Economia de Serviços

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Category: Infraestrutura

To be or not to be: as concessões aeroportuárias no Brasil e a situação da Infraero

Com o aumento da renda média dos brasileiros ao longo dos anos, houve expansão na demanda por passagens aéreas e na malha aeroviária brasileira. Contudo, os investimentos públicos em infraestrutura aeroportuária não acompanharam o crescimento do número de passageiros transportados, o que resultou na necessidade de concessões, visando uma melhor experiência para os usuários.

A primeira concessão realizada foi a de São Gonçalo do Amarante (RN), seguida da primeira rodada de concessões (Brasília, Guarulhos e Viracopos) e posteriormente outras duas rodadas foram realizadas concedendo os aeroportos de Confins (MG), Galeão (RJ), Eduardo Magalhães (BA), Pinto Martins (CE), Salgado Filho (RS) e Hercílio Luz (SC). Neste ano previa-se a concessão em blocos de 12 aeroportos nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, uma nova experiência em termos de formato de leilão e tamanho de aeroportos leiloados.

O crescimento do setor como um todo está diretamente ligado à demanda por passagens aéreas. O aumento de passageiros na aviação brasileira pode ser explicado pelo aumento de renda do brasileiro (gráfico 1) e a queda no preço das passagens aéreas (gráfico 2), entre outros. Porém, atualmente, as empresas conseguem influenciar a demanda por causa de promoções, diferenciação de tarifas e programas de fidelidade.

Gráfico 1 – Relação PIB per capita Brasil (USD) versus milhões passageiros transportados em voos domésticos,

Fonte: Anuário da Aviação  Civil (ANAC). Elaboração: Própria

Gráfico 2 – Evolução da Tarifa Aérea Média Doméstica Real (Preço real médio da passagem, R$) no 1º trimestre de cada ano, 2009 a 2018.

Fonte: ANAC. Elaboração: Própria.

Pelo lado da oferta, por sua vez, a aviação possui fatores de competitividade que representam fortes barreiras à entrada para companhias que desejam atuar no mercado. As companhias dominantes no mercado possuem hegemonia nas rotas mais rentáveis, por fatores como o maior número de horários disponíveis nos aeroportos para pousos e decolagens (slots). Além disso, os altos custos operacionais são também uma barreira que exige da companhia um poder de capital elevado para sanar os gastos de combustível e a manutenção das aeronaves – que são atrelados ao dólar – e representam mais da metade do custo total das companhias. O caso da Avianca é emblemático. Foi uma companhia que entrou no mercado depois das duas grandes líderes, não conseguiu as melhores rotas por conta dos slots já alocados e, aparentemente, possui menor escala de operação que as demais, dificultando sua inserção e atuação no mercado aéreo brasileiro, o que pode ter contribuído para a sua situação atual de desequilíbrio financeiro.

Trazendo o foco para a próxima rodada de concessões aeroportuárias, temos que essa se torna importante pela disparidade de tamanho entre os aeroportos já concedidos e os que ainda serão leiloados. Tal fato resulta na necessidade de ajustamento do modelo de leilão proposto pelo Governo Federal à realidade da demanda por esses aeroportos, uma vez que a finalidade das concessões não é apenas gerar receitas patrimoniais e aliviar despesas públicas, mas também permitir que as empresas obtenham receita para a execução dos investimentos dentro dos prazos e providenciem melhorias aos usuários, permitindo também a expansão do transporte aéreo.

Dessa forma, o modelo atualmente em pauta foi o de concessão em blocos, que visa o arremate de um conjunto de aeroportos pela mesma concessionária por um único valor de outorga. A ideia é que os aeroportos maiores, de maior rentabilidade, cubram a menor rentabilidade dos aeroportos menores, uma forma de subsídio cruzado entre os aeroportos. Foram, inicialmente (no governo Temer), criados três blocos que englobam os seguintes aeroportos:

  • Bloco Nordeste: Recife, Maceió, João Pessoa, Aracaju, Juazeiro do Norte e Campina Grande;
  • Bloco Sudeste: Vitória e Macaé;
  • Bloco Centro Oeste: Cuiabá, Sinop, Alta Floresta e Rondonópolis.

Existem inúmeras motivações para um Estado optar pela privatização ou venda de seus ativos. Dentre elas, estão: (1) aumentar a receita do Estado, uma vez que, em concessões, o ente privado paga uma taxa pelo direito à exploração e fornecimento de serviços públicos; (2) promover eficiência econômica, por meio da adoção de práticas e processos que reduzam os custos operacionais; (3) reduzir a interferência do Estado na economia, caso isso seja identificado como uma necessidade; (4) ampliar a base acionária do país, permitindo que um maior número de agentes participem de atividades econômicas outrora restritas aos governos; (5) promover condições para a formação de ambientes competitivos, por meio da abertura de mercados a um maior número de concorrentes; (6) submeter as empresas estatais a um ambiente competitivo; e, por fim, (7) desenvolver o mercado doméstico de capitais, com, por exemplo, a atração de investimentos estrangeiros. Acreditamos que alguns destes pontos já apresentaram avanços importantes no setor, após o início do processo de concessões. Para citar um exemplo de avanço recente, atualmente as companhias nacionais já podem ter até 100% de capital estrangeiro em sua composição.

Como o intuito do novo governo eleito é dar continuidade ao processo de concessões e privatizações no país, é fundamental percebermos as falhas e lacunas ocorridas no passado para que possamos aprimorar o modelo para o futuro. Uma das críticas feitas às primeiras rodadas de concessões de aeroportos foi a participação de 49% da Infraero. O intuito da companhia foi não perder participação nos grandes aeroportos brasileiros (que são os mais rentáveis), contudo, isso trouxe uma série de consequências maléficas para o resultado da empresa. A questão mais abordada é a situação dos funcionários que restaram após as concessões. Após a mudança de controle dos aeroportos, os funcionários tiveram a opção de seguir trabalhando no aeroporto como funcionários da Sociedade de Propósito Específico (SPE), entrar em um programa de demissão voluntária, seguir como funcionário da Infraero ou migrar para outra estrutura do Governo Federal. Como os funcionários da Infraero seguem um plano de carreira e o país vivia e ainda vive certa instabilidade econômica, não era racional deixar a companhia. Estima-se que um funcionário da Infraero recém-contratado receba cerca de R$2.000, o que é comparável ao salário pago no setor privado. Contudo, após 20 anos de permanência na companhia, os salários podem atingir R$ 10.000, o que não é pago na iniciativa privada. Assim, devido à expectativa dos aumentos e considerando a situação do país, muitos empregados decidiram permanecer na Infraero.

Observando a situação de forma geral, existe o seguinte panorama: a Infraero concedeu 51% dos seus maiores aeroportos e a totalidade de outros, o que causou redução na sua receita aeroportuária, porém houve recebimento de outorgas. Funcionários não desejam migrar para a iniciativa privada, acreditam que a instituição não vai falir por ser atrelada ao Governo Federal e permanecem recebendo aumentos por tempo de permanência na companhia.

Portanto, o que será da Infraero? Ela continuará existindo nos moldes atuais? Quais seriam as possíveis saídas? A companhia deve abrir capital? Isso poderia trazer aportes financeiros para a empresa. Mas será que, na atual situação dela, do governo, e do país, alguém estaria disposto a comprar ações da Infraero?

O modelo de concessões deve ser mantido (e ao final do contrato os ativos retornam ao governo para novo leilão) ou poderíamos partir pra um modelo de privatização (em que o ativo é de fato comprado e transferido e pertencerá ao ente privado ganhador do leilão)? Diante desta questão da Infraero, a possível vantagem da privatização seria que o passivo trabalhista fruto do processo poderia ser absorvido pela empresa ganhadora do leilão. Com isso, o governo teria uma preocupação a menos, em termos de custos. Por outro lado, precificar esses ativos de forma adequada poderia demandar tempo e também recursos, além de desgastes políticos.

Com a aproximação de novas rodadas de concessão e a situação da Infraero se deteriorando, é necessário um modelo de concessões que alivie o máximo possível as contas públicas e ao mesmo tempo permita rentabilização das operações em bloco. O Presidente Jair Bolsonaro liberou uma prévia dos blocos a serem supostamente concedidos em 2020, como pode ser observado abaixo:

Imagem 1 – Novas concessões previstas

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Fonte: Valor Econômico.

Os investimentos totalizariam mais de US$ 2,56 bilhões e a concessão contaria com a presença de dois grandes aeroportos brasileiros ainda não concedidos, Congonhas e Santos Dumont. Considerando o grande número de empregados nesses dois aeroportos, seria mais uma situação trabalhista complicada para a Infraero. Estaríamos vivenciando os momentos finais da Infraero? Ser ou deixar de ser, essa é a questão!


Autores:

Bernardo Mafra Mendes, 21 anos, Formado em Economia pela Universidade de Brasília, ex-diretor de projetos da empresa júnior de Economia (Econsult). 

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.

Regulação por Incentivos Funciona?

Até o início da década de 1980, os serviços de infraestrutura eram, via de regra, oferecidos majoritariamente por empresas públicas ou por empresas privadas sob intensa regulação e supervisão do estado. A justificativa para tal eram as falhas de mercado inerentes a esses setores, em particular, a presença de externalidades positivas e dos elementos típicos de monopólios naturais: sub-aditividade da função custo e baixa elasticidade-preço da demanda. Por isso o diagnóstico de que empresas privadas, sem uma pesada e burocrática supervisão estatal, não proveriam infraestrutura em quantidade, qualidade e a preços socialmente ótimos.

O período compreendido entre a segunda metade da década de 1980 e o final da década de 1990 experimentou mudanças significativas desse modelo de regulação. Dois elementos se destacaram nessa  mudança, quais sejam, a maior participação da inciativa privada e a introdução de mecanismos de incentivo ao aumento da produtividade, expansão e aumento da qualidade da infraestrutura. É fato que ambos existiam anteriormente à década de 1980, mas eram mais exceção do que regra. Como Joskow (2007) demonstra, a mudança foi mais na intensidade de sua utilização do que na introdução de mecanismos que anteriormente inexistiam.

Simplificadamente, o novo modelo consiste em definir mecanismos de incentivo para que as empresas se esforcem no sentido de alcançar determinados objetivos definidos pelo regulador. Por exemplo, no setor de distribuição de energia elétrica, os reguladores criaram mecanismos de incentivos com o objetivo de tornar o lucro inversamente proporcional ao tempo médio de interrupção do fornecimento de energia. É comum também o estabelecimento de metas de expansão da infraestrutura, com penalidades (ou prêmios) associados ao seu não atingimento. A expectativa é que as empresas, ao buscarem maximizar seus lucros (ou minimizar custos), alcancem indiretamente os níveis de qualidade e universalidade do serviço desejado pela sociedade.

Em minha tese de doutorado, fiz um levantamento de 49 estudos que estudaram os efeitos das reformas do setor elétrico com essas características em diversos países do mundo. A maior parte dos resultados aponta na direção de aumento da produtividade e melhoria da qualidade do serviço, mas poucos (ou nenhum) conseguiram implementar uma estratégia empírica defensável capaz de identificar de forma robusta uma relação de causalidade. Em muitos casos questiona-se se não foram as “melhores” empresas a serem privatizadas, permanecendo as “piores” sob administração do Estado, o que implicaria uma relação de causalidade inversa à esperada. Além disso, de forma concomitante às reformas, diversas outras mudanças econômicas foram implementadas, como alterações na política macroeconômica. Arrisco a afirmar que o mesmo tipo de questionamento deve ocorrer em relação aos estudos focado sem outros segmentos de infraestrutura.

Além disso, há um outro complicador relevante. A introdução de incentivos foi muito menos profunda do que normalmente supõe a literatura na área de regulação econômica. Como bem observa Joskow (2007), em diversos segmentos regulados é comum ainda a presença relevante de alguns elementos do velho regime. Isso ocorreu, particularmente, nos setores de distribuição de energia elétrica, água, saneamento e gás, e, em alguma medida, também nos segmentos de infraestrutura aeroportuária e rodoviária. Nesses setores, via de regra, a construção dos preços consiste na soma de dois componentes, quais sejam, custos operacionais e de capital, que possuem tratamentos regulatórios distintos. No caso dos custos operacionais, o regime normalmente é de elevado poder de incentivo, pois desvincula-se quase completamente os valores considerados no cálculo tarifário daqueles observados na empresa. Já no caso dos custos de capital, os reguladores optam por considerar valores de investimentos muito próximos aos realizados pelas empresas, gerando um baixo poder de incentivo à eficiência, ou, a depender da taxa de retorno definida pelo regulador, um incentivo contrário (Averch; Johnson; 1962).

Há então dois aspectos que os estudos empíricos sobre essas reformas devem procurar, na medida do possível, tratar. O primeiro é a estratégia de identificação, que deve procurar isolar os efeitos das “facilidades” ou “dificuldades” da gestão sobre as variáveis de interesse. Por exemplo, distribuidoras de energia que atuam em áreas onde os consumidores estão mais dispersos espacialmente tendem a apresentar uma menor produtividade e pior qualidade (maior tempo de interrupção por consumidor). Se o governo optar por privatizar apenas as de menor dispersão, os resultados irão confundir os impactos da reforma com os efeitos desse fenômeno. O segundo é que os custos operacionais e de capital tiveram tratamento regulatório distinto e, portanto, devem ser analisados em separado. Caso contrário, os resultados dificilmente poderão ser interpretados.

Procurei tratar os dois aspectos em um dos três ensaios de minha tese de doutorado. A minha estratégia consiste em considerar as mudanças de controle societário para identificar os efeitos da regulação sobre os custos operacionais e capital. A premissa central é que o esforço da empresa é proporcional à habilidade empresarial do acionista controlador. Assim, a mudança de controle implica um aumento do esforço quando há incentivos para tal. Posso comparar então o desempenho da mesma empresa em dois momentos distintos, e não estou sujeito aos problemas de endogeneidade citados acima. Utilizei dados de 57 distribuidoras de energia elétrica brasileiro no período 1998-2016, e fiz regressões distintas para custos operacionais e capital.

Os resultados apresentam evidência robusta de que o forte regime de incentivos gera redução de custos operacionais em pelo menos 20%. A figura abaixo ilustra 5 dos 37 eventos de troca de controle o corrido no período estudado. A curva azul contínua consiste no custo operacional unitário (custo operacional para cada 100 consumidores) de 5 distribuidoras adquiridas pelo grupo CPFL nos anos de 2007 e 2008.  A curva laranja se refere ao custo médio do setor de distribuição de energia elétrica brasileiro. Por fim, a curva azul tracejada consiste no nosso contrafactual, construído a partir do crescimento médio do setor de distribuição multiplicado pelos custos unitários antes da troca de controle. É possível notar uma queda significativa de custos operacionais logo após a troca de controle. Enquanto o setor experimentou no período 2007/2009 uma queda de 5,6%, as distribuidoras adquiridas diminuíram em 37% seus custos unitários no mesmo período. Logo após elas mantiveram uma trajetória similar a do setor.

Em relação ao capital, os resultados demonstram efeito contrário, ou seja, o regime causou uma piora da produtividade do capital de 10%. A trajetória da relação capital por unidade consumidora do mesmo grupo de empresas da figura 1 é apresentada na figura 2. Nota-se que a troca de controle, neste caso, teve uma trajetória diversa da apresentada na figura 1.  A relação capital/consumidor aumentou impressionantes 66% no período 2007/2009, enquanto o setor aumentou 11% em igual período.  

Figura 1: Evolução do Custo Operacional Unitário
(Preços de Dez/2017)

Figura 2: Evolução do Custo Operacional Unitário (Preços de Dez/2017)

A primeira suspeita óbvia é a de que houve uma substituição de insumos, ou seja, de custo operacional por capital, e não um aumento de eficiência. Ocorre que as regressões sugerem uma relação de complementaridade e não de substituição entre ambos. Faz sentido. Mais capital pode significar mais equipamentos, o que se traduz em mais custos de operação e manutenção. Ou seja, o aumento de eficiência verificado na figura 1 poderia ser ainda maior se não fosse o elevado nível de investimentos realizado em igual período. Portanto, a queda de 20% é uma estimativa robusta, e possivelmente até conservadora, dos efeitos da combinação entre gestão privada e fortes mecanismos de incentivo sobre a produtividade operacional das empresas[1].

A grande questão é se o que ocorreu com os custos operacionais pode ser utilizado como um contrafactual para o capital, e vice e versa. Entendo que sim. Assim como o custo operacional, o capital, mensurado pelos registros contábeis, são uma composição de custos com pessoal, terceiros e equipamentos.  Em função da exaustão física, os equipamentos também devem ser substituídos periodicamente, assim como no caso dos custos operacionais. A grande diferença é o tempo que isso leva para ocorrer – no caso do capital, leva-se, em média, em torno de 25 anos no setor de distribuição de energia elétrica brasileiro. Portanto, há bons argumentos para usar os resultados de um como referência para o outro. Ou seja, os 10% de piora na produtividade do capital ocorreria nos custos operacionais caso o regime de regulação deste fosse igual ao daquele.

Isso gera questionamentos inevitáveis ao modelo adotado. Ocorre que a eficiência não é o único elemento a ser levado em consideração para adoção de um regime de regulação. Como dissemos anteriormente, a vida útil média dos equipamentos no setor de distribuição é de 25 anos, podendo chegar a 40 anos em alguns tipos de ativos. Esse é o tempo em que as empresas recuperam os investimentos realizados nesse setor, sendo devidamente remunerados nesse período. Isso gera um risco não negligenciável para elas, tanto de natureza física (evolução tecnológica, variação de mercado,etc.) quanto regulatória (o efeito holdup, discutido em vários trabalhos de Oliver Williamsom e outros). As consequências podem ser (1) elevadas taxas de retorno e/ou (2) investimentos abaixo dos níveis ótimos, o que pode gerar baixos níveis de qualidade e segurança. Além disso, eventual falta de credibilidade das instituições que dão suporte ao regime de regulação pode exacerbar esses efeitos. Esta costuma ser a razão elencada na literatura para adoção de regimes cost plus para o capital.

Em que pese esse risco, vários países europeus[2]vêm recentemente alterando esse regime e adotando incentivos para eficiência no capital. Alguns sequer diferenciam custos de capital e operacionais, adotando o conceito de Total Expenditure (TOTEX), que consiste na soma dos dois custos. Muitos argumentam que o problema lá é diferente daqui, pois na Europa há estabilidade ou até mesmo queda do consumo de energia, e no Brasil ainda há um elevado crescimento. Isso implica na necessidade de investimentos, e a incerteza nesse cenário teria um peso maior do que nos países europeus. De fato, há bons argumentos para ambos os lados e o debate merece ser aprofundado, e uma conclusão sobre o tema não é o objetivo deste texto.

Referências

Joskow, Paul (2007). Regulation of Natural Monopoly. Handbookof Law and Economics, Capítulo 16, A.M. Polinsky and S. Shavell, Elsevier. 

[1] Uma versão reduzida do estudo pode ser encontrado nos Anais do Encontro Nacional de Economia (ANPEC) 2018, área 5 .

[2] Holanda, Itália, Inglaterra, Noruega, Alemanha, entre outros.

Halisson Rodrigues é graduado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre e Doutorando em Economia pela Universidade de Brasilia (UnB) e foi Coordenador de Regulação Econômica na Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

O Preço da Energia: o descontrole do abuso de controle

A “Década Perdida[1]” deixou uma herança inflacionária no Brasil que persistiu de forma intensa até início da década de 90. Após esse período, a inflação brasileira passou a ser uma das grandes preocupações dos governantes e da população. A instituição do Real como moeda oficial do País, em julho de 1994, quebrou o ciclo da hiperinflação, recuperando a credibilidade da moeda brasileira e o poder de compra da população. Atualmente, a inflação está sob controle dentro do regime vigente de metas de inflação[2].

Superada a herança inflacionária, pouco se fala da inflação acumulada ao longo de décadas. Diante de nossa “memória inflacionária”, estamos aliviados com o atual comportamento dos preços. Entretanto, ao desagregar o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA – IBGE), é possível inferir que, quanto mais essencial for o bem ou serviço e quanto mais protegido for o mercado, maior o acúmulo inflacionário ao longo das últimas duas décadas. Entre os itens essenciais de consumo, tanto para as famílias como para o setor produtivo, está a energia elétrica. Entre o período de agosto de 1999 a setembro de 2018, enquanto o IPCA acumulou um aumento de 230%, a inflação de energia elétrica residencial registrou 338% de inflação acumulada. Este post apresenta algumas explicações para o aumento expressivo do preço da energia elétrica e para as quebras estruturais da série do IPCA – Energia.

Inflação energia elétrica mensurada pelo IPCA – IPCA Energia (acumulada de agosto/1999 a setembro/2018)

Fonte: SIDRA – IBGE, Elaboração: própria.

A energia elétrica é comercializada em dois mercados distintos no Brasil: o Ambiente de Contratação Livre (ACL) e o Ambiente de Contratação Regulada (ACR). No ACL os preços são livremente negociados e definidos de acordo com a demanda de energia, mas para comprar energia neste mercado é necessário um consumo mínimo de 3000Kw por mês[3] (CCEE, 2018). Como consequência, 70% dos consumidores se enquadram dentro do ambiente regulado, no qual os preços são definidos em leilões e a tarifa é estipulada pela ANEEL. Com isso a energia é precificada antes de sua comercialização, fazendo com que os preços não reflitam a demanda relativa de energia no ato da compra. É importante ressaltar que o preço da energia elétrica não é a tarifa propriamente dita. A ANEEL tem grande influência na definição da tarifa de energia, principalmente na chamada parcela B[4]. O preço pago pelo consumidor é composto pela tarifa, pela quantidade consumida e tributos (ICMS, PIS, COFINS e CIP).

A rigidez dos preços e da oferta de energia associada a fatores que alteram a demanda, dificultam o equilíbrio neste mercado. O crescimento demográfico e o desenvolvimento econômico geram pressão de demanda, pois aumentam o consumo de energia que, no curto prazo, tem uma oferta relativamente fixa. A demanda por energia é considerada inelástica, ou seja, pouco sensível a variações de preço, o que diminui o impacto de um aumento de tarifa sobre o consumo. Adicionalmente, os contratos de comercialização são contratos de longo prazo com pouca margem de flexibilização caso haja um desequilíbrio entre oferta e demanda no curto prazo.

Durante o período de 2001 a 2004 o preço de energia acumulado no ano cresceu rapidamente a uma taxa anual média de 18% (IPCA – Energia). Desde o início dos anos 2000 o consumo de energia tem aumentado a uma taxa de 5% ao ano, mas a geração de energia não acompanhou essa expansão. O racionamento ocorrido em 2001 foi prova de que o sistema brasileiro de geração e distribuição de energia não suportava o crescimento da demanda (Walvis e Golçalves, 2014).

A partir de 2004, as distribuidoras foram obrigadas a comprar energia em leilões, numa tentativa de trazer previsibilidade, estabilidade e segurança jurídica ao setor. As licitações adotam o modelo do tipo price cap, em que a modicidade tarifária é o critério para permitir a concessão. Os leilões permitem o ajuste de preços, mas para vencer as licitações as concessionárias têm incentivos a estipular um preço abaixo do preço real. As revisões tarifárias são feitas obrigatoriamente a cada 4 ou 5 anos, e há também a possibilidade de reajustes anuais[5] para rever custos não gerenciáveis, como períodos intensos de estiagem e revisões extraordinárias, para manutenção do equilíbrio econômico financeiro. De 2004 a 2012, os preços ficaram estáveis e cresceram em média 3% (acumulado no ano).

Na curva de preço de energia elétrica chama atenção a quebra estrutural em dezembro de 2012, consequência do congelamento de preços feito pelo governo federal com a Medida Provisória nº 579, cujo objetivo era reduzir em 20% a tarifa de energia. A medida intensificou a atuação da ANEEL no setor, prorrogando as concessões com a condição de que a remuneração das usinas fosse estabelecida pela agência, os riscos hidrológicos fossem assumidos pelas concessionárias, entre outras condições que trouxeram muita instabilidade ao setor. A falta de alinhamento entre tarifas e custos gerou diversas consequências, cujas principais foram: a estagnação da oferta do serviço, aumentos de subsídios, alta judicialização do setor e desequilíbrios entre oferta e demanda que geraram sucessivos aumentos de preços a partir de 2014.

A crise hídrica em 2013 e 2014 acarretou a necessidade de ativação de usinas termoelétricas, cujo custo de geração de energia é muito superior ao das hidroelétricas, para garantir o fornecimento de energia (Walvis e Golçalves, 2014). Entre janeiro de 2014 a janeiro de 2016 o preço da energia subiu 174 pontos percentuais. A partir de 2015 o regime de bandeiras tarifárias permitiu flexibilidade de preços (ANEEL, 2016), que, associado ao aumento do risco hidrológico, explica as oscilações da curva a partir desse ano. O aumento expressivo em janeiro de 2018 foi consequência do baixo nível dos reservatórios, que incitou um reajuste nas tarifas das bandeiras para custear as usinas térmicas.

Vale ressaltar que a inflação de energia elétrica não afeta “só” a conta de luz dos domicílios. Por ser um insumo básico, utilizado em cada etapa da cadeia produtiva, ela “contamina” o preço de diversos produtos em todos os setores da economia. A indústria e o comércio consomem cerca de 36% e 19%, respectivamente, da energia distribuída (EPE, 2017). O aumento do preço da energia tende a ser repassado ao bem ou serviço final, e quanto menos elástica for a demanda de determinado bem ou serviço, maior será o repasse do aumento do preço da energia.

Para que o setor elétrico se torne mais eficiente e para que esses ganhos de eficiência sejam repassados aos consumidores é preciso estimular alguma concorrência no setor, com a clareza de que se trata de um monopólio natural, e isso implica que uma ou poucas empresas são capazes de suprir toda a demanda de forma mais eficiente que uma concorrência. Uma medida que tende a aumentar a concorrência entre os ambientes livre (ACL) e regulado (ACR) é a flexibilização dos requisitos para compra no ACL, de forma que mais consumidores possam arbitrar entre comprar energia no ambiente livre ou no regulado.

Além disso, e levando em consideração que todo o sistema regulatório evoluiu muito nos últimos 15 anos, há que se pensar com racionalidade na privatização da Eletrobrás, que poderá se tornar mais um player deste jogo de geração-transmissão-distribuição de energia. A Eletrobrás disfruta de um mercado protegido que corresponde a um terço de toda geração de energia no País e metade da transmissão. A privatização desse gigante não só aumenta a concorrência nas licitações, o que tem impacto direto no preço da energia, como tende a melhorar a gestão da empresa, diminuindo a interferência política do Estado nas decisões da firma.

Dea Fioravante é economista da Confederação Nacional da Indústria (CNI), graduada pela PUC MG e mestre pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Foi docente da graduação da UCB e da pós-graduação do IBMEC, lecionando disciplinas de econometria, estatística, microeconomia e economia do setor público. Trabalhou como pesquisadora no IPEA Brasília, atuando nas áreas de econometria, microeconomia, organização industrial e infraestrutura. Atualmente trabalha como analista de comercio exterior.

REFERÊNCIAS:

AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA, (ANEEL). “Bandeiras Tarifárias”, disponível em: http://www.aneel.gov.br/tarifas-consumidores/-/asset_publisher/e2INtBH4EC4e/content/bandeira-tarifaria/654800?inheritRedirect=false <acesso em 19/11/2018>

CÂMERA DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA, (CCEE). “Info Mercado mensal”. Nº 132, junho de 2018.

MEDIDA PROVISÓRIA Nº 579. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Mpv/579.htm < Acesso em 8/11/2018.

BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB). “RESOLUÇÃO Nº 4.582, DE 29 DE JUNHO DE 2017”, disponível em: https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/downloadNormativo.asp?arquivo=/Lists/Normativos/Attachments/50402/Res_4582_v1_O.pdf

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE). “Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2017”. Ministério de Minas e Energia, Brasília, 2017. Disponível em: http://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-160/topico-168/Anuario2017vf.pdf <Acesso em 22/11/18.

Walvis, A. e Golçalves, E. D. L. “Avaliação das reformas recentes no setor elétrico brasileiro e sua relação com o desenvolvimento do mercado livre de energia.” FGV CERI, 2014.

  1. A Década Perdida corresponde à década de 80, período no qual o País diminuiu bruscamente sua taxa de crescimento, passou por recessão e hiperinflação. Na ótica econômica, trata-se de um período perdido em termos de crescimento.
  2. A meta de inflação para este ano é de 4,5% com tolerância de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos, segundo regulamentação do Banco Central do Brasil. O objetivo do banco é diminuir a meta gradualmente, de forma que em 2021 a meta seja de 3,75%.
  3. O consumo médio de uma família de 4 pessoas é cerca de 500 Kwh por mês.
  4. A tarifa é composta pelas parcelas A e B e fator X. A parcela A é calculada pela ANEEL e engloba custos pouco gerenciáveis pela concessionária. A parcela B que engloba os custos gerenciáveis pela distribuidora e o Fator X incorpora os ganhos de produtividade da concessionária.
  5. As Revisões Tarifárias Periódicas (RTP) definem um novo patamar das tarifas, para um horizonte temporal de 5 anos. O Reajuste Tarifário Anual (RTA) é feito para corrigir custos não planejados no último ano. A Revisão Tarifária Extraordinária (RTE) corrige problemas emergenciais imediatos em prol da viabilidade do contrato.

Saneamento básico: o serviço essencial que não é prioridade no Brasil

O setor de saneamento básico, apesar do seu caráter essencial, é o setor de infraestrutura menos desenvolvido no Brasil. Desde a década de 1970, o país tem elaborado planos nacionais para universalizar o acesso a essa infraestrutura. Em geral, são planos de médio e longo prazo. O problema é que já se passaram várias décadas e muitos planos já foram elaborados sem que tivessem cumprido as suas metas (Araújo, 2016). A falta de prioridade para essa agenda faz com que o Brasil, embora seja a nona economia do mundo, esteja em 112o lugar no ranking das infraestruturas de saneamento (Benevides e Ribeiro, 2014).

Esse setor é estratégico para o desenvolvimento de longo prazo do país, uma vez que o saneamento, além de garantir o direito humano à água potável, gera uma série de externalidades positivas para a saúde pública, o meio ambiente, a qualidade de vida e a geração de renda (Scriptore e Toneto Júnior, 2012). Uma série de benefícios pode ser gerada com a expansão desses serviços. Freitas et al (2014) quantifica alguns dos benefícios que podem ser obtidos com a universalização do saneamento no Brasil:

  • Queda no número de internações, gerando uma economia de R$ 27,3 milhões anuais;
  • Redução de 15,5% na mortalidade por infecções gastrointestinais;
  • Redução do número de afastamentos do trabalho, evitando uma perda de R$ 258 milhões por ano;
  • Ganho na massa salarial, resultando em crescimento da folha de pagamentos de R$ 105,5 bilhões anuais;
  • Aumento no longo prazo da massa salarial em torno de R$ 31,6 bilhões anuais, em decorrência de melhoria na produtividade, devido à diminuição no atraso na educação;
  • Valorização dos imóveis em torno de R$ 178,3 bilhões;
  • Elevação do número de trabalhadores no setor de turismo, gerando R$ 7,2 bilhões por ano em salários.

Investir em saneamento não se restringe apenas a garantir um direito humano reconhecido pelas Nações Unidas e a evitar a poluição dos corpos hídricos. Investir em saneamento é uma escolha racional tendo em vista a escassez tanto de recursos naturais como de recursos financeiros. Hutton (2013) buscou mensurar a relação custo-benefício global do saneamento. Ao avaliar 136 países, o pesquisador observou que a cada US$ 1 investido em saneamento básico, gera-se um retorno econômico de US$ 4,3 em benefícios. Os benefícios mensurados se referem a ganhos relativos à saúde e à produtividade do trabalho. Se fossem considerados outros ganhos, como aqueles relacionados ao meio ambiente, à educação e ao turismo, os benefícios seriam ainda maiores.

Embora tenha havido avanços no abastecimento de água, no que tange à coleta e ao tratamento de esgoto, o Brasil está muito distante da universalização. De acordo com o último relatório do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em torno de 83,3% da população têm acesso ao abastecimento de água, mas somente 44,9% da população tem acesso ao tratamento de esgoto sanitário. A região Norte é a que apresenta menor acesso ao tratamento do esgoto gerado, com apenas 18,3% da sua população com acesso a esse serviço. A região Centro-Oeste é a que apresenta a melhor taxa, mas ainda assim baixa, com 52,6% da população urbana com acesso ao tratamento do esgoto gerado (Brasil, 2016).

A época de maior investimento e expansão dos serviços de saneamento no Brasil foi a década de 1970, quando foi implantado o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Esse plano pode ser considerado como a única política articulada para financiamento e modernização do saneamento no país. As políticas que o sucederam, em geral, foram pontuais e com baixa articulação entre os entes federativos (Turolla, 2002). Conforme pode ser observado no gráfico 1, os investimentos nessa década foram proporcionalmente muito maiores do que nas décadas seguintes.

Gráfico 1 – Investimentos em saneamento básico no Brasil (1971 – 2016) em % do PIB.

Gráfico

Fontes: Sainani e Toneto Júnior (2010) e SNIS 2006 – 2016 (Brasil, 2016).

Após a extinção do Planasa, em 1992, houve um vácuo institucional de quinze anos até a aprovação da Lei do Saneamento Básico (Lei no 11.445/2007). No processo de discussão e aprovação dessa lei, Sousa e Costa (2013) destacam que se perpetuou uma relação autoritária dos estados para com os municípios e a capacidade de coordenação federal foi fragilizada. Essa lei já completou mais de uma década, houve pouca evolução da infraestrutura de saneamento no país nesse período e o setor continua à margem. Nos últimos anos inclusive, observa-se uma queda dos investimentos em saneamento, conforme pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1 – Investimento realizado no setor de saneamento básico em R$ milhões.

Ano Investimento realizado
2011 8.378,2
2012 9.753,70
2013 10.485,2
2014 12.197,7
2015 12.175,1
2016 11.511,0

Fonte: SNIS 2011-2016 (Brasil, 2016).

Do total de investimentos realizados em 2016, a maior parte corresponde a recursos próprios das empresas de saneamento (55,7%) e o restante se divide em recursos onerosos (32,%) e recursos não onerosos (11,7%). A maioria dos investimentos foi feita pelos prestadores de serviços regionais (79,0%). Os prestadores de serviços locais investiram 20,3% do total e os microrregionais investiram apenas 0,7% do valor total. Essa distribuição de investimentos está diretamente relacionada ao tamanho do público atendido por esses três tipos de prestadores de serviços. A tabela 2 representa a distribuição da população urbana atendida por essas empresas.

Tabela 2 – Distribuição dos prestadores de serviços participantes do SNIS em 2016, segundo a abrangência de atendimento.

Prestador de Serviço Quantidade de municípios atendidos População urbana dos municípios % da população urbana atendida
Abrangência No Água Esgoto Água Esgoto Água Esgoto
Regional 28 4.033 1.351 128.953.667 103.434.498 74,6% 66,6%
Microrregional 6 17 15 701.041 692.992 0,4% 0,4%
Local 1.607 1.141 1.149 43.094.101 51.087.784 25% 33%
Brasil 1.641 5.191 2.515 172.748.809 155.215.274 100% 100%

Fonte: SNIS, 2016 (Brasil, 2016).

Conforme pode ser observado na tabela 2, os prestadores de serviços regionais, aos quais correspondem às empresas estaduais de saneamento, respondem pela maior parte dos serviços de saneamento no país. Araújo e Bertussi (2016) avaliaram a situação econômico-financeira de 20 empresas estaduais de saneamento, bem como as suas estruturas tarifárias. Os resultados encontrados demonstram a baixa capacidade de geração de recursos financeiros por essas empresas para realizar os investimentos necessários. A maior parte das empresas apresentou baixa liquidez, baixa margem líquida e baixa taxa de retorno do investimento. Em 2015, quase metade das empresas apresentaram lucros líquidos negativos e três delas não apresentavam mais nenhum patrimônio líquido e tinham taxas de endividamento acima de 200%.

A baixa capacidade econômico-financeira dessas empresas estaduais de saneamento pode estar ligada à falta de uma regulação efetiva que não tem assegurado estruturas tarifárias de acordo com a Lei 11.445/2007. Conforme o inciso IV do artigo 22 dessa lei, um dos objetivos da regulação é “definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade”. Há, portanto, uma necessidade de aprimoramento da regulação dos serviços de saneamento nos níveis estaduais e municipais e há também a necessidade de estabelecer um regulador em âmbito nacional. O setor de saneamento é o único setor de infraestrutura que não tem um agente regulador em nível federal (Araújo e Bertussi, 2016).

Recentemente, em 06 de julho de 2018, o governo federal editou a Medida Provisória 844 que atualiza o marco legal do saneamento (Lei 11.445/2007) e modifica a Lei 9.984/2000 e a Lei 10.768/2003 para tornar a Agência Nacional de Águas (ANA) responsável pela instituição de normas nacionais para a regulação dos serviços de saneamento. Essas normas nacionais deverão tratar de cinco temas principais: 1) padrões de qualidade e eficiência dos sistemas de saneamento; 2) regulação tarifária dos serviços; 3) padronização dos instrumentos de negociação; 4) critérios para a contabilidade regulatória e 5) redução progressiva da perda de água. Para tanto, essas normas deverão estimular e promover:

  • Livre concorrência, competitividade, eficiência e sustentabilidade econômica;
  • Cooperação entre os entes federados;
  • Prestação adequada dos serviços de saneamento;
  • Adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais (Brasil, 2018).

Essa medida provisória cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), com a finalidade de assegurar a implantação da Política Federal de Saneamento Básico e articular as ações de alocação dos recursos financeiros da União. Além disso, essa nova legislação condiciona o recebimento de recursos públicos federais onerosos e não onerosos ao cumprimento por parte dos municípios e estados das normas nacionais a serem elaboradas pela ANA. O objetivo da MP 844/2018 é aperfeiçoar a legislação de gestão de recursos hídricos e o marco legal de saneamento para promover melhor interação entre as duas políticas, bem como buscar a garantia de maior segurança jurídica aos investimentos no setor. Nesse sentido, a MP busca corrigir três problemas que têm dificultado a implantação da infraestrutura de saneamento: 1) a baixa capacidade regulatória; 2) a limitada coordenação e racionalização das ações federais e 3) o desajuste das regras de consórcios públicos ao setor de saneamento (Brasil, 2018).

A aprovação da MP 844 tem encontrado muitas barreiras no Congresso Nacional. A Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), a Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar) e a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) se uniram contra a medida provisória. De acordo com essas entidades, a MP conduzirá ao sucateamento dos serviços públicos de saneamento e ao aumento da privatização do setor, gerando aumento das tarifas e exclusão da população de baixa renda (Brasil, 2018a).

O governo, por outro lado, afirma que para expandir os investimentos no setor é necessário ampliar a participação do capital privado e para tanto precisa haver a segurança jurídica garantida pela aprovação da MP. Os investimentos atuais estão aquém do previsto para o cumprimento das metas de universalização propostas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasab). Os investimentos anuais deveriam estar na ordem de R$ 15 bilhões, mas atualmente giram em torno de R$ 10 bilhões (Brasil, 2018a).

O enfretamento dessas entidades tem interposto barreiras à aprovação da MP que teve seu prazo prorrogado e está próxima de perder a sua validade. A data limite para a votação é o dia 19 de novembro. Apenas no dia 30 de outubro, foi eleito o presidente da Comissão Mista de análise da MP (Brasil, 2018b) e no dia seguinte a medida provisória foi aprovada por esta comissão. A MP ainda terá que passar pelos Plenários da Câmara e do Senado (Brasil, 2018c). Os próximos dias serão decisivos para o setor de saneamento no país. É imprescindível que haja algum avanço na regulamentação do setor e que a União possa ter melhores condições para coordenar a política de saneamento.

Algum avanço na institucionalização do papel da União na promoção dos serviços de saneamento é fundamental para evitar retrocessos maiores. O presidente eleito Jair Bolsonaro já deu sinais de que o setor de saneamento não receberá tanta atenção da União. Além do seu plano de governo não conter qualquer menção ao setor de saneamento (Brasil, 2018d), ele declarou durante a campanha que pretende extinguir o Ministério das Cidades e que os recursos para moradia e saneamento irão diretamente para as prefeituras (G1, 2018). Como se dará esse processo de transferência para os municípios e o quanto será investido é incerto. Entretanto, tendo em vista a complexidade e o histórico do setor, dificilmente se conseguirão avanços sem uma política integrada entre os entes federativos. Por isso, é preciso que pelo menos parte da MP seja aprovada para que haja garantias legais de que algum órgão federal continuará a atuar efetivamente no setor de saneamento.

 

Flávia Camargo de Araújo é Economista, Engenheira Agrônoma e Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisas nas áreas de Economia da Infraestrutura e Meio Ambiente.

Referências Bibliográficas

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BENEVIDES, C.; RIBEIRO, E. Saneamento: Brasil ocupa 112a posição em ranking de 200 países. O Globo, 19 mar. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/tHpC9Z>. Acesso em: 28 set. 2018.

BRASIL. Sistema Nacional de Saneamento Básico (SNIS). Diagnósticos dos serviços de água e esgotos. 2006 a 2016. Brasília. Disponível em: <https://goo.gl/fXR4r5>. Acesso em: 30 out. 2018.

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BRASIL. Agência Senado. MP do Saneamento é prorrogada, mas enfrenta resistência no Congresso. 14/09/2018. Senado Federal. 2018a. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/09/14/mp-do-saneamento-e-prorrogada-mas-enfrenta-resistencia-no-congresso Acesso em: 29 out. 2018.

BRASIL. Agência Senado. Hildo Rocha é eleito presidente da comissão mista de MP do marco legal do saneamento. 30/10/2018. Senado Federal. 2018b. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/10/30/hildo-rocha-e-eleito-presidente-da-comissao-mista-de-mp-do-marco-legal-do-saneamento Acesso em: 30 out. 2018.

BRASIL. Agência Senado. Comissão mista aprova MP do saneamento básico. 31/10/2018. Senado Federal. 2018c. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/10/31/comissao-mista-aprova-mp-do-saneamento-basico Acesso em: 01 nov. 2018.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Propostas de Governo dos candidatos ao cargo de Presidente da República. 2018d. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos Acesso em: 15 out. 2018.

FREITAS, F. G. et al. Benefícios econômicos da expansão do saneamento. Relatório de pesquisa produzido para o Instituto Trata Brasil e o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Ex Ante Consultoria Econômica, 2014.

G1. Bolsonaro diz que se eleito extinguirá o Ministério das Cidades e mandará dinheiro dietamente para prefeituras. 28/08/2018. Brasília. Disponível em:

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HUTTON, G. Global costs and benefits of reaching universal coverage of sanitation and drinking-water supply. Journal of water and Health, 11(1), 1-12. 2013

SAIANI, C. C. S.; TONETO JÚNIOR, R. Evolução do acesso a serviços de saneamento básico no Brasil (1970 a 2004). Economia e Sociedade, v. 19, n. 1 (38), p. 79-106, abr. 2010.

SCRIPTORE, J. S.; TONETO JÚNIOR, R. A estrutura de provisão dos serviços de saneamento básico no Brasil: uma análise comparativa do desempenho dos provedores públicos e privados. Revista de Administração Pública, v. 46, n. 6, p. 1479-1504, nov./dez. 2012.

SOUSA, A. C. A., COSTA, N. R. Incerteza e dissenso: os limites institucionais da política de saneamento brasileira. Revista de Administração Pública, v. 47, n. 3, p. 587-599, maio/jun. 2013.

TUROLLA, F. A. Política de saneamento básico: avanços recentes e opções futuras de políticas públicas. Textos para Discussão, n. 922. Brasília: Ipea, 2002.

Concessões de Rodovias e Fator-X – PARTE (II)

No post anterior apresentamos o contexto no qual emergiram as primeiras concessões federais para exploração da infraestrutura rodoviária na década de 1990.

Mostramos que o cenário de escassez de recursos que vinha sendo desenhado desde meados da década de 1970 foi definitivo para que se optasse pelas concessões. Tal opção pouco teve a ver com convicções ideológicas ou planejamento de longo prazo para aprimorar a infraestrutura rodoviária nacional. Esse cenário, em parte, justifica a realização das concessões da Primeira Etapa sem ainda existir uma agência reguladora responsável, a qual somente foi criada em 2001.

Falamos também da necessidade de o regulador aprimorar continuamente os contratos de concessão para melhorar a sua gestão, o que deveria redundar em um melhor serviço prestado para os usuários das rodovias.

Entre os mecanismos regulatórios adotados na Terceira Etapa de concessões, consta contratualmente o chamado Fator X. E é sobre ele que trataremos no presente post, entendendo como que esse mecanismo funciona, e qual o provável impacto da sua supressão no contrato da Rodovia de Integração Sul, projeto que será licitado em 01 de novembro de 2018.

Regulação Tarifária e Fator X

A tarifa consiste em uma contraprestação que os usuários praticam em face da utilização da infraestrutura pública disponibilizada pelo concessionário (GUIMARÃES, 2017). Assim, a tarifa se trata de preço arcado pelos usuários na esfera da relação jurídica contratual que trava com o concessionário, mas é também um preço regulado e controlado pelo poder concedente, em vista de sua ligação estreita com os valores intrínsecos ao serviço público. Além disso, também é elemento que integra a equação econômico-financeira do contrato de concessão, a qual pertence à esfera de relação entre concessionário e poder concedente.

De acordo com a Teoria da Regulação Econômica do Interesse Público (POSNER, 2004), uma vez que o mercado funciona de forma ineficiente, a intervenção do Estado se faz desejável, e até necessária. Ao se verificar a existência de uma falha de mercado – um monopólio natural no caso do serviço de exploração da infraestrutura rodoviária – a regulação de preços neste mercado visa a garantir que os usuários não sejam explorados indevidamente pelo concessionário e que a equidade no acesso ao serviço seja assegurada.

Considerando então que os monopólios não regulados tendem a produzir quantidades menores do serviço, e cobram preços maiores que aquele que maximizaria o bem-estar, o governo deve intervir de modo a simular um ambiente competitivo que, inclusive, incentive a realização de investimentos por parte do monopolista (PICOT, 2015).

Tirole e Laffont (1993) afirmam que o regulador deve apoiar-se exclusivamente nas informações contratuais detidas pelas firmas. As limitações informacionais, portanto, comprometem a eficiência da regulação. Esta é a chamada assimetria de informações entre regulador e regulado.

Portanto, os contratos de concessão devem incluir fortes incentivos, como o mecanismo do preço-teto (price cap) que não são indexados aos custos de produção das firmas, como um modo de vencer os problemas de assimetria de informação com os quais o regulador invariavelmente se depara (TIROLE, 2017). Dessa forma, o regulador autoriza uma tarifa máxima, e a firma pode escolher seus preços contanto que estejam abaixo do limite e cubram a totalidade dos seus custos.

O modelo de preço-teto como forma de regulação com alto grau de incentivo pode envolver métodos de reajustamento limitado da tarifa a partir da conjugação de índices de produtividade (GUIMARÃES, Op. Cit.). Uma fórmula prestigiada na experiência britânica pela modalidade price cap é a RPI-X (Retail Price Index menos um fator de produtividade X) ou IPC-X (índices gerais de preços menos um fator de produtividade X). Ou seja, aplica-se à tarifação um reajustamento segundo um índice geral de preços, limitado à evolução do valor-resultado por um fator de produtividade, que lhe subtrai um percentual arbitrado pelo poder concedente regulador.

Agrell e Bogetoft (2013) afirmam que uma das áreas mais proeminentes para aplicação das técnicas de benchmarking é justamente na regulação de monopólios naturais, uma vez que tais técnicas podem informar se determinada regulação produz efeitos econômicos em usuários e firmas reguladas de modo equilibrado.

O benchmarking – comparação do desempenho relativo entre empresas – é uma técnica bastante utilizada por reguladores de diversos países, como Noruega, Áustria, Finlândia, Holanda e Alemanha na regulação dos mais diversos tipos de serviços associados à infraestrutura. O objetivo da técnica é extrair uma métrica de desempenho relativo entre as empresas do setor regulado, de modo que possam ser identificadas aquelas mais eficientes. A eficiência relativa é então convertida em Fator-X, o qual será aplicado na equação tarifária de cada empresa, de modo que aquelas menos eficientes tenham um Fator-X maior, o que resulta no decremento do índice de reajuste tarifário ao qual faria jus.

A ideia é que ao final do próximo ciclo regulatório, aquelas empresas menos eficientes tenham conseguido melhorar o seu desempenho de modo que, na próxima aplicação do Fator-X, possam figurar entre as mais eficientes, para então fazer jus a um maior índice de reajustamento tarifário.

Portanto, o mecanismo tende a equilibrar o ímpeto de maximização da receita pelas empresas reguladas (minimização do Fator-X), com a produção de melhores resultados para os usuários daquele serviço público.

Possíveis impactos da retirada do Fator-X dos contratos de concessão rodoviária

Como brevemente descrito, o Fator-X é apoiado não somente pela teoria econômica, mas também pela experiência internacional. Então, o que justifica a sua supressão do contrato de concessão da Rodovia de Integração Sul (RIS)?

Não detemos informações sobre as razões para a sua retirada, e não gostaríamos de realizar especulações acerca do assunto, pois aos usuários interessam tão somente os possíveis impactos da não existência de mecanismos de regulação por incentivos no contrato.

É importante deixar claro que até hoje, o único contrato de que se detém informações sobre a aplicação do Fator-X é o da BR-101/BA/ES. Nesse contrato, o Fator-X corresponde a uma tabela de aplicação de valores pré-definidos em nada parametrizados com as outras empresas do mercado. Deste modo, conforme os conceitos que expusemos, não se pode afirmar que o Fator-X assim estabelecido possa ser considerado efetivamente um mecanismo de incentivo.

Ao mesmo tempo, que se tenha conhecimento, não foi produzido qualquer normativo sobre o assunto pela ANTT, em que pese terem sido produzidos estudos com propostas para a regulamentação do Fator-X. Sabemos, por outro lado, que os contratos de concessão da Terceira Etapa estabelecem que até o quinto ano da concessão o Fator-X será 0 (zero), portanto, não teria como produzir efeitos nos contratos assinados em 2013.

Mas o fato de o Fator-X não produzir efeitos até o quinto ano da concessão não pode ser considerado justificativa plausível para a omissão regulatória da ANTT, especialmente em um cenário em que as concessões rodoviárias federais vêm sendo sistematicamente criticadas pelo TCU, como pode ser verificado na avaliação técnica do órgão de controle sobre a RIS (TCU, 2018):

52. O estudo da BR-101/290/386/448/RS mesclou premissas contratuais da 1ª, 2ª e 3ª etapas do Programa de Concessões Rodoviárias Federais (Procrofe) . Apesar da esperada evolução regulatória em relação aos contratos anteriores, diversos dispositivos que contribuíram para os problemas enfrentados pelas concessões vigentes permanecem na minuta contratual em tela.

(…)

54. De forma geral, as fiscalizações empreendidas pelo TCU em concessões rodoviárias federais têm constatado significativos níveis de inadimplemento contratual. Apesar disso, as tarifas de pedágio continuam a sofrer aumentos anuais acima da inflação, e isso ocorre em razão da inclusão de relevantes investimentos nos contratos.

(…)

62. O cenário do setor retrata um modelo regulatório e regras contratuais que, apesar das variações ao longo das suas três etapas, incentivam a inexecução das obrigações pelas concessionárias. (…) (grifos nossos)

Notamos que o TCU, ao analisar o contrato de concessão da RIS, afirma que não é possível identificar a esperada evolução regulatória. Ademais, ele aponta que os mecanismos regulatórios existentes nos contratos vigentes, e em grande medida inseridos no contrato da RIS, tampouco são suficientes para garantir a execução das obrigações contratuais pelas concessionárias.

Desse modo, é evidente que a adoção de mecanismos que possam incentivar a melhora no desempenho das concessionárias reguladas pela ANTT é urgente. Não que o Fator-X fosse suficiente para solucionar todos os problemas de inexecução contratual apontados pelo TCU, mas já seria um primeiro passo importante.

Por outro lado, ao mesmo tempo que ANTT erra ao manter determinados mecanismos contratuais que já se demonstraram (no mínimo) ineficazes, suprimir um mecanismo de incentivo do contrato de concessão tampouco parece contribuir para a necessária melhora da regulação dos contratos de concessão de rodovias.

O fato é que não parece haver respaldo teórico e técnico na decisão tomada por aqueles à frente do leilão da RIS quanto à supressão do Fator-X. Sem a necessária evolução dos mecanismos de incentivo neste novo contrato de concessão, não é excesso de ceticismo duvidar que este novo contrato apresente melhores resultados que aqueles até então apresentados pelos contratos em andamento.

Aparentemente, a existência do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e a adoção de outras medidas supostamente “modernizadoras da gestão” da área de infraestrutura, não foram suficientes para promover a melhora efetiva dos projetos de concessão rodoviária, sequer em relação aos ciclos anteriores, quanto mais em relação às melhores práticas internacionais. Isto resultou na persistência de dispositivos contratuais há muito conhecidos e questionados, ao lado da supressão de outros que poderiam promover melhora na regulação.

Como alguém disse certa vez: “A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

AGRELL, P. J.; BOGETOFT, P. Benchmarking and regulation. Core Discussion Paper- Center for Operations Research and Econometrics, Université catholique de Louvain, CORE and Louvain School of Management, B-1348 Louvain-la-Neuve, Belgium, p. 23, 2013.

GUIMARÃES, F. C. V. Concessão de serviço público. [s.l.] Editora Saraiva, 2017.

LAFFONT, J.-J.; TIROLE, J. A theory of incentives in procurement and regulation. [s.l.] MIT press, 1993.

PICOT, A. The Economics of Infrastructure Provisioning: The Changing Role of the State. [s.l.] MIT press, 2015.

POSNER, R. A. Teorias da regulação econômica. Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora, v. 34, p. 49–80, 2004.

TCU. Tribunal de Contas da União. ACÓRDÃO 1174/2018 – PLENÁRIO – Acompanhamento do processo de desestatização do lote rodoviário denominado Rodovia de Integração do Sul (RIS), que compreende trechos das rodovias BR-101/290/386/448/RS. Análise do primeiro estágio. Relator: Ministro Bruno Dantas. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A1174%2520ANOACORDAO%253A2018/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 24 out. 2018.

TIROLE, J. Economics for the common good. [s.l.] Princeton University Press, 2017.

 

Concessões de Rodovias e Fator-X – Parte (I)

O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) foi criado pela Lei nº 13.334 de 2016, com a finalidade de ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização.

Entre os oito projetos de concessão para exploração da infraestrutura rodoviária qualificados no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, está o projeto de concessão das rodovias BR-101/RS, BR-290/RS, BR- 386/RS e BR-448/RS, no Estado do Rio Grande do Sul – conhecido como Rodovia de Integração Sul (RIS). Foi lançado, em julho de 2018, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em parceria com o Ministério dos Transportes e o PPI, o edital para concessão da RIS, cujo leilão ocorrerá em 01/11/2018 (ANTT, 2018a).

Várias questões emergem a partir da análise detida das opções regulatórias registradas nos documentos licitatórios publicados, porém, neste conjunto de posts, trataremos de uma opção em específico: a supressão do chamado “Fator X” da minuta contratual (ANTT, 2018b).

De modo simples, o que é o Fator X? É uma medida de desempenho, de eficiência do concessionário. A ideia é que o concessionário busque por ganhos de produtividade durante o longo período de vigência de sua concessão, e que parte desse ganho fique retido com a própria concessionária (que teria, portanto, incentivos pra continuar almejando e buscando incorporar novas técnicas e ampliar, com isso, sua produtividade) enquanto outra parte seja revertida em forma de menor tarifa para o usuário do serviço. Ou seja, os ganhos de produtividade seriam repartidos/compartilhados entre a concessionária e o usuário final.

E por que chamamos a atenção para a supressão da cláusula que trata do Fator-X?

A Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões) estabelece em seu art. 6º que toda concessão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, sendo que o serviço adequado é que aquele que satisfaz, dentre outras condições, a eficiência. A mesma lei também imputa ao poder concedente o dever de estimular o aumento da produtividade e incentivar a competitividade dos serviços concedidos.

Para cumprir tais preceitos legais, o regulador deve alterar a estrutura de incentivos ou o conjunto de ações possíveis do concessionário de modo que este, ao maximizar o seu retorno sobre o contrato, acabe também maximizando o bem-estar coletivo, fornecendo assim um serviço adequado aos usuários. Nesse sentido, a teoria econômica e a experiência internacional (AGRELL; BOGETOFT, 2013) tem demonstrado que a aplicação de regulação da tarifa por preço-teto (price cap), associada ao Fator-X, tende a incentivar ganhos de produtividade por parte do setor regulado.

Então, por que suprimir o Fator-X da equação tarifária dos novos contratos de concessão rodoviária?

Infelizmente não temos resposta para essa pergunta. Ao contrário, pretendemos sensibilizar o leitor quanto à necessidade de reguladores brasileiros adotarem técnicas de regulação baseadas em incentivos (como o Fator-X) para promover maior ganho de bem-estar aos usuários.

Para tanto, começaremos falando sobre o contexto das concessões rodoviárias federais brasileiras e como que surgiu o “Fator X” nesses contratos. Já na segunda parte, falaremos sobre o que é, de modo mais formal, o Fator X e discutiremos os possíveis impactos da retirada do referido mecanismo regulatório dos contratos de concessão.

O contexto das concessões para exploração da infraestrutura rodoviária federal

O que antecedeu as primeiras concessões para exploração da malha rodoviária federal na década de 1990 contribuiu para a modelagem dos primeiros contratos de concessão para exploração da infraestrutura rodoviária federal.

Após a forte expansão da malha rodoviária nas décadas de 1960 e 1970, já em 1974, se iniciou o processo de crescente escassez de recursos para investimento em obras e manutenção. Fora os choques externos que contribuíram para o endividamento do Estado brasileiro, até a Constituição Federal de 1988 (CF/88), os investimentos na malha rodoviária contavam com financiamento do Fundo Rodoviário Nacional (FRN), formado com recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes Líquidos e Gasosos (IULCLG). O FRN tinha como objetivo custear os programas de construção, conservação e melhoria das rodovias compreendidas no Plano Rodoviário Nacional (PNV).

Com o advento da CF/88, de todas as alterações tributárias impostas, a que mais afetou o financiamento do PNV foi a proibição de vinculação de receitas tributárias. Ou seja, a partir daquele momento, os investimentos em infraestrutura rodoviária que, até então, contavam com uma fonte exclusiva de custeio, passaram a ter que disputar com outras políticas públicas os recursos advindos das receitas da União. O resultado de tais mudanças foi o estado deplorável em que se encontrava as rodovias federais na década de 1990.

Por outro lado, a CF/88 também trouxe a possibilidade de empresas privadas prestarem serviço de utilidade pública, sempre precedido de procedimento licitatório. Em 1995, foi sancionada a lei das concessões (Lei no 8.987), a qual regula a concessão de serviços públicos à iniciativa privada. Assim, a transferência de rodovias foi a saída encontrada pelo poder público para tentar resolver parcialmente a impossibilidade de realizar os necessários investimentos na expansão, manutenção e conservação da malha rodoviária federal.

As primeiras concessões ocorreram em 1995 ainda sob a tutela do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) em conjunto com o Ministério dos Transportes. Vale destacar que não havia à época agência reguladora. Desta forma, os contratos de concessão assemelhavam-se muito mais a contratos de obras públicas de longo prazo (até 25 anos), cujo foco estava no controle (ainda que parcial) de alguns poucos parâmetros de desempenho e na obrigação de execução de algumas obras pelos contratados. Não é possível então afirmar que havia uma preocupação primordial com a produtividade ou a eficiência das concessionárias.

Somente em 2001 foi criada a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por meio da Lei no 10.233, cuja instalação ocorreu cerca de um ano depois. A ANTT assumiu então a gestão dos contratos em andamento, ao todo 1.315,9 km, denominados Primeira Etapa de Concessões. Posteriormente, em 2008 e 2009, foram licitados e firmados os contratos da Segunda Etapa. Finalmente, em 2013 e 2015, foram firmados os contratos da Terceira Etapa. Ao todo são 9.224 km de rodovias sob responsabilidade da ANTT.

A ANTT, desde o seu início, teve como seu grande desafio na área de concessões rodoviárias, o desenvolvimento de mecanismos regulatórios que incentivassem as concessionárias a entregarem um melhor serviço para os usuários.

É claro que nos contratos da Primeira Etapa a margem de melhoria não era grande, uma vez que os contratos firmados na década de 1990 devem ter o seu equilíbrio econômico-financeiro respeitado. Portanto, restou à ANTT e ao Ministério dos Transportes inserir inovações nos contratos de concessão seguintes.

Nesse contexto, entre uma etapa e outra de concessão, algumas inovações e ajustes foram sendo realizados, no intuito de aprimorar a gestão contratual por parte da ANTT.

Para citarmos um exemplo, em 2007 o Tribunal de Contas da União (TCU) demandou da ANTT ajustes no mecanismo de inclusão de obras então existente nos contratos da Primeira Etapa de Concessões (TCU, 2007). Tal exigência do TCU resultou na Resolução no 3.651/2011, por meio da qual foi estabelecido o chamado Fluxo de Caixa Marginal (FCM). O FCM foi incorporado a todos os contratos de concessão anteriores e posteriores. Hoje, tal mecanismo vem sendo bastante questionado pelo próprio Tribunal de Contas da União, e sua análise pode ser objeto de outro post.

Quanto ao Fator-X, relatório do Banco Mundial de 2010 (Veron e Cellier, 2010) sugeriu “rever custos futuros de manutenção e operação com base num mix de índice de inflação e produtividade, calculado, por exemplo, em função de ganhos de produtividade observados em outras concessões, introduzindo assim um processo semelhante a uma regulação por medição (yardstick regulation). Os ganhos de produtividade esperados poderiam ser estabelecidos para cada período de cinco anos”.

O Fator X nos contratos para exploração da infraestrutura rodoviária federal

Dentre as inovações discutidas com os principais atores envolvidos nos novos projetos de concessão (setor regulado, governo e TCU – este especialmente preocupado quanto aos problemas àquela altura já identificados nos contratos da Primeira Etapa), em 2012, na chamada Terceira Etapa, foi pela primeira vez inserido no contrato de concessão rodoviária o chamado Fator X. De acordo com o contrato da BR-101/BA/ES, o Fator X é o (ANTT, 2012):

(…) redutor do reajuste da Tarifa de Pedágio – calculado na forma da subcláusula 16.3.3, e revisto na forma da subcláusula 16.3.5 – referente ao compartilhamento, com os usuários do Sistema Rodoviário, dos ganhos de produtividade obtidos pela Concessionária.

O Fator X é um redutor no índice de reajustamento para atualização monetária do valor da Tarifa de Pedágio (IRT). No contrato da BR-101/BA/ES, o Fator X é 0 (zero) até o quinto ano da concessão, sendo incrementado de modo pré-definido quinquenalmente, e atingindo no máximo 1% (um porcento) entre o vigésimo primeiro e o vigésimo quinto ano do prazo da concessão. Nos demais contratos da Terceira Etapa, o Fator X foi definido como 0 (zero) até o quinto ano de concessão, sendo revisto quinquenalmente, com base em estudos de mercado realizados pela ANTT, de modo a contemplar a projeção de ganhos de produtividade do setor rodoviário brasileiro.

Ainda, na “Ata de Resposta aos Esclarecimentos (sic)” do processo licitatório da Terceira Etapa (ANTT, 2013), a comissão de outorga assim se pronunciou sobre o Fator X:

O Fator X é o mecanismo que permite o compartilhamento com os usuários dos ganhos de eficiência e produtividade do negócio. Na teoria econômica a Eficiência Econômica é tratada como sendo a associação da eficiência técnica, que é a habilidade da unidade decisória em extrair o maior nível de produto para um dado nível de insumo, com a Eficiência Alocativa, habilidade da unidade decisória em utilizar os insumos na melhor proporção de forma a minimizar os custos. Há também o conceito de Produtividade, que pode ser alterado por quatro fontes de variações: 1) Modificações tecnológicas: alteram a posição da Fronteira da Possibilidade de Produção, isto quer dizer que a produtividade de uma determinada unidade pode melhorar sem que haja aumento em sua eficiência. 2) Modificações na Eficiência: neste caso a unidade se torna mais produtiva por aproveitar melhor os seus insumos. 3) Modificações na escala: a unidade pode ampliar sua produtividade adequando a sua escala de produção de modo a torná-la mais eficiente. 4) Modificações no mix de insumos e produtos: as composições de insumos e/ou produtos podem também afetar a produtividade. Assim, como pode se observar os conceitos de eficiência e produtividade que o Fator X compartilhará com os usuários somente poderão ser mensurados com a operação do negócio e isto somente será compartilhado com o usuário caso haja aumento da produtividade e eficiência (…). (grifos nossos)

Tanto o dispositivo contratual, como a resposta da comissão de outorga deixam bem evidente a intenção dos responsáveis pela elaboração do contrato à época: resumidamente, o Fator X deveria ser um mecanismo que colocaria em evidência a necessidade de considerar eventuais ganhos de produtividade das concessionárias e compartilhá-los com os usuários. Além disso, o Fator X deveria incentivar ganhos de eficiência nas empresas reguladas, pois estas detêm o monopólio na prestação daqueles serviços de expansão, manutenção e conservação da malha rodoviária sob sua responsabilidade e, em regra, os usuários não detêm rotas alternativas.

Então, perguntamos: por que iniciar toda uma discussão a respeito de Fator X no início dessa década, direcionar corpo técnico dentro da agência para formulação de uma proposta metodológica para seu cálculo e, depois de tudo isso, simplesmente suprimir o Fator X do próximo contrato de concessão a ser assinado? É este o melhor caminho?

Na próxima parte deste post exploraremos a teoria econômica e a experiência internacional que justificam a adoção do Fator X como mecanismo de incentivo nos contratos de concessão rodoviária, e quais as possíveis consequências da sua supressão dos contratos que serão licitados daqui para frente.

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Fontes:

AGRELL, P. J.; BOGETOFT, P. Benchmarking and regulation. Core Discussion Paper- Center for Operations Research and Econometrics, Université catholique de Louvain, CORE and Louvain School of Management, B-1348 Louvain-la-Neuve, Belgium, p. 23, 2013.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – 3a Etapa (fase III) – BR-101/ES/BA. Disponível em: <http://3etapaconcessoes.antt.gov.br/index.php/content/view/1169/3__Etapa__fase_III_.html>. Acesso em: 24 out. 2018.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – Concessão da BR-101/290/448/386/RS. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/rodovias/RIS.html>. Acesso em: 24 out. 2018a.

ANTT. Agência Nacional de Transportes Terrestres – Ata_de_Respostas_aos_Pedidos_de_Esclarecimentos. Disponível em: <http://www.antt.gov.br/backend/galeria/arquivos/2018/09/21/Ata_de_Respostas_aos_Pedidos_de_Esclarecimentos.pdf>. Acesso em: 24 out. 2018b.

TCU. Tribunal de Contas da União – Acórdão 2154/2007 TC 026.335/2007-4. Relator: Ministro Ubiratan Aguiar. Disponível em: <https://bit.ly/2ArZEf2>. Acesso em: 24 out. 2018.

VERON, A; CELLIER, J. Participação privada no setor rodoviário no Brasil: Evolução recente e próximos passos. The World Bank Group, Estudo de Transporte, março de 2010.