Uma fatia supreendentemente grande da atividade econômica mundial se concentra em um pequeno número de mega-projetos. Estes são projetos “de larga escala e alta complexidade que custam mais do que 1 bilhão de US$, demoram vários anos para serem desenvolvidos e construídos, e envolvem múltiplos stakeholders públicos e privados, sendo transformacionais e impactando milhões de pessoas” (Flyvbjerg, 2014, p. 6). Exemplos de mega-projetos são a Estação Espacial Internacional (custo previsto US$150 bilhões), Dubailand (um parque de atrações em Dubai, custo US$ 64 bilhões), e a ponte Hong-Kong-Macau (US$ 10.6 bilhões) (Desjardins, 2017). No Brasil temos mega-projetos antigos, como a construção de Brasília e a Transamazônica, recentes, como Belo Monte e a Copa do Mundo, e planejados para o futuro, como o trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro e a transposição do Rio São Francisco. Segundo Flyvbjerg (2014) o gasto com mega-projetos já alcança 8% do PIB mundial e está crescendo. A prevalência deste tipo de empreitada se deve aos ‘quatro sublimes’ que atraem uma coalizão diversas de atores. O ‘sublime’ tecnológico atrai engenheiros e apaixonados por tecnologia; o ‘sublime’ político atrai os políticos; o ‘sublime’ econômico atrai os empresários, banqueiros, investidores, sindicatos e consultores; e o ‘sublime’ estético atrai aqueles que gostam de desenho icônicos.
À primeira vista mega-projetos não parecem ter muito a ver com serviços, pois tendem a ser grandes, circunscritos e materiais. No entanto, uma segunda reflexão revela que envolvem uma variada e complexa rede de serviços para serem projetados, construídos, operados e mantidos. Além disto, muito deles são essencialmente plataformas que ofertam uma gama de serviços, por exemplo, o parque de Dubailand ou o aeroporto Internacional Beijing Daxing sendo construído na China. Sendo assim, qualquer problema ou ineficiência que possa ser identificada na concentração tão grande de recursos, esforço e atividade econômica em um pequeno número de projetos também seria um problema relevante para o setor de serviços. E de fato existem problemas.
Flyvberg (2014) coletou dados de todos mega-projetos dos últimos 70 anos e chegou à seguinte conclusão:
Sucesso na realização de um mega-projeto é tipicamente definido como ocorrendo quando um projeto é entregue dentro do orçamento, dentro do prazo estipulado e com os benefícios prometidos. Se, como parece ser o caso, aproximadamente um em dez projetos está dentro do orçamento, um de dez está dentro do prazo, e um em dez entrega os benefícios prometidos, então aproximadamente um em mil projetos é um ‘sucesso’, definido como cumprindo as três condições. Mesmo se estes números estiverem errados por um fator de dois – tal que dois, e não só um de cada dez projetos cumpra cada condição – orçamento, prazo e benefícios, respectivamente – então a taxa de sucesso ainda seria deprimente, agora oito de cada mil projetos (Flyvbjerg, 2014, p. 11, tradução minha).
Por que sempre dá errado?
É claro que não são só mega-projetos que falham. Em “Por que Políticas Públicas Falham” (disponível em http://bpmmueller.wixsite.com/bernardo-mueller) eu discuto por que políticas públicas em geral são tão propensas a deixar de atingir um ou mais dos objetivos almejados. E além de mega-projetos e de políticas públicas, projetos privados de todos tamanhos também costumam decepcionar. Nenhuma reforma da minha casa saiu dentro do prazo, dentro do orçamento ou dentro do esperado.
Parte da explicação para tanta ineficiência, decepção e desperdício é óbvia. Todas as fases de concepção, projeção, implementação e operação destes projetos e políticas públicas são permeadas de incompetência, ignorância, corrupção, interesse próprio e custos de transação. Ou seja, eles difíceis de fazer e repletos de incentivos perversos. Porém, o ponto central do argumento aqui é que mesmo que consigamos resolver ou drasticamente atenuar todos estes problemas, ainda assim continua sendo o caso que os projetos e políticas falharão em grande medida.
Isto se dá por que estas atividades se dão em contextos de sistemas complexos, que por sua natureza não podem ser controlados nem previstos. Sistemas complexos são caracterizados por uma interação de grandes números de agentes heterogêneos, agindo localmente, seguindo regras simples, sem informação do todo, e sem controle centralizado, com a interação dando emergência a padrões, ordem, estruturas, e funcionalidades em um nível macro, que não foram planejadas nem previstas, e muitas vezes nem compreendidas, pelos agentes individualmente. Exemplos de sistemas complexos são a economia, uma cidade, um cérebro, o sistema imunológico, uma firma, um protesto, um formigueiro, uma rede social, linguagem, etc. Em todos casos a chave é o nível de interconexão, diversidade, conectividade e adaptabilidade dos agentes. Um momento de reflexão deixa claro que projetos ou políticas públicas se realizam em sistemas complexos. Serviços em particular fazem parte de redes complexas que conectam diferentes provedores com usuários em estruturas específicas que cumprem funcionalidade não-desenhadas e emergentes.
Se projetos, políticas públicas e serviços são tão propensos a ineficiência, desperdício e falhas, o que podemos fazer a respeito? A reação instintiva de economistas, administradores, juristas, jornalistas e outros peritos costuma ser sugerir que se empregue mais esforço, mais recursos, mais leis, mais dados, mais computadores, mais boa vontade e mais empenho para fazer as coisas funcionarem desta vez. Ou seja, faça o que já vinha fazendo, mas faça mais e melhor. Certamente, estas coisas podem ajudar em certa medida. Mas quando se trata de sistemas complexos há uma complexidade irredutível que não pode ser eliminada. Esta complexidade vem da natureza do sistema. Em particular, a abordagem tradicional de economistas e formuladores de políticas públicas não é apropriada para lidar com este tipo de problema. A abordagem tradicional é linear, reducionista, gaussiana, estática, ergódiga (presume que o futuro será igual ao passado) e em grande medida ignora as interações que são o foco do problema. Teoria da Decisão, por exemplo, que é uma das pedras fundamentais destas abordagens, requer que se compare os custos e os benefícios de todas as situações que podem vir a ocorrer, levando em conta as probabilidades de cada estado do mundo. Mas em um sistema complexo, não só não se sabe o que vai acontecer, como não se sabe o que possivelmente pode vir a acontecer.
TI é a solução?
Diante da inutilidade de muito de nosso conhecimento para melhorar o desempenho de políticas, projetos e serviços, o que pode ser feito? Será que novas tecnologias de informação como Inteligência Artificial, Big Data, Machine Learning, blockchain, redes neurais, além de aplicativos e sabe-se lá o que irá surgir no futuro, podem ser a solução? De fato, muitas destas técnicas e processos tem características que as tornam bons instrumentos para lidar com sistemas complexos. Em “Por que as Políticas Públicas Falham” eu descrevo algumas abordagens modernas que parecem promissoras para lidar com este problema por não precisarem de previsão ou controle do sistema. No entanto, a minha conclusão ali é que mesmo se estas técnicas e instrumentos consigam melhorar nossa capacidade de criar, implementar e gerir projetos, políticas e serviços, jamais termos o nível de controle que a abordagem tradicional supõe ser possível. Mesmo com abordagens mais adequadas à sistemas complexos, há limites ao que pode ser conseguido. No final das contas, será necessário adotar uma postura de maior modéstia epistemológica e reconhecer nossas limitações, admitindo que o nível de controle e agência que costumamos almejar, não podem ser realizados.
Isto não quer dizer que não há nada que se possa fazer. Sistemas complexos podem ser influenciados e cutucados para evitar alguns tipos de resultados e induzir outros, mesmo que não seja possível impor uma sintonia mais fina. O importante é reconhecer a natureza de um sistema complexo quando se lida com um, e usar as intervenções próprias a um sistema com tais características, que algumas vezes pode ser simplesmente não fazer nada.
Salto no escuro ou humildade epistemológica?
Na década de 1960 Albert Hirschman notou um padrão em diversos projetos que ele visitou em diferentes países em suas viagens como um economista interessado em desenvolvimento econômico. Os países embarcavam em grandes e ambiciosos projetos, como grandes represas ou novas indústria, com um otimismo ingênuo que não via a complexidade e dificuldade inerente à empreitada. Ele cunhou a expressão “Hiding Hand Principal” para se referir, em uma alusão à Adam Smith, a esta tendência de formuladores de política e gerentes de projetos de subestimar o nível de incertezas e complicações inerentes no projeto em que embarcavam (Hirschman, 1967). Segundo ele, se esta realidade fria não fosse mascarada pelo otimismo simplista dos atores, poucos projetos seriam tentados. E embora os projetos, de fato, frequentemente não atingiam seus objetivos, eles muitas vezes levavam o país a uma situação não antecipada que permitia lampejos de criatividade para adaptar o projeto para outros fins que se mostravam viáveis ao longo da jornada.
A atitude de Hirschman combina em parte com o argumento apresentado aqui. Embora ele não usasse a teoria de sistemas complexos em sua análise, a ideia de que há uma incerteza fundamental por trás de projetos e políticas públicas é parecida. No entanto, a recomendação de política é bem diferente. Enquanto Hirschman reage à impossibilidade de prever o futuro e de controlar um sistema complexo sugerindo um salto no escuro com a esperança de que no final tudo vai dar certo, eu estou sugerindo ser mais realista com o que pode ser atingido e adaptar o alcance e a natureza da intervenção à esta realidade, mesmo que signifique que não possamos fazer tudo que gostaríamos de fazer.
Referências
Flyvbjerg, B. (2014). What you Should Know About Mega-Projects and Why: An Overview. Project Management Journal, 45(2), 6-19.
Flyvbjerg, B., & Sunstein, C. R. (2016). The Principle of the Malevolent Hiding Hand; or, the Planning Fallacy Writ Large. Social Research, 83(no. 4, Winter), 979-1004.
Hirschman, A. O. (1967). The Principle of the Hiding Hand: Brookings Institution.
Mueller, B. (2018). Por que Políticas Públicas Falham. Working paper Departamento de Economia, Universidade de Brasília. http://bpmmueller.wixsite.com/bernardo-mueller
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