Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Leandro Magalhães

Como permitir a competição na economia digital?

A economia digital tem trazido uma série de comodidades para o cidadão. Aplicativos cada vez mais potentes e interativos permitem-nos realizar, com poucos toques no celular, desde transações financeiras internacionais até uma consulta sobre avaliação de um determinado restaurante. É inegável que a tecnologia digital proporciona economia de tempo tanto para tarefas domésticas quanto para atividades no trabalho. No entanto, as características do mercado digital, principalmente no que se refere aos seus aspectos competitivos, revelam que ainda há muito a ser estudado sobre o tema.

É necessário que haja um ambiente digital adequado no presente para que uma empresa possa competir no futuro. É importante incentivar a disseminação das tecnologias digitais, mediante facilitação de compra de equipamentos até investimentos em infraestrutura. Um exemplo que ressalta esse argumento refere-se ao desenvolvimento dos automóveis autônomos. De acordo com estudos da OCDE, para que um carro autônomo possa operar, é preciso uma rede móvel de altíssima velocidade e baixa latência de comunicações, o que, hoje, somente é possível obter com o uso da tecnologia 5G. Um país que queira desenvolver, inovar e promover tecnologias na área não pode prescindir de uma infraestrutura de ponta.

Dito isso, é preciso buscar outro nível de análise para compreender os verdadeiros desafios da economia digital em nível de competição. É importantíssimo entender a diferença de uso de tecnologia e desenvolvimento. Como já bastante discutido neste blog, o verdadeiro benefício para o crescimento relativo de uma economia está no desenvolvimento de tecnologias e plataformas digitais com alcance global, que permitem interações entre usuários localizados em lados diferentes de uma determinada transação. O incentivo ao uso das ferramentas é relevante e pode ser uma etapa anterior necessária para que promova um ambiente digital adequado que permita o advento de desenvolvedores de tecnologia.

Em um mundo ideal, a estratégia de incentivos funcionaria bem. Entretanto, o ambiente digital está repleto de barreiras de entrada não tradicionais. Por exemplo, entre os principais fatores para que haja um ambiente favorável à criação de “start ups” de plataformas digitais estariam o pleno desenvolvimento de mercado de capital de risco (“corporate venture capital”) – que permita a taxas de juros e condições de financiamento empréstimos para empreendedores no setor – e uma oferta de mão de obra mais qualificada – preparada para os desafios da economia digital.

As plataformas digitais operam em um esquema de efeito de rede (“network effect”) que denota o aumento de valor de um produto ou serviço cada vez que um novo usuário utiliza um produto ou serviço. O Facebook pode ser um exemplo interessante. Quanto mais usuários utilizam o Facebook, mais valioso se torna o serviço prestado pela empresa. Isso cria uma externalidade positiva, pois um utilizador, ao inscrever-se no Facebook, cria valor para os outros utilizadores, mesmo sem intenção de fazê-lo.

Isso dá características próprias ao mercado digital (Verzeni P). Entre as positivas, plataformas digitais permitem (i) uma conexão mais eficiente (retira arbitragem) entre ofertantes e demandantes; (ii) maior transparência e fluxo de informação, o que possibilita que os consumidores tenham mais escolhas e as façam de melhor maneira; (iii) que novos entrantes tenham acesso direto a consumidores sem enfrentar elevados custos fixos; e (iv) alcançar uma massa crítica de usuários (quantidade suficientemente grande de vendedores e compradores) de modo a alcançar um equilíbrio entre preço e capacidade de atração.

Entre as negativas, o atual ambiente digital cria algumas barreiras de entrada, tais como (i) a mesma massa crítica necessária para alcançar um equilíbrio de preço demanda uma quantidade muito alta de usuários, o que pode desencorajar novos desenvolvedores de plataformas; (ii) os efeitos de rede criam custos para que os usuários troquem de plataforma (necessidade de operar um novo sistema, criação de uma nova rede de contatos, por exemplo); e (iii) a necessidade de atração de cada vez mais usuários leva as plataformas a buscarem o domínio do mercado, inclusive mediante o monopólio.

A literatura sobre o tema tem crescido bastante, mas ainda faltam estudos empíricos que consigam mensurar quais são as externalidades positivas dos efeitos de redes e quais são as perdas de bem-estar social oriundas do efeito de monopolização dessas mesmas redes. Além disso, as próprias redes modificam os ecossistemas onde elas estão inseridas criando maiores complexidades para análise do tema com ferramentas econômicas tradicionais.

Vale ter presente, por fim, que o favorecimento do desenvolvimento de plataformas digitais parece ser um desafio importante para os países. Ao mesmo tempo em que os países precisam permitir condições para o incentivo da disseminação de tecnologias digitais, devem ter o cuidado de impedir que o uso da própria infraestrutura ou de plataformas digitais inviabilize a criação de novas plataformas.

O estudo mais qualificado dos aspectos competitivos da economia digital pode auxiliar nesse debate, permitindo contornos e limites mais claros para políticas na área.

Verzeni P., COMPETITION LAW IN THE DIGITAL ECONOMY: A FRENCH PERSPECTIVE, Italian Antitrust Review, n.2 (2017), pp 85-99.

 

Microeconomia e concentração de mercados na economia digital

A lógica de compra de empresas por gigantescos grupos corporativos no setor da economia digital, a exemplo da Google, Youtube, Whatsapp, Amazon, Uber, AirBnB, e a emergência de concorrentes chineses, a exemplo do o Goojje, Youtubecn, Wechat, Aliexpress e DiDi Chuxing, revelam uma preocupação legítima da China em relação ao controle acionário de empresas que administram plataformas digitais. A aquisição de empresas por grandes grupos concentra as decisões e aumentaria o poder de mercado de determinado fornecedor. Esse poder é uma falha de mercado que gera ineficiências e conduz à emergência dos oligopólios e monopólios. Conforme a literatura tradicional econômica, o controle do mercado por poucos vendedores (mercado concentrado) traz ineficiência se comparado ao livre mercado. Essa lógica é bastante conhecida pelos economistas, que, em geral, a aplicam para comparar a concorrência perfeita à imperfeita.

O modelo a ser apresentado buscará aplicar a lógica mais elementar do monopólio a uma situação de comércio internacional. Para isso, fará uso do modelo básico que simulará dois monopólios idênticos atuando em dois países também idênticos, em situação de autarquia. Em seguida, utilizando a hipótese de que uma empresa adquiriu a outra, em situação de comércio internacional, sem custos logísticos, buscará analisar as variações dos excedentes sociais e do lucro das empresas.

O modelo a ser apresentado buscará estender o conceito de monopólio apresentado nos livros de economia em situação de comércio internacional (GREEN & MAS-COLLEL, 1995, p.384). O objetivo nesse primeiro exercício é buscar identificar as somas dos excedentes dos produtores e dos consumidores – que juntos compõem o bem-estar social.  O modelo usa uma curva de demanda linear e supõe uma curva de oferta igualmente linear conforme as equações abaixo:

Demanda dos consumidores do País A:

Onde:

QDA: Quantidade demandada do produto no País A

PDA: Preço do produto ofertado no País A

b: Quantidade demandada do produto em caso de preço nulo.

a: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

Oferta do monopolista do País A:

Onde:

QOA: Quantidade ofertada do produto no País A

POA: Preço do produto ofertado no País A

c: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

Suporemos, para fins de simplificação, que o País A é idêntico ao País B, o que resulta em curvas de demandas essencialmente idênticas. Ademais, vamos supor que os monopólios são iguais, e tem custos idênticos, o que nos leva à formação de curvas de ofertas iguais.

Demanda dos consumidores do País B:

Oferta do monopolista do País B:

QDB=QDA=Q: Quantidade demandada do produto no País B

PDB=PDA=P: Preço do produto ofertado no País B

b: Quantidade demandada do produto em caso de preço nulo.

a: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

QOB=QOA: Quantidade ofertada do produto no País A

POB=POA: Preço do produto ofertado no País A

c: coeficiente que expressa a variação na quantidade em função da variação no preço.

Para fins de simplificação dos cálculos algébricos, vamos considerar:

a=c=1

Isso significa que a variação de uma unidade a mais na demanda (ou na oferta) provoca aumento (ou diminuição) de preço de uma unidade.

Em equilíbrio, a oferta se iguala à demanda. Na figura 1, a oferta corresponde à linha vermelha, enquanto a demanda corresponde à linha azul.

Demanda dos consumidores do País A e do País B:      Q =   b – P                     (5)

Oferta do monopolista do País A e do País B:                   P = Q                             (6)

O monopólio irá produzir a quantidade em que a receita marginal se iguala com os custos marginais:  CMg=RMg (GREEN & MAS-COLLEL, 1995, p.384). A Receita da firma no país A (que é a mesma do país B pela similaridade das hipóteses) é dada por: R = Q x P.

A Receita Marginal (RMg) representa a quantidade de receita marginal para uma variação marginal no preço do produto.

Receita marginal do monopólio do País A = País B:

Os custos marginais (CMg) são a própria curva de oferta:

Figura 1 – Os efeitos do monopólio no País A.

 

A perda de bem-estar (DWL) decorrente do monopólio está representada pela área em cinza e equivale a variação do preço e da quantidade em relação a concorrência perfeita:

Agora consideremos a hipótese de que há comércio entre os dois países, sem custos logísticos. Além disso, vamos supor que a empresa – o monopólio – do País A adquiriu a empresa do País B. Uma vez que não há custos logísticos, suporemos, igualmente, que se possa somar as demandas dos dois países. Com isso, poderemos simular que, nessa nova situação, há apenas um monopolista atuando em um país duas vezes maior que o País A.

O resultado indica que agora a demanda é mais elástica (há mais consumidores nesse mercado), sendo duas vezes menos inclinada do que a curva de demanda no País A.

Suporemos também que a aquisição da empresa do País B não gerou nenhuma mudança na estrutura de custos. Assim:

Figura 2 –  Os efeitos de um único monopólio na economia, após a aquisição do monopólio do País B pelo monopólio do país A. Com a agregação das demandas dos países A e B, a curva de demanda total percebida pelo único monopolista é duas vezes menos inclinada (mais elástica) se comparada à situação antes da aquisição.

É possível perceber que haverá perda de bem-estar em uma situação em que um dos monopólios compra o outro. Nesse caso, com a abertura comercial, os monopólios em escala nacional fundem-se para tornar-se um monopólio em escala global, que retira bem-estar da sociedade.

Analisando-se a questão dos lucros, conclui-se que o monopólio em escala global terá lucros maiores se comparado ao monopólio em escala nacional. Uma vez que as empresas maximizam seus lucros, é razoável concluir que as empresas tenderão a preferir a fusão do que a competição. Assim, o modelo parece descrever qual seria a razão para que haja tantas fusões de empresas na atualidade: com as fusões as empresas buscam aumentar seus lucros, maximizando-os. Por outro lado, essas fusões levam à perda de bem-estar social global, prejudicando em grande medida os consumidores.

É bastante razoável supor que, em razão da velocidade de adaptação das empresas que participam da economia digital, esse processo de aquisição ocorra de maneira muito mais rápida. A dinâmica atual no mercado de economia digital parece confirmar essa tendência. Startups que têm certo êxito são rapidamente adquiridas por grandes empresas que controlam as plataformas digitais.

Green, J. R., A. Mas-Colell, and M. Whinston. Microeconomic Theory. New York: Oxford University Press, 1995.

Plataformas digitais: para onde vamos?

Em recente decisão, a Corte de Justiça da União Europeia (ECJ) classificou o Uber como um serviço de transporte. A corte explicou que, em razão de o Uber intermediar a relação entre motoristas e passageiros, incluindo pagamentos pelas corridas e o controle de qualidade dos condutores, haveria, simultaneamente, uma oferta de serviços de transporte e o estabelecimento de uma rede capaz de organizar o fluxo das pessoas que pretendem usar esse tipo de atividade, tornando-a essencial às duas partes do negócio. “A ECJ entende que este serviço de intermediação deve ser considerado parte integrante de um serviço global cujo elemento principal é um serviço de transporte e, portanto, que não corresponde à qualificação de serviço da sociedade da informação, mas, sim, de serviço no domínio dos transportes.”

A decisão da ECJ aponta para uma tendência de maior regulação das atividades relacionadas à economia digital. Devido à importância do tema, seria útil buscar esclarecer alguns pontos relacionados aos ganhos e aos riscos da economia digital para a sociedade.

A economia digital tem ganhado relevo na atual ordem econômica, fornecendo oportunidades para a diminuição dos custos de transação e para a eliminação de intermediários. Dentro dessa ordem econômica diferenciada, o pleno aproveitamento das novidades tecnológicas torna-se questão fundamental para a sobrevivência das empresas, especialmente para aquelas que operam na área de economia digital. Para isso, faz-se uso de um constante processo de inovação capaz de manter o consumo por novidades tecnológicas em nível que permita a manutenção de empresas da área no setor.

É bem verdade que a economia digital possibilita a inserção de pequenas empresas em fluxos de trocas que, sem o uso das ferramentas tecnológicas atuais, seriam inviáveis. Não obstante, essas empresas necessitam de canais de comunicações — em geral controlados por grandes empresas — para se manterem em contato com seus consumidores.

São nesses canais de comunicações, doravante denominados plataformas digitais, ou simplesmente plataformas, que as estruturas de mercado se concentram em número muito limitado de empresas. Exemplos de plataformas seriam os sistemas da Google, o AirBnB, o Uber, o Whatsapp, o site de vendas da Amazon e os sistemas do Facebook. No caso do Google Play, aplicativo que disponibiliza a compra de softwares para smartphones que operam com sistema Android, os compradores utilizam-se da plataforma para adquirirem esses aplicativos. De mesma forma, o desenvolvedor do aplicativo é obrigado a seguir padrões para poder oferecer seu produto nessa mesma plataforma.

Ficará, assim, necessária a distinção dos termos “usuários” e “desenvolvedores” de plataformas, conforme Arbache (2015). Enquanto a maioria das empresas e dos clientes são usuários de plataformas, um conjunto extremamente limitado de empresas são desenvolvedoras dessas plataformas, portanto, capazes de definir padrões de uso. Os usuários (tanto as empresas quanto os clientes) dessas plataformas têm ganhos de produtividade, pois aumentam sua eficiência. É, portanto, nessa ótica, positivo o uso de plataformas digitais. No caso do Uber, por exemplo, o cliente que usa o aplicativo tem a possibilidade de pagar menos por uma corrida, além de ter ganhos com a praticidade do uso do aplicativo. O motorista que usa o Uber também ganha, pois consegue oferecer o serviço sem precisar de comprar licenças ou passar por complexos processos burocráticos para operar um táxi, por exemplo.

Um paralelo pode ser feito com a questão da agricultura. É óbvio que o uso de tratores e de dispositivos de georreferenciamento possibilitam ganhos importantes para o aumento da produtividade do campo. Na realidade, o fato de o produtor deixar de usar equipamentos modernos inviabiliza, em razão do nível de concorrência internacional e dos respectivos custos de produção, o cultivo da maioria das commodities agrícolas. O uso, nesse caso, passa não mais a ser um diferencial competitivo, mas mais uma técnica necessária para a manutenção de determinado negócio. O diferencial não estará, assim, no produtor que usa o trator, porquanto todos usam, mas no país que desenvolve o trator. Ali estará a técnica mais avançada, onde o conhecimento exigido para a concepção dos tratores exige maior capacitação e tecnologia.

Nos países em que se desenvolvem os aplicativos como o Uber, além de potenciais usuários do sistema, há ganhos de inovação e de produtividade no desenvolvimento das plataformas. A imposição de padrões de uso funciona como uma reserva de mercado para esses desenvolvedores, que podem atribuir taxas para que outras empresas operem em suas plataformas. O Airbnb, por exemplo, cobra de seus anunciantes uma taxa para a oferta de seu serviço. Caso o ofertante não concorde com as condições ali impostas, há somente uma saída: não oferecer seu serviço no Airbnb.

Há um outro lado da história. É sempre necessário frisar que a concorrência perfeita – eficiente em termos de Pareto – leva em consideração que são várias e pequenas empresas que ofertam produtos. Uma vez que, dentro da economia digital, há poucas empresas que criam barreiras para entrantes, tem-se a formação de estruturas oligopolizadas quando não monopolizadas de mercado. Há, assim, surgimento de problemas de ineficiência econômica no sentido de Pareto: o conhecido peso morto discutido na microeconomia básica.

As plataformas da economia digital que se apresentam como fundamentais para a criação de eficiência nos mercados, por formarem mercados extremamente concentrados, geram também ineficiências econômicas. Ademais, em geral, essas empresas estão geograficamente concentradas nos EUA e mais recentemente na China, gerando grandes excedentes que remuneram alguns poucos trabalhadores qualificados naquela região.

A decisão do ECJ, por mais precipitada que possa parecer, mostra que pouco se sabe quais são os reais ganhos e riscos relacionados às plataformas da economia digital. Possivelmente, estudos pormenorizados sobre os ganhos e perdas em termos de eficiência econômica da economia digital possam dar um norte mais qualificado a essa discussão.

 Diplomata, trabalha no Ministério das Relações Exteriores. Mestrando em economia na UnB.