Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Carlos Alberto Ramos (page 2 of 2)

Teorias Conspirativas, IBGE e Democracia

Poderia ter utilizado alguma referência literária (e não faltam alusões nessa direção). Por exemplo, em um texto de 1952 (A Linguagem Analítica de John Wilkins), Jorge Luis Borges afirma que “…notoriamente não existe classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural….” Poderia ter-se reportado a algum laureado economista. Por exemplo, Robert Lucas sustenta que o desemprego involuntário é uma invenção de Keynes e corresponderia aos keynesianos carregar esse fardo analítico, com todas suas supostas imprecisões teóricas e empíricas. Porém não. O Presidente Bolsonaro apelou à Teoria da Conspiração para manifestar a sua insatisfação com os dados divulgados pelo IBGE sobre o nível de desemprego. Nessa visão do mundo, não parece ser nem original nem insólito, uma vez que acompanha uma tendência cada vez mais ampla entre novas correntes políticas/ideológicas que têm ascendido ao governo em diversos países. Esse referencial teórico (a Teoria da Conspiração) é explícito ao sustentar que a taxa de desemprego calculada pelo IBGE “parece feita para enganar a população”.

A avaliação dessa afirmação pode ser realizada desde múltiplas perspectivas e levanta os mais diversos interrogantes. Por exemplo, surge naturalmente a questão do porque não demitir o Presidente (ou a Presidenta) do IBGE uma vez que a atual titular foi por ele nomeada. O desligamento seria até justificado dado que o órgão que preside estaria divulgando estatísticas cujo objetivo seria “enganar a população”. Um segundo tipo de resposta seria contrapor essa acusação abstrata com certas informações metodológicas concretas. Por exemplo, que o IBGE acompanha recomendações internacionais na construção de suas estatísticas, réplica já dada oficialmente por essa instituição. Uma outra alternativa seria analisar os dados e advertir os erros primários nas críticas esboçadas.

Essas possíveis leituras, avaliações e réplicas já foram realizadas e amplamente divulgadas pela imprensa. Nesse sentido não vamos voltar sobre elas. Seria uma tarefa redundante. Contrariamente, a nossa perspectiva neste post é outra, mais radical, e consiste em sustentar que todas as avaliações e réplicas explicitadas carecem de transcendência, uma vez que estamos diante de uma questão epistemológica e não perante uma simples discussão metodológica sobre a construção de indicadores. Ou seja, uma afirmação com a qual estamos lidando (a construção de séries feitas pelo instituto oficial de produção de estatísticas estaria disponibilizando parâmetros cujo objetivo seria “enganar a população”) não pode ser refutada no marco da perspectiva epistemológica (“os óculos que nos permitem ordenar o mundo”) que corriqueiramente se denomina ciência. Aliás, como outras formas de abordar o mundo (magia, religião, experiência, astrologia, superstição, etc..), o que caracteriza uma afirmação como essa é a quase impossibilidade de sua refutação. Ou, em todo caso, a impossibilidade de refutação aos olhos daqueles que a sustentam.

Olhar ou interpretar o mundo através da Teoria da Conspiração tem arraigadas raízes na história do pensamento (ver, por exemplo, McConnachie, Tudge (2013)) e, basicamente, tenta caracterizar um fenômeno como sendo o produto do conjuro de uma força superior, oculta, com vastos e camuflados objetivos, com ampla capacidade de atuação, etc.. Os ideólogos e executores da conspiração podem ser os mais diversos, variando segundo os períodos históricos e a ideologia do proponente, factível de ir desde os judeus até as elites financeiras, o marxismo cultural, os mações, o tal establishment em geral e dentro destes os mais diversos subconjuntos (o establishment financeiro, político, a Comissão Européia, etc..) sendo até possível chegar às identificações mais exóticas (os extraterrestres).

As Teorias Conspirativas foram utilizadas para analisar e avaliar profusos episódios, desde os mais triviais até eventos cruciais na história da humanidade. Entre os mais triviais podemos mencionar a suposta morte de Paul McCartney e a foto do disco Abbey Road. Nela Paul estaria cruzando a rua de olhos fechados, levando um cigarro na mão esquerda (ele é canhoto), descalço (como seriam enterrados os mortos na Inglaterra) e por aí vai. A foto retrataria o enterro de Paul. Em realidade em cada disco dos Beatles se imaginavam diversas “evidências” da morte de Paul (a capa de Sgt. Pepper, por exemplo, também seria seu enterro). Entre as “interpretações” de eventos mais dramáticos (ou que geraram eventos mais dramáticos) podemos mencionar desde os presumidos “Protocolos dos Sábios de Sião” e a suposta “conspiração” judia até algumas mais recentes, como fantasiar que os atentados do 11 de setembro nos EUA teriam sido um complô dos próprios Estados Unidos para justificar intervenções militares visando dominar reservas de petróleo no Oriente Médio. Aspectos da história recente do Brasil não fogem a esse tipo de análise. Por exemplo, a Lava Jato seria um complô urdido nos EUA para acabar com a Petrobrás, a indústria nacional e o savoir-faire da engenheira do país (ver aqui).

O diálogo ou a interação entre o paradigma do que corriqueiramente se denomina de ciência e outras formas de abordar o mundo (seja no tocante a aspectos físicos, como a origem da vida na terra, ou dimensões políticas/sociais/econômicas, etc.) é limitado quando não impossível. Tomemos o caso da verificação empírica das correlações e as relações de causalidade. Seja que optemos pela perspectiva indutiva ou dedutiva, na visão cognitiva do que denominamos de ciência sempre existem modelos teóricos e correspondentes testes empíricos (ou a possibilidade de serem realizados). Essa relação entre teoria e validação empírica ou entre teoria e observação pode merecer as mais diversas abordagens e tensões (possibilidade de refutação versus verificação), mas na ciência esse nexo está sempre latente. Vejamos a questão da falseabilidade em Popper. O criacionismo não pode ser considerado uma teoria científica uma vez que não é falseável. A teoria evolutiva sim. A psicologia, no sentido Popperiano, não pode ser considerada uma ciência. Restringindo-nos ao marco conceitual de Popper, uma afirmação científica tem validade transitória, pode ser refutada no tempo, sempre paira a dúvida sobre ela e, pela sua mesma natureza, é provisória. O criacionismo é definitivo, absoluto, não paira dúvida sobre ele, não existe espaço para o ceticismo. Ou seja, não pode ser assumido como científico.

As Teorias da Conspiração (em paralelo a outras que estão fora do escopo deste post, como a magia, a astrologia, a superstição, etc.) sempre situam a origem de um fenômeno em uma força oculta, porém supostamente poderosa, bem articulada e com fins quase sempre bem específicos (“os judeus pretenderiam conquistar o mundo”) ou extremamente amplos e nebulosos (um determinado fenômeno seria um complot da imprensa, ainda que não se saiba muito bem o objetivo dessa intriga). Observemos que aqui estamos diante de uma interessante caracterização que Popper, no seu A Sociedade Aberta e seus Inimigos, realiza da Teoria da Conspiração: não existe espaço para o azar, sempre um resultado será o corolário do acionar de um grupo interessado, mesmo que o grupo ou o objetivo não seja explicitado. O IBGE estaria manipulando os indicadores para “enganar a população”: qual seria o objetivo último ? Qual o grupo interessado ? Não sabemos nem o indivíduo que fez essa afirmação (neste caso o Presidente do Brasil) explicitou. Por outra parte, a Teoria da Conspiração combinaria, ao mesmo tempo, uma singularidade simplista (simplória) e complexa. Assim, JFK teria sido assassinado pela máfia (em algumas versões associada à própria CIA) uma vez que a mesma se sentiu traída depois de ter financiado sua campanha e o presidente nomear seu irmão Robert como procurador geral para iniciar uma política persecutória contra ela. Temos uma explicação simples (assassinato pela máfia) em um contexto supostamente extremamente complexo (planejamento, grupos de pessoas interagindo, informação/secreto, etc.). Não existe espaço para o aleatório. Não existe a possibilidade de um desequilibrado, atuando sozinho e por motivos fúteis, ter cometido esse assassinato. Sempre existirá um grupo oculto, secreto, fechado, com estratégias sofisticadas e um “raciocínio” que tem como corolário a explicação simplória (mas muitas vezes de um inusitado apelo popular) de um fenômeno. Por exemplo, a Lava Jato teria sido urdida no Departamento de Justiça dos EUA para acabar com a Petrobrás.

Mas voltando a nossa avaliação em termos de ciências, observemos que a ausência de confirmação é assumida como uma confirmação: se não existem provas é um atestado da sofisticação do grupo oculto. Assim, se na ciência a não existência de provas pode levar a rejeitar uma hipótese (no caso da verificação ser assumida como prova de validade, que não é o caso de Popper), na Teoria da Conspiração a ausência de provas é assumida como confirmação: um aspecto negativo é assumido como sendo a prova positiva. Para Hitler, a “prova” que os Protocolos dos Sábios de Sião são verdadeiros é sua rejeição pelos judeus (Cohn (1996)).

Estas considerações sobre a impossibilidade de diálogo entre o paradigma científico mainstream e a Teoria da Conspiração poderia ser associado a uma inquietude exclusivamente acadêmica, que diria mais respeito a questões epistemológicas que a desdobramentos concretos sobre um suposto objetivo do IBGE de “enganar à população brasileira”. Em realidade, os elos (entre considerações teóricas e corolários práticos) são mais próximos e perpassam inquietudes exclusivamente metodológicas ou acadêmicas. Como bem nos lembra Popper na referência que já citamos (A Sociedade Aberta e seus Inimigos), os projetos totalitários (não importa seu sinal ideológico) estão umbilicalmente vinculados a perspectivas conspiratórias do mundo. Por outra parte, como bem indicam as Nações Unidas, “As estatísticas oficiais constituem um elemento indispensável no sistema de informação de uma sociedade democrática…..) (ver aqui). Na medida em que balizam sistemas de formulação, controle e avaliação de políticas, a credibilidade e confiança da oferta de séries oficiais se deve nutrir de instituições produtoras com certas características: independência do poder, capacidade técnica, acompanhamento das sugestões metodológicas de organizações multilaterais, etc.. (sobre este ponto ver Feijó (2002), Valente e Feijó (2006)).[1] Nesse sentido, um sistema totalitário ou governos de cunho populista não podem, em nenhuma circunstância, conviver com uma instituição oficial de produção de estatísticas independente e tecnicamente competente. Existem funestas experiências bem próximas (no espaço e no tempo). Por exemplo, a aventura kirchnerista na Argentina redundou em um desmonte total do INDEC (o IBGE desse país) e desembocou em uma oferta de indicadores de inflação, emprego, pobreza, etc.. sem nenhuma credibilidade. Superada a miragem, reconstruir e encadear séries credíveis, reerguer reputações, recompor recursos humanos qualificados, etc. podem ser tarefas de anos.

Nesse contexto, questionar a confiabilidade da instituição oficial produtora de estatísticas apelando a Teorias Conspirativas representa um desafio difícil de ser contornado ou administrado. Justamente, a dificuldade se alimenta da impossibilidade de desafiar as suspeitas mediante argumentos que seriam normais no paradigma cognitivo no que se denomina ciência. Ao não compartilhar aspectos metodológicos básicos, refutar interpretações, diagnósticos ou afirmações oriundas de teorias conspirativas mediante discussões técnicas ou evidencias será uma tarefa inglória. Acentuando ainda mais essa disfunção, apelar a interpretações nutridas em alguma teoria conspiratória abre a caixa de pandora para o surgimento dos mais diversos diagnósticos e o debate começa a ser regulado pelas mais extravagantes narrativas, todas compartilhando os aspectos básicos do que denominamos de paradigma da Teoria da Conspiração. Dessa forma, se o Presidente da República atribui ao IBGE a intenção de produzir estatísticas para “enganar a população”, debilitando-o institucionalmente, valida intelectualmente uma ficção que identifica as restrições orçamentárias do próximo Censo e as sugestões para reduzir o número de quesitos no questionário como uma estratégia do Ministro Paulo Guedes para forjar as estatísticas e iludir a população: “A intenção de Guedes é reduzir o número de indicadores para poder manipular mais a realidade” (ver aqui).

Nessa proliferação de relatos nos quais as teorias conspirativas pautam os pseudo-argumentos e o diálogo com o método científico tradicional se torna inócuo, uma saída possível (seja para preservar tecnicamente as séries seja para preservar a mesma democracia) consistiria avançar na institucionalidade do IBGE como órgão independente e com reputação. Por exemplo, assumir para sua formatação institucional aspectos muito discutidos no caso dos Bancos Centrais: Presidentes e Diretores com mandatos fixos não coincidentes com o ciclo eleitoral e aprovados pelo Senado, orçamento próprio e estável, integração mais acentuada com organismos internacionais, etc.. Nesse sentido, a pretendida acessão do Brasil à OCDE e os requisitos que sua admissão supõe pode ser um bom caminho a ser transitado.

  1. / Feijó, C.A. “Estatísticas oficiais: credibilidade, reputação e coordenação” Economia Aplicada. v.6.n.4. p.803-817. out./dez. 2002.

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Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

O Sistema S em Debate

As recentes declarações do Ministro de Economia, Paulo Guedes, nas quais declara a intenção de cortes de até 35% no orçamento do Sistema S, volta a colocar em debate a eficiência e mesmo a necessidade desse arranjo institucional cujo objetivo retórico seria a formação técnica da mão-de-obra e ações no campo social. Essas expressões do ministro são, em realidade, a manifestação de uma crescente insatisfação com esse sistema, que perpassa posicionamentos políticos e correntes ideológicas. Lembremos que, quando Fernando Haddad ocupou o cargo de Ministro de Educação, também tomou iniciativas para alterar a alocação de recursos do sistema, com resultados concretos no financiamento de programas de educação técnica administrados pelo governo. Joaquim Levy, quando Ministro da Fazenda da Presidente Dilma, também tentou alterar arcabouço de financiamento. Ou seja, pólos políticos/ideológicos diametralmente opostos na suas visões de mundo coincidiram na conveniência e necessidade de alterações em um marco institucional já velho no tempo. Lembremos que a matriz do atual arcabouço institucional/legal remonta à criação do SESI/SENAI, no ano de 1942 do século passado. Arranjo que, como uma metástase, inicialmente limitado à indústria foi “colonizando” o comércio, a agricultura, as cooperativas, os transporte, a pequena empresa (SEBRAE) chegando ao financiamento da denominada APEX (Agencia Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). Em todos os casos, tentativas de Haddad, Levy e de Paulo Guedes, as propostas de alterações foram energicamente criticadas pelos gestores do sistema.

Muito sinteticamente, o Sistema S se financia com a “contribuição voluntária” de um percentual (em média em torno de 1%, com um intervalo de alíquotas que vai de 0,2% a 2,5% segundo o setor) sobre a folha de pagamentos da firma. Lembremos que, nas suas origens, a retórica de sua implementação (especialmente no caso da indústria) argüia três justificativas. A primeira dizia respeito a uma suposta falta de mão-de-obra qualificada (especialmente no seu perfil técnico) em uma sociedade em rápido processo de transição de uma economia agrícola para outra urbano-industrial. A segunda alegação estava vinculada a sua formatação institucional: os empresários, mediante contribuições compulsórias sobre a folha de salários paga, financiariam o sistema, sem custos para o Estado. Em outros termos, seriam os próprios empresários que arcariam com o financiamento de um sistema de formação profissional (e ações sociais) que beneficiariam tanto empregados como empregadores. Por último, uma vez que seriam os recursos dos próprios empresários a base de financiamento, seria lógico que eles os administrassem. Por outra parte, na medida em que esse gerenciamento adquiriria um perfil semelhante aos princípios que norteiam as práticas administrativas no setor privado, se contornariam os processos burocráticos que pautariam o setor público, com hipotéticos ganhos de eficiência.

Dessa forma, com o transcurso do tempo, o Sistema S foi adquirindo maturação institucional e hoje estima-se que seu orçamento gira em torno dos 17/18 bilhões de reais. Para se ter uma ordem de grandeza, esse montante corresponde à metade do alocado no programa Bolsa-Família ou, em termos do PIB, se situa em 0.25%.

Em geral, todas as iniciativas que tentam alterar o atual arcabouço institucional despertaram as mais diversas reações e resistências tanto por parte de integrantes das próprias corporações como outras oriundas de personalidades do mundo jurídico e acadêmico (ver, por exemplo, aqui, aqui e aqui). Na maioria dos casos, os argumentos que tentam legitimar o atual sistema apelam a características cosméticas dos cursos oferecidos pelo Sistema S (“nunca vi um banheiro sem manutenção”), apologética (“O Sistema S conta com o fomento estatal em proveito da realização material de direitos”) ou invocam credenciais auferidas (“ganhou o primeiro prêmio na competição internacional WorldSkills”).

Em realidade, a avaliação de um arranjo institucional é uma tarefa mais complexa e abrangente que à listagem de aspectos pontuais (por meritórios que estes sejam) e supostas contribuições messiânicas para reduzir desigualdades. Não obstante as críticas que possam ser realizadas à suposta tirania contemporânea pela quantificação de qualquer atividade humana (Muller (2018)), uma avaliação do Sistema S não pode fugir a um balanço quantitativo (mesmo aproximativo) entre os benefícios, os custos e a distribuição desses benefícios e custos. Nesse sentido, enaltecer a qualidade dos cursos, celebrar a qualidade das instalações, etc. pode ser até racional no processo de pressões e barganhas que fazem parte da formatação de políticas públicas (sobre este tema voltaremos no final do post), mas, certamente, dista de serem aspectos cruciais para delimitar a relação entre custos e benefícios. Sem pretender esgotar o tema, nos próximos parágrafos mencionamos aspectos conceituais e metodológicos que consideramos não poderem ser marginalizados no momento de avaliar economicamente e mesmo socialmente o sistema.

Um primeiro aspecto que consideramos talvez o mais relevante e que (paradoxalmente) está ausente no debate público concerne aos impactos no emprego/desemprego, nos salários e no grau de formalidade de um encargo social/trabalhista (“contribuição obrigatória”) sobre os salários pagos. Basicamente, uma “contribuição obrigatória” eleva o custo de contratação de um empregado. Não existe nenhuma matriz teórica (seja no mainstream ou fora dele) que conclua que um encargo social/trabalhista sobre os salários seja neutro ou, em outros termos, não tenha impactos seja nos salários, seja no emprego/desemprego/formalidade. No modelo canônico, o resultado vai depender da elasticidade da oferta e demanda de trabalho. Em termos gerais, o lado mais inelástico do mercado (da oferta ou da demanda) vai conseguir resistir menos ao imposto (“contribuição obrigatória”) e, contrariamente, quanto mais elástico, maior será seu poder de transferir o peso do imposto sobre a outra parte. É plausível assumir que a oferta de trabalho (especialmente os trabalhadores primários, chefes de família) é relativamente inelástica. Calibrando para o caso brasileiro, estima-se que, para cada 1% de alíquota, os salários caem entre 0,5% e 0,8% e o emprego formal entre 0,05% e 0,08% (ver Pessôa Andrade (2018)). Essas sensibilidades encontradas para o Brasil estão dentro do esperado tendo como referência a literatura empírica internacional.

Tanto os resultados analíticos do modelo padrão quanto as estimativas empíricas permitem concluir que o relato segundo o qual uma “contribuição compulsória” paga, exclusivamente, pelos empregadores e, dada essa singularidade, com direito a ser gerido por eles próprios, não pode ser adquirida pelo seu valor de face. Os assalariados também arcam, em termos de perdas de emprego formal e salários, com parte do financiamento do sistema. Além desse aspecto quase direto, ao se elevar o custo do trabalho, se introduz uma série de alterações em espaços que vão além do mercado de trabalho, como a escolha de tecnologias, a alocação setorial e geográfica, etc..

Mesmo assumindo que parte do financiamento seja deduzido do lucro potencial dos empregadores, o encargo social não pode ser assumido como neutro. Ao afetar a taxa de lucro altera o retorno dos investimentos em geral, com desdobramentos setoriais segundo seja a intensidade do fator trabalho utilizado.

Resumindo, não existem elementos teóricos nem empíricos que permita concluir que um encargo social, elevando o custo do trabalho, seja neutro em termos de emprego formal/salário/alocação de recursos, etc..

Contudo, qualquer tentativa de avaliação consiste, basicamente, em comparar custos com benefícios e, nesse sentido, custos mencionados devem ser comparados aos potenciais benefícios.

Aqui (no caso dos benefícios) estamos diante uma segunda dimensão na qual as narrativas são tão audaciosas quanto apologéticas. Assim, o “o papel do SESI é importante na educação, com nível elevado de qualidade…., “A qualidade do profissional é fundamental para evitar o retrabalho, o desperdício, para fazer tudo com a maior eficiência possível. Esse tem sido o trabalho realizado pelas escolas do SESI e do SENAI…..”, “O Sistema S tem um serviço prestado a este país. São décadas na formação de trabalhadores”……. Se reconhecemos que, em qualquer área de conhecimento e também na formulação de políticas públicas, as afirmações e avaliações tem que estar fundamentadas em evidências, existe um vácuo na validação empírica da maioria das asserções. Estamos falando de uma validação empírica robusta tecnicamente e realizada por instituições e pesquisadores com independência e autonomia. Em termos técnicos, uma avaliação dos cursos do Sistema S teria que acompanhar as metodologias usuais nas avaliações de impacto (a escolha aleatória de um grupo de indivíduos que tenha usufruído do serviços educativos do sistema e a comparação de sua trajetória versus um grupo de controle, duplo cego, etc..). As variáveis a serem pesquisadas poderiam ser diversas: impacto nos salários; probabilidade de perda de emprego; retorno ao emprego quando desempregados; etc.. Por exemplo, se os cursos de formação do Sistema S têm impacto na produtividade e assumimos que os salários têm algum nexo com a mesma, a comparação entre os rendimentos do grupo experimental (que freqüentou o curso) e o grupo de controle deve ser favorável aos indivíduos beneficiários.

Em outros termos, assumir que os cursos de formação profissional ofertados pelo Sistema S são importantes para elevar a qualidade da força de trabalho, aumentar a produtividade, ampliar as possibilidades de emprego, etc., deve ser uma hipótese, plausível, mas hipótese a ser provada. A existência de banheiros limpos nas instalações, equipamentos modernos, etc., podem ser importantes, mas um sistema de formação profissional não pode ser conceituado por esses atributos. Teoricamente, essas qualidades devem se traduzir em melhores resultados no seu objetivo último (elevar a empregabilidade, aumentar os salários, etc..). Ou seja, o Sistema S não pode fugir de um sistema de avaliação isento, realizado por instituições neutras utilizando metodologias robustas tecnicamente e que hoje estão bem sedimentadas na literatura especializada. Na ausência dessa avaliação, afirmações sobre a qualidade do Sistema, sua necessidade, a relevância para elevar a produtividade, etc. não passam de narrativas de interesses específicos ou de hipóteses plausíveis que deveriam passar pelo crivo de avaliações de impacto.

Por último, e vinculado com a lógica do relato produzido pelas instituições ao Sistema S, cada vez que o status-quo pretende ser alterado, cabe uma reflexão sobre a formatação legal e institucional das políticas públicas. Nossos argumentos sintetizados nos parágrafos anteriores estão propondo uma perspectiva que pode ser denominada de “tecnocrata”. Imaginar que um arcabouço institucional é, exclusivamente, desenhado em função dos resultados de avaliações realizadas por entidades sem conflitos de interesses com o objeto a ser avaliado e com capital técnico sólido pode ser, com razão, qualificado de naïf ou irrealista. Fazendo um paralelo com a moderna literatura de crescimento econômico, seria como assumir um ditador altruísta e benevolente maximizando uma função de bem-estar social intertemporal. Em realidade, na maioria das vezes, nem existe esse planejamento altruísta nem existe uma função de bem-estar social a ser maximizada. O arcabouço de institucional/legal de cada país é fruto de barganhas políticas, conflitos de interesses, poder de negociação de corporações, heranças culturais, etc.. Os resultados de avaliações podem ser um elemento, mais ou menos importante segundo as circunstâncias, mas não será a variável crucial ou única. Cada posição ou interesse específico tentará ser mostrado como representando um interesse geral da sociedade e, especialmente, dos mais frágeis socialmente. A atual polêmica sobre a reforma da Previdência Social é um exemplo mais que ilustrativo.

Nesse contexto, cada vez que uma iniciativa visando alterar o Sistema S é insinuada, a profusão de artigos na imprensa ressaltando supostas ou hipotéticas virtudes do atual arcabouço institucional (qualidade, relevância, décadas de história, etc.) é normal e esperado (ver, por exemplo, aqui). Membros das atuais instituições terão uma natural posição conservadora. Outros interesses também se manifestarão em favor de um perfil dado de alterações. Devemos esperar essa dinâmica, é legítima e razoável e assim é o processo de formatação das instituições em qualquer país. Nessas circunstâncias, as avaliações neutras e robustas tecnicamente que acabamos de propor são uma dimensão do processo e, se fugirmos do figurino tecnocrático, não vai ser a única. Contudo, seria conveniente, em prol da transparência, que os autores das notas jornalísticas e artigos de cunho mais acadêmico explicitem a existência de vínculos institucionais ou financeiros com entidades sobre as quais estão discursando ou pesquisando. Essa prática, muito usual e quase obrigatória nas áreas médicas, biológicas, agronômicas, etc., deveria ser a norma também na área de economia e ciências sociais.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

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Políticas Públicas e Eficiência Alocativa na Educação

Nas últimas décadas, a educação foi sendo paulatinamente assumida como um verdadeiro mantra em termos de políticas públicas e prioridades. Melhores níveis de educação da população em geral e da força de trabalho em particular ampliariam as possibilidades de crescimento (ver, a título de exemplo da extensa literatura, Gemmell (1996), Toppel (1999), Lucas (1988)), seriam cruciais para combater a pobreza, constituiria uma variável chave para explicar o perfil distributivo das sociedades (ver, por exemplo, Mincer (1958), Langoni (1972), Acemoglou (2012), (2002), etc.) e ajudaria a explicar os indicadores de felicidade auto-declarados dos indivíduos. Esses nexos teóricos e empíricos parecem bem sedimentados na literatura, ainda que não possam deixar de ser considerados argumentos que relativizem essa importância, especialmente no tocante à relevância da suposta relação de causalidade entre educação e crescimento e aos diferenciais de níveis auto-declarados de felicidade entre indivíduos e sua relação com os patamares de escolaridade atingidos.

Em geral, a educação, seguindo a tradição inaugurada por Becker, Mincer, etc., é identificada com a acumulação de conhecimentos, habilidades, etc. que tem impacto sobre a produtividade e, na medida em que esta está associada ao crescimento e aos salários, acaba tendo desdobramentos positivos sobre os níveis de renda da sociedade e dos indivíduos.

Se, diferentemente desta perspectiva, a educação é assumida como sendo a acumulação de sinais ou credenciais para se diferenciar dos concorrentes na disputa por vagas (posicionamento relativo no mercado de trabalho), os ganhos sociais (não individuais) dos investimentos em educação podem ser questionados. Neste caso, o Estado deveria prescindir de alocar recursos públicos na área, uma vez que as credenciais não teriam uma correspondente contrapartida em conhecimentos/competências/habilidades sócio-emocionais. Logicamente, a dicotomia acumulação de capital humano/acumulação de sinais pode não ser bipolar no conjunto. Existem fortes elementos teóricos e empíricos que induzem a pensar que a educação pode ser uma mistura (em diferentes proporções, segundo os países, períodos históricos ou segmentos do sistema educativo) de acumulação de conhecimentos/habilidades e da procura por agregação de credenciais.

Uma vez que o nosso objetivo consiste em refletir sobre uma suposta conveniência de intervenção estatal a fim de tornar os investimentos públicos e privados na acumulação de capital humano mais eficientes, vamos admitir que a educação, na sua totalidade ou parcialmente, consiste em atividades que contribuem para acrescentar conhecimentos/habilidades/competências, sejam eles cognitivos ou sócio-emocionais.

Dada a hipótese da educação pós-compulsória ser identificada como uma atividade que, no futuro, vai se traduzir em maior produtividade/salários, acompanhando princípios básicos da Teoria do Capital Humano, a freqüência escolar deve ser reconhecida como um investimento e não pode fugir dos banais critérios que determinam se uma aplicação financeira deve ou não ser realizada: o valor presente do fluxo de benefícios (objetivos, como salários, ou subjetivos, como status social) devem ser superiores aos custos (financeiros diretos, de oportunidades, de sacrifício por abrir mão de lazer, etc.). O balanço dessa relação depende de diversos fatores (taxa de desconto, por exemplo) e a sua concretização pode estar em função da existência ou não de restrições de crédito. Além de olhares meramente econômicos, a intervenção pública associada a essas duas variáveis (taxa de desconto e restrições de crédito) podem dizer respeito a aspectos de justiça ou igualdade de oportunidades.

Contudo, associando a educação a um investimento (abrimos mão do consumo hoje para elevar o valor presente do fluxo de renda futura), a utilização dos habituais instrumentos metodológicos que pautam a viabilidade de uma aplicação financeira é cabível. Mais especificamente, é incontornável estar familiarizado com dados sobre o presente e tentar esboçar o porvir. Observemos que o investimento em educação é uma atividade que deve levar em consideração horizontes temporais que podem se aproximar ao meio século. A quase trivial escolha de um curso em uma universidade pauta custos futuros (por exemplo, a probabilidade de ficar desempregado por longos períodos na sua vida ativa) e retornos vindouros (evolução dos rendimentos nos próximos quarenta anos) que, ex-post, quer seja desde uma perspectiva individual ou social, podem não ter sido as melhores escolhas.

Concretamente, os critérios econômicos para a escolha de um investimento em educação (um curso) exige conhecer os salários relativos de cada uma das alternativas factíveis, as possibilidades de emprego, as eventuais trajetórias profissionais, os possíveis cenários em termos de demanda futura devido, por exemplo, a choques tecnológicos, etc.. Os gostos e as facilidades de cada indivíduo em cada área devem logicamente ser variáveis levadas em consideração, especialmente no tocante aos custos individuais. Contudo, os gostos, vocações, etc. deveriam ser somente um dos aspectos a entrarem no cálculo, que podem ou não ser compensados pelas outras variáveis (futuros rendimentos, por exemplo).

Se imaginarmos um processo no qual o mercado alocaria de forma eficiente os recursos investidos na educação, além dos usuais supostos sobre a racionalidade do “agente” (neste caso o processo de escolha entre estudar ou não e o quê e o quanto estudar), o arranjo ótimo requereria (como no modelo de Arrow-Debreu) que o indivíduo tenha à sua disposição um conjunto amplo de informações sobre o presente (salários relativos, taxas de ocupação, taxas de desemprego, etc..), os cenários futuros e a flexibilidade ou graus de liberdade que cada escolha lhe proporcionará amanhã. Mesmo deixando de lado externalidades (que podem determinar que os custos/benefícios individuais sejam diferentes dos sociais) ou a pouco crível hipótese da “probabilização” das alternativas nas próximas décadas, não existem elementos que nos permitam concluir que, em cada momento do tempo, as pessoas possuam ou estimem esses parâmetros e, mesmo estando dispostos a pagar por eles, que exista um mercado específico para esses dados.

Logicamente, se poderia arguir que “mercado”, em cada momento do tempo, proporciona livremente (sem custos) parte desses sinais. Os salários relativos podem estar sugerindo que profissões estão sendo mais demandas que outras. As taxas de desemprego podem revelar com que conhecimentos/habilidades/competências é mais fácil encontrar emprego ou, em outros termos, os conhecimentos/habilidades/competências requeridas pelas vagas que são abertas e a quantidade de vagas vis-à-vis a oferta. Mas mesmo na suposição otimista que um indivíduo antes de sua decisão de escolher seu curso esteja de posse dessas informações, dificilmente a mesma configuração vá prevalecer pelos próximos 40/50 anos. Ele teria que ser capaz de prospectar (e, se somos mais sofisticados, “probabilizar” possibilidades).

Nada garante que todo esse conjunto de hipóteses se cumpra. Aliás, realisticamente podemos supor que muito poucas delas prevalecem no dia-a-dia. A tomada de decisões talvez obedeça a outros parâmetros: expectativas e tradição familiar, informações de amigos/colegas, disponibilidade de cursos, gostos, capacidades inatas, valores do entorno social, etc.. Parte desses parâmetros podem ser considerados como fazendo parte do modelo canônico. Os gostos e as habilidades inatas podem reduzir os custos (objetivos e subjetivos) do projeto de investimento em educação. Contudo, em outros casos (ambiente familiar/social, amigos, etc.) a fonte de informações pode não ser robusta ou estar viesada ou simplesmente não existir.

Essas limitações, nos processos individuais que pautam as escolhas de investimento em capital humano, tem custos, tanto privados quanto sociais. Por exemplo, a falta de aderência entre o perfil profissional requerido pelas vagas disponíveis e o contorno das habilidades/competências da oferta de trabalho tem como corolário uma alocação ineficiente da mão-de-obra e/ou sua subutilização (desemprego). Em termos técnicos, essa disfunção (mismatching) é usualmente mesurada através da posição da denominada Curva de Beveridge. Uma conseqüência seria, por exemplo, a sobrequalificação dos empregados, um fenômeno usual nas economias maduras.

Uma situação análoga à que estamos descrevendo pode ser observada no caso das políticas de emprego. O Sistema Público de Emprego proporciona aos beneficiários do seguro-desemprego informações sobre profissões/setores/áreas geográficas nas quais ele tem maiores possibilidades de ser contratado e, nesse sentido, pauta as ações (cursos oferecidos, intermediação, etc.) que tem como alvo cada desocupado. Ou seja, assume-se que os sinais de mercado (salários relativos, diferenciais geográficos nas taxas de desemprego, etc.) demoram ou sua disseminação é imperfeita. Nesse sentido, a intervenção pública ajudaria (“azeitaria”) o matching entre oferta e demanda.

Na educação, diversos passos foram dados nessa direção nas últimas décadas, especialmente a implementação e ampla divulgação de sistemas de avaliação, que proporcionaria informações sobre a qualidade dos cursos. Teoricamente, a qualidade de um curso teria impacto sobre o capital humano dos alunos e, via produtividade, nos salários no transcurso de sua vida profissional. Existem evidências que dão robustez empírica a essa suposta correlação. Ou seja, os alunos teriam informações sobre a qualidade do curso de um estabelecimento, referência que ajudaria na tomada de decisões.

Contudo, ganhos de eficiência macro seriam dilatados e frustrações individuais seriam reduzidas no caso de outros arranjos legais ampliarem o leque de informações públicas de fácil acesso. Por exemplo, os estabelecimentos poderiam divulgar os salários de seus egressos, as taxas de desemprego, as firmas/instituições nos quais foram empregados, etc.. Se o processo educativo é reduzido à dimensão econômica, sendo a educação assumida como investimento com custos e retornos, nada mais próximo a essa perspectiva que os MBA’s, cursos identificados como sendo um trampolim para melhores empregos ou para turbinar a progressão funcional. Geralmente pagos e muito caros, muitas instituições divulgam salários e tipos de ocupação de seus antigos alunos como forma de “vender” seu produto no mercado (ver, por exemplo, aqui, aqui ou aqui).

Essa maior disponibilidade de informações poderia ser crucial na hora da tomada de decisões, redundando em maior eficiência alocativa macro e maiores retornos individuais. Se a educação é definida como um investimento, as escolhas devem estar pautadas pelos usuais critérios que norteiam qualquer investimento e, nesse sentido, a disponibilidade de informações é vital. Nesse contexto, o Estado deveria assegurar esses referenciais, obrigando ou induzindo às instituições a divulgarem dados (salários de seus egressos, firmas ou setores onde foram empregados, tempo para encontrar uma ocupação, etc.) que subsidiem as escolhas. Seria conveniente que a eleição de um curso deixe de ser, exclusivamente, pautada por informações subjetivas de amigos/parentes, tradições, supostas vocações, etc.. Em um ambiente no qual o objetivo em elevar a produtividade parece ter se tornado prioridade absoluta, avanços nesse sentido complementariam outras iniciativas.

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

O Valor e a Medida do que não se Embrulha

O jornalista Elio Gaspari, na sua coluna na Folha de São Paulo do 2 de dezembro, criticando a falta de nomes ligados à produção na equipe de Paulo Guedes, apela a uma suposta definição do banqueiro Gastão Vidigal: “Produto é aquilo que se pode embrulhar. Pregos, por exemplo”. No parágrafo seguinte menciona uma exceção, um nome oriundo do setor privado (Salim Mattar), fundador da Localiza, empresa especializada (nas palavras do próprio Elio Gaspari) no serviço de locação de carros. A crítica de Gaspari está dirigida ao suposto predomínio, na equipe de Guedes, de funcionários procedentes do Setor Público (Mansueto Almeida, Waldery Rodriguez, etc.) sobre indivíduos ligados à oferta de bens que se “embrulham”. A dúvida fica por conta da inclusão de Salim Mattar, que não tem como berço o setor público mas, contudo, a oferta da firma que criou (serviços de locação de carros) não se “embrulha”.

Gaspari, subliminarmente, parece outorgar uma certa superioridade valorativa à oferta daquilo que se “embrulha”. Curiosa essa hierarquia, uma vez que hoje os países, na medida de suas possibilidades (disponibilidade de recursos humanos, tecnologia, capital, etc.) tendem a fugir da produção de “pregos”. As fronteiras, em termos de bem-estar material, se encontram em economias que, justamente, geram e exportam uma oferta de bens que não se “embrulham” e tendem a importar coisas que sim se “embrulham”, como pregos.

Contudo, a oferta composta por coisas que não se “embrulham” reintroduz um desafio já velho na economia: a questão da medição e valoração. O desafio não é novo e não está colocado, exclusivamente, na oferta intangível ou não-embrulhável (como é a quase maioria no caso dos serviços). Lembremos que o quesito da medição era o cerne da denominada “Controvérsia do Capital” ou “Controvérsia das duas Cambridges” no tocante à agregação dos bens de capital e a remuneração desse fator em função da sua produtividade marginal. Muito sinteticamente, o eixo da controvérsia era (e é): como adicionar um trator e um computador ? Simplesmente pelos seus preços de mercado, seria a resposta mais óbvia. Dada essa agregação, a contribuição marginal dessa magnitude seria sua retribuição (∂Q/∂K = r). Ocorre que o valor de K não pode ser seu custo, depende do retorno estimado. Mas se K (como agregado) depende de seu retorno, não podemos estimar a produtividade marginal para estimar o retorno: estamos diante de um referencial auto-circular. O debate não foi conclusivo, está em aberto. Em termos históricos (com Joan Robinson à frente), a Cambridge (UK) questionava o próprio conceito de função de produção e a Cambridge (US), especialmente Samuelson, propunha abordagens alternativas que mantinham o modelo canônico em pé.

Se a questão da medição e agregação é, no caso particular dos bens de capital que se podem “embrulhar”, polêmica, demanda amplos espaços de reflexão teórica e metodológica, o desafio é ainda maior quando estamos lidando com uma oferta que “não se embrulha”, como seria o caso da utilização do conhecimento na produção, de melhoras organizativas, de imagem, etc., ou seja, ativos intangíveis. Percebamos a magnitude do desafio. No caso de um trator temos uma dimensão física, concreta, que devemos quantificar monetariamente. Quando estamos em uma dimensão não tangível, devemos lidar com a reputação de uma firma, o prestígio de uma marca, uma forma de organização, etc. que devemos mesurar em termos de magnitudes de potenciais trocas. O ponto é: como medimos e como é remunerado essa dimensão não tangível?

A questão da medição é crucial uma vez que, se a principal alavanca para transitar de um país de “classe média” (como é o Brasil hoje) rumo ao clube das nações avançadas passa por quesitos não tangíveis (que não se “embrulham”, como educação, formas de organização, incentivos, I+D, etc.), se torna necessário algum tipo de indicador para avaliar e direcionar políticas públicas. Por exemplo, hoje a relação entre investimento e PIB é assumida como um parâmetro crucial para determinar o crescimento potencial. Contudo, nesse investimento só é considerada a oferta que se pode “embrulhar”. Como contabilizar o conhecimento incorporado nas máquinas, na organização das firmas, nos processos, na conduta dos trabalhadores, etc.? Como medir o conhecimento acumulado em firmas e instituições? Como medimos e contabilizamos o capital humano que os assalariados acumulam nos seus anos de experiência nos seus empregos?

A tentação é assumir que a medição/valoração da oferta não-embrulhável pode ser realizada com os mesmos instrumentos metodológicos que o capital físico. Lembremos que uma boa e consensual definição de investimento consiste em determinar quanto abrimos mão do consumo presente para expandir o consumo futuro. Nesse sentido, reduzir o trabalho de jovens hoje para possibilitar a freqüência ao sistema escolar, a fim de elevar sua produtividade no futuro, deve ser considerado um investimento que mereceria receber o mesmo status que a construção de um porto. Contudo, o problema pode ser mais complexo quando, por exemplo, em um país (como é o caso do Japão) os vínculos trabalhistas são mais estáveis (menor rotatividade) e essa característica permite elevar a qualidade (produtividade) da mão-de-obra. O desempenho da PEA (População Economicamente Ativa) pode ser mensurado, não unicamente pela quantidade e qualidade da educação recebida no sistema escolar, senão que, também, pela qualidade das trajetórias profissionais. Os contornos institucionais das firmas em cada país (práticas, processos, formas de remuneração e incentivos, valor das marcas, etc.) parecem constituir fontes de capital intangível com desdobramentos nos níveis de produtividade (ver, por exemplo, os artigos de Cummins; e Lev & Radhakrishnan). Aqui estamos diante das mais diversas nuances que são difíceis de delimitar, medir, valorar. Por exemplo, uma firma pode comprar um novo equipamento, mais desenvolvido tecnologicamente. O provedor pode incluir, no pacote, os serviços de formação dos assalariados da firma compradora, sendo este último um capital intangível e de difícil medição. Outras vezes, a valoração pode utilizar metodologias mais clássicas. Por exemplo, um investimento em I&D pode ser valorado seja pelo seu custo seja pelo valor presente do fluxo futuro de benefícios. Neste último caso, porém, se vai requerer a definição de um horizonte temporal, tarefa não trivial.

Contudo, as dificuldades de medição nos “não embrulháveis” estão no próprio DNA. Como contabilizar, nas Contas Nacionais, o investimento realizado para elevar o valor da marca de um produto? A valoração deste tipo de bens (não tangíveis) já merece esforços de reflexão no âmbito do paradigma mainstream. Ou seja, não é um programa de pesquisa que deva, necessariamente, fazer jus a um carimbo de “heterodoxo”. Existem elementos para afirmar que, em certas economias (EUA, por exemplo) o investimento em intangíveis supera o investimento tradicional. Em geral, quanto maior a importância dos intangíveis no investimento total maior será a importância do capital humano, da inovação, da produtividade, etc. na explicação da performance de uma economia e, nas modernas abordagens, esses parecem ser os nutrientes que permitem fugir de um cenário de estagnação secular no longo prazo.

Estes problemas se agregam a desafios mais antigos e que já receberam amplo tratamento na literatura. Por exemplo, os serviços de saúde. Se uma operação de ponte de safena hoje tem uma taxa de sobrevivência de mais de 90% e uma excelente qualidade de vida posterior, como comparar esse “serviço” (não embrulhável) com a mesma operação feita há 50 anos, quando a taxa de sobrevivência era de 20% (exemplo hipotético) e a qualidade de vida no pós-operatório sofrível. Estamos falando do mesmo produto (operação hoje e há 50 anos)? Neste post direcionamos a nossa atenção ao investimento, uma vez que existe consenso sobre uma das diversas restrições que dificultam a retomada do crescimento no Brasil. Limitar a nossa atenção à clássica relação investimento de “embrulháveis”/PIB, com certeza, deixa fora uma série de fatores que talvez sejam tão ou mais importantes que os tangíveis. Quiçá essa seja uma tarefa inglória e a contribuição dos não embrulháveis continue sendo contabilizada como sendo a PTF (Produtividade Total dos Fatores, denominada, adequadamente, como sendo o tamanho de nossa ignorância) pela nossa incapacidade de dar valor a singularidades tão vagas como capital social, instituições, valor de uma marca, etc. Contudo, seria bom sermos conscientes de nossas limitações.

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Produtividade nos Serviços, Emprego e Desigualdade

Existe o consenso segundo o qual, sob uma perspectiva de longo prazo, reverter a quase estagnação, nos últimos 30 anos, da renda per capita no Brasil passa por materializar aumentos de produtividade sem os quais a retomada do crescimento seria efêmera ou circunstancial.

Dentro desse contexto muito geral, a produtividade nos serviços ocupa, por diversos motivos, um lugar particular e mais polêmico. Várias são as circunstâncias que nutrem essa singularidade. Talvez a mais abordada na literatura diga respeito às potencialidades (ou ausência de potencialidades) do setor serviços, por características intrínsecas ao mesmo, em incrementar sua produtividade. No caso de assumir uma hipótese pessimista, o desfecho natural seria a denominada “doença de Baumol”, circunstâncias nas quais os salários setoriais se elevariam sem a correspondente elevação na produtividade, com desdobramentos nos preços relativos, inflação, etc. Já abordamos em outro post deste blog (https://bit.ly/2MWI36M) o caráter simplista e reducionista desta interpretação, uma vez que a sua construção requer assumir que os ganhos de produtividade estão concentrados, exclusivamente, na indústria de transformação. Abstraindo esta possibilidade, a questão da produtividade nos serviços volta a recolocar-se e integra um dos quesitos a ser pesquisado dentro do debate que tenta identificar os gargalos a serem superados para a retomada do crescimento. Nesse sentido, a literatura no Brasil é ampla e consensual (podemos citar, a título de exemplo, Arbache (2015), Veloso; Cavalcanti; Matos; Pereira Coelho (2016)): a produtividade dos serviços no Brasil acompanha a estagnação da produtividade da economia em geral e está situada em um nível bem distante do patamar dos países mais desenvolvidos e mesmo de nações com desenvolvimento mais próximo.

Contudo, a questão da produtividade nos Serviços não está, exclusivamente, associada às questões que dizem respeito ao longo prazo. Aspectos pertinentes ao ciclo de curto prazo também não estão dissociados das possibilidades de o setor de serviços elevar sua oferta mediante a utilização mais eficiente dos insumos. No recente ciclo inflacionário (2010-2016) uma particular atenção foi dada à alteração dos preços relativos em favor dos serviços e, na evolução de seus preços, era identificada uma das fontes do não cumprimento das metas inflacionárias (Arbache (2016)). A questão é complexa e não pode estar restrita a uma suposta inelasticidade da oferta no curto prazo.

Contudo, matizes estruturais e conjunturais podiam estar se agregando (Menezes Filho (2013)). A primeira década dos anos 2000, com suas especificidades (um ciclo histórico no qual o aquecimento era dinamizado pelo aumento do consumo, dos salários, especialmente os próximos ao salário mínimo, e dos benefícios sociais), pode ter tido um particular impacto sobre a demanda por serviços (Matos dos Santos et. al. (2018)). Lembremos, por outra parte, que uma elevada elasticidade renda da demanda de serviços seria uma característica do crescimento, independentemente da estratégia ser ou não wage-led growth (Clark (1957)).

Dessa forma, a questão da produtividade nos serviços se coloca tanto a partir de uma perspectiva de longo prazo (objetivo de elevar a renda per capita potencial) como de curto prazo (administrar um aquecimento do nível de atividade com mínimos impactos sobre os patamares de inflação). Inclusive, com a crescente incorporação na oferta da indústria de transformação de componentes oriundos dos serviços, a própria produtividade do setor industrial dependeria da eficiência do terciário (no mínimo de uma parte dele, aquele que o complementa).

Dentro desse contexto geral, um recente documento do Departamento de Pesquisas do Banco de Investimento Natixis (https://bit.ly/2EGniYu) introduz uma perspectiva original, uma vez que relaciona a produtividade do setor serviços com desemprego da força de trabalho com pouca qualificação e os indicadores de desigualdade. O referencial para a reflexão são dois países (Japão e França), dois modelos diferentes, sendo que em um (Japão) a produtividade dos serviços seria baixa e no outro (França) elevada.

No caso do Japão, a produtividade na indústria de transformação seria tão elevada que sua competitividade não seria afetada pelo fraco desempenho dos serviços. Essa competitividade do setor secundário fica evidente quando o referencial é o indicador de saldo (positivo) do comércio de bens industriais com o mundo, que atinge 4,5% do PIB. O emprego industrial pode ser caracterizado como residual (15% dos ocupados), mas sua produtividade é crucial no equilíbrio do setor externo. Os salários do setor industrial são, em média, 20% superiores aos observados nos serviços.[1] Aqui, porém, temos uma hipótese não explícita na análise dos pesquisadores do Natixis: essa diferenciação entre rendimentos requer assumir que ou o mercado de trabalho é segmentado (hipótese plausível dada a forma de gerenciamento dos recursos humanos nas grandes firmas japonesas) ou estamos falando de qualidades de mão-de-obra diferentes (escolaridade/qualificação). A análise do banco sugere (implicitamente) que estamos diante de trabalhadores com capitais humanos diferentes, prevalecendo nos serviços um assalariado com baixa qualificação e, portanto, baixa produtividade. Assim, o setor de serviços seria intensivo em trabalho pouco qualificado ou sem experiência e, nessa perspectiva, as atividades terciárias se assemelhariam a “esponja”, absorvendo mão-de-obra não requerida pelo setor industrial e que poderia ser potencialmente vítima do desemprego. Os indicadores são, nesse sentido, eloquentes. A taxa de desemprego da PEA com 15 a 24 é de apenas 4,6% no Japão. Na França a mesma estatística assume um valor de 21,6%.[2]

Na medida em que, no país asiático, teríamos um mercado de trabalho diferenciado entre um espaço com bons empregos e elevada produtividade (indústria de transformação) e um outro com empregos de pouca remuneração e baixa produtividade, a dispersão de salários seria elevada. No Japão os assalariados com baixos rendimentos seriam quase 13% dos ocupados, na França 9%. [3] Esse fenômeno se aprofundaria no tempo na medida em que temos um setor com ganhos de produtividade dos quais se beneficiariam seus assalariados e um outro espaço com produtividade estagnada e fértil na geração de empregos.

Em termos mais gerais, a ineficiência nos serviços seria um “preço a ser pago” (um “imposto”) pela indústria de transformação para que a sociedade conviva com uma taxa de desemprego baixa ou, alternativamente, o “preço a ser pago” pelo setor industrial para a sociedade poder ofertar empregos que, não obstante serem de baixa produtividade, são aqueles que possibilitam absorver mão-de-obra com pouca qualificação. Uma vez que a produtividade na indústria de transformação japonesa é elevadíssima e crescente, sua competitividade externa (nos mercados mundiais) não estaria comprometida pelos custos a que é submetida.

No caso da França a lógica de funcionamento seria contrária: um setor de serviços muito eficiente, que não onera a indústria de transformação senão que complementa sua produtividade, sendo o custo uma elevadíssima taxa de desocupação daquelas pessoas com pouca qualificação. O percentual da força de trabalho francesa com menos de segundo grau completo que procura mas não acha um emprego é de 15,1% (2017), sendo de 10,8% a média dos países da OCDE. No caso dos indivíduos com ensino superior completo, a taxa de desemprego é de 4,7% (França) e 4,1% (média da OCDE). [4] Temos, assim, uma economia com elevada produtividade em todos os seus setores e que absorve mão-de-obra muito educada, sendo o ajuste realizado via taxa de desemprego da força de trabalho pouco qualificada.

Nesses casos, a desigualdade se alimenta pela qualidade do emprego (serviços), no caso do Japão, e pelo desemprego, no caso francês.

Essa discussão merece ser levada em consideração, no caso do Brasil, uma vez que, se as iniciativas para elevar a produtividade nos serviços chegam a se traduzir em resultados concretos, desdobramentos sobre a estrutura das taxas de desemprego e as desigualdades podem não ser desprezíveis. Logicamente, como sempre, seria interessante abrir o heterogêneo setor serviços entre aqueles nichos modernos, articulados com a indústria de transformação, integrantes dos circuitos mundiais de comércio, factíveis de incorporar as novas tecnologias, etc. daqueles subsetores associados a atividades para os quais as possibilidades de potenciais ganhos de produtividade são bem mais reduzidos e absorvem mão-de-obra com pouca qualificação. Seria interessante tentar identificar se nosso bom e velho trade-off entre equidade e eficiência não vai se insinuar por insólitas fendas.

Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

Bibliografia Citada.

Arbache, J., Produtividade no Setor Serviços, in De Neri; Cavalcanti (2015)

………………, O Problema de Inflação de Serviços. Blog Economia de Serviços. 14/01/2016. (Disponível em: https://bit.ly/2LuIu49; consultado em dezembro de 2018)

Clark, C.,The Conditions of Economic Progress. London: Macmillian. 1957.

Fernanda De Negri, F.; Cavalcante, L.R., (Org), Produtividade no Brasil: desempenho e determinantes . Determinantes. v. 2. Brasília: IPEA. 2015.

Matos dos Santos, D.H., et.al. A natureza da inflação de serviços no Brasil: 1999-2014 Economia e Sociedade. v. 27, n. 1. p.199-231. 2018.

Menezes Filho, N., Educação, produtividade e inflação. Valor Econômico. 19/04/2013. (Disponível em: https://bit.ly/2rLNB7j; consultado em dezembro de 2018).

Veloso, F.; Cavalcanti, P.; Matos, S.; Pereira Coelho, P., “Produtividade do Setor de Serviços no Brasil: Um Estudo Comparativo”. FGV. 2016. (Disponível em: https://bit.ly/2T3IECo; consultado em dezembro de 2018).

  1.  Fonte: Natixis/OCDE.
  2.  Fonte: Employment Outlook. OCDE. 2018. Os dados por nível de educação não são contabilizados para o Japão, uma vez que sua classificação (em termos de níveis de estudo) é particular e não possibilita uma comparação com os outros países da OCDE. Assim, utilizamos as faixas etárias para fins de confrontação e estamos supondo que as menores faixas etárias têm uma qualificação (dada pela experiência) menor.
  3. Fonte: Employment Outlook. OCDE. 2018. Esses dados correspondem ao ano de 2016. Segundo a classificação da OCDE, os baixos salários são definidos como sendo aqueles que correspondem a 2/3 do salário mediano.
  4.  Fonte: OCDE.

Teoria, Ciência e Avaliação de Políticas Públicas

Em um recente e excelente artigo publicado neste Blog (Aprendizado e Tempo na Escola), Rafael Terra e Luis Felipe Oliveira avaliam, para o caso do Brasil, em que medida ampliar o tempo de permanência na escola melhoraria os indicadores de resultado do processo educacional. As conclusões do artigo são pessimistas: essa alternativa de política não teria os resultados que a intuição supõe uma vez que a relação custo/benefício seria francamente desfavorável a esse tipo de iniciativa.

Contudo, nosso objetivo neste post não consiste em comentar ou debater esse artigo específico ou esse resultado particular senão utilizar o mesmo para induzir uma reflexão sobre os nexos entre matrizes teóricas, o conceito de ciência e as propostas de avaliação de políticas públicas. Como bem sustentam Rafael e Luis Felipe no post, elevar a eficiência e eficácia dos recursos públicos alocados em programas e projetos passa pela sua avaliação de impacto. Essa avaliação deveria acompanhar, em termos metodológicos, um savoir-faire já amplamente consolidado em áreas como a medicina, veterinária, agronomia, etc.. A efetividade de um tratamento ou política teria que ser mensurado comparando a evolução e o desfecho de dois grupos escolhidos de forma aleatória: aquele sobre o qual foi aplicado o “tratamento” (a política ou a intervenção) e um outro não submetido ao tratamento (ou sobre o qual foi utilizado um placebo), denominado de grupo de controle. Na sua forma mais pura, este experimento teria que se singularizar por ser “duplo cego”, premissa segundo a qual nem os técnicos que realizam o experimento nem os integrantes dos grupos sabem que unidades fazem parte do grupo de tratamento ou do grupo de controle. Além desses aspectos pouco aplicáveis ao campo das ciências sociais (como a economia), podemos agregar outros. Por exemplo, questões éticas (um grupo social não é escolhido para participar de um programa simplesmente para servir de grupo de controle). Um outro exemplo da limitação de estender esta metodologia a áreas alheias à medicina, veterinária, etc. está vinculado à possibilidade mesma de realizar um experimento. Dada essa dificuldade, nas últimas décadas, na medida em que esta alternativa de pesquisa empírica foi se sedimentando como uma boa possibilidade de aproximar a economia às ciências denominadas de “duras”, os economistas tentam identificar fenômenos que se aproximem do mundo ideal “experimental”. Por exemplo, um caso pioneiro e talvez o mais conhecido, foi a utilização, por Card e Krueger (1994), do aumento, em 1992, do salário mínimo em New Jersey. Na medida em que no vizinho Estado de Pennsylvania o valor não foi alterado, a comparação da evolução do emprego em ambos Estados podia ser utilizado como uma proxy de uma avaliação experimental do impacto na variação do patamar mínimo de salários sobre o emprego no segmento de mão-de-obra não qualificada (mais especificamente, na ocupação nos fast-foods). Na medida em que, no modelo canônico, uma elevação do mínimo impacta negativamente na demanda de mão-de-obra, a identificação desse conjunto não afetado pela política é utilizado como contra-factual[2]. Ou seja, basicamente se estaria tentando responder a esta pergunta: que teria acontecido senão houvesse passado o que passou? Dessa forma, estaríamos ambicionando amoldar uma metodologia (RTC- Randomized Controlled Trial) utilizada em certas ciências para as ciências sociais (economia entre elas) e, mais especificamente, para a avaliação do desenho de políticas (Evidence-Based Policy).

Ao levar esse tipo de abordagem para a economia, a aspiração seria concretizar uma antiga pretensão dos economistas: distinguir seu nicho das ciências sociais em geral, uma vez que suas hipóteses ou modelos teriam que passar pelo crivo de uma metodologia de avaliação (Evidence-Based) que prove sua pertinência, metodologia similar à utilizada por outras ciências denominadas de “duras”. Nesse sentido, a afirmação de Rafael e Luis Felipe é ilustrativa:

“Infelizmente, a criação e as reformulações dos programas no Brasil não levam em conta a necessidade de avaliação. É um problema recorrente. O novo governo faria muito bem às finanças públicas se buscasse incorporar desenhos experimentais ou quase-experimentais para avaliar os programas implementados”

Esse tipo de perspectiva tem no J-PAL (Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab), do MIT, um referencial acadêmico que ancora sua pertinência. A tarefa realizada no âmbito do J-PAL consiste, basicamente, em utilizar a metodologia que sintetizamos nos parágrafos anteriores para avaliar políticas, programas e projetos na área social ao redor do mundo. Assim, podem ser encontrados resultados de avaliação de impacto da construção de escolas sobre salários e escolarização em Indonésia (Duflo (2001)), o resultado da informação do vírus HIV sobre as práticas sexuais dos adolescentes em Quênia (Dupas (2011)) ou o desdobramento da distribuição de uniformes nos alunos, também em Quênia, avaliação na qual se chega à conclusão que essa disponibilidade reduz o absentismo em 38% (Evans, Kremer and Ngatia (2008)). Poderíamos estender os exemplos. Nos seus primeiros dez anos (foi criado em 2005), o J-Pal realizou mais de 400 avaliações experimentais em mais de 50 países.

Neste artigo pretendemos discutir três aspectos: qual é o referencial teórico que pauta cada uma dessas avaliações ? Qual a contribuição que cada uma delas (cada avaliação) realiza para consolidar ou alterar o modelo canônico ou algum outro paradigma? Qual é o status da teoria nessa nova cultura de avaliação?

Comecemos pelo primeiro aspecto. Qual é o referencial teórico que norteia as pesquisas? A resposta é mais ou menos óbvia: nenhum. Um modelo de referência foi substituído pelo bom senso, pela intuição, pelo feeling, etc.. Distribuir uniformes nas escolas, tem impacto positivo sobre os resultados do processo educativo? Pode ter, pode não ter, talvez tenha. A intuição nos diz que pode ser relevante, mas nada garante. A participação e engajamento da comunidade na escola, pode melhorar a qualidade dos resultados? Pode, o bom senso nos diz que sim, mas depende de que tipo de engajamento, não todos (Pradhan et al. (2012)). Por outra parte, essa ambivalência no resultado encontrado por Pradhan et al. pode ser válido para Indonésia, lugar onde a avaliação experimental foi realizada, mas não podemos generalizar.

Ou seja, não precisamos de teoria ou marco conceitual para pautar uma avaliação. O bom senso pode induzir um experimento ou, alternativamente, o objetivo pode consistir na avaliação de um programa do governo ou a proposta de um candidato.

Mas não estaremos diante um processo de produção de conhecimentos eminentemente indutivo? Em outros termos, conclusões de caráter universal podem ser acumuladas para nutrir ou testar um marco conceitual existente ou outro a ser construído? A resposta volta a ser negativa por dois motivos. Primeiro que não existe um modelo teórico prévio que está sendo testado e, nesse sentido, não existe um marco conceitual já existente a ser validado empiricamente ou sofisticado ou consolidado. Simplesmente não existe teoria pré-existente. Por outra parte, a avaliação experimental, ao não ter um arcabouço analítico que a fundamente, fica limitada ao entorno temporal e geográfico no qual foi implementada. A distribuição de uniformes escolares reduz o absentismo em Quênia. Podemos concluir que a distribuição de uniformes reduz o absentismo em todo lugar? Óbvio que não. Reduz em Quênia e o resultado está circunscrito ao espaço no qual foi realizada essa avaliação dentro desse país. Vejamos o caso do Brasil. Se no Rio Grande do Sul realizamos uma avaliação experimental e o resultado nos diz que a merenda escolar eleva o rendimento dos alunos, podemos sustentar que em Roraima esse resultado é válido? Evidente que não. Na ausência de um modelo referencial, quantas validações experimentais são necessárias para que a relação de causalidade encontrada (ou não encontrada) possa adquirir uma singularidade universal ? É impossível saber e sempre pairará a dúvida se os resultados achados em dado espaço geográfico e temporal manifestam um correlação universal ou não.

Assim, não estamos diante um processo de pesquisa indutivo. A vocação da literatura na área, é preciso reconhecer, não tem essa pretensão. Nesse sentido, essa opção metodológica (avaliação experimental ou quase experimental) foi adotada pelo mainstream na tentativa de tornar mais próxima a economia das ciências duras. Contudo, paradoxalmente, o processo leva a tornar mas longínqua a possibilidade de um paralelo. Tomemos o caso da evidence-based medicine. Se um dado experimento determina que um coquetel de drogas inibe o avanço do vírus HIV, esse resultado será válido para Suíça, Burkina-Faso e Japão. Os resultados de Dupas (2011) sugerem que as condutas sexuais dos adolescentes quenianos parecem sensíveis às informações sobre AIDS, com impactos nas taxas de gravidez. Mas será que os adolescentes de Honduras terão a mesma resposta ? Não sabemos. Em outros temos: fica em aberto a questão da validação externa.

Essa impossibilidade de generalização fica mais evidente em certos papers. Tomemos o caso do artigo de Evans, Kremer and Ngatia (2008) que pretende quantificar o impacto da distribuição de uniformes escolares sobre indicadores educacionais. O resultado parece positivo. Mas isso na média. Concretamente, a sensibilidade vai depender se o aluno é do sexo masculino ou feminino, da faixa etária, depende se já tinha uniforme ou não, entre outros aspectos. Não se tem um modelo que dê sentido ao experimento e não se pretende universalizar: “cada caso é um caso”. Bem longe da física, da medicina, etc..

Assim, paradoxalmente, temos que a tentativa de aproximar a economia das ciências ditas duras evidencia de forma nítida as particularidades das ciências sociais em geral e da economia em particular.

Mas a questão agora é: qual é o status da teoria nesse contexto?

A condição atual dessa tendência a privilegiar a avaliação de impacto (seja ela experimental ou quase-experimental) parece nos aproximar a uma espécie de esquizofrenia. Temos os modelos teóricos, cada vez mais sofisticados e, sem diálogo com eles, se tornam corriqueiros crescentes esforços de avaliação, também cada vez mais refinados estatisticamente e com uma cada vez maior disponibilidade de amplos bancos de dados.

Nesse contexto, a teoria parece um exercício de lógica quase teológico ou, nas palavras de Romer (2015, p. 93), é um “entretenimento”. Vamos reproduzir suas palavras:

“…empirical work is science; theory is entertainment”

Essa falta de diálogo entre teoria e experimento fica evidente entre a prática cotidiana de um economista hoje e os cursos teóricos oferecidos na sua formação. O salário real é igual à produtividade marginal do trabalho, se ensina em Micro e Macro. Segundo o paradigma hegemônico, e descartando certos descompassos que podem ser provocados por algum grau de monopólio por parte dos empregadores, uma elevação do salário mínimo deveria gerar desemprego. Mas se uma avaliação como a realizada por Card e Krueger (1994) não identifica esse impacto, o modelo canônico é desqualificado? Não, uma vez que podemos realizar outras avaliações e esse paradigma poderia ser confirmado. Ou, alternativamente, surge uma polêmica sobre as ferramentas estatísticas utilizadas, a consistência dos dados utilizados, etc.[3] Os resultados encontrados alimentam a construção de algum outro paradigma? Também não.

Nos encontramos, assim, diante de uma segmentação entre teoria e práticas empíricas. Por uma parte se apela à necessidade de avaliações para atestar a eficácia e eficiência dos recursos aplicados, um objetivo louvável. Contudo, dado o empiricismo que permeia essa abordagem, os resultados ficam restritos a um determinado projeto/programa/política, a uma determinada área geográfica e a um dado momento do tempo. A agregação de conhecimentos e sua universalização ficam comprometidas dada a ausência de marcos analíticos de referência. A aspiração de nos assemelhar às ciências duras ainda constitui uma utopia.

Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação na Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

Bibliografia Citada

Card, D.; Krueger, A.L., Minimum Wages and Employment: A Case Study of the Fast-Food Industry in New Jersey and Pennsylvania” American Economic Review. 84(4). p. 772-793. 1994.

Duflo, E., “Schooling and Labor Market Consequences of School Construction in Indonesia: Evidence from an Unusual Policy Experiment” American Economic Review. 91(4). p. 795-813. 2001.

Dupas, P., “Do Teenagers Respond to HIV Risk Information? Evidence from a Field Experiment in Kenya” American Economic Journal. Applied Economics. 1(3) p. 1-34. 2011

Evans, D., Kremer, M. and Ngatia, M. “The Impact of Distributing School Uniforms on Children’s Education in Kenya” Working Paper. World Bank. 2008. (Disponível em: https://bit.ly/2SfGI9d; consultado em novembro de 2018).

Pradhan, M. et al., Improving Educational Quality through Enhancing Community Participation: Results from a Randomized Field Experiment in Indonesia. Working Paper. World Bank. 2012.

Romer, P.M., “Mathiness in the Theory of Economic Growth” American Economic Review: Papers & Proceedings. V. 105. p. 89–93. 2015

 

 

  1. / Professor do Departamento de Economia, UnB.
  2. / No caso específico do exercício de Card e Krueger (1994), o impacto negativo da elevação do salário mínimo sobre o emprego não foi identificado. Esse artigo deu margem a uma ampla polêmica cuja resenha está fora de nossos objetivos neste post.
  3. / Justamente, isso foi o que sucedeu com o artigo em questão que abriu uma ampla polêmica técnica/estatística, mas o paradigma teórico ficou incólume.

 

Simplificações Interpretativas, a Mãe de todos os Males e a Economia dos Serviços

Em 26 de julho, neste Blog,  publicamos um artigo (https://bit.ly/2MWI36M) no qual argumentamos que associar a intensificação das desigualdades, a dualização do mercado de trabalho, a perda de dinamismo nos ganhos de produtividade, etc. à crescente participação do setor serviços nas economias seria um reducionismo interpretativo factível de ser objetado  teoricamente, mas, sobretudo, empiricamente. Podiam existir elementos que associem ambos os fenômenos, mas seria simplista e pouco elucidativo fazer uma banal amálgama entre ambas tendências.

Quase exatamente um mês depois, o Departamento de Pesquisas do Banco de Investimento Natixis, em uma publicação enviada a seus clientes (https://bit.ly/2CsooqF) apresenta não unicamente uma interpretação radicalmente discrepante da nossa, senão que seus argumentos sintetizam com meridiana claridade essa fusão rudimentar que tentávamos relativizar.

Basicamente, os argumentos dos pesquisadores do Natixis apontam para paulatina transformação das economias contemporâneas em economias preponderantemente de serviços como sendo a origem de aspectos pouco desejáveis (redução do crescimento potencial, segmentação dos empregos, guerras comerciais, etc.) no contorno que vai adquirindo a modernização de nossas sociedades.

Quatro seriam dos desfechos mais controversos da desindustrialização das economias.  

A globalização e o comércio mundial seriam penalizados, uma vez que os serviços são preponderantemente “non-tradables”.  

Simultaneamente, a demanda de bens industrializados estaria perdendo fôlego por diversos fatores: saturação dos mercados mundiais, baixa elasticidade-renda por seus produtos, envelhecimento da população, etc.. As mesmas variáveis redundariam em um forte dinamismo na procura pela oferta proporcionada pelos serviços, fato que explicaria a crescente transformação das nossas sociedades em economias de serviços.   Sucede que essa saturação estaria induzindo a uma incessante guerra comercial pela conquista de um mercado mundial (de bens industrializados) cada vez menos dinâmico pelo lado da demanda e, simultaneamente, uma oferta crescente pelos ganhos de produtividade. Essa guerra forçaria aos gestores de política a apelar à utilização das taxas de câmbio, ao sistema tributário/subsídios e à redução de custos (via flexibilização da legislação trabalhista, por exemplo) a fim de conquistar ou manter a participação nos mercados mundiais de bens manufaturados.  

Uma vez que os serviços não seriam tão dinâmicos no tocante a ganhos de produtividade, essa idiossincrasia teria um corolário quase direto no mercado de trabalho.  A outra face da baixa produtividade seriam postos de trabalho que requerem trabalho não qualificado e, conseqüentemente, que pagam baixos salários. O “wageless growth” das últimas décadas seria uma das seqüelas da transformação da economia mundial em uma economia de serviços.

Por último, o quarto desfecho não desejável seria o comprometimento, no longo prazo, do crescimento potencial.  O setor agora mais dinâmico (os serviços), com seu anêmico aumento na produtividade, acabaria contaminando toda a economia, fato que explicaria a redução nos ganhos de produtividade quando a base de comparação são os supostos anos dourados da industrialização (entre o fim da segunda guerra mundial e o segundo choque do petróleo).

Resumindo, para o Departamento de Pesquisas do Natixis, na paulatina substituição do antigo núcleo dinâmico centrado na indústria de transformação pelo setor serviços estaria a raiz da maioria das disfuncionalidades que hoje singularizam a economia mundial.  Diagnóstico reducionista e simplista, mas com um algum apelo intuitivo e que goza de certo prestígio em nichos acadêmicos e instituições que defendem posições corporativas.

A análise divulgada pelo Natixis apresenta uma série de fragilidades que podem ser identificadas sem fazer apelo a sofisticados modelos teóricos ou a primorosas técnicas econométricas. Sem pretender esgotar o tema, vamos mencionar algumas delas.

Quando compara as trajetórias temporais, na maioria dos gráficos apresentados no informe a seus clientes, o Natixis segmenta setorialmente a economia em dois setores: indústria/não-indústria.  Um primeiro aspecto que não contribui para tornar o debate mais robusto empiricamente diz respeito a uma agregação um pouco esdrúxula, uma vez que tudo o que é não-indústria seria sinônimo de serviços, fusão pouco rigorosa tecnicamente.  Porém, assumamos que tudo o que é não-indústria seja serviços. Mesmo nesse caso, estaríamos diante de um conjunto tão heterogêneo que uma média seria pouco representativa do todo. Mencionamos em nosso artigo anterior neste Blog que o setor denominado serviços agrupa uma diversidade de segmentos que vão desde atividades umbilicalmente vinculadas à indústria de transformação, oferta comercializável nos mercados mundiais até mesmo aqueles subsetores que popularmente são assimilados ao setor terciário (fast-foods, serviços pessoais, etc.).  Ao avaliar o comportamento (em termos de PIB, produtividade, emprego, salários, etc.) de um aglomerado tão multifacetado vis-à-vis à indústria de transformação os resultados pouco elucidam.

Os gráficos apresentados pelo Natixis para provar suas hipóteses indicam uma “desindustrialização” do emprego e, coincidentemente, o período temporal escolhido corresponde a uma suposta precarização do mercado de trabalho (geração de postos de trabalho de baixa produtividade).  Sucede que a série histórica escolhida é posterior à década de 90. Em nosso artigo, indicamos que a “desindustrialização” do emprego é antiga, não começa nos anos 90 e já existia uma “desindustrialização” do emprego nos anos dourados das economias centrais. Se o horizonte escolhido fosse mais prolongado, essa superposição de fenômenos seria menos evidente e inibiria identificar relações de causalidade onde sequer existe correlação. Por outra parte, mesmo admitindo que ambos os fenômenos se registrem em paralelo, sabemos que correlação não implica ordem de causalidade.  

Mas conservemos os anos 90 como base de comparação.  Aceitemos esse início temporal e também admitamos que “não-indústria” é um agrupamento análogo ao setor serviços.  O Natixis parece aceitar o modelo canônico segundo o qual existe uma proximidade muito estreita entre salários e produtividade.  Nesse sentido, sempre segundo o Flash Economics do Natixis, a “desindustrializaçao” do emprego (que seria sinônimo de “servirização” dos postos de trabalho) estaria na origem do “wageless-growth”.  Como já mencionamos, uma vez que o setor mais dinâmico na geração de empregos é o serviços e este não apresenta expressivos ganhos de produtividade, o corolário óbvio seriam salários estagnados. Sucede que, nos gráficos apresentados pelo Natixis, a trajetória dos salários (a inclinação de sua evolução) nos serviços é bem próxima à observada no setor da indústria.  Existe um gap (favorável à indústria), mas a inclinação da evolução é similar. Em outros termos, as taxas de variação parecem bem próximas. Assim, se os salários estão determinados pela produtividade e estes tem uma variação equivalente, significa que os ganhos de produtividade evoluem de forma também próxima nos dois setores. Ou, em caso contrário, estamos diante do Modelo de Boumol: na hipótese de um mercado de trabalho não segmentado, os salários nos serviços (mesmo sem ganhos de produtividade) acompanham a produtividade da indústria.  Mas, neste caso, podemos até ter uma redução do crescimento potencial, mas não um mercado de trabalho dual e fica em aberto a plausibilidade de um “wageless-growth”.

A ambigüidade é ainda maior quando abandonamos a mediação dos salários para auferir a produtividade e diretamente visualizamos a trajetória da mesma. Nos próprios gráficos apresentados pelo Natixis, quando o referencial são as economias da OCDE parece existir uma ruptura total entre evolução dos salários e trajetória da produtividade.  Os salários crescem (como afirmamos) a taxas próximas nos dois setores (indústria/não-indústria), mas a produtividade da indústria aumenta de forma permanente ficando quase estagnada no setor serviços (não-indústria). Pergunta: por que na OCDE se verifica uma defasagem entre salários e produtividade nos serviços ? Aqui estamos no Modelo de Boumol na sua forma mais pura.  Os salários nos serviços estão sendo “puxados” pelos ganhos de produtividade na indústria ?

Direcionemos, agora, a nossa atenção para os dados da economia mundial, também apresentados pelo Natixis. Espanto: agora já não temos mais esse descasamento entre evolução da produtividade na indústria e a não-indústria e os salários acompanham a evolução da produtividade em ambos os setores. Quando a referência é a economia mundial deixa de ser relevante diferenciar setorialmente indústria/não-indústria e retomamos o modelo canônico em sua forma mais pura: salários e produtividade crescem a taxas próximas em ambos os setores.  Em outros termos: o comportamento de salários e produtividade correm pari-passu, não faz mais sentido segmentar.  

Digreção: o que diferencia as economias maduras da OCDE do resto do mundo?  Por que o Modelo de Boumol parece corresponder às economias mais desenvolvidas, mas não no restante do mundo ?  Por que os ganhos de produtividade nos serviços (não-indústria) acompanham a indústria nos países não-OCDE mas não nestes últimos ?  Será que estamos falando de “serviços” que são qualitativamente diferentes ? Os ganhos de produtividade na “não-indústria” nos dados da economia mundial, refletem a migração da força de trabalho da agricultura de subsistência para os espaços urbanos nos países em desenvolvimento (China por exemplo) ? Mas se a resposta a esta última pergunta é positiva, faz sentido a agregação em uma categoria “não-indústria” a um conjunto tão heterogêneo de atividades que abrange desde a agricultura de subsistência até a produção de softwares ?

Estas perguntas nos sugerem um espaço em aberto para pesquisas, onde temos mais perguntas que respostas.  Nesse sentido, a conclusão do Natixis (“The world’s transformation into a service economy can therefore be considered a negative development, if it leads to a non-cooperative policies, a slowdown in global trade, poor-quality jobs and weaker growth”) nos parece ousada, prematura, simplista e sua verificação empírica merece esforços mais aprimorados.  Por outra parte, se essa força gravitacional dos serviços é inexorável (até pelos motivos expostos pelo próprio Natixis) e os desdobramentos negativos, quais são os graus de liberdade para alterar os resultados desse processo ? Menor crescimento potencial, sociedades mais segmentadas, guerras comerciais se alastrando, etc., esse é o futuro vindouro e inevitável ?  Se todas essas disfuncionalidades têm como berço o setor de serviços, contornar essa prospecção passaria pelo voluntarismo de re-industrializar o mundo ?

Indústria de Transformação, Serviços e Qualidade do Emprego

Carlos Alberto Ramos [1]

 

Existe certo consenso sobre a existência da tendência de crescente desigualdade nos últimos 40 anos nos países centrais. As pesquisas empíricas identificaram diversas raízes na explicação desse fenômeno, causas que vão desde o impacto das novas tecnologias no perfil de demanda de mão-de-obra (Goldin, C.; Katz (2008), Acemoglu (2002)), passam pela introdução de robôs na indústria manufatureira e seu impacto no emprego e salários (Acemoglu; Restrepo (2017), Acemoglu (2017)) e chegam interpretações mais heterodoxas como a de Piketty (2013).

Esse aumento na dispersão dos rendimentos se observou em paralelo a uma alteração nas dinâmicas setoriais de emprego. O estoque de assalariados na Indústria de Transformação registra tendência de queda e é crescente a importância do emprego nos serviços. Esse deslocamento setorial seria mais acentuado em países que seriam pioneiros (talvez por esse vanguardismo) no processo de industrialização. Na Alemanha, a quantidade de assalariados na Indústria de Transformação (IT) representava em torno de 40% do emprego total em 1970, ano que podemos identificar como sendo o ápice do estilo de desenvolvimento pós-segunda guerra mundial. Um quarto de século depois o percentual apenas ultrapassa os 20%. Na Inglaterra, a “desindustrialização” do emprego também é particularmente acentuada (35% e 16%, respectivamente), tendência similar nos EUA (27% e 12%, respectivamente). [2]

A perda de relevância da Indústria de Transformação na geração de empregos ao se verificar em paralelo com uma crescente desigualdade abre espaço para uma reação quase intuitiva: estaria na “desindustrialização” do emprego a raiz última do aumento da polarização no mercado de trabalho?

Diversos são os argumentos que poderiam ser esgrimidos para ancorar essa relação de causalidade. Vamos citar alguns deles, mencionando suas fragilidades.

O mais usual faz uma associação direta entre emprego industrial e emprego de “qualidade”. Contrariamente, o setor serviços se caracterizaria pela “precariedade” dos vínculos. Deixando de lado, de forma momentânea, a necessidade de qualificação desses adjetivos (“qualidade”, “precariedade”, etc.), as séries não parecem indicar um nexo direto entre a redução das desigualdades no período que vai dos anos 40 ao 70 do século passado com uma crescente importância do emprego na Indústria de Transformação. Observemos dois aspectos. Em nenhum momento da história o emprego na IT foi majoritário. Tomemos o caso dos EUA. Desde um máximo de quase 40% a começos do século passado se inicia uma continua queda até 27,3% no ano de 1970. [3] Ou seja, o período considerado dourado em termos de crescimento e desconcentração de renda (entre a segunda guerra mundial e meados dos anos 70), a IT apresenta uma contínua queda na sua relevância como geradora de postos de trabalho. Na Inglaterra, o percentual de ocupados na IT atinge máximos de em torno de 40% em meados de século passado, sendo o emprego nos serviços sempre superior. Entre 1960 e 1970 se inicia uma queda (em termos absolutos) do número de empregados na IT e essa redução não redundou em alterações do Gini, que se manteve em torno de 0,26. [4]  Ou seja, associar a desindustrialização do emprego à precarização dos postos de trabalho e, imediatamente, fazer um nexo com as crescentes desigualdades dos últimos 40 anos ou ao “wageless growth” merece certo cuidado.

Uma segunda linha interpretativa diz respeito à queda no poder de barganha dos assalariados quando transitamos de empregos industriais a postos de trabalho nos serviços. O emprego na IT nuclearia grandes unidades de produção com significativos contingentes de trabalhadores, o que viabilizaria a união dessa mão-de-obra em sindicatos com elevado poder de negociação. Contrariamente, nos serviços prevaleceriam pequenas e dispersas unidades de produção que ocupariam reduzidos estoques de empregados. Essa característica tornaria o poder de barganha dos sindicatos menor e até mesmo dificultaria a sua proporia existência. Acompanhando essa matriz interpretativa, a desindustrialização do emprego teria como contrapartida uma queda na capacidade de negociar salários e, nesse sentido, a trajetória na composição setorial do emprego das últimas décadas teria contribuído para o crescimento das desigualdades. Neste caso, os dados parecem ancorar este diagnóstico. A densidade sindical (percentual de assalariados afiliados a um sindicato) vem caindo desde os anos 70 do século passado e a abrangência das negociações coletivas também registra tendência de queda. [5] Fica em aberto determinar a importância do ganho de participação dos serviços na geração de emprego na redução do grau de sindicalização. Lembremos que a elevação do desemprego, a concorrência internacional, etc. são outras tantas variáveis que podem estar contribuindo a essa nova configuração de barganha.

A essa considerações teóricas e empíricas podemos contrapor diversas outras. Vamos mencionar algumas delas.

Essa segmentação industria/serviços seria maniqueísta. A articulação entre a IT e os serviços seria evidente na crescente participação destes últimos no valor agregado da primeira, chegando a mais de 25% (IMF (2018)). Essa ““servicification of manufacturing” não permitiria seccionar um binômio “bons postos de trabalho”/IT versus “vagas precárias”/serviços.

A segunda observação diz respeito à necessidade de definir com algum grau de objetividade o conceito de “bom posto de trabalho” e “emprego precário”. As variáveis usualmente utilizadas para tipificar a qualidade de um posto de trabalho são: condições de trabalho, satisfação com as tarefas realizadas, monotonia, estabilidade, autonomia, salários indiretos, insalubridade, flexibilidade no tempo de trabalho, etc. [6] As pesquisas indicam que uma segmentação entre bons empregos no setor industrial e empregos precários no setor de serviços não pode ser taxativa. Se a rotatividade, o emprego temporário e a tempo parcial são mais usuais no setor de serviços, simultaneamente programas de treinamento são mais freqüentes e as condições de trabalho mais favoráveis aos assalariados. Por outra parte, controladas as características pessoais, os salários são próximos. [7]  Esta proximidade se observa tanto nos países centrais (OCDE (2001), IMF (2018)) como no Brasil (Alvarez (2017)).

Por último, merece reflexão um usual mecanicismo histórico que associa o processo de desenvolvimento, de longo prazo, com uma transição setorial do emprego. Assim, as etapas que as sociedades teriam percorrido seriam a transição de um período no qual a agricultura seria o setor dominante para uma sociedade urbana-industrial e, posteriormente, se constataria o ingresso a um pós-modernismo no qual os empregos e as atividades nos serviços seriam hegemônicos. A primeira transição teria possibilitado ganhos de produtividade elevados, empregos “clássicos” (assalariado industrial com contratos por tempo indeterminado e sindicalizados) e uma redução da dispersão dos rendimentos. A terceira etapa, na qual os serviços seriam hegemônicos, a “precariedade” das vagas geradas estaria comprometendo os ganhos em termos de igualdade e mesmo não estariam alheios às raízes da diagnosticada “estagnação secular” (Gordon (2017)). Existem contribuições teóricas sugerindo que essa caracterização mecanicista do processo de desenvolvimento pode ter sido reducionista em excesso, podendo ser vislumbradas experiências nas quais sociedades agrícolas abertas ao comercio mundial abriram espaço para um setor de serviços que, posteriormente, alavancou a industrialização (Thomé; Galiani; Heymann; Dabús (2008)).

Dos argumentos apresentados nos parágrafos anteriores podemos concluir que seria prematuro atribuir à IT uma superioridade qualitativa na oferta de emprego. Concentrar nesse setor os “bons postos de trabalho” e identificar os serviços com a “precarização das ocupações” constitui uma simplificação que não ajuda a avançar a fronteira do conhecimento na área. Existem complementações entre a IT e os serviços, sendo questionável o realismo de segmentos com reduzidos vasos comunicantes. As exportações mundiais apresentam uma crescente participação dos serviços (IMF (2018)). A caricatura de uma IT “tradable”, capaz de gerar ganhos de produtividade via mercados mundiais e possibilitando a oferta de empregos de qualidade versus um setor de serviços reduzido a satisfazer o mercado interno, com escassos ganhos de produtividade e pressões de salários (como o Modelo de Baumol predizia) merece ser repensado. Talvez seja necessário redefinir a categorização setorial, uma vez que hoje são classificadas como serviços desde atividades como finanças e business até serviços de restaurantes e hotéis. Dada essa diversidade, uma média pode deixar de ter a representatividade desejada.

Como balanço podemos concluir sobre a conveniência de superar estereótipos e direcionar os esforços a pesquisas teóricas e empíricas nessa área.

Bibliografia Citada

Acemoglu, D., “Technical Change, Inequality, and the Labor Market” Journal of Economic Literature. v.40. p,70-72. 2002.

——————-, “Automation and the Future of Jobs” Technology and Academic Policy. June, 2017. (Disponível em: https://bit.ly/2uxXAi8; consultado em Julio de 2018).

——————-; Restrepo, P. “Robots and Jobs: Evidence from US Labor Markets” NBER. Working Paper No. 23285. March 2017. (Disponível em: http://www.nber.org/papers/w23285; consultado em Julio de 2018).

Alvarez, J., “Structural Transformation and the Agricultural Wage Gap” IMF Working Paper 17/289. 2017.

Goldin, C.; Katz, L.F., The Race between Education and Technology. Massachuttes (USA):Belknap Press. 2008.

Gordon, R.J., The Rise and Fall of American Growth: The U.S. Standard of Living since the Civil War. New Jersey:Princeton University Press. 2017.

IMF, World Economic Outlook. Chapter 3. 2018.

Lebergott, S., Labor Force and Employment, 1800–1960, in Brady, D.S., (Ed.) Output, Employment, and Productivity in the United States after 1800. NBER. 1966. (Disponível em: http://www.nber.org/chapters/c1567.pdf; Consultado em Julio de 2018).

OCDE, Employment Outlook 2014. Paris:OCDE. 2014.

——–, Employment Outlook 2001. Chapter 3 (The Characteristics and Quality of Service Sector Jobs). Paris: OCDE. 2001.

Piketty, T., Le Capital au XXIe Siècle. Paris:Editions du Seuil. 2013.

Thomé, F.; Galiani, S.; Heymann, D.; Dabús, C., “On the emergence of public education in land-rich economies” Journal of Development Economics. v.86. p.434-46. 2008.

  1. Fonte: US. Department of Labor, Bureau of Labor Statistics. Essa desindustrialização do emprego é uma tendência mundial. As exceções estão situadas quase todas em Ásia (China, Tailândia, Indonésia, etc.). Ver IMF (2018).
  2. Ver https://www.census.gov/prod/99pubs/99statab/sec31.pdf (Consultado em Julho de 2018).
  3.  Fonte: IFS (Institute for Fiscal Studies), UK.
  4.  Ver OCDE (2014). Logicamente, que esta tendência à “desindiscalização” tem nuances segundo cada país.
  5.  Ver OCDE (2001).
  6.  Essa proximidade depende muito do sub-setor nos serviços, sugerindo uma pronunciada heterogeneidade.
Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, doutorado na Université Paris-Nord.

 

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