida pelas tecnologias de fabricação, particularmente de segmentos intensivos em mão-de-obra na era recente de fragmentação da produção em cadeias de valor, tornou possível tal processo. Uma vez determinadas condições locais mínimas estivessem presentes, a convergência em direção aos níveis de produtividade nos países da fronteira na origem se dava relativamente mais rápida do que em outros setores.

Duas questões estão agora lançando dúvidas sobre as possibilidades de replicar ou aprofundar esse processo. Primeiro, a mesma natureza “descomprometida” da produção manufatureira também leva a sua alta sensibilidade em relação a pequenas mudanças nos fatores de competitividade, como custos trabalhistas, taxas reais de câmbio, ambiente de negócios, infraestrutura e outros. Ao longo do tempo, isso levou a ondas de relocalização e concentração espacial em países específicos do mundo em desenvolvimento para cada uma das camadas de sofisticação nas cadeias de valor. O gráfico 1 descreve a grande variação de experiências com o emprego e o valor agregado bruto na indústria entre os mercados emergentes.

Em segundo lugar, as mudanças tecnológicas atualmente em curso tendem a reduzir o peso dos custos do trabalho e ameaçam reverter a motivação inicial para a transferência de etapas da fabricação para economias não avançadas (Arbache, 2016) (Canuto, 2017). A experiência histórica recente de uso das exportações de manufaturados como plataforma para sustentar elevado ritmo de crescimento se tornará mais difícil de expandir, sustentar ou iniciar. No mínimo, pode-se dizer que requisitos em termos de infraestrutura, ambiente de negócios, disponibilidade local de trabalhadores qualificados e outros fatores de competitividade estão aumentando.

As atividades baseadas em recursos naturais oferecem oportunidades de atualização tecnológica, aumentos de produtividade, exportações e – volátil, mas positivo – crescimento econômico, mas não a criação maciça de empregos como na atividade fabril. Segue-se a questão sobre a possibilidade de serviços substituírem a manufatura em termos de quantidade e qualidade de criação de emprego nos países em desenvolvimento. As mudanças tecnológicas em curso levariam a uma maior transferibilidade das tecnologias de produção e comercialização dos serviços? Em que medida ter bases locais de produção manufatureira ainda importaria como condição prévia para a produção de serviços? Essas são algumas das questões abordadas por Hallward-Driemeier e Nayyar (2017).

Hallward-Driemeier e Nayyar chamam a atenção para o fato de que avanços nas tecnologias de informação e comunicação (TIC) tornaram alguns serviços – financeiros, de telecomunicações e de negócios – cada vez mais comercializáveis através das fronteiras. Esse processo viabilizou a difusão da tecnologia e a possibilidade de exportar em adição ao atendimento da demanda local.

Também destacam o alto potencial de economias de escala em serviços altamente impactados pelas TIC, especialmente porque os custos marginais incorridos pela adição de unidades à produção são muito baixos. A intensidade de P&D aumentou, podendo-se apontar como exemplo o caso das despesas com serviços empresariais, onde os gastos aumentaram de 6,7% em 1990-95 para níveis próximos de 17% em 2005-10.

Por um lado, como na atividade fabril, as oportunidades de aprendizado tecnológico local e de aumento da produtividade nas economias em desenvolvimento podem ser criadas pelo aumento das possibilidades de transferência de tecnologia e de comerciabilidade internacional. Por outro lado, ao contrário da fabricação intensiva em mão-de-obra, tais serviços não devem servir como fonte abundante de empregos para mão-de-obra não qualificada.

Os serviços de baixo custo que permanecem usuários de mão-de-obra não qualificada são menos propensos a criar oportunidades de ganhos de produtividade. Com exceções – os autores mencionam serviços de construção e turismo – há menos escopo no setor de serviços para produzir simultaneamente altos aumentos de produtividade e criação de emprego para mão-de-obra não qualificada, pelo menos em comparação com o desenvolvimento liderado por produção manufatureira nas décadas anteriores.

E quanto à conexão entre produção manufatureira e serviços? Além dos aumentos da demanda por serviços autônomos com alta elasticidade renda, quais são as perspectivas para a demanda por serviços acompanhando a atual transformação da manufatura? Em que medida a oferta e a demanda desses serviços relacionados à fabricação se beneficiam da presença local de bases manufatureiras?

Hallward-Driemeier e Nayyar chamam a atenção para a crescente “servicização” da fabricação, uma vez que a última está cada vez mais “incorporando” e “embutindo” serviços, enquanto a participação da fabricação de componentes e a montagem final no valor adicionado diminuem (Gráfico 2)

A relevância dos serviços incorporados em produtos manufaturados aumentou como insumos (design, marketing, custos de distribuição, etc.) ou facilitadores de comércio (serviços de logística ou plataformas de comércio eletrônico). Além disso, os serviços também estão crescentemente embutidos, ou seja, fornecidos mediante ou adicionados a produtos manufaturados. Servem de ilustração os aplicativos para dispositivos móveis e soluções de software para fábricas “inteligentes”. Hallward-Driemeier e Nayyar concluem (p.162):

“Embora uma gama de serviços “autônomos” e alguns serviços embutidos possa oferecer oportunidades de crescimento sem um núcleo de fabricação, a servicificação do setor manufatureiro ressalta a crescente interdependência entre os dois setores. Dada essa profunda interdependência, as políticas que melhoram a produtividade em diferentes partes da cadeia de valor resultarão no todo ser maior do que a soma de suas partes. A agenda, portanto, deve ser a de países se prepararem para usar sinergias em todos os setores de modo a participar de toda a cadeia de valor de um produto, além de explorar oportunidades individuais para além da produção manufatureira.”

Em suma, os desafios para alcançar simultaneamente o emprego de trabalhadores não qualificados e aumentos substanciais de produtividade estão se tornando mais altos. Além disso, os fatores horizontais de produtividade e competitividade – incluindo a acumulação local de capacidades, baixos custos de transação, melhoria da infraestrutura, etc. – que foram cruciais em todas as experiências de desenvolvimento industrial amplo e profundo estão agora estendidos aos serviços. Há mais complementaridade do que a substitutibilidade entre fatores de produtividade e competitividade que afetam as manufaturas e os serviços. Não há alternativa senão melhorar o suporte horizontal na economia local se um país em desenvolvimento quiser desfrutar de qualquer um destes como motores de crescimento.

Otaviano Canuto é diretor-executivo no Banco Mundial, para Brasil, Colômbia, Equador, Filipinas, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago. Foi vice-presidente no Banco Mundial e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e diretor-executivo no Fundo Monetário Internacional (FMI). As opiniões expressas neste artigo são suas.

O que, afinal, é indústria no século XXI?

Um dos assuntos mais populares nos dias de hoje é a indústria manufatureira. Pontos de entrada nesta agenda não faltam. Uns discutem a desindustrialização; outros a reindustrialização; outros a indústria 4.0; outros questionam a sua relevância; outros examinam a relação entre indústria, emprego, comércio exterior e inovação, e por aí vai.

Mas, afinal, de que indústria estão todos falando? Seria a indústria manufatureira, tal como a conhecemos dos livros-texto e das contas nacionais, ou seria algo diferente disto? A pergunta parece banal e até mesmo sem propósito. Mas não é. E razões para isto não faltam, incluindo as que seguem.

Primeiro, a atividade industrial dentro do chão-de-fábrica vem mudando substancialmente. Se, antes, a atividade envolvia várias etapas do processamento e da transformação industrial, hoje, boa parte das atividades acessórias e complementares, e até mesmo algumas mais centrais, já foi terceirizada. Contabilidade, folha de pagamento e logística, por exemplo, que tipicamente faziam parte da matriz básica de custos de uma fábrica, já estão no rol das atividades mais comumente terceirizadas. Com o advento da TI na nuvem e de tantos outros serviços fornecidos por arranjos cada vez mais flexíveis e sofisticados, muitas outras atividades antes dentro da empresa passaram a ser providas a partir de terceiras partes, muitas delas até mesmo localizadas em outros países. Consequentemente, o “tamanho” da indústria foi diminuindo ao longo do tempo em termos de emprego e de valor adicionado, o que levou muitos analistas a, precipitadamente, concluírem que a indústria teria encolhido.

Segundo, a indústria está se terciarizando. Se, antes, a indústria manufatureira vendia “coisas”, está se tornando cada vez mais parte do “novo normal” a indústria vender um pacote de coisas e serviços associados a elas. Por exemplo, fábricas de turbinas de aviões arrendam turbinas e, junto, os serviços de manutenção, seguros e soluções financeiras. Esses serviços são, muitas vezes, a parte mais atrativa e melhor remunerada do negócio. Mas esse movimento está se sofisticando ainda mais com a commoditização digital, em que até mesmo fábricas super-sofisticadas, com robôs, impressoras 3D, sensores e internet das coisas,  são vendidas a preços “subsidiados” em troca da fidelização a serviços de plataforma na nuvem que fazem a interface entre equipamentos e sensores, possibilitando toda uma nova gama de inteligência da informação e aplicação de business intelligence para atender a  dashboards que proveem resultados de melhoria em manutenção preditiva e de qualidade e de todo um novo menu de possibilidades produtivas.

Terceiro, uma das estratégias mais comuns entre os economistas para examinar as dificuldades da indústria é a análise comparada entre países. O problema é que esse método é inadequado para os dias de hoje. De fato, com o advento das cadeias globais de valor e com a crescente operação industrial das empresas multinacionais em nível global, temos ali elementos  fundamentais que devem, necessariamente, ser levados à consideração. Faz pouco sentido medir o tamanho da indústria de um país como, por exemplo, os Estados Unidos, apenas a partir das operações industriais em território americano. Afinal, a indústria desse país está espalhada em vários continentes e opera de forma coordenada e em rede. A operação de uma multinacional americana no Brasil não está isolada da operação, digamos, na Pensilvânia.  O que, normalmente, se vê nos casos de empresas de grande porte como as automobilísticas é que, para além da produção das peças mais sofisticadas, atividades mais nobres, como P&D, design, marketing, marcas e gestão geral da produção, ficam sediadas em território americano. As operações internacionais são, na verdade, um continuum das operações no país-sede e atendem aos interesses e estratégias corporativas.

Quarto, as análises convencionais sobre a indústria normalmente se focam no desempenho de variáveis como investimentos em prédios, máquinas, equipamentos, chaminés e caminhões e procuram acompanhar o consumo de caixas de papelão, energia elétrica e tudo o mais que tipicamente está associado à performance das fábricas. Mas o valor adicionado da indústria está se originando cada vez mais dos serviços e do digital . Pense no valor adicionado do iPhone. Além disto, os investimentos industriais em intangíveis já superam os em tangíveis em vários países. Decomposições mostram que os serviços já respondem por ao menos 70% do valor adicionado industrial nos Estados Unidos. No Brasil, exercícios de decomposição feitos a partir da Pesquisa Industrial Anual do IBGE mostram que os serviços respondem, em média, por 64% do valor adicionado da manufatura. É preciso, pois, novas métricas para identificar e medir a indústria. A densidade industrial, que é o valor adicionado da manufatura per capita num país, é uma alternativa que tem se mostrado bastante razoável para a tarefa. Ela revela a importância dos serviços para a cadeia da indústria e indica que não é o tamanho no PIB ou no emprego que importam, mas a capacidade da indústria de mobilizar recursos para gerar valor, sejam eles dentro ou fora da porta da fábrica, e sejam eles em serviços à jusante ou à montante da atividade industrial convencional.

A participação da indústria no valor adicionado dos Estados Unidos é muito similar à do Brasil, algo em torno de 11% do PIB. Contudo, a densidade industrial americana é várias vezes maior que a brasileira. Logo, com os supostos 11%, gera-se uma quantidade muito maior de riquezas e de bons empregos. Como mostra exame do espaço-indústria, a riqueza e os bons empregos vêm da relação sinergética e simbiótica entre bens e serviços para criar valor. Investigação das contas nacionais dos dois países e das matrizes de insumo-produto revela que os serviços voltados para a indústria nos Estados Unidos são duas vezes maior que no Brasil em termos de participação no PIB. E, ainda mais importante, a parcela de serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos no PIB, que inclui P&D, design, marcas, softwares sofisticados e serviços profissionais especializados, é quase quatro vezes maior que no Brasil.

Desta forma, a suposta queda da participação da indústria no PIB americano não implicou, necessariamente, em perda de importância da indústria. Na verdade, a indústria se transformou para seguir como protagonista, embora as métricas convencionais não capturem esse movimento. No Brasil, por outro lado, a queda da participação da indústria no PIB de 34% para 11% revelou uma desindustrialização clássica .

Essa discussão nos conduz a duas conclusões. Primeiro, temos um problema conceitual e de métrica do que seja a moderna atividade industrial, já que as contas nacionais seguem metodologias incapazes de identificar e medir a “nova indústria”. Segundo, análises territoriais da indústria são inadequadas para os dias de hoje.

Em razão dessas limitações, temos sido induzidos a conclusões limitadas, falsas até, sobre a relevância da indústria. A indústria é, e muito provavelmente continuará sendo, atividade fundamental e que comanda vastas redes de atividades econômicas e de inovação muito maiores do que as que normalmente lhe são atribuídas. Não por outra razão, governos de países avançados voltaram a colocar a indústria no cerne das políticas de crescimento e de geração de riquezas.

A indústria 4.0 não é panaceia

A indústria 4.0 já é realidade e veio para ficar. Empresas em todos os continentes estão acelerando as suas posições nessa tecnologia e já se prevê aumento significativo dos níveis de digitalização na produção industrial.

A nova tecnologia também chegou ao Brasil. Empresas nacionais estão digitalizando áreas das suas cadeias verticais (processos operacionais) e horizontais (parceiros), aumentando seus portfólios de produtos com funcionalidades digitais e introduzindo serviços inovadores baseados em dados. Mas apenas 9% das empresas brasileiras se classificam como partícipes de alguma forma da agenda de digitalização. Estima-se que esse percentual venha a saltar para mais de 60% até 2020. Analistas indicam que este salto será mais agressivo do que o das empresas em nível global, com expectativas de ganhos substanciais resultantes da digitalização na melhoria da eficiência, custos e receitas e, portanto, na produtividade e competitividade.

A perspectiva de crescente incorporação de tecnologias avançadas é boa nova para a manufatura brasileira, que vem, já há muito, enfrentando dificuldades competitivas.

Mas a indústria 4.0 terá mesmo impactos que venham a “virar o jogo” e dar à indústria brasileira um padrão de eficiência que garanta a sua competitividade?

A resposta é: provavelmente, não. Isto porque uma coisa é a nova tecnologia aumentar a competitividade absoluta; a outra é aumentar a competitividade relativa.

De fato, grosso modo, pode-se aumentar a produtividade e a competitividade por três meios. O primeiro é turbinando a eficiência da produção; o segundo é produzindo bens e serviços de mais alto valor agregado. O terceiro é a combinação dos dois anteriores.

A indústria 4.0 pode contribuir, e muito, para aumentar a eficiência das cadeias vertical e horizontal das empresas. São alterações internas, dentro do “chão de fábrica”, e alterações externas, junto a fornecedores e colaboradores, que levam à redução de ineficiências e dos tempos, cortes de custos, otimização de processos, melhoria de gestão de recursos financeiros, humanos, estoques e de ativos, aumento da qualidade e maior flexibilidade e agilidade. Aumenta, portanto, a competitividade absoluta.

Mas a indústria 4.0 per se não leva ao aumento da agregação de valor. Pode-se, por exemplo, implantar smart factories numa unidade de carros populares 1.0, com aumento de lucros, competitividade e até qualidade. Mas, ao fim e ao cabo, a unidade seguirá produzindo carros populares. Por certo, a produção de carros de mais alto valor depende de inúmeros fatores que vão muito além da tecnologia da fábrica.

O aumento da competitividade relativa associada à indústria 4.0 depende de ao menos dois fatores que estão fora do controle das empresas que adotam a tecnologia: o primeiro é o grau de “commoditização” daquelas tecnologias; o segundo é o padrão de competição em nível global.

Em razão da migração do modelo de negócios das grandes “fábricas de fábricas”, como Bosch, Siemens, Kuka e outras, que estão se transformando em plataformas virtuais de gestão de serviços da produção, uma crescente commoditização digital está em curso. Não por acaso, observa-se popularização de robôs, sensores, impressoras 3D e de tudo aquilo necessário para fazer funcionar a fábrica do futuro.

Espera-se que o número de robôs industriais venha a passar de 1,7 milhão, em 2017, para 3,1 milhões, em 2020. De fato, já caminhamos para a cloud robotics, em que robôs são conectados a plataformas em que até mesmo seus desempenhos são monitorados e comparados remotamente e parâmetros como velocidade, ângulo e força são alterados para a otimização da produção e mapas de tarefas são atualizados em função daquilo que se quer produzir. Em última análise, o advento do big data na manufatura e a introdução das plataformas na gestão da produção estão redefinindo os limites da indústria.

Quanto mais abertos forem os mercados globais, menos impacto terá a fábrica do futuro na competitividade relativa de uma empresa local, já que, em última análise, outras tantas empresas do mesmo segmento mundo afora também têm acesso e operam com a mesma tecnologia.

Embora possa contribuir significativamente para o aumento da eficiência absoluta, a indústria 4.0 não deve ser vista como panaceia para a indústria brasileira. A eficiência relativa seguirá dependendo de uma gama de outros fatores, incluindo geografia, instituições, previsibilidade, tributação, capital humano, infraestrutura, serviços, empreendedorismo e acordos de comércio e investimentos.

As novas gerações e a demanda por brinquedos inteligentes

Com a globalização, até o público infantil alterou a sua demanda por consumo. Cada vez mais as crianças têm demandado brinquedos modernos e cheios de tecnologia, e a indústria tem evoluído para responder a isso. De acordo com pesquisa da empresa britânica Juniper Research, as vendas anuais dos chamados brinquedos inteligentes, que usam tecnologia para interagir com as crianças, deverão subir de US$ 2,8 bilhões em 2015 para US$ 11,3 bilhões até 2020. 

Crianças com menos de dez anos já sabem usar com naturalidade um computador ou um celular. Até crianças em idade pré-escolar já conseguem manusear o controle remoto, apertar o “Play” em um vídeo do Youtube, e, quando um pouco maiores, já utilizam funções dos tablets, câmeras digitais, entre outros dispositivos.

Assim como os carros, as televisões e outros eletrônicos, os brinquedos também evoluíram de forma rápida, e os brinquedos que antes eram considerados apenas bens industriais, hoje possuem diversos serviços embutidos na sua fabricação. Alguns brinquedos clássicos ganharam versões tecnológicas. O conhecido cubo mágico, por exemplo, evoluiu para o Rubik’s TouchCube, a versão touchscreen do brinquedo, na qual pequenos quadrados iluminados se alteram à medida que são manuseados.

Parte desse aumento da demanda por brinquedos tecnológicos decorre do maior acesso às tecnologias por parte das famílias no Brasil e no mundo. Computadores, tablets e celulares se tornaram bens substitutos para alguns brinquedos infantis, já que podem carregar jogos para diversas faixas etárias, além de substituir a televisão.

De acordo com dados do Cetic, a proporção de domicílios com acesso à Internet no Brasil saltou de 18% em 2008 para 51% em 2015. A instituição levantou, também, dados sobre o uso de tecnologias da informação e comunicação (TIC) entre crianças. Nos números, fica claro que muitas delas são, de fato, nativas digitais: 52% das crianças com acesso à Internet realizaram o seu primeiro acesso com 10 anos de idade ou menos; 11% delas acessaram a Internet pela primeira vez com 6 anos ou menos. O gráfico a seguir mostra a proporção de crianças e adolescentes de acordo com habilidades para utilizar a Internet. Como é possível observar, a maioria das crianças é versada em todas as habilidades listadas.

Ainda de acordo com dados do Cetic, 68% das crianças acessam a Internet mais de uma vez por dia, e 85% dessas crianças o fazem pelo telefone celular. Das crianças que possuem acesso à Internet, 87% a utilizam para realizar trabalhos escolares e 79% para utilizar redes sociais. E o que as crianças acham de seus pais ou responsáveis quanto ao uso da Internet? Entre os usuários de 11 a 17 anos, 75% acreditam que sabem usar a Internet melhor do que os seus pais.

Isso tudo mostra que, com o acesso à Internet e a maior incorporação da tecnologia na vida das famílias, o perfil do consumo infantil também mudou. Embora exista o debate de que brinquedos altamente tecnológicos podem deixar as crianças menos criativas e podem gerar problemas futuros, como, por exemplo, problemas na visão, de acordo com Yilmaz (2016), existem muitos brinquedos tecnológicos que são educativos. Exemplos disso são os tablets educativos e brinquedos que estimulam a criatividade, como o Magna Color, que permite às crianças desenhar e colorir os seus desenhos em 3D, reduzindo o uso do papel, sem deixar de estimular sua imaginação. Os drones também são altamente demandados pelos pequenos consumidores e podem até auxiliar no desenvolvimento da coordenação motora.

Com a inevitável universalização da Internet e de tecnologias de ponta, a tendência é que os brinquedos do futuro sejam ainda mais tecnológicos e que contenham cada vez mais serviços de conhecimento embutidos. O desafio para produtores de brinquedos, no Brasil (onde a indústria do setor produz mais de R$ 3 bi. anuais) e no mundo, é acompanhar essa demanda, incorporando cada vez mais tecnologia e, assim, seguir crescendo no século XXI.

Do que é feito um iPhone?

A resposta para a pergunta no título parece óbvia: metais, microchips, vidro e outros materiais comumente utilizados em eletrônicos. Porém, a resposta é mais complexa do que parece. Em 2011, três pesquisadores (Kraemer, Linden e Dedrik) estudaram a cadeia de produção do famoso celular da Apple e a composição do preço final do produto.

Nesse estudo, eles encontraram que os lucros da Apple representam quase 60% do preço final do produto (ver gráfico abaixo). As matérias-primas físicas supracitadas representavam 22% do preço; a mão de obra, 5%, enquanto os lucros de demais empresas na cadeia de produção respondiam por cerca de 15% do valor final. Os gastos com a mão de obra da China, onde é montada a maior parte dos iPhones, não representam 2% do preço final.

Nada mais esperado que a Apple, empresa que efetivamente pensou e lançou o iPhone, fique com a maior parte dos lucros e do valor final do produto. Vale a pena destacar, porém, as atividades que a empresa efetivamente realiza nessa cadeia: pesquisa & desenvolvimento (P&D), design, desenvolvimento de software, marketing e branding, e, em alguns casos, atividades de varejo, por meio de suas lojas próprias. Todas essas atividades são classificadas como de serviços. Embora a Apple seja uma empresa que desenvolve e lança produtos (computadores, smartphones, tablets, smartwatches, etc), ela efetivamente realiza atividade de serviços, que terminam “embutidos” nesses bens.

O exemplo do iPhone é ilustrativo de alguns processos em curso na economia atual. Talvez o mais óbvio deles seja a total desatualização dos conceitos de setores como áreas completamente distintas e separadas: está cada vez menos claro como separar serviços de indústria, indústria de agricultura, agricultura de serviços, etc. Os três tradicionais setores (serviços, indústria e agropecuária) estão progressivamente mais integrados e, em muitos casos, são quase indistinguíveis. Ao fabricar lâmpadas e equipamentos e depois prestar serviços de iluminação para cidades, a GE é uma empresa de indústria ou de serviços?

Um segundo e talvez mais relevante aspecto que o caso do iPhone traz é que o valor adicionado, nas cadeias de valor, está cada vez menos concentrado nas matérias-primas e na efetiva montagem (“manufatura”) de produtos, e mais em serviços de maior sofisticação. Esses serviços têm alto conhecimento abarcado e servem para diferenciar e agregar mais valor a produtos, aumentando o poder monopolista de seus produtores – são os chamados “serviços de agregação de valor”.

A “smiley curve” (ou “curva sorriso”), mostrada abaixo, apresenta bem esse processo, ainda que de maneira nocional. Em uma cadeia de produção, as atividades no começo e no final do processo de produção, predominantemente de serviços sofisticados (inovação, P&D, design, marketing, branding, etc) tendem a capturar mais valor do que aquelas no centro, predominantemente de manufatura e serviços básicos (logística, matérias-primas, produção, montagem, etc) e normalmente concentradas em países de renda baixa ou média, como o Brasil.

Aqui não se pretende desprezar a importância da indústria ou da agropecuária, pelo contrário: no século XXI, serviços ganham valor com a indústria (e a agropecuária) e vice-versa. Um aplicativo não tem valor sem um celular, assim como um celular não tem valor sem um aplicativo.

Esse processo de servitização da indústria (ou industrialização dos serviços) não é exclusivo de produtos ultrassofisticados como um smartphone. Segundo dados da Pesquisa Industrial Anual (PIA), do IBGE, em 2013, para cada R$ 1 de valor adicionado pela indústria brasileira, foram gastos R$ 0,70 em serviços, no processo produtivo.  E esse indicador é alto para segmentos tão distintos quanto extração de carvão mineral e fabricação de equipamentos de informática (Arbache e Moreira, no prelo).

Portanto, para crescer de maneira sustentável no século XXI, não servirão de nada estratégias como a atração de maquiladoras estrangeiras apenas para montar artigos tecnológicos no país. Estratégia mais interessante é enxergar o setor de serviços como um setor de soluções para os problemas dos demais segmentos (ou até mesmo de outras atividades de serviços), gerando uma maior integração de cadeias e o surgimento de serviços que efetivamente agreguem valor e contribuam para o aumento da competitividade e da produtividade da economia como um todo.

O processo de industrialização dos serviços

Analisando a demanda do consumidor, verifica-se que há uma mudança no seu padrão de consumo. Cada vez mais, os consumidores direcionam suas preferências aos produtos tecnológicos, e, quanto mais próximo da atualidade (em anos), maior a demanda dos consumidores por serviços sofisticados, corroborando o que foi apresentado em Eichengreen e Gupta (2014).

Esse é um processo natural de evolução da economia, pois, uma vez que a renda dos indivíduos aumenta, as economias tornam-se mais complexas, e a demanda por serviços movidos à informação também aumenta, principalmente a demanda por serviços tecnológicos. Tal alteração nas preferências do consumidor requer que as empresas se adaptem, direcionando a sua produção industrial à fabricação de bens com elevada participação dos serviços. Esse processo de produção aqui será chamado de dPSS (density Product and Service Systems), que é uma extensão do PSS (Product and Service Systems).

Em um post anterior, foi apresentado o espaço-indústria. Nesse modelo, ao se chegar a um certo nível de desenvolvimento, as regiões R3-R4, as economias passam a observar uma relação crescentemente simbiótica e sinergética entre serviços e indústria. Nesse estágio, bens industriais passam a ter desproporcionalmente mais valor por terem muitos serviços “embarcados” na sua composição. Esse processo de “servitização” dos produtos industriais eventualmente evolui para o PSS e, finalmente, para o dPSS.

Figura 1: O processo de dPSS (density Product Service Systems)

 

Fonte: elaboração própria

De acordo com Vandermerwe e Rada (1988), o processo de servitização consiste na oferta de bens pelas indústrias manufatureiras, que buscam aumentar a participação dos serviços nos seus negócios. Os autores justificam que as empresas percebem as mudanças no padrão de demanda do consumidor e buscam agregar valor às suas principais ofertas utilizando os serviços para aumentar a sua competitividade.

O PSS (Product Service System), segundo Goedkoop et al (1999), é uma combinação integrada entre produtos e serviços que, assim como a servitização, engloba uma estratégia competitiva. Mas, além de ser orientado por serviços, o PSS também decorre de uma maior demanda pela sustentabilidade ambiental. O PSS é um caso particular da servitização e é orientada pela funcionalidade do produto gerado e não somente pela oferta do bem. Ou seja, a empresa fabrica o produto e em seguida transfere a responsabilidade de uso para o consumidor final.

Já o dPSS é um caso particular do PSS, pois ele também é um bem industrial com serviços incorporados na sua fabricação. Nesse processo, tanto o produto industrial quanto os serviços são essenciais para a composição do preço final do produto. Dados precisos sobre o dPSS são difíceis de ser obtidos, uma vez que, com raras exceções, não se encontram informações suficientemente desagregadas para se saber ao certo o quanto de serviços está embutido no bem industrial.

O dPSS possui as seguintes características:

  • Assim como o PSS, o dPSS é caracterizado pela servitização dos produtos e produtização dos serviços;
  • Quanto mais serviços forem adicionados ao produto industrial, maior será o seu valor final;
  • Não há uma ordem cronológica do que é criado primeiro, se é o bem tradicionalmente industrial, ou se é o serviço a ser desenvolvido nesse produto, pois o importante é o resultado final da união;
  • Um choque positivo de dPSS direciona a economia ao desenvolvimento econômico;
  • E, o mais importante, o dPSS está diretamente relacionado ao processo descrito pelo espaço-indústria, no sentido de que as economias se desenvolvem passando pelo processo de dPSS mas, para isso, precisam alcançar a região R4, mesmo que por um atalho.

Entender o funcionamento do dPSS pode ser importante para melhor compreender o futuro do crescimento econômico, especialmente para os países que chegarem tarde na competição industrial e precisam buscar um atalho para o desenvolvimento. O fato de a indústria em quase todo o mundo em desenvolvimento e mesmo em muitos países ricos não estar em um estágio avançado de produção não implica que ela tenha perdido importância. O que ocorre é que o próprio conceito de indústria está mudando e o dPSS passará a ser cada vez mais a norma do setor.

Essa crescente demanda por serviços tecnológicos não pode ser desconsiderada. Caso as empresas e os trabalhadores não consigam acompanhar esse movimento, poderá haver, em um futuro próximo, um desequilíbrio de mercado. Tal desequilíbrio poderá gerar uma tendência de aumento do preço relativo dos serviços, pois, com a escassez de mão de obra em um setor altamente demandado, a tendência é que o salário desse setor se eleve e, como o salário sobe, os produtos se tornam mais caros para serem produzidos, implicando potencialmente no problema de Baumol cost disease.

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