Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Carlos Alberto Ramos (page 1 of 2)

Chile, Microeconomia e a Aversão à Desigualdade

Para a maioria dos economistas, o estalido social no Chile foi um “Cisne Negro”. Mesmo assumindo algum tipo de insatisfação social, o Chile parecia o único exemplo de país (fora o sudeste asiático) que teria consumado a ruptura com a armadilha da renda média e proximamente ingressaria no seleto clube de países ricos. Não obstante uns poucos negarem a existência de um “milagre chileno”, as políticas desse país pareciam ser a fundamentação empírica/histórica da pertinência das receitas do mainstream em termos de macroeconomia e crescimento (abertura dos mercados, estabilidade institucional, investimento em capital humano, focalização na área social, etc.). A performance nos indicadores sociais (queda da pobreza, redução da mortalidade infantil, acesso à energia elétrica, cobertura domiciliar de esgoto, etc.) estaria sugerindo que a combinação de um modelo market-oriented com políticas sociais corretamente desenhadas era capaz de superar um suposto conflito entre dinamismo econômico e objetivos sociais.

Contudo, os ganhos em termos de redução das desigualdades não pareciam tão evidentes e duradouros. Em termos de longo prazo, a queda é inequívoca, o Gini caiu de 57,2 em 1990 para 46.6 em 2017. Contudo, nos últimos anos as reduções foram marginais. Por exemplo, em 2013 esse indicador de desigualdade era de 47,3, sendo (como afirmamos) de 46,6 em 2017 (Fonte dos dados do Gini: Banco Mundial). Ou seja, as reduções das desigualdades foram acentuadas nos anos 90 e bem tênues na última década.

As explicações usuais sobre a explosão social no Chile apontam para a desigualdade. A elevação do preço do metrô (+3,75%) seria a “borboleta” que, em um sistema complexo e não-linear como seria uma sociedade, acabou gerando um furacão.

A questão sobre a qual gostaríamos de refletir é: a desigualdade afeta o bem-estar dos indivíduos? Percebamos que estamos colocando a questão em termos microeconômicos e não agregados. Não estamos falando se uma sociedade mais ou menos desigual é mais ou menos “feliz”. Pareceria que as sociedades atuais (na retórica) estão muito preocupadas com o aumento das desigualdades (daí talvez a popularidade do livro de Piketty). Contudo, quais são os fundamentos microeconômicos dessa rejeição às desigualdades? Toda desigualdade merece o mesmo grau de rejeição? Toda desigualdade é injusta? Que nos diz a Teoria Microeconômica sobre a influência da desigualdade sobre nosso bem-estar individual?

Lembremos a primeira aula de Microeconomia. Os argumentos da função de utilidade são os bens e serviços consumidos pelo indivíduo, sendo as utilidades marginais positivas e decrescentes. Essas hipóteses são conservadas no transcurso de todo o curso de microeconomia e mesmo nas disciplinas de macro e crescimento quando as mesmas estão fundamentadas microeconomicamente (como é o caso nas modernas abordagens). Contudo, quando tento me aproximar da questão da desigualdade na sala de aula costumo fazer o seguinte exercício. Escolho um aluno e pergunto o seu grau de satisfação se dou a ele uma nota SS (a menção máxima na UnB). A resposta é a esperada: ficaria muito satisfeito. Ou seja, parece que se confirma a hipótese usual com corriqueiros cursos de micro: o bem-estar dele depende de sua nota. Porém, continuo meu “experimento sobre economia comportamental” complementando a pergunta anterior com outra: eu darei SS para toda a turma. A cara do aluno muda, e, perguntado, afirma que seu grau de satisfação já não é tão elevado. Mudo o contexto e digo para aluno imaginar o grau de satisfação se, contrariamente, toda a turma toda ficasse reprovada e a menção dele fosse um SS. O grau de “bem-estar” aumenta, ficaria eufórico.

O exercício anterior pode ser realizado por qualquer professor e muito dificilmente o desfecho se alterará. Dos resultados podemos deduzir dois corolários. O primeiro diz respeito ao contexto, que necessariamente vai determinar a magnitude da utilidade. Em outros termos, a relação entre o argumento da função e o resultado não depende só da variável, senão das circunstâncias. Neste caso, os pressupostos nos usuais cursos de micro não parecem os mais realistas. O segundo corolário está associado à desigualdade, esta afeta diretamente a utilidade seja de forma positiva ou negativa. Vejamos a seguinte situação. Assumamos que a sociedade está constituída por dois indivíduos, ambos com rendimentos de R$ 100 no período inicial. Suponhamos que no período seguinte um deles eleva sua renda para R$ 120 e o outro continua em R$ 100. Se assumimos uma função de utilidade standard, a sociedade estará melhor no segundo período que no primeiro (inclusive pelo critério de Pareto, alguém está melhor sem que ninguém tenha piorado sua situação). O indivíduo que viu seus rendimentos elevarem para R$ 120 estará melhor por dois motivos: viu aumentar sua renda em termos absolutos (como prediz a abordagem tradicional) e também relativo. A situação do segundo indivíduo não é mais complexa. Na perspectiva microeconômica usual sua situação não se alterou (o rendimento absoluto continua o mesmo). Contudo, em termos relativos se deteriorou, o que pode ter como resultado uma queda no seu bem-estar.

O tratamento da situação relativa sobre o bem-estar individual tem diversas tentativas de abordagem na história do pensamento. Os bens posicionais (cuja demanda está em função do poder ou status que os mesmos simbolizam) têm referenciais em Veblen e Hirsch. Keynes, na sua Teoria Geral, é explicito sobre a relevância dos salários relativos e não absolutos: “The effect of combination on the part of a group of workers is to protect their relative real wage” Contudo, a importância da posição relativa (com respeito aos pares ou a um grupo de comparação ou ao próprio passado do indivíduo) adquire um status de particular importância na denominada Economia da Felicidade. (Nos próximos parágrafos, omitiremos a maioria das referências bibliográficas. Os argumentos e fundamentação vão poder ser encontrados em Ramos, C.A., Economia da Felicidade. Precisamos do PIB para ser felizes? Altabooks. 2019. Forthcoming)

Diferentemente do modelo usual, o bem-estar subjetivo de um indivíduo (como animais sociais que somos) dependeria de sua comparação com o seu contexto de referência (família, amigos, colegas de trabalho, etc.). Quanto maior o diferencial (a seu favor, obviamente) maior a sensação de bem-estar. Dessa forma, se as pessoas mais ricas se auto-declaram mais satisfeitas com a vida, essa sensação não se nutriria do maior consumo de bens e serviços senão de sua posição relativa. Em nosso exemplo anterior, se um indivíduo elevou sua renda para 120 estaria em situação melhor não pelo maior acesso a bens que essa maior renda propiciaria, senão porque o outro integrante da sociedade permaneceu com sua renda em 100 e sua posição relativa mudou. Ou seja, a desigualdade foi a matriz que alimentou o aumento de seu bem-estar.

Obviamente, e assumindo uma simetria, o indivíduo que permaneceu com a renda constante (100, em nosso exemplo) viu seu bem-estar subjetivo se deteriorar. Nesse sentido, o balanço geral fica em aberto. Contudo, existe um fenômeno que na literatura se apelida de “efeito túnel”, denominação devido a um conhecido artigo de Hirschman e Rothschild. Basicamente esse efeito diz respeito à informação que proporciona a trajetória do indivíduo que logrou se distanciar de minha posição, indicando minhas possibilidades e a probabilidade de existência de um progresso social que, eventualmente, poderia beneficiar-me.

Contudo, esse “olhar para o lado” (para seu grupo social de referência) não é a única dimensão onde o relativo é importante. Contemplar o próprio passado e, sobretudo, as expectativas que sobre o futuro o indivíduo imaginou e sua concretização ou não no presente, também podem ser fonte de bem-estar ou frustração. Hoje todo indivíduo fantasia como será seu futuro e, quando este chega, compara a sua situação real com a imaginada. Se a condição concreta está aquém do fantasiado (mesmo que em termos absolutos se tenha observado uma melhoria) o resultado pode ser o desapontamento. Este referencial no passado é importante porque uma desaceleração do crescimento (não uma recessão) pode ser um motivo que alimenta o desencanto. No caso concreto do Chile, o país chegou a crescer a taxas de 11% (1992), desacelera para percentuais entre 5/6% nos anos 2000 e passa a obter resultados de 1/2% nos últimos anos (Fonte: Banco Mundial). Ou seja, o presente pode não ser o que foi imaginado.

Em termos instrumentais, podemos ampliar a leque de possibilidades. Observemos que, quando afirmamos que como animais sociais estamos à procura constante de status (nos diferenciar), descartamos um olhar onde a solidariedade pode ter um rol relevante para alguns indivíduos. Nesse sentido, podemos formular uma função de utilidade onde caibam tanto a procura de status quanto a solidariedade e deixar em aberto o peso de cada uma delas segundo o indivíduo. Vejamos a seguinte função de utilidade:

U (x;y) = F(x)-α Max (y-x;0)-β Max (x-y;0)

Onde: x=a renda do indivíduo; y=a renda do grupo de referência; α e β parâmetros.

No caso de α= β=0 estamos na função de utilidade tradicional que ensinamos em qualquer curso de Micro: a posição relativa ou a situação dos outros não importa. Calibrando os parâmetros α e β podemos simular distintas situações, como indivíduos nos quais convivem a procura de status e a solidariedade, mas uma variável pode ter mais peso que outro de acordo com cada caso.

Vemos que, em termos de fundamentos microeconômicos, a questão do impacto sobre bem-estar fica em aberto, não podemos microfundamentar uma relação entre bem-estar e desigualdade para a sociedade em seu conjunto.

Já em termos agregados, podemos apelar à cultura e como distintas sociedades são mais ou menos avessas à desigualdade. Nesse sentido, o conhecido artigo de Alessina, Di Tella e McCulloch (2014) sugere uma diferença entre os EUA e a Europa no tocante ao impacto da desigualdade sobre a auto percepção de bem-estar, sendo o impacto negativo menos sensível nos EUA.   Por exemplo, entre os mais pobres da Europa a aversão à desigualdade seria evidente, não existindo relação no caso dos EUA.

Essa diferenciação pode ter como origem o sentido de justiça, ou seja, em que situações uma dada distribuição de renda seria justa ou injusta. Essa valoração dependeria de heranças culturais. A sorte, o azar, a loteria da vida como fonte de desigualdades seria assumida como injusta nos países nórdicos, porém mais aceita nos EUA. Por outra parte, neste último país, a riqueza seria assumida mais como resultado de esforço, dedicação, etc. (a ideologia do self-made man) que como o corolário de indicações, conexões, heranças, etc., como seria o caso da Europa.

Ou seja, em termos teóricos (especialmente no tocante à micro-fundamentação) generalizações parecem pouco plausíveis. Diante desse vácuo, o natural é apelar ao empirismo e, nesse caso, os resultados são diversos e a “variável cultura” preenche a incapacidade de fazer generalizações. Contudo, certos aspectos parecem robustos. As nossas atenções não teriam que se direcionar pura e simplesmente à desigualdade, senão à desigualdade que uma sociedade considera injusta e o sentido de justiça distributiva varia de sociedade a sociedade (ainda que a desigualdade de oportunidades, não de resultados, pareça gozar de certo consenso sobre seu caráter injusto).

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Educação: o mercado ajusta?

Uma matéria veiculada no jornal Valor da sexta feira 25/10 sugere que o mercado de advogados estaria “saturado”. Basicamente, essa suposta saturação se nutriria de duas dinâmicas: uma oferta crescente e uma demanda em declínio. A maior oferta teria sua origem na quantidade de cursos existente (1.635, segundo a matéria) e nas matrículas nos mesmos (em termos de matrículas, Direito seria o curso mais importante, seguido de Administração. Fonte: Censo Ensino Superior). No tocante às oportunidades de emprego, a crescente automação nos processos reduziria os requerimentos de trabalho. Ou seja, uma oferta crescente enfrentaria a uma demanda minguante.

Esses dados mereceriam as mais diversas leituras e tentativas de avaliação. Uma pergunta pertinente seria: em um país onde, no longo prazo, o objetivo colocado pela necessidade de crescimento da produtividade parece constituir o maior desafio, por que os cursos de engenheira (intuitivamente mais correlacionados com a superação desse obstáculo ao crescimento) não são atrativos? Se a restrição ativa para o desenvolvimento é o aumento da produtividade e os engenheiros teriam o perfil de qualificação funcional a esse desafio, os rendimentos relativos não teriam que induzir um perfil de oferta compatível? Por que são, no Brasil, tão atrativos os cursos de Direito? Aqui não estamos nos referindo à oferta. Ou seja, um curso de advocacia seria mais barato (em termos de infraestrutura necessária para sua oferta) que um curso de medicina ou engenheira, por exemplo. Nesse sentido, a disponibilidade de cursos de advocacia seria naturalmente superior aos de medicina ou de engenheira. A pergunta a ser respondida deve estar mais centrada na demanda que nas vagas ofertadas. Por que se demanda um curso cujo mercado estaria “saturado”? A suposta “saturação” não teria que gerar como natural corolário uma queda dos rendimentos relativos que desestimule a sua procura ? Em outros termos, o funcionamento da “tesoura de Marshall” (interação entre oferta e demanda) não deveria, naturalmente, gerar o ajuste e eliminar a suposta saturação? Na matéria do Valor é colocada a perspectiva da OAB, que manifesta preocupação com a quantidade de cursos autorizados pelo MEC. Ou seja, a regulação teria que ser dada por uma restrição da oferta mediante uma intervenção do Estado. Por que? O mercado não seria capaz de auto-regular-se?

As questões que levantamos no parágrafo anterior exigem respostas que estão além de nossos objetivos neste post. Por exemplo, o mercado de trabalho dos advogados pode ter particularidades devido à importância do emprego público e de salários que, nesse espaço, estão alheios às influências da oferta e da demanda. Uma outra perspectiva de avaliação está associada à própria definição de “saturado”. Qual é seu significado? Qual é o parâmetro que induz a qualificar esse mercado de trabalho com esse adjetivo? Não terão os honorários (Unidade Referencial de Honorários) fixados pelo OAB alguma relação com essa “saturação” (seja lá o que esse termo signifique)?

À margem dessas particularidades no caso dos advogados (e dos evidentes interesses corporativistas que podem permear os requerimentos por uma restrição de oferta), a pergunta mais geral é: o mercado de educação pode se auto-regular? Precisa de uma regulamentação em termos de oferta? Os sinais emitidos pelos rendimentos relativos ou as possibilidades de emprego, não podem induzir em ajustes necessários no mercado da educação ? Esta última pergunta é pertinente por diversos motivos. Por exemplo, o explosivo aumento das matrículas nos cursos de ensino superior na década 2007-017 (+53,1% na rede privada e +41,79% na rede pública; Fonte: Censo da Educação Superior) pode causar desajustes (desemprego, queda dos salários, frustrações entre o capital humano acumulado e o requerido no posto de trabalho, etc.)? Esses desajustes podem ser crescentes? Na medida em que parte desse crescimento foi viabilizado mediante crédito, é factível um cenário futuro no qual a inadimplência seja a norma? É necessária uma regulamentação na oferta ?

Observemos que a educação pode estar associada a um investimento, no qual as usuais ferramentas de avaliação de projetos são aplicáveis. Ou seja, à margem dos gostos, capacidades específicas, etc., a escolha deveria levar em consideração a projeção de rendimentos relativos tendo como referência um horizonte de tempo que abrange toda a vida ativa de um indivíduo (mais ou menos 40 anos, imaginando que ingresse no mercado de trabalho aos 25 anos e se aposenta aos 65). Dificilmente alguém faz esse tipo de projeção. Uma hipótese mais realista consiste em referenciar sua escolha nos salários relativos atuais ou do passado recente. Nesse caso, a dinâmica do modelo (o ajuste ou desajuste no tempo) é mais singular e na literatura se conhece como o Modelo da Teia de Aranha.

Esse arcabouço conceitual, habitualmente estudado nos cursos de Micro, parece representar bem o comportamento dos mercados agrícolas, nos quais as decisões de oferta são tomadas em função dos preços passados. Se temos um mercado cuja oferta está em função dos preços desfasados no tempo e uma demanda referenciada nos preços correntes, um choque que desloque o preço do equilíbrio dá início a um processo que não necessariamente é estável (ou seja, que não retorna a sua antiga posição de equilíbrio). A trajetória no tempo vai depender da relação entre as sensibilidades da oferta aos preços passados e o coeficiente que vincula a demanda ao preço atual. Em termos formais temos que:

  1. Qs = α1 + α2 Pt-1 (Oferta)
  2. Qd= α3 – α4 Pt (Demanda)
  3. Qs-=Qd (Equilíbrio)

(onde αi>0 são parâmetros; Qs=quantidade oferecida; Qd=quantidade demandada; Pt=preço no período t)

Trabalhando com essas três equações chegamos à seguinte equação em diferenças:

(4) Pt = (α3 – α1)/ α4 – (α24) P t-1

Na equação anterior, fora do equilíbrio, a trajetória temporal vai depender da relação entre α24, podendo ser instável (e oscilante, uma vez que os “α” são positivos) se α24 ≥1 e estável no caso de 0<(α24) <1. Em outros termos, nada garante que, dado um choque que situe o mercado fora do equilíbrio, o mesmo retorne à sua posição inicial. Nesse sentido, em um contexto como esse, a intervenção dos governos pode ser necessária.

Paradoxalmente, o mercado da educação pode ser próximo ao mercado agrícola e existe literatura apontando nessa direção (ver o clássico artigo de Freeman (1976) ou Wish and Hamilton(1980) ou Rosen (2004), por exemplo). Na medida em que as decisões de oferta são referenciadas em preços (salários) passados, a possibilidade de uma trajetória divergente (cada vez mais longe do equilíbrio) é certa. Vejamos o seguinte modelo:

(5) Ls,t= α1 + α2 wte

(6) Ld,t = α3 – α4 wt

(7) wte = wt-1

(8) Ls,t=Ld,t,

Onde: Ls,t=Ld,t quantidade de trabalho oferecido e demandado, respectivamente, no período t; wte= salário esperado para o período t. Se assume que α3> α1.

Observemos que o salário esperado para o período t é o salário vigente no período t-1. Ou seja, no momento de escolher um curso, o indivíduo considera que os salários atuais ou do passado recente vão permanecer no futuro.

O salário de equilíbrio (w*=wt=wt-1) será:

(9) w* = (α3– α1)/ (α2+ α4)

Das expressões (5) a (8) uma equação em diferença similar a (8), cuja resolução será:

(10) wt= (α24)t(w0-w*)+w*

Se em algum momento do tempo (w0), por algum motivo, o salário não é o de equilíbrio (w*), a trajetória vai depender do valor da relação (α24). Se α2 > α 4, no caso do salário não estar no equilíbrio, a trajetória subsequente será explosiva, com valores oscilantes e cada vez mais longe do equilíbrio. Em outros termos: teremos períodos de escassez de mão-de-obra e subsequentes ciclos de excesso. A plausibilidade de um mercado instável e oscilante deve ser considerada, uma vez que a natureza do processo vai depender da relação entre as elasticidades de oferta e demanda. Se, no ponto de equilíbrio, a oferta é mais inelástica que a demanda (alternativa realista) o equilíbrio será instável e oscilante.

Ou seja, as demandas da OAB citadas no artigo do Valor (regulação estatal da oferta) poderiam ser admissíveis uma vez que o mercado, diante de um choque, não necessariamente gera um sentido de convergência ao equilíbrio ou, em outros termos, períodos de “saturação” se superporiam a fases de escassez com distâncias crescentes.

Contudo, devemos avaliar esse requerimento de regulação em paralelo a um marco institucional no qual a corporação fixa valores mínimos de rendimentos. Nesse caso, a dinâmica pode se alterar, uma vez que seria um mercado de trabalho no qual estaria vigente um salário (rendimento) mínimo. No modelo anterior existia um equilíbrio inicial (w*; oferta = demanda) e o processo se iniciava diante de um suposto choque exógeno. Contudo, podemos não estar diante de um equilíbrio devido à existência de valores mínimos (a tabela da OAB).

De fato, os patamares mínimos podem não ser (seguramente não são) os que hoje equilibrariam oferta e demanda. Muito provavelmente são superiores e levam em consideração limites inferiores de remuneração que são estabelecidos sem que fiquem muito claro os critérios (presumivelmente aspirações sociais ou culturais). Nesse sentido, possivelmente estejamos (hoje) em uma situação de desequilíbrio e a intervenção pública sugerida pela OAB teria como intuito viabilizar e dar sustentabilidade a esses mínimos por meio da restrição da oferta. Desde outra perspectiva: a limitação da oferta sugerida teria o intuito de atingir um equilíbrio que coincida com os parâmetros mínimos sugeridos pela OAB. Nesse sentido, a “saturação” seria a manifestação de um excesso de oferta que não pode ser neutralizado pelo mercado (interação entre oferta e demanda) devido à existência de mínimos. É fácil ver que o parâmetro a ser alterado é o α1 da equação (5). Essa alteração pode ser atingida, como proposta pela OAB (segundo o Valor), pela restrição dos cursos. Uma outra alternativa seria pela maior exigência no exame requerido para exercer a advocacia.

Obviamente, todo o contexto sofre a existência de um ambiente (direito) onde o emprego do setor público (via concursos) joga um papel importante e os mercados de trabalho no Estado são regulados por outros fatores que não oferta e demanda. Porém, mesmo na presença de um setor público relevante, os argumentos que apresentamos nos parágrafos anteriores continuam válidos.

A partir do modelo básico que apresentamos nos parágrafos anteriores, poderíamos imaginar diversos arcabouços institucionais e diferentes formas de regulação. Por exemplo, é factível assumir um mercado em equilíbrio e com um rendimento mínimo institucionalizado inferior ao de mercado que, porém, só seria ativado no caso de um choque negativo. Nesse caso, é fácil provar que, se de fato esse choque se concretizar, a dinâmica das quantidades e preços (emprego e salários no caso do mercado de trabalho) não necessariamente convergem novamente ao equilíbrio (as trajetórias seriam oscilantes não convergentes).

Uma hipótese mais realista ainda consiste em assumir que a oferta (a eleição do curso a seguir) não depende dos salários dessa profissão senão dos salários relativos. Imaginemos um indivíduo com um perfil de gostos, preferências, habilidades, etc. que o induzem a pensar na escolha de um curso de Administração. Uma vez que a eleição de um curso de Contabilidade pode ser uma opção natural, ele vai comparar os salários relativos (Administração versus Contabilidade) no passado recente. Esse tipo de modelo resulta em uma instabilidade quase similar à que analisamos no caso de apenas um mercado (ver Diebolt e Mur (2004)). A não convergência ao equilíbrio se verá acentuada no caso de mínimos por profissão. Por exemplo, podemos imaginar dois mercados: de advogados e de administradores, sendo a oferta também função dos salários relativos. O poder de fixação de preços (rendimentos) varia, sendo que em um mercado (advogados) o poder de definição é maior que no outro (administração). No limite, podemos imaginar um mercado funcionando segundo os padrões concorrenciais (administração) e outro com mínimos e restrições de oferta (exame do OAB). Nesse caso, as fontes de instabilidade e flutuações em torno do equilíbrio serão ainda maiores.

Em termos gerais, os modelos sugerem equilíbrios não estáveis e oscilantes. Períodos de escassez são seguidos de super-oferta. As respostas variam em função da reversibilidade dos investimentos realizados e da capacidade de fixação de rendimentos ou restrições na oferta. Tomemos o caso dos médicos. A carência de profissionais induziu à abertura de novas escolas de medicina. Muito provavelmente, em um futuro não muito distante, conviveremos com uma super-oferta (“saturação”). Pressões para restrição de oferta surgirão (será questionada a qualidade das novas escolas, serão sugeridos exames para exercer a profissão, tabelamento de mínimos será reivindicada, etc.). Porém, essa administração da oferta não será sem inconvenientes (por exemplo, fechar uma faculdade de medicina não é um objetivo trivial).

Em termos de política pública, o mais sensato consiste em gerar cenários e administrar a oferta de vagas em função dos mesmos. Uma ampla divulgação de salários por profissão, probabilidade de emprego hoje e em um dado horizonte de tempo pode ajudar a minorar as flutuações, uma vez que disponibiliza informação que os indivíduos podem não dispor. Estes tendem a procurar informação na família, amigos, ambiente social, etc., fontes que não garantem a robustez dos dados. No tocante ao poder dos interesses setoriais na fixação de mínimos e na administração da oferta necessariamente, em maior ou menor medida, vão pautar o debate. Em todo caso, existem bons elementos teóricos e empíricos para afirmar que, no caso da educação, o mercado não ajusta.

Novos Serviços, Velhos Dilemas

Historicamente, o setor de serviços era identificado com atividades alheias à produção de bens materiais. A cobertura era ampla e englobava desde subsetores como comunicações e finanças até saúde e educação. Em geral, o que singularizava esta heterogeneidade, ou, em outros termos, o que possibilitava agregar em um setor uma ampla gama de ofertas era a imaterialidade de seu output. Os serviços tanto podiam ser associados à modernização das sociedades como assumidos, paradoxalmente, como sendo a manifestação de uma sociedade incapaz de completar a transição entre uma sociedade arcaica a uma outra denominada de moderna. O primeiro caso (a crescente importância dos serviços como sinônimo de modernização) se justificava pela elasticidade-renda de sua demanda. Na medida em que os países se desenvolviam, a participação dos bens agrícolas e industriais nos orçamentos das famílias decaía, sendo o espaço ocupado pela demanda dos mais variados serviços (saúde, educação, cultura, alimentação fora de casa, etc..). Contrariamente, sociedades com dificuldades em ingressar no clube das nações desenvolvidas conviviam com uma extensão de espaços periféricos nos quais predominavam ocupações e atividades à margem da legislação, com baixa produtividade, reduzidos rendimentos, etc.. O setor informal é, basicamente, um setor de serviços. À própria heterogeneidade intrínseca à sua definição (oferta de saúde, entretenimento, educação, finanças, etc..) se agregava uma outra, um divisor de águas que segmentava serviços associados à modernização daqueles outros que, marginalizados do desenvolvimento, eram o subproduto de uma modernização truncada.

Muito sinteticamente esta era, até recentemente, a forma usual de caracterizar os serviços, não obstante, certos aspectos foram adquirindo outros contornos. Por exemplo, a oferta de serviços foi assumida como sendo compatível com um crescimento ecologicamente sustentável, uma vez que contribuída a desmaterializar o consumo e, dessa forma, reduzir a pressão sobre os recursos naturais. Dessa forma, a imaterialidade de sua oferta e sua crescente importância podia ser vista como a possibilidade de um futuro compatível com a preservação ambiental.

Nas últimas décadas novas atividades, também incluídas no nome genérico de serviços, foram surgindo, mas desta vez umbilicalmente aparentadas com os setores tradicionais, como agricultura e, especialmente, indústria de transformação. Os serviços incorporados na oferta de bens agrícolas e industriais (pesquisa e desenvolvimento, design, etc.) foram ganhando importância no valor agregado e não obstante o perfil de sua oferta (imaterialidade), a mesma começa a adquirir um caráter comercializável (arquitetura, engenharia, seguros, etc.). Assim, o que antes parecia um contrassenso, uma vez que os serviços pareciam ser a própria definição de uma oferta non-tradable, agora ganha um status de modernização na integração do comércio mundial.

Essa irrupção de novas configurações, agora visceralmente associadas à agricultura e indústria, acabou se sobrepondo às antigas atividades do setor serviços, ampliando a sua heterogeneidade. À antiga convivência de um setor associado à urbanização e modernidade com outro identificado, na visão de cunho mais estruturalista, com um excedente estrutural de mão-de-obra (setor informal) se agrega um outro segmento, está vez vinculado à agricultura/indústria e mesmo capaz de integrar o fluxo internacional de comércio (ver, por exemplo, as estatísticas do comércio internacional de serviços em OCDE). Na antiga dualidade (serviços modernos/informalidade) a questão da produtividade se colocava nos dois polos da mesma. No setor informal, por definição, os ganhos de produtividade eram quase inexistentes, o que alimentava um círculo vicioso de estagnação (baixa produtividade-baixa capacidade de gerar excedentes-reduzida aptidão para incorporar tecnologias e capital-……..). Mesmo no setor moderno, a potencialidade de se obter ganhos de produtividade eram assumidos com ceticismo, possibilidade que deu origem ao conhecido Modelo de Baumol e à inflação via equalização de salários entre setores.

Essa heterogeneidade, prevalecente nas nações em desenvolvimento, foi o berço para um amplo debate sobre a institucionalidade da informalidade. Podia o setor informal, dado o marco legal, preencher as condições requeridas para sua formalização? O arcabouço regulatório, capaz de ser respeitado pelo setor de serviços moderno, excluía toda possibilidade de integração aos serviços com reduzidíssima produtividade e relações de trabalho particulares (familiares, contra-própria, etc.)? Podia a relação trabalhista “típica” (assalariado com carteira) ser a norma em sociedades tão heterogêneas? Não era a informalidade a manifestação da falta de harmonização entre o marco legal/institucional e a estrutura produtiva?

Este debate nunca foi encerrado e, agora, existem elementos para pensar que o desafio se aprofundou, uma vez que o setor serviços parece estar na presença de um novo segmento, elevando ainda mais sua heterogeneidade.

Em um recente artigo na revista Forbes, o midiático Joseph Coughlin levanta a hipótese do nascimento de uma nova forma de consumo, não associada à propriedade. O próprio título do artigo é eloquente: “Having It All, But Owning None of It: welcome to the rentership society” Muito sinteticamente, o argumento dele identifica uma nova etapa nas sociedades modernas, nas quais o consumo deixaria de estar associado à propriedade do objeto consumido. Carros, casas, livros, etc. são alugados. São contratados serviços, seja os “serviços” de uma casa ou de um livro, por exemplo, seja os serviços de um trabalhador, como no caso do ifood, ou uma combinação de ambas as cosas (trabalho e bens), como no caso do Uber (onde é contratado o serviço do carro, um bem de capital e do motorista, trabalho). Os bens seriam majoritariamente propriedades de empresas/indivíduos e os consumidores alugariam os serviços deles. As formas de riqueza se alterariam, sua materialização não seria em bens tangíveis (casas, carros, etc.) adquirindo outro perfil (aplicações financeiras). Nas grandes cidades européias a mobilidade vai crescentemente adquirindo a forma de “assinaturas” a favor de empresas donas de bicicletas, motos, patinetes, etc.. Em outro exemplo bem ilustrativo, já é possível alugar livros na internet por mês, semestre, ano. Ou seja, o consumo de um bem deixa de estar vinculado à sua propriedade em itens e em uma extensão nunca vista. O usufruto de um bem material não é obtido mediante a sua posse, senão através da contratação de um serviço.

Ainda é cedo para saber se essa tendência, que Coughlin coloca como uma nova etapa histórica, ainda vai merecer esse qualificativo ou será simplesmente mais um espaço que conviverá (harmoniosamente ou não) com outros. Por exemplo, os conflitos entre os taxistas tradicionais e o Uber ou entre os hotéis e airbnb evidenciam que a coabitação pode não ser amena. Por outra parte, seria prematuro afirmar que, no longo prazo, uma oferta vai substituir a outra ou conviverão de forma mais ou menos conflitiva.

Contudo, concretamente e no curto prazo, acrescentaríamos ao setor serviços, como já afirmamos, um novo segmento, aprofundando ainda mais sua heterogeneidade. A questão que se coloca está vinculada à institucionalidade/legalidade (ou seja, às formas de regulação) que demanda a irrupção de uma nova forma de oferta e consumo. Vamos colocar como exemplo o mercado de trabalho.

O motorista do Uber é um assalariado da “firma Uber” ou um trabalhador independente e o Uber é simplesmente uma plataforma que permite a conexão entre o trabalhador independente e o cliente? Uber tenta transmitir uma imagem de plataforma de intermediação, inclusive com a última iniciativa de oferecer um espaço para o matching entre trabalhadores e empregadores no caso de trabalho temporário. Uma outra possibilidade consiste em supor que o Uber é uma firma tradicional e, nesse caso, obrigada a “assalariar” todos os motoristas. Neste caso estaríamos assumindo que o assalariado tradicional (assalariado com carteira, com direito a férias, décimo terceiro, FGTS, etc.) é a única forma (ou a desejável) de inserção no mercado de trabalho. Todas as outras formas que um vínculo pode adquirir seriam sinônimo de precarização, retrocesso social, etc. e a legislação que regula os setores tradicionais deve aplicar-se também nas plataformas?

Concorrendo com a perspectiva anterior podemos identificar uma outra, na qual o assalariamento tradicional seria uma forma de inserção econômica e social datada no tempo e não necessariamente uma integração imune ao tempo e ao espaço. Em vários lugares do mundo a justiça está identificando as plataformas como empresas convencionais e, nesse sentido, as obrigam a assumir uma relação tradicional com os trabalhadores que antes eram independentes. Os conflitos em Barcelona, por exemplo, onde o Uber chegou a se retirar do mercado, são um exemplo. O ponto é: o usuário aluga os serviços de um carro com condutor e o Uber é simplesmente o intermediário entre oferta e demanda ou o trabalhador independente é em realidade um assalariado camuflado do Uber? Em termos econômicos, devemos revisitar Coase (1937) e nos voltar a colocar uma questão marginalizada na maioria dos cursos de micro: o que é uma empresa ?

Observemos que o marco regulatório institucional/legal é submetido a um novo estresse. Se antes se debatia se a CLT era um arcabouço adequado para um amplo setor do mercado de trabalho que tinha formas “atípicas” (assalariado em micro-unidades de produção com baixíssima produtividade, autônomos, emprego em unidades familiares de produção,…) agora se agregam novas formas de incorporação produtiva. Paradoxalmente até o momento, a controvérsia girava em torno de formas de emprego em espaços quase arcaicos, de baixa produtividade e tecnologia, agora a polêmica gira em torno de um setor de ponta em termos tecnológicos.

As perguntas que levantam essas novas configurações de firmas e as relações comerciais/trabalhistas que se colocam não são menores. Por exemplo, se o motorista que disponibiliza o seu carro na intermediação realizada pelo Uber, pode estar submetido a um máximo de horas de trabalho, férias, etc. ? Não poderia ele escolher a duração da jornada, o período de férias, etc. em função de seus gostos, necessidades,..? Não pode ele ter escolhido esse tipo de inserção em função, justamente, dessa liberdade de escolhas que a relação com o Uber permite ? O marco regulatório imaginado para os tradicionais vínculos capital/trabalho é funcional às novas formas de produção e consumo ? Qual é a regulação, limites e funcionalidades necessários a estes novos espaços ?

Lembremos que, se fugimos de escolhas ideológicas, uma análise da experiência internacional não permite concluir que os resultados satisfatórios ou não de uma dada institucionalidade/legalidade estão em função de sua intensidade. Países muito regulamentados (países nórdicos, por exemplo) têm balanços em termos de emprego, desemprego, crescimento da produtividade, etc., semelhantes a economias com uma institucionalidade muito reduzida e prevalência da oferta e demanda (países anglo-saxões). A questão que se coloca está vinculada à eficiência de uma dada institucionalidade, não à sua densidade. Assemelhar a inserção econômica e social via as novas plataformas a uma forma de assalariamento tradicional pode ter como corolário tolher o amadurecimento de formas de produção e consumo inéditas e aí podem estar concentrados promissores espaços de crescimento da produtividade. Revestidas de um falso progressismo, perspectivas que associam qualquer nova forma de inserção a um retrocesso em termos civilizatórios ou precarização social das sociedades podem chegar a ser classificados, no futuro, como hoje avaliamos os movimentos ludistas do Século XIX.

Propostas de Reforma Trabalhista, Desemprego/Informalidade dos Jovens e a Lenta Tecelagem de uma Colcha de Retalhos

No bojo da alteração de legislação trabalhista que vem sendo implementada aos poucos desde 2017, foi noticiado pela imprensa que uma próxima iniciativa (ainda estaria em estudo) seria a redução do FGTS (dos atuais 8% para 2%) no caso da contratação de jovens (16-24 anos). A esse benefício se agregaria um outro: a diminuição do percentual de multa sobre o FGTS (no caso de desligamento sem justa causa, montante que é recebido pelo assalariado) dos atuais 40% para 20%. Essa alteração teria como intuito induzir a contratação, via CLT, desse público alvo (jovens nessa faixa etária) afim de reduzir o desemprego e elevar sua formalidade. O incentivo para a contratação celetista seria, basicamente, por meio de redução nos custos ou, em outros termos, tornar os assalariados jovens “mais baratos”. O público alvo das medidas estudadas pelo governo também contemplaria, além dos jovens, aqueles indivíduos que estivessem mais de dois anos sem apresentar vínculos formais (CLT). Ou seja, além da redução do desemprego e formalização dos jovens a medida visaria uma formalização da mão-de-obra em geral, objetivo a ser atingido através da redução de custos.

Neste post não vamos analisar o segundo objetivo (a contratação formal de indivíduos que estejam sem registrar vínculos formais há mais dois anos). Assim, nos próximos parágrafos vamos nos limitar a apresentar algumas reflexões sobre o primeiro: a redução do desemprego e a formalização dos jovens com uma medida que, basicamente, reduz custos.

Vamos iniciar a discussão levantando duas questões: a plausibilidade do problema e a pertinência da solução que está em estudo pelo governo.

A primeira questão, então, diz respeito ao “problema” que se quer reverter: o desemprego e a informalidade entre os jovens é maior que para o resto da população? A resposta é afirmativa e esse aspecto não pode ser atribuído à crise posterior a 2014 senão que, contrariamente, tem um caráter estrutural. Segundo os dados da PNAD/2014 (ou seja, antes do auge da crise), a taxa de desemprego aberto entre os jovens (16-24 anos) era de 16,59%, sendo o percentual de somente 4,69% no caso da população entre 25 e 65 anos (Fonte: micro-dados PNAD, elaboração própria). Ou seja, existe um problema real de desemprego entre a população que deve ser atingida (beneficiada) pela medida em estudo pelo governo. O problema (desocupação) não é imaginário.

No tocante à informalidade, essa questão é mais complexa, uma vez que teríamos que definir o que entendemos por “informalidade”. Vamos considerar uma medida um pouco geral: empregado sem carteira de trabalho assinada + trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada + não-remunerado. Definir a situação de informalidade pode levar a polêmicas (debate que foge a nossos objetivos neste post), mas essas categorias de inserção são mais ou menos consensuais quando se pretende definir o segmento informal. Na faixa etária de 16-24 anos, o percentual de ocupados não integrados nos espaços informais era de 34,86% em 2014 (antes da crise), sendo de somente 19% no caso dos indivíduos cuja idade está situada na faixa de 25-65 anos. (Fonte: micro-dados PNAD, elaboração própria). Ou seja, existe, realmente, maior prevalência de vínculos informais entre os jovens. Se a informalidade pode se assemelhar a um problema a ser equacionado ou minorado, o governo pretende combater uma disfunção que não é uma fantasia.

Avaliada a primeira questão (existe realmente um problema de desemprego e informalidade entre os jovens), passemos à segunda questão: esse “problema” é produto de um custo elevado, que leva a que os jovens ou não sejam contratados ou sejam contratados, mas sem vínculo formalizado ?

O desafio do desemprego dos jovens (mais elevado que a média da população) não é uma singularidade do Brasil. Na maioria dos países, mesmo nos mais desenvolvidos, a taxa de desemprego entre os jovens tende a ser superior à média. Na Itália chega a 32%, na Espanha 34% e na Grécia aos incríveis 40%. (Fonte: OCDE, 2019). Os percentuais médios de desemprego nesses países (toda a população) são de 10%, 14% e 17%, respectivamente. (Fonte: OCDE, 2019). Ou seja, a população jovem tem uma particularidade que a torna mais vulnerável ao desemprego (e à informalidade, no caso do Brasil).

Dada a identificação de uma população com problemas específicos, a tendência em diversos países consiste em adequar a institucionalidade a esses nichos, proporcionando incentivos legais que favoreçam a sua contratação. Assim, diversos países tem salários mínimos específicos para os jovens que visam, justamente, induzir os empregadores à sua contratação. Implicitamente, o marco teórico que nutre essa política estabelece um vínculo estreito entre produtividade e salários. No caso de se estabelecer um salário mínimo para a totalidade da população, seriam penalizados aqueles conjuntos populacionais que têm uma produtividade inferior a esse nível mínimo de remuneração estabelecido pela legislação (por exemplo, jovens, mão-de-obra com pouca qualificação, mercados de trabalho em regiões com menor desenvolvimento relativo, pessoas com alguma deficiência, etc.). Desde outra perspectiva, elevar o salário mínimo penalizaria, justamente, aqueles grupos que, teoricamente, se pretendia beneficiar (jovens, especialmente aqueles com pouca escolaridade, mão-de-obra adulta com pouca qualificação, etc.). Aqui estaríamos frente a uma tensão entre salário mínimo e emprego, estresse que sempre foi amplamente debatido na literatura, mas, no caso que estamos analisando, o público específico seriam os jovens. Aliás, no debate teórico e empírico sobre o salário mínimo habitualmente a população jovem foi um eixo que pautava o debate e dividia posições.

Nesse sentido, a proposta, em estudo pelo governo, que visa reduzir o custo de contratação dos jovens não é original nem deixa de ter antecedentes em termos de política pública. Neste caso específico, porém, a estratégia escolhida não é o estabelecimento de um salário mínimo específico para a população de 16-24 anos, senão reduzir seus custos. Contudo, a lógica é exatamente a mesma.

Agora estamos em condições de avaliar a segunda questão: existe um problema de custos no caso do Brasil ? Os jovens não são contratados (ou informalizados) devido aos custos (salários diretos ou indiretos, como o FGTS, mais encargos trabalhistas, mais risco…..) não condizerem com sua produtividade ? Avaliar a plausibilidade dessa hipótese é relativamente fácil. Nossos olhares têm que se direcionar aos salários com os quais são contratados. Se eles estão próximos do mínimo, a hipótese merece ser aceita. Caso contrário, não. Imaginemos, para ilustrar, um exemplo um pouco extremo. Assumamos que o salário mínimo seja de 100 e, com o 8% de FGTS, o custo seria de 108 (não estamos considerando outros encargos para simplificar o exemplo sem perder-nos em generalidades). Se os salários de contratação prevalecentes estão próximos de 100, pode existir uma restrição de custos que limitam maiores contratações (jovens com produtividades inferiores a 108). Porém, se os salários com os quais são admitidos estão situados em, suponhamos, 200, certamente o desemprego ou a informalidade não estão vinculados aos custos. Em outros termos: os empregadores poderiam pagar salários inferiores (a legislação deixa aberta essa possibilidade, uma vez que o salário mínimo é de 100), mas os rendimentos com que são contratados superam largamente esse patamar. Neste último caso, propostas que pretendam reduzir o custo das contratações seriam inócuas, uma vez que a não contratação não se nutre de custos elevados (existe espaço para que o mercado ajuste, sem que a legislação seja contornada).

Para tentar avaliar se os jovens no Brasil não são contratados ou são informalizados devido aos custos podemos utilizar as informações do CAGED, um registro administrativo que contabiliza informações de admitidos e desligados com vínculos regulados pela CLT. Os dados contidos na Tabela anexa a esse post correspondem ao ano de 2018 e consistem nos rendimentos com que foram contratados, via CLT, os jovens entre 16 e 24 anos. Realizamos dois cortes: segundo escolaridade e por região/UF. Essas duas variáveis podem ser relevantes para compreender diferenciações que a média geral pode ocultar. O corte por escolaridade pode ter como referência a Teoria do Capital Humano: quanto mais elevada a educação maior seria a produtividade e maiores deveriam ser os salários. Dado esse referencial, o relevante seria fixarmo-nos nas menores faixas de escolaridade, uma vez que, teoricamente, estariam concentrados nesses intervalos de renda os possíveis desdobramentos negativos do salário mínimo sobre o emprego e a formalidade. A variável região/UF é necessária dado que, no Brasil, é consenso que existe segmentação espacial na formação de rendimentos.

Uma rápida leitura da tabela pode suscitar dois reparos.

O primeiro diz respeito a salários de contratação regulados pela CLT inferiores ao mínimo. Lembremos que, em 2018, o salário mínimo era de R$ 937. Vários fatores podem explicar essa anomalia nos dados: contratações por tempo parcial, intermitente, etc.. Deveriam-se realizar ajustes, mas, como veremos, essas falhas não chegam a comprometer nossas conclusões gerais.

O segundo reparo diz respeito a uma “anomalia” na correspondência entre os dados e a Teoria do Capital Humano: os menores rendimentos dos jovens se identificam nos que têm segundo grau incompleto e não nos analfabetos. Os salários de contratação no caso dos indivíduos com Ensino Médio Completo é inferior ao observado nos jovens assalariados com Fundamental Completo. Poderíamos tentar alguma hipótese para explicar essa aparente “anomalia” (excesso de oferta, recusa em ocupar postos de trabalho com status pouco valorizados socialmente, etc.). Deixamos para outro post ensaiar alguma tentativa de explicação.

Retornando a nosso objetivo, em média, os salários de contratação estão além do valor do salário mínimo. No Brasil, em 2018, o salário de admissão de um jovem (16-24 anos) foi 14% superior ao mínimo. Se os custos fossem a restrição ativa para explicar o desemprego ou a informalidade nessa faixa de idade, o mercado teria espaço para ajustar. Mesmo entre os jovens sem instrução (analfabetos) os salários de admissão são significativamente superiores ao mínimo (10% maiores). Contudo, a restrição sim pode ser relevante nos Estados do Nordeste e em alguns do Norte. Ou seja, a inciativa do governo só teria algum impacto nas regiões mais pobres do país. No Sul, Sudeste e Centro-Oeste (não considerando o caso do Ensino Médio Incompleto, que merece uma análise particular) reduzir custos não pareceria ser a estratégia mais adequada para induzir a contratação ou a formalização dos vínculos na população jovem. Nas áreas mais desenvolvidas do país, a falta de oportunidades de emprego ou a ilegalidade dos vínculos não parecem ser alimentadas pelos custos. Em outros termos, nessas regiões não parece plausível elevar o emprego formal tentando tornar os assalariados mais “baratos”.

Vamos direcionar agora a nossa atenção à redução da “multa” no caso de desligamento sem justa causa. Um dos motivos do desemprego jovem ser, na maioria dos países, superior à média da população diz respeito ao risco de sua contratação. Esse risco é produto de diversos fatores: os jovens têm menos responsabilidade como fonte de renda na família; são mais instáveis psicologicamente; estão em processo de maturação de seus gostos e habilidades; suas habilidades/competências podem não corresponder às requeridas pelas vagas que são abertas; os sinais acumulados por empregos anteriores são menores, ……. Ou seja, há uma série de fatores que caracterizam a contratação de um jovem como sendo mais arriscada, todo o demais constante, quando comparada com a escolha de um adulto. A taxa de rotatividade (e os custos associados a ela) são maiores na população jovem. Nesse sentido, reduzir os custos de desligamento sem justa causa pode ser uma alternativa que sim pode induzir contratações ou a formalidade, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Observemos que o risco poderia já estar incluído nos salários pagos e como estes são bem superiores ao mínimo no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, não parece que nessas áreas a redução da multa possa ter algum impacto.

A estratégia que parece ter sido escolhida pelo governo tem muitos referenciais. Em diversos países, especialmente, ainda que não exclusivamente, na Europa Continental, as iniciativas para reduzir o desemprego passam pela identificação de nichos específicos entre a população ativa (ou com potencialidade de ser ativa), a qualificação de suas restrições particulares e, finalmente, promover alterações na legislação trabalhista afim de beneficiar os mesmos. Jovens sem formação, primeiro emprego, assalariados beneficiários de programas de transferência de renda, adultos próximos da aposentadoria e com escasso capital humano, mulheres chefes de família numerosa e com pouca formação, … são franjas da população com reconhecidos problemas de participação na força de trabalho, com restrições no momento das contratações, etc.. A legislação é alterada para seu benefício e o resultado é um marco regulatório extremamente complexo, que contempla subsídios, contratos com duração indeterminada, contratos temporários, contratos a tempo parcial e por aí vai. A legislação básica ou pretensamente universal (para todos os assalariados) vai sofrendo uma série de “remendos” e o marco regulatório vira uma “colcha de retalhos” onde é difícil quantificar impactos, uma vez que prevalecem subsídios cruzados, estão justapostos contratos extremamente rígidos com outros particularmente flexíveis, as supostas transições entre empregos subsidiados ou beneficiados e contratos “normais” se realizam de forma muito onerosa, etc.. Mesmo em países anglo-saxões, com tradição de mercados de trabalho menos regulamentados, essa parafernália de regulamentação também é encontrada. A Nova Zelândia, por exemplo, tem três salários mínimos. As especificidades de cada possibilidade de contratação são tantas que é difícil acompanhar a legislação (ver OCDE (2014)). O resultado, como afirmamos, dada a complexidade da institucionalidade, é uma enorme dificuldade para avaliar cada medida em particular, uma vez que todas interagem entre elas. Os mercados de trabalho aprofundam sua segmentação, não unicamente regionalmente, mas dentro da própria firma. Assim, uma parte do estoque de assalariados de uma empresa pode ter seus vínculos regulados por uma legislação extremamente rígida (como a CLT) e convivem, no mesmo lugar de trabalho, com outros cuja relação trabalhista está pautada por uma legislação extraordinariamente flexível.

No caso específico que estamos analisando (reduzir a contribuição ao FGTS e da “multa” no caso da contratação de jovens de 16 a 24 anos), a medida proposta pelo governo poderia ter impacto positivo no Norte-Nordeste do país. Mas como, caso esta hipótese esteja certa, o problema do desemprego jovem no centro-sul permaneceria. No futuro, serão propostas novos “remendos” que beneficiem essas áreas ? A institucionalidade que regula as relações capital/trabalho vai se aproximar do caos, à justaposição e a irracionalidade que caracteriza o sistema tributário brasileiro ?

Obviamente que as alterações na legislação precisam levar em consideração as restrições ou avaliações não unicamente econômicas, senão também as políticas e culturais. Aí podemos ter um conflito entre a racionalidade econômica e o leque de possibilidades factíveis. Por exemplo, se nossas hipóteses vieram a se confirmar (os custos do trabalho inibem o emprego formal de jovens no Norte/Nordeste, mas é irrelevante no restante do país), não seria o caso de se pensar simplesmente na eliminação do salário mínimo ? O que seria preferível economicamente e plausível politicamente, reduzir a contribuição do FGTS/multa ou regionalizar o salário mínimo ? Em uma país continental e heterogêneo como o Brasil, qual é a racionalidade de um salário mínimo nacional ?

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

As Relações de Causalidade na Economia e o Fracasso do Petismo e do Macrismo

Aproximar a economia a uma ciência dura sempre foi a aspiração de significativa parcela de nossos colegas. Mas, diferentemente das ciências naturais, nas ciências sociais é difícil (quando não impossível), organizar experimentos. Contudo, nas últimas décadas, a maior disponibilidade de dados e avanços nas técnicas econométricas permitiram enormes progressos na área e hoje a avaliação, mediante comparações contrafactuais (“o que teria acontecido se não tivesse ocorrido o que aconteceu”), está se tornando, cada vez mais, um critério quase excludente na difusa fronteira entre o que seria uma ciência econômica dura e que o seriam “achismos”, subjetivismos ou diretamente posições ideológicas.

Contudo, a alternativa de avaliar os fatos ou circunstâncias não deveria estar restrita aos ambientes acadêmicos. “Pensar contrafactualmente” mereceria tentativas de popularização similares às que estão sendo levadas a cabo no tocante à “educação financeira”. Basicamente, o objetivo seria não assumir uma correlação ou associação como uma relação de causalidade. Identificar a direção causa-efeito em uma correlação não é trivial, depende da sorte de encontrar um experimento natural, da imaginação do observador, etc. Contudo, o relevante é ser consciente da diferenciação. Por exemplo, uma série estatística indicando uma ligação entre bairros com elevada densidade policial simultaneamente à maior ocorrência de crimes não pode redundar em um simplismo que atribua a maior taxa de delitos a essa maior presença da polícia, assim como a correlação entre pessoas com sobrepeso que fazem dieta não pode atribuir ao regime a condição de obeso. A possiblidade de identificar um experimento natural pode resolver a ordem de causalidade (ver, por exemplo, Di Tella e Schargrodsky (2004)).

Trilhar o caminho do efeito para a causa ou, em outras palavras, identificar as raízes de um determinado resultado não deveria ser, como afirmamos no parágrafo anterior, um método exclusivo dos indivíduos dedicados à pesquisa. O debate público também teria que, idealmente, estar pautado por essa metodologia. Contudo, na economia precisa-se comparar resultados em processos complexos, que envolvem decisões de política, ambiente externo, heranças (condições iniciais), entre outros, que tornam extremamente difícil as comparações ou a avaliação de determinada estratégia.

Esse talvez seja o caso de duas estratégias de desenvolvimento opostas, mas cujos resultados, curiosamente, foram próximos.

O modelo de desenvolvimento implementando entre 2005 e 2014 no Brasil caracterizou-se por apelar a uma série de ferramentas (subsídios, proteção, fortalecimento das empresas estatais, forte elevação do salário mínimo, etc.), cujo desfecho foi uma severa recessão, inflação, déficit público, trajetória insustentável da dívida, etc.. O modelo de crescimento tentado pela administração Macri na Argentina, a partir de 2015, visou acompanhar a cartilha do mainstream, com abertura dos mercados, desregulamentação, confiança no investimento externo, fim de subsídios, etc. Ou seja, seria o contraponto (o modelo rival ou concorrente) do tentado no Brasil no mesmo período. Os resultados são, paradoxalmente, bem próximos: profunda recessão, inflação, dívida pública fora de controle, …..

Quais as causas dos fracassos? O insucesso desqualifica a estratégia? Nesse caso, os dois modelos estão desacreditados?

Aqui encontramos duas tentativas de explicação. Em ambos os casos, as metodologias empregadas também são similares, evidenciando-se quão longe está a economia de poder reduzir a sua desvantagem com as ciências naturais quando transitamos o caminho que separa avaliar processos pontuais (a relação de causalidade entre policiamento e crime, por exemplo) com fenômenos mais complexos, como pode ser uma estratégia de desenvolvimento de um país.

As duas alternativas de explicação são alimentadas, obviamente, por adeptos de cada um dos modelos. Nos dois casos preserva-se a estratégia e censura-se a administração de curto prazo (o gerenciamento da macroeconomia).

No caso do Brasil, uma corrente sustenta que o fracasso estava inscrito no DNA do projeto adotado (ver, por exemplo, aqui). Ou seja, é a própria estratégia que, por fechar a economia, subsidiar setores, escolher arbitrariamente ganhadores, entre outras ações, não promoveria os ganhos de produtividade que, no longo prazo, seriam a única fonte de crescimento. A essa variável, de cunho estrutural, teriam se agregado questionáveis aspectos de uma administração macroeconômica de curto prazo.

No caso da Argentina, a mesma matriz teórica que leva a impugnar a estratégia do Brasil entre 2005 e 2014 os induz a aprovar o modelo macrista, atribuindo o seu fracasso a erros na administração macroeconômica. Por exemplo, não ter logrado reverter o déficit público ou não ter afiançado a credibilidade e independência do Banco Central.

No polo oposto do debate, os partidários da estratégia Lula (segundo mandato)/Dilma questionam a administração de curto prazo (a desoneração da folha de pagamentos, por exemplo); fazem referência aos choques externos, mas preservam as linhas mestras (ver, por exemplo, Laura Carvalho (2018)). Contrariamente, estaria grafado no DNA do modelo macrista seu fracasso.

Entender o porquê, como dizem Pearl e Mackenzie (2018), é uma questão contrafactual disfarçada. Contudo, como já afirmamos, o desafio é bem maior no caso da avaliação de um modelo de desenvolvimento que em um caso pontual, como seria avaliar o impacto da formação dos professores no desempenho acadêmico dos alunos, por exemplo. Por outra parte, determinar a relação causa-efeito e outorgar os créditos (sejam eles negativos ou positivos) fica ainda mais labiríntica quando existe uma defasagem temporal entre a ação ou política e suas sequelas. Nesse sentido, podem estar sendo atribuídos méritos ou deméritos a uma escolha quando em realidade as raízes do observado estariam situadas em outros momentos. Por exemplo, segundo Samuel Pessoa, o primeiro governo de Lula foi o beneficiado (em termos de produtividade) das reformas realizadas por FHC na década anterior.

A pergunta é: pode-se imaginar um contrafactual em problemas macro? É mais difícil, as possibilidades são menores, mas não impossível. Existem na literatura bons exemplos dessas novas tentativas. Por exemplo, Carrasco, de Mello e Duarte (2014), utilizando uma metodologia robusta (grupo de controle sintético), avaliam diversos indicadores do Brasil no período 2003-2012, quando o país teria logrado, pelo menos na aparência, importantes ganhos econômicos e sociais. No entanto, na comparação com um grupo de países (grupo de controle), esses avanços são relativos, uma vez que teriam sido gerados mais pelas condições externas que pelas políticas internas, estando as conquistas aquém das conseguidas via grupo de controle em vários quesitos, mesmo na área social.

Obviamente, os resultados de Carrasco, de Mello e Duarte estão aí para serem questionados pelos seus pares. Mas o aspecto que pretendemos colocar no debate é a necessidade de concentrar esforços em identificar relações de causalidade de forma robusta. No debate sobre a estratégia de desenvolvimento de uma nação, é pertinente levantar perguntas tais como: se Macri tivesse conseguido reverter o déficit fiscal herdado do Kishnerismo e outorgado independência ao BC argentino, os resultados em termos de crescimento, inflação, pobreza…., teriam sido outros ? Estava escrito no DNA da estratégia de Dilma seu fracasso ? Tentar responder a essas perguntas com maior aproximação à metodologia das ciências naturais permitiria reduzir, mesmo que não contornar totalmente, que a confrontação de posições estivesse pautada por posições partidárias ou ideológicas ou, simplesmente, pelo “achismo”.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Economia da Corrupção (II)

Em um post anterior começamos a discutir a abordagem que a economia faz daquilo que comumente (e muito vagamente) se denomina de “corrupção”. Aceitando provisoriamente uma aproximação intuitiva ao termo (veremos em outros posts a relevância e os problemas que uma definição mais específica introduz no debate) a pergunta que nós devemos colocar é:  por que a economia deveria ter “alguma coisa a dizer” sobre um tema que, em princípio, pareceria circunscrito à ética/moral e a aspectos legais?   Por um lado, a resposta é quase unânime entre economistas:  a corrupção tem desdobramentos em quesitos que fazem a essência de seu objeto de estudo:  crescimento, alocação eficiente de recursos, distribuição de renda, trade-off eficiência/equidade, etc..  Por outro lado, no debate cotidiano a corrupção adquiriu tal relevância que em muitas ocasiões é identificada como a raiz última da estagnação conjuntural e uma variável categórica para explicar o atraso do País.  Não existem elementos que permitam classificar as práticas ilícitas que diariamente são divulgadas como o principal fator do fracasso em matéria econômica.  Contudo, existem resultados encontrados na pesquisa empírica que atestam vínculos entre economia (especialmente crescimento) e corrupção.  Vamos a resenhar alguns deles.

Em um famoso paper, Mauro (1995) conclui que a corrupção tem um impacto negativo sobre o investimento privado e sobre o crescimento.  Explicita a conclusão com um exemplo bem ilustrativo. Se a burocracia estatal de Bangladesh tivesse os níveis de integridade do Uruguai seu investimento poderia se elevar em 5% enquanto o percentual de variação do PIB aumentaria 0,5% ao ano. Weil (1997) chega à conclusão que a corrupção eleva o grau de incerteza nos investimentos estrangeiros em um país, com efeito danoso sobre os mesmos, ensaiando também uma comparação: se Singapura, um dos países que as séries indicam como sendo um dos menos corruptos do mudo, tivesse os níveis de corrupção de México, isso seria equivalente a elevar a carga tributária em 32% sobre os investimentos oriundos do exterior.  Poderíamos nos estender nas citações bibliográficas, mas os nexos serão sempre os mesmos: existiria uma relação negativa entre crescimento e índices de corrupção. Contudo, lembremos que a existência de um nexo deixa em aberto a ordem de causalidade, aspecto que trataremos neste post nos próximos parágrafos.  

A alocação de recursos seria outro dos meandros mediante os quais as práticas de corrupção afetariam o crescimento.  Neste caso as interrelações (corrupção/alocação ineficiente de recursos) são as mais difusas e, muitas vezes, surpreendentes.  Por exemplo, Mauro (1998) encontra robusta evidência empírica sugerindo que quanto maior for o nível de corrupção de um país maior será o investimento público em setores (grandes obras de infraestrutura, por exemplo) nos quais a possibilidade de cobrar propinas seja maior.  Assim, seriam penalizadas áreas como educação, nas quais os espaços para tais práticas seriam mais reduzidos. Dessa forma, a alocação de recursos não teria como prioridade a eficiência, equidade, crescimento, etc., e sim a ampliação das fontes potenciais de cobrança de propinas Sem chegar a esses extremos, mesmo políticas que teriam como objetivo induzir maior taxa de crescimento podem ter como correlato a geração de práticas de corrupção que devem ser tidas como custos que alteram o balanço custos/benefícios.  Ades e Di Tella (1997) estudam o caso das denominadas políticas industriais e a eleição dos “campeões nacionais”.  Uma vez que a corrupção reduz o investimento, as medidas tendem a induzir o mesmo e, simultaneamente, abrem espaço para práxis ilícitas que podem chegar a comprometer boa parte dos ganhos que as políticas  impulsionaram (até 84% segundo os dados desses autores).  Nesse sentido, barreiras protecionistas, cotas de importação, etc. caminhariam na mesma direção, uma vez que, ao facilitar a geração de rendas em nichos específicos, criarão incentivos e disputas em torno da sua apropriação. Apropriação que pode ser disputada tanto por agentes do setor público (mediante propinas) ou como do setor privado (contrabando, mercado negro, etc.) (Kruguer (1974)).

Vemos, assim, que as raízes podem ser as mais variadas, até mesmo nobres, como acelerar o crescimento ou encorajar a industrialização.  Podemos imaginar uma situação na qual se objetiva uma aceleração do crescimento. Assume-se, então, um diagnóstico teórico, é estabelecida uma política pública em consonância e, como correlato, temos um espaço propício para o desenvolvimento de um mercado de propinas. Mesmo assumindo como apropriada a política escolhida (aceleraria a variação do PIB), parte desses ganhos seriam neutralizados pelo impacto negativo que a corrupção teria sobre os níveis de investimento.  Nesse caso, o balanço (positivo ou negativo) fica em aberto.  Mesmo em casos nos quais o objetivo do arcabouço legal consiste na correção de falhas de mercado (externalidades), pode-se quantificar o custo de não pretender corrigir essas falhas e comparar essa magnitude com a perda que representa a formação de uma burocracia imaginada para seu reparo, mas que configura um espaço aberto para a corrupção.  

Uma dinâmica similar pode ser deslanchada quando, no lugar de pretender induzir o crescimento, se pretende corrigir falhas de mercado.  Como salientam Acemoglou e Verdier (2000), impor restrições ou induzir condutas implica em vislumbrar controles com as conseguintes estruturas burocráticas, gerando custos diretos e a possiblidade de propinas.  Reduzir a eventualidade de corrupção pode elevar os custos (por exemplo, levando ao pagamento de salários de eficiência nas estruturas burocráticas), resultando em pesados complexos administrativos que, mesmo pagando elevados salários, não necessariamente eliminarão as possiblidades de pagamento de propinas nem contornarão inexoravelmente as falhas de mercado. 

Um caso bem diferente consiste em escolher setores prioritários ou arcabouços legais com o único propósito de gerar espaços capazes de disponibilizar rendas a serem disputadas. Nesse sentido, encontramos interpretações um tanto extremas, nas quais o objetivo último da maioria das normas legais, controles, etc. estaria associado à procura de geração de espaços nos quais é possível extrair rendas (propinas) por parte de agentes públicos (Cheung (1996)).  A hipótese de um comportamento rent-seeking é levada ao limite, uma vez que os burocratas não se aproveitariam das oportunidades abertas pela legislação para extrair rendas (propinas). Em realidade,  a própria legislação seria criada a fim de gerar rendas das quais posteriormente se assenhorariam. 

Como salientamos no post anterior, contudo, existe literatura sugerindo avaliar a corrupção dentro de um dado contexto.  Assim, em determinadas circunstâncias, o suborno à agentes públicos em âmbitos de regulamentação excessiva e mal desenhada seria benéfico para o desenvolvimento (ver bibliografia e citações no post anterior).  Nas palavras de Gray and Kauman (1998), uma frase poderia resumir esta perspectiva: a corrupção seria “….the “grease” that lubricates the “squeaky wheels” of a rigid administration”.

Contudo, se a corrupção pode afetar o crescimento através de diversos labirintos, seu perfil poderia também acentuar ou atenuar esses efeitos perversos. Assim, por exemplo, podemos estar diante de apenas um agente corrupto, de vários agentes que concorrem entre si ou de vários agentes em conluio.  Os modelos indicam que os resultados são diversos e, paradoxal ou contraintuitivamente, quanto mais caótico (menos centralizado) for o mundo dos agentes corruptos maior será o custo em termos de alocação de recursos.  Nas palavras de Canavesse (s/d): “…nos casos de corrupção estudados pode-se afirmar que o crime organizado é mau, mas o crime desorganizado é pior devido aos seus efeitos sobre a alocação de recursos”.  Um caso mencionado diversas vezes na literatura diz respeito ao desmoronamento dos países  Leste Europeu. Nos antigos regimes comunistas, um governo centralizado e forte “administrava” a corrupção.  A derrocada das estruturas do Estado na transição ampliou os agentes e desarticulou a sua centralização (devido à existência de governos frágeis e transitórios), fato que redundou em um ambiente caótico em termos de corrupção, com custos em termos de investimento (Sheilfer and Vishny (1993)).   Na medida em que as esferas de corrupção se multiplicam e superpõem, os custos de transação se elevam.  O tempo gasto nas negociações em distintas esferas governamentais (permissões, licenças, isenções, etc.)  dilata-se, aumentando custos e reduzindo investimentos.  

Além da diversidade de agentes corruptos (sua dispersão ou centralidade, sua coordenação ou não, etc.), uma outra variável que pode diferenciar a corrupção de um país (ou região) diz respeito à sua incerteza.  Em ambientes cuja corrupção é centralizada e sujeita a regras que são cumpridas, o grau de incerteza se reduz e o suposto impacto negativo da corrupção sobre o investimento é atenuado.  Campos, Lein and Pradham (2006) explicam, ao introduzir a variável incerteza, o aparente paradoxo dos milagres asiáticos.  Nessa região imperariam elevados índices de corrupção que, aparentemente, não impediriam a convivência com surpreendentes indicadores de crescimento e investimento.  Justamente, na medida em que as propinas e as regras do jogo da corrupção são conhecidas, estáveis e respeitadas, estas entram nos cálculos de investimento, elevando os custos, mas com risco reduzido.

Mas o ponto que permeia todos os trabalhos que acabamos de citar nos parágrafos anteriores implicitamente justifica o tratamento econômico da corrupção devido aos vínculos entre esta última e a alocação de recursos, investimento e crescimento.  Por diversos meandros (incerteza, custos, etc.), o pagamento de propinas acabaria reduzindo os níveis de crescimento, seja porque reduz o investimento seja porque induz uma alocação de recursos ineficiente. Nesse sentido, a relação entre os indicadores de corrupção (voltaremos sobre eles em próximos posts) e o nível de desenvolvimento é bem estreito: quanto maior for o nível de desenvolvimento de um país menor será seu grau de corrupção. Contudo, sabemos que correlação não significa ordem de causalidade ou as relações podem ser indiretas.  Assumamos, como hipótese, que o grau de corrupção tem a ver com raízes culturais como religião e existem evidências que sugerem que sociedades com tradição protestante parecem ser menos conivente com corrupção.  Nesse caso, podemos retornar, via corrupção, a Max Weber (religião→cultura→ética→investimento→crescimento). Porém, não podemos descartar, também, relações de causalidade contrárias.  Ou seja, o desenvolvimento econômico pode ter impacto sobre os indicadores de percepção de corrupção, como Treisman (2000) salienta.   Ou seja, sociedades economicamente estagnadas podem (controlando, inclusive, por fatores culturais como religião) induzir à corrupção: “Latin American countries are not significantly more corrupt than their Western European and North American counterparts once one controls for their lower economic development and less stable democracy” (Treisman (2000)).  Ou seja, a corrupção não seria a causa do baixo crescimento, senão o contrário, e existem evidências empíricas que sugerem que a relação de causalidade vai nesse sentido (Bai, Jayachandram, Malesky and Olken (2013)).

Em próximos posts direcionaremos nossas atenções a um aspecto crucial implícito (mas essencial) em todos os trabalhos empíricos: a definição de corrupção e sua medição.

Economia da Corrupção (I)

Conforme as pesquisas de opinião, a corrução é vista pelos brasileiros como um dos três principais problemas do país, superando em alguns levantamentos a saúde e segurança. Em outro levantamento, somente é ultrapassada pela saúde e violência, igualando-se ao desemprego e situando-se bem longe de aspectos sociais como a fome e a desigualdade. Esta não é uma singularidade do Brasil e, em maior ou medida, é um fenômeno mundial, podendo ser identificada como uma das fontes que alimentam a atual onda de populismo que está abalando até países com longa tradição democrática.  A maioria das outras dimensões que fazem parte das apreensões dos indivíduos (como desemprego, educação, saúde, segurança, etc.) mereceu uma particular atenção na academia e na ciência econômica, chegando a uma agregação de conhecimentos e trabalhos técnicos que, em maior ou menor medida, pautam o debate cotidiano e norteiam a formatação de políticas públicas. 

No caso específico da corrupção, não obstante a relevância identificada nas pesquisas de opinião, esse cenário “ideal” (qualificativo que procede uma vez que o debate público e a formatação de políticas estariam ancorados em arcabouços teóricos e pesquisas empíricas) não parece ter-se realizado.  As polêmicas e sugestões de política estão pautadas, quase que exclusivamente, por aspectos legais quando não morais/éticos.  Não podemos negar a relevância dessas dimensões, especialmente pela idiossincrasia do tema.  Contudo, uma disciplina como a economia, que chega a dar “palpites” em áreas que parecem situadas longe dos cálculos financeiros (custos/benefícios), como família, matrimônio, número de filhos, aborto etc., não poderia ficar indiferente a esse tema.  Em realidade, existe uma ampla literatura abordando o tópico (corrupção) usando a perspectiva e as ferramentas usuais no modelo canônico (agentes maximizando uma função objetivo – no caso das firmas, maximizando lucros líquidos de propinas; incentivos, mercado concorrenciais ou não, etc.) e, como não poderia deixar de ser, esse prisma é questionado por paradigmas concorrentes.  Porém, essa profusão de contribuições parece confinada a uma especialidade nos ambientes acadêmicos, com pouca transcendência fora desses círculos restritos.  Pautas éticas/morais e conseguintes recomendações de penalidades legais parecem moldar os discursos.   

No caso específico do Brasil, a “lava jato” se desenvolveu e adquiriu popularidade em um contexto no qual observamos uma notória incapacidade de os resultados da reflexão teórica e empírica na área de economia permear o debate público. Essa segmentação (reflexões acadêmicas na área de economia/debate público) nutre-se de diversas raízes e tem indubitáveis custos.  Vamos começar por estes últimos.

Em termos de custos, a ausência de algum referencial da literatura econômica no debate público que aborda o tema faz com que aspectos éticos/morais/legais monopolizem as posições, enquanto temas complexos (como o próprio processo do desenvolvimento ou a retomada do crescimento, no caso do Brasil) estão sendo colocados em termos de um reducionismo quase absurdo.  Assim, “solucionado o problema da corrupção” o país poderá decolar ou, a mesma proposição em outros termos, o “problema do Brasil é a corrupção”. Nas palavras de Moises Naim: “Corruption has too easily become the universal diagnosis for a nation’s ills. If we could only curtail the culture of graft and greed, we are told, many other intractable problems would easily be solved. Although it is true that corruption can be crippling, putting an end to the bribes, kickbacks, and payoffs will not necessarily solve any of the deeper problems that afflict societies”.  Esse reducionismo foi também alimentado por algumas posições de certos organismos multilaterais os quais, nas últimas décadas, direcionaram seus olhares ao tema da corrupção.  Por exemplo, para o Banco Mundial “Corruption is the single greatest obstacle to economic and social development”. Esta relevância outorgada a um fenômeno que (como veremos nos próximos posts) é extraordinariamente difícil se medir, induz no debate público vieses que chegam a alterar as prioridades e confundir magnitudes.  Por exemplo, a esdrúxula afirmação segundo a qual combatendo a corrupção se poderia reverter o déficit da previdência.  Como bem salientou Pedro Nery, nessa alegação se estão confundindo milhões com trilhões.

Ou seja, um dos custos da monopolização das atenções no combate à corrupção está vinculado ao reducionismo/simplificação de um processo complexo (como a retomada do crescimento e o processo de desenvolvimento em geral), que envolve diversas variáveis (investimento/poupança, educação, abertura ao exterior, etc.) em prol de uma dimensão que, não obstante a sua significância ética/moral, dificilmente possa ser identificada como a  condição  que permita transmudar os obstáculos que o Brasil enfrenta hoje para retomar uma senda de progresso econômico e social.

Contudo, abordar de forma mais rigorosa esse tema não é simples pela própria essência do objeto, fato que justifica o descolamento entre a produção acadêmica na área e sua utilização no debate público. Nos próximos parágrafos vamos detalhar várias dessas complexidades, e mesmo perplexidades, que nos depara o tema mesmo quando abordado a partir do olhar pretensamente rigoroso do modelo econômico corriqueiro. 

Um pré-requisito elementar para iniciar qualquer reflexão consiste em definir o objeto.  Em outros termos, de que estamos falando quando estamos debatendo a “corrupção”?  Essa definição e os corolários que dela se deduzem não são triviais.  Por exemplo, Jain (2001) afirma que: “Although it is difficult to agree with a precise definition there is consensus that corruption refers to acts in which the power of public office is used for personal gains in a manner that contravenes the rules of the game”. Treisman (2000) define a corrupção como “the misuse of public office for private gain”.  Esta definição, que parece ir ao encontro do zeitgeist hoje no Brasil, tem profundos corolários, uma vez que assume que a corrupção é monopólio do setor público, de seus funcionários ou da interação destes com o setor privado.  Não existiria corrupção na interação entre agentes do próprio setor privado.  Nas palavras de Gary Becker: “To Root Out Corruption, Boot Out Big Government”.  Nesta perspectiva, uma das alternativas para reduzir a corrupção seria ampliar os espaços mercantis, nos quais deveriam prevalecer as condições mais próximas à livre concorrência. Em recentes pleitos eleitorais no Brasil, foi utilizada um consigna segundo a qual, se a Petrobrás tivesse sido privatizada, não existiria o denominado Petrolão.  Ainda que os que fantasiaram com essa frase não soubessem, eles eram tributários de Gary Becker.

Essa definição, ao se circunscrever ao setor público, a seus agentes e à interação destes com o setor privado tem imprevistos desdobramentos.  Vamos nos deter em alguns deles, sejam porque são polêmicos seja porque denotam uma extrema fragilidade com a história recente.

Percebamos que restringir a corrupção ao setor público é uma delimitação que deixaria fora do escopo da análise episódios como o da Enron e várias das peripécias da crise da sub-prime nos EUA (AIG, Merrill Lynch, etc.).  Excluir, pela própria definição de corrupção, interações dentro do próprio setor privado do escopo de pesquisas pode induzir a qualificar a essa perspectiva algum matiz ideológico, especialmente porque as recomendações de política que dela se deduzem sempre irão no sentido de que a melhor forma de se combater a corrupção será reduzir o Estado e elevar o grau de concorrência nos mercados. Mais ainda, estender o raciocínio leva a adjetivar a corrupção. Vejamos.

Dessa abordagem decorrem diversas recomendações de política que podem, em princípio, serem vistas como hostis ao próprio senso comum que acompanha a palavra “corrupção”. Por exemplo, é famosa a afirmação de Huntington (1968) segundo a qual “In terms of economic growth, the only thing worse than a society with a rigid, over-centralized, dishonest bureaucracy is one with a rigid, over-centralized and honest bureaucracy”. Ou seja, existiriam situações nas quais, em termos econômicos, um setor público corrupto seria preferível a uma burocracia honesta. Gary Becker afirma que “…some of the corruption in totalitarian systems like the Soviet Union may be of the good kind because the laws are so bad”.

Mas não unicamente teríamos situações nas quais a corrupção seria preferível ou teria impactos positivos.  Segundo a perspectiva que estamos apresentando, ainda em situações menos extremas, como era o caso da União Soviética, as medidas anticorrupção teriam que ser submetidas aos normais critérios de custo/benefício.  Em outros termos, reduzir ou acabar com a corrupção poderia ter custos que superam os benefícios. Uma sociedade que pretendesse acabar completamente com a corrupção poderia incorrer em tais custos que, pelo ângulo dos custos/benefícios, não seria interessante. Assim, da perspectiva legal ou mesmo ética/moral a corrupção constitui uma atividade que sempre e em qualquer circunstância mereceria reprovação e castigo, e se tomarmos o paradigma dominante veremos uma tensão entre essas distintas perspectivas.  O mercado e a livre concorrência seriam um antídoto natural contra a mesma e em uma sociedade imaginária na qual sua forma de regulação estivesse inteiramente pautada pelas forças da oferta e demanda a existência de corrupção seria um contrassenso.  Mas, por outro lado, a mesma lógica de sopesar custos e benefícios pode levar a diagnosticar corrupções “boas” ou “justificáveis” e “níveis ótimos de corrupção”, a partir dos quais os benefícios de reduzir as ilegalidades são inferiores aos custos.  

Por outro lado, a racionalidade econômica que pauta o modelo canônico pode levar a situações paradoxais, próprias daqueles exercícios de laboratório que estão alimentando a popularidade da denominada Economia Comportamental. Lembremos que, no paradigma dominante, os agentes reagem a incentivos e penalidades, com castigos e recompensas que induzem atitudes.  Por exemplo, antecipa-se que a elevação de uma penalidade desincentive o comportamento que se está pretendendo reprimir.  Um estudo de campo ilustrado por Gneezy e Rustichini (2000) manifesta a possibilidade de um resultado que está nas antípodas do esperado.  Nos parece ilustrativo relatar o desfecho dessa experiência uma vez que ela nos pode auxiliar como parâmetro para debater o desenho de políticas anticorrupção.  Em uma escola, os pais retiravam seus filhos depois da hora de fechamento, cuja sequela era docentes e os próprios alunos cansados e entediados na espera.  Foi imaginada uma forma de reduzir essa espera mediante a introdução de uma multa para os pais em atraso, medida que se imaginava moderar o tempo de espera, uma vez que penalizava financeiramente essa conduta.  O resultado foi o contrário: os atrasos aumentaram.  Radicalmente distinto do esperado, os pais viam as multas por atraso como um preço a pagar por sua atitude, sendo um direito ultrapassar a hora na medida em que pagavam por isso.  Vamos agora para o caso da corrupção.  Se a mesma é assumida como estando submetida à racionalidade própria do Homo-Economicus, pretender reduzir a corrupção mediante penalidades maiores ou fiscalizações mais eficientes pode ter como corolário, devido a que o risco se eleva, não uma queda nas práticas senão uma elevação das propinas.

Assim, abordar a questão da corrupção desde a perspectiva do modelo canônico mais elementar, para o qual existiria uma identificação entre Estado e sua burocracia e essas práticas, tem diversos desfechos: o setor privado seria angelical, os mercados, uma maior concorrência e uma maior abertura comercial seriam o antídoto primário contra essas práticas, existiria uma corrupção boa e uma má, o cálculo custo/benefício pode não redundar no objetivo “zero corrupção” e o mecanismo de incentivos (penalidades e recompensas) não necessariamente vai desaguar nos resultados esperados.

Em próximos posts vamos nos concentrar com maior detalhe diversos aspectos que colocamos nos parágrafos anteriores.  Por exemplo, existe um claro problema no tocante à medição do fenômeno.  Nesse sentido, afirmações que identificam na corrupção o “principal obstáculo ao desenvolvimento” tem uma fragilidade intrínseca, uma vez que se podemos ter uma medida mais ou menos exata de outros indicadores (educação da força de trabalho, poupança/investimento, abertura ao exterior, etc.) os esforços para nos aproximar quantitativamente da corrupção partem de levantamentos de percepção da população, que pode não ser uma boa manifestação de fenômenos reais.  Por outra parte, o modelo canônico sofisticou e diversificou abordagens, chegando a uma verdadeira multidão de modelos.  Por último, as correlações entre desenvolvimento e corrupção (à margem das restrições associadas à sua medição, que acabamos de mencionar) são ricas em resultados, mas não deixam de estar abertas a interrogações (por exemplo, a relação de causalidade). 

 

As alterações no FGTS, Incentivos e Produtividade

Em um recente artigo, em sua coluna no Estadão, Pedro Nery avalia as alterações que estão sendo debatidas em torno às mudanças na formatação legal dos resgates no FGTS. Com seu habitual estilo, no qual temas que podem ser complexos e intrincados são apresentados em uma linguagem coloquial extremamente agradáveis de serem lidos, no texto em questão ele compartilha ou assume um diagnóstico relativamente usual em certos ambientes académicos. As atuais propostas de alteração nas retiradas do FGTS têm como referencial conceitual esse diagnóstico que, avaliamos, encerra diversas debilidades teóricas. Nesse sentido, na medida em que as sugestões de novos arcabouços institucionais estão ancoradas nesse posicionamento, debater essas fragilidades conceituais pode acabar sendo uma contribuição para aprimorar o futuro marco legal.

Basicamente, o argumento assumido por Pedro Nery em sua coluna de 30 de julho no Estadão sustenta que o FGTS faz parte de uma ordenação legal de proteção ao assalariado desligado sem justa causa que acaba decorrendo em maior rotatividade (menor tempo de duração do vínculo) e, indiretamente, resulta em menor crescimento potencial. Esta interpretação tem diversos referenciais bibliográficos (ver, por exemplo, Camargo (1996), Gonzaga (1998)), nos quais o FGTS faria parte de um leque de incentivos adversos (os outros seriam a multa sobre o saldo do FGTS, o mês de aviso prévio, as parcelas do seguro-desemprego) à permanência no posto de trabalho, ou seja, constituiria um incentivo à rotatividade. Os meandros mediante os quais esse conjunto de benefícios induziria à rotatividade são diversos. Para nos restringir ao FGTS, podemos citar dois aspectos. O primeiro diz respeito à remuneração desse fundo, que em não poucas oportunidades ficou aquém da inflação (perdas reais). Combinada com essa particularidade, de per si desfavorável a uma aplicação financeira, podemos agregar o segundo aspecto: a taxa de desconto que, no caso dos assalariados mais pobres, pode ser extremamente elevada. Ou seja, existiriam fortes incentivos à retirada dessa poupança forçada (lembremos que o FGTS não é outra coisa que uma poupança forçada) e aplicar esse montante seja em outra opção mais rentável seja no consumo. Existem diversas janelas para a retirada do FGTS (doenças como câncer e aids, compra da casa própria, etc.) mas, na ausência do preenchimento dos pré-requisitos para seu acesso, o óbvio seria forçar o desligamento sem justa causa.

Esses incentivos à rotatividade (uma rotatividade que seria espúria, produto de fronteiras de curtíssimo prazo por parte do assalariado) teriam desdobramentos sobre o longo prazo. Ao estar diante de uma perspectiva de vínculo extremamente reduzida, no olhar do empregador qualquer investimento (qualificação) no capital humano do assalariado não seria rentável. Dessa forma, à reduzida escolaridade da força de trabalho no Brasil (que já, por si só comprometeria a produtividade) deveriam ser agregadas as limitações (via incentivos) que o contexto legal-institucional introduz nas possibilidades de contornar a insuficiência da educação formal via acumulação de habilidades e proficiências no posto de trabalho. O resultado mais ou menos óbvio seria um crescimento potencial de longo prazo em doses homeopáticas.

Qual seria a proposta de política que se deduz desse diagnóstico? Evidentemente alterar esses incentivos à rotatividade e uma das possibilidades seria modificar o pagamento do FGTS. Por exemplo, permitir que o mesmo seja retirado anualmente ou, no outro extremo, só poderia ser retirado na aposentadoria. Nos dois casos, o assalariado não teria a incitação para induzir seu desligamento sem justa causa a fim de resgatar uma poupança que considera própria e que no seu balanço de custo/benefício prevalece a sedução da retirada. Podem ser imaginados outros desenhos institucionais (por exemplo, estabelecer tetos a partir dos quais não existiria contribuição, tornar o percentual variável e decrescente no tempo, etc.), mas, em todos os casos, o objetivo seria o mesmo: reduzir o suposto encorajamento à rotatividade.

Logicamente, o diagnóstico que acabamos de sintetizar precisa de uma validação empírica. Nesse sentido, as pesquisas são reduzidas e prevalece o modelo teórico (ou seja, prevalece uma possibilidade ou hipótese) para subsidiar desenhos de políticas. Porém, consideramos, justamente, que esse modelo apresenta enorme fragilidade teórica, vulnerabilidade que pretendemos desenvolver nos próximos parágrafos.

Observemos que todo o diagnóstico assume um agente (o assalariado) que pauta sua ação em função dos estímulos proporcionados pelo contexto legal/institucional que regula as relações capital-trabalho. Sua perspectiva de ganhos no curto prazo teria custos, seja para o trabalhador ele mesmo (ao inibir a acumulação de capital humano por parte do empregador, reduz as possibilidades de futuros aumentos de salários) seja para o crescimento do país seja para o próprio empregador, que reduziria a possiblidade de incorporar tecnologias, elevar a produtividade, investir, etc.. Os custos para o próprio empregador são evidentes e podem ser observados nas pesquisas que indicam que, para eles (empregadores), a falta de mão-de-obra qualificada é a principal restrição ao crescimento (ver, por exemplo, aqui). A pergunta natural é: por que não investem na qualificação de seus recursos humanos? Sabemos que, internacionalmente, existem diferentes configurações institucionais, podendo prevalecer seja o Estado proporcionando diretamente o treinamento/reciclagem, seja os próprios empresários assumindo a oferta mediante incentivos fiscais, seja iniciativas próprias das firmas à margem de qualquer iniciativa estatal (ver aqui). Existe literatura identificando a possibilidade teórica de uma firma investir no capital humano geral de seus assalariados (capital humano que pode ser utilizado em outras vagas além da firma que proporcionou o treinamento) com certa validação empírica (ver, por exemplo, aqui). Assim, a pergunta pertinente é: os incentivos adversos no Brasil seriam de tal magnitude que interditam o investimento por partes das firmas no seu próprio estoque de assalariados, mesmo identificando na falta de formação de sua mão-de-obra a principal limitação ao crescimento?

Dado que esse contexto institucional é próprio de cada país, voltemos ao modelo teórico que ancora as prescrições que hoje estão sendo discutidas no Brasil.

De início, observemos que esse marco conceitual apresenta só um agente ativo: o assalariado. O seu comportamento penaliza o outro agente (o empregador) que ficaria passivo e a mercê da conduta especulativa do primeiro. Esta suposição é insustentável. Detenhamo-nos neste aspecto.

Os incentivos do marco regulatório das relações capital-trabalho devem pautar não somente a conduta dos assalariados, mas também a dos empregadores. Ou seja, um marco regulatório não gera incentivos apenas a uma das partes, senão a todos os agentes que participam dos jogos. A hipótese de um arcabouço legal que gere incentivos a apenas uma das partes, não obstante seu irrealismo, está implícita no diagnóstico que apresentamos no começo do artigo.

Uma vez que um dos custos da demissão sem justa causa é a multa sobre o saldo do FGTS, o horizonte temporal do vínculo também deve alterar a conduta dos empregadores e existem evidências que o curto-prazismo também pauta o comportamento dos empregadores (ver aqui). Nesse sentido, vamos levantar a passividade do outro agente (os empregadores) e assumir que eles têm capacidade de reagir. Eles, necessariamente, são induzidos a não ficar contemplativos, uma vez que a rotatividade (com seus efeitos deletérios sobre as possibilidades de investimento no seu estoque de capital humano) impõe barreiras ao crescimento da empresa. A pergunta agora é: por que assumir uma atitude totalmente passiva por parte do empregador? qual é a justificativa teórica? A resposta é: absolutamente nenhuma. Não existe justificativa teórica que abra a possibilidade de assumir um jogo com um só jogador (o assalariado), sendo absolutamente passivo o agente que interage com ele, suportando estoicamente os custos. Não existem instrumentos que os empregadores possam recorrer para contornar a conduta especulativa dos assalariados? A resposta é sim, está sedimentada na literatura: o pagamento de salários de eficiência ou o estabelecimento de salário superior aos salários de mercado (salários diretos ou indiretos, como aposentadoria privada, bônus, plano de saúde, etc.). Ou seja, não existem justificativas teóricas que nos permitam assumir que, dado o marco regulatório das relações capital-trabalho, a taxa de rotatividade esteja exógena para o empregador, determinada, exclusivamente, pela conduta especulativa dos assalariados. As firmas têm capacidade de administrar essa taxa e a ferramenta são as remunerações (diretas e indiretas) que pagam a seus assalariados (ainda que possamos imaginar outras possibilidades, como o ambiente do lugar de trabalho, as expectativas de progressão funcional, etc.). Não imaginamos nenhum pretexto para não levar em consideração os modelos de salários de eficiência e as pertinências de uma firma maximizadora de lucros administrar a taxa de rotatividade. Dada a sedimentada literatura em torno do pagamento de salários além dos pagos nos mercados concorrenciais como forma de maximizar lucros, o desafio fica a cargo dos que sustentam o diagnóstico. Ou seja, a não consideração da possibilidade de pagamentos de salários de eficiência teria que ser justificada.

Segundo o modelo canônico, quanto menor a disponibilidade de um fator, maior seu retorno ou rendimento (lembremos as condições de Inada). Ou seja, se as habilidades e competências são realmente escassas e constituem a principal restrição ao crescimento das firmas, seu retorno teria que ser elevado, abrindo espaço para o pagamento de salários de eficiência. Contudo, existe um outro fator que elevaria os custos, além da baixa produtividade, que também não está sendo levado em consideração. Se o diagnóstico segundo o qual o assalariado induz a rotatividade para ter acesso ao FGTS e demais benefícios (multa, aviso prévio, etc.), a relação de causalidade seria: desligamento → contratações. Ou seja, ceteris-paribus, ao provocar seu desligamento, o trabalhador induziria uma nova contratação que visaria sua substituição, o preenchimento da vaga aberta pela sua partida. Legalmente, o aviso prévio serviria tanto para o assalariado se concentrar nas atividades de procura (no caso de um desligamento sem justa causa de iniciativa do empregador) quanto para procurar e treinar um novo assalariado (no caso de um desligamento cuja origem seja uma iniciativa do assalariado). Contudo, na prática, esse intervalo de trinta dias não é respeitado e as relações têm uma ruptura abrupta. Nessas circunstâncias, o desligamento induzido pelo assalariado abriria uma vaga que deverá ser preenchida mediante uma nova contratação, que requer tempo de procura, tempo de treinamento, etc., custos que na literatura se conhece como “custos fixos”. Preencher os requisitos de trabalho de forma imediata pode requerer a utilização mais intensiva de outro assalariado. Nesse sentido, pode-se apelar a horas extras e/ou a um outro assalariado que anteriormente era subutilizado. Ou seja, sabendo-se da rotatividade, o estoque de mão-de-obra pode estar, na posição de equilíbrio, sobredimensionado. Em qualquer caso, estamos diante de elevações de custo (seja pela utilização temporária de horas extras seja por um estoque de mão-de-obra sobredimensionado) que vão além da falta de qualificação (produtividade) dos assalariados. Reduzir esses custos (via queda na rotatividade) também justificaria o pagamento de salários de eficiência.

Ou seja, não existem justificativas teóricas para assumir que a rotatividade está determinada, exclusivamente, pelo comportamento de um dos agentes (o assalariado). As firmas podem administrar a rotatividade e uma vez que o horizonte temporal do vínculo tem desdobramentos sobre os custos, existem elementos para afirmar que existe espaço para assumir que os empregadores poderiam pagar salários de eficiência. Assumir que não estão pagando salários de eficiência pode redundar em abraçar a hipótese de firmas não maximizadoras de lucro, hipótese cara ao modelo padrão.

Direcionemos, agora, nossas atenções ao assalariado. Assumamos que o mesmo tenha uma elevada taxa de desconto intertemporal, admitamos que o retorno financeiro do FGTS possa incorrer em perdas reais e não seja a melhor alternativa de aplicação, etc.. Dado esse contexto, podemos deduzir que é racional utilizar a rotatividade como forma de resgatar o saldo do FGTS e auferir os ganhos complementares (multa, aviso prévio, etc.)? Esse corolário não é necessariamente imediato. Se lembramos que a rotatividade redunda em custos para as firmas, no momento da contratação os empregadores avaliarão os sinais de empregos anteriores, a duração dos vínculos e privilegiarão aqueles candidatos com tempo de permanência mais elevado. Em outros termos, os trabalhadores com maiores índices de rotatividade terão menos probabilidade de preencher as vagas disponíveis. Se assumimos que os assalariados sejam conscientes dessas menores chances e sejam racionais, seria uma hipótese ousada abraçar a ideia que o FGTS e os benefícios a ele atrelados, necessariamente, se exteriorizarão em condutas especulativas que tendem a reduzir o horizonte temporal dos vínculos. A esse risco (menores probabilidades de emprego futuro no segmento formal do mercado) poderíamos agregar outros, como a risco de não ser contratado depois de esgotados os benefícios, por exemplo.

Em qualquer circunstância, ampliar a estabilidade dos vínculos tem benefícios para as partes e externalidade para a sociedade. Sobre esse aspecto existem mais consensos que debate (ver, por exemplo, aqui). Também existe certa unanimidade sobre o circunscrito horizonte temporal dos vínculos celetistas no Brasil, que escassamente ultrapassam os 4 anos (Fonte: RAIS). Ou seja, alongar o limiar dos vínculos deve ser um objetivo de política e formatar um ambiente institucional para facilitar essa ampliação deve necessariamente nortear os debates sobre as reformas legais que pautam a relação capital-trabalho. Contudo, focalizar as atenções, de forma quase excludente, em uma suposta estratégia especulativa curto-prazista dos assalariados para auferir os ganhos financeiros que outorgam o atual marco legal parece uma simplificação analítica pouco sofisticada. Essa interpretação levanta mais perguntas que disponibiliza respostas. Se as entidades empresariais identificam na qualidade da mão-de-obra o principal obstáculos para seu crescimento, por que não investem na sua formação? O horizonte temporal dos vínculos não viabiliza esses investimentos, por que não administram essa rotatividade? Elas têm formas de influenciar no tempo de permanência. Por que o diagnóstico vigente assume que só o assalariado reage aos incentivos? O que leva a assumir que as firmas são passivas, ficando na conduta especulativa do trabalhador o determinante da rotatividade?

Em realidade, o que no fundo deve ser debatido é a qualidade dos postos de trabalho. Mesmo no setor formal, o tempo médio de duração do vínculo no Brasil é a manifestação de uma economia que não é capaz de gerar vagas com elevada produtividade. Não parecem satisfatórios os diagnósticos que se empenham em identificar no FGTS e nos benefícios ao trabalhador desligado sem justa causa uma variável com capacidade de alterar esse quadro. Talvez a relação de causalidade seja outra: dado que os postos de trabalho não são de qualidade (elevada produtividade) as firmas são incapazes de pagar salários de eficiência, os assalariados identificam nas condutas especulativas ganhos que superam os benefícios que obteriam permanecendo na mesma vaga, etc.. Isso, logicamente, não significa que todo o arcabouço regulatório não deva ser repensado, mas as justificativas e o desenho proposto podem ser outros. Por exemplo, carece de racionalidade ter dois tipos de compensação financeira ao celetista desligado sem justa causa (FGTS + seguro-desemprego); o FGTS, ao elevar o custo do trabalho, tem impacto negativo sobre o emprego e ao continuar existindo, o assalariado teria que ter liberdade de aplicar sua poupança na alternativa financeira de sua escolha, etc….. Esses argumentos são válidos. Contudo, não existem elementos que permitam depositar esperanças nas alterações em debate no pagamento do FGTS como um atalho para elevar a proficiência dos trabalhadores via elevação dos investimentos em formação, sendo o corolário postos de trabalho de maior qualidade e produtividade. Os argumentos analíticos que sustentam essa ilusão são de uma assustadora simplicidade.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Educação, Distribuição e Incentivos – Novos e Inusitados Meandros

Novas pesquisas (que detalharemos mais na frente neste post) indicam curiosos e inesperados vínculos entre três dimensões ou variáveis já amplamente tratadas na literatura: educação, distribuição de renda e incentivos.

Iniciemos a nossa discussão com uma lembrança: a educação foi, desde os primórdios da economia como ciência (Smith), associada à produtividade, ao crescimento da renda dos indivíduos e das nações e vinculada a aspectos distributivos e de pobreza. Essa singularidade multifacetária da educação mereceu um particular tratamento na moderna Teoria do Capital Humano (Becker, Schultz, etc.), e hoje está relativamente bem sedimentada na literatura. Em realidade, esses atributos da educação surgem devido à mesma estar associada a um maior desenvolvimento da capacidade cognitiva, proficiências, habilidades, etc., dos indivíduos (ver, por exemplo, Hanushek (2008)). Em geral, o capital humano está associado, primordialmente, à escolaridade, tanto em termos quantitativos (anos de estudo) quanto qualitativos. Dessa forma, o ativo de um país em termos de formação, habilidades e proficiências de sua força de trabalho é corriqueiramente vinculado aos anos de estudo e, nas análises mais sofisticadas, essa dimensão quantitativa é corrigida por algum fator que incorpora a qualidade (Hanushek and Kimko (2000)). A partir dessa correspondência entre capital humano acumulado no sistema escolar e instâncias como crescimento, distribuição, pobreza, etc. gerou-se uma enorme polêmica sobre a relevância dos recursos alocados na educação (especialmente gastos públicos) nos resultados atingidos. Em um famosíssimo artigo (Hanushek (1986)), um dos mais conhecidos teóricos da economia da educação chega à conclusão que os gastos em educação não parecem guardar correlação robusta com o produto (“there appears to be no strong or systematic relationship between school expenditures and student performance”). Esta conclusão foi, obviamente, amplamente debatida na literatura, sendo contestada em outros artigos (“Do school inputs matter for the educational attainment of children? The answer is a resounding yes”, ver aquí). A eficiência e eficácia dos gastos dependeria tanto de como os mesmos são alocados (bibliotecas ou laboratórios ou salários dos professores) quanto da faixa etária da criança ou jovem privilegiado, sendo consensual hoje que os primeiros anos de vida são cruciais para determinar o futuro desenvolvimento cognitivo (ver aqui) e mesmo a trajetória na vida ativa do indivíduo (ver aqui).

Contudo, toda essa polêmica sobre a eficiência/eficácia do gasto, a alocação ótima do mesmo e a etapa da vida mais importante tem como eixo o sistema escolar. Em realidade, a capacidade cognitiva de um indivíduo, seu sistema de valores, sua maturidade sócio-emocional, sua autonomia, etc., todos fatores cruciais para sua futura produtividade, é uma mélange do incorporado no sistema escolar, do ambiente familiar, de seu entorno sócio-econômico, etc.. Essas distintas instâncias se superpõem e interagem. Um indivíduo criado em um ambiente familiar de elevado capital humano e com uma conseguinte renda elevada, frequentará estabelecimentos escolares de qualidade, os pais transmitirão capital humano, valores, prioridades, etc. complementando, também, as tarefas da escola/colégio. A criança/jovem interagirá com colegas oriundos de um contexto socioeconômico similar, conviverá com familiares, etc. e, em todos os casos, irá formando seu perfil de personalidade que não unicamente formatará sua vida particular senão também seu perfil profissional. Obviamente, a esse viés se agregam nexos de relações sociais e pessoais que também alimentam a estratificação e inércia da estrutura social. Em outros temos, as características individuais que determinarão a trajetória profissional futura de uma pessoa não podem ser creditadas, exclusivamente, ao estabelecimento escolar.

Essa interação entre diferentes dimensões (sistema escolar, família, amigos, etc.) que acabam desaguando na formação particular de cada indivíduo tem como corolário algumas singularidades bem inusitadas. Citemos uma delas que será a referência para colocações que realizaremos nos próximos parágrafos. Imaginemos que os pais de um núcleo familiar têm uma dada meta em termos de educação de seus rebentos. Nesse caso, a eficiência/eficácia e os recursos disponíveis no sistema educativo podem determinar o esforço ou dedicação que a família dedica à educação no lar. Uma elevação na eficiência/eficácia do estabelecimento escolar pode redundar em menores engajamentos ou, ao contrário, no contexto de uma deterioração no processo educativo, atingir a meta desejada pode induzir os pais a alocarem maiores horas na ajuda da criança/jovem a fim de complementar a formação e atingir um nível dado de habilidades. Ou seja, dado um objetivo em termos de educação, o esforço e tempo dedicado ao complementar à formação das crianças e jovens no seio da unidade familiar pode ser a variável de ajuste. Nesse contexto, os resultados nos sistemas de avaliação devem ser olhados com extremo cuidado. Por exemplo, maior alocação de recursos públicos no ensino pode não ter como corolário melhores indicadores, sugerindo, equivocadamente, falta de eficácia na sua aplicação. Contudo, esses maiores recursos podem ter como conseqüência menor dedicação da família nas tarefas de formação dos filhos e, nesse sentido, concluir que, dado que os indicadores de resultado não variaram, existe ineficiência na aplicação dos recursos, seria um erro.

Se transitamos desse nível micro (o indivíduo) para um nível mais macro (a distribuição), as inter-relações entre crescimento e concentração de renda foram território de duas grandes e conflitivas interpretações. A primeira, sustentava que uma renda concentrada permitiria fugir da armadilha da pobreza: países pobres não investem porque têm baixa poupança, alimentando um círculo vicioso. A concentração de renda abriria espaço para elevar a taxa de poupança (os ricos poupam, os pobres não), viabilizando o investimento e conseqüente crescimento. No longo prazo, o desenvolvimento acabaria beneficiando toda a população, inclusive os que, transitoriamente, tinham sido penalizados pela concentração. A frase atribuída a Delfim Neto na época do milagre (“primeiro crescer depois distribuir”), sintetizaria esta posição. A China pós-Mao seria um exemplo bem-sucedido desta hipótese. O dinamismo econômico desde os anos 80 do século passado retirou mais de 600 milhões de pessoas da pobreza em um reduzido tempo histórico (um quarto de século). Hoje menos de 3% da população vive abaixo da linha de pobreza.[1] Contudo, a China hoje é uma sociedade mais desigual que no período maoísta. No caso da maior desigualdade propiciar maior crescimento que acaba beneficiando os mais vulneráveis, essa maior concentração seria, para Rawls (1999), legítima. Lembremos que, no Princípio de Diferença de Rawls, as desigualdades de renda (e de poder) só se justificam se contribuem para melhorar o bem-estar dos mais desfavorecidos. Em outros termos: para Rawls a igualdade sempre será preferível, exceto quando a desigualdade acaba melhorando as condições de vida de todos, inclusive e preferencialmente dos mais pobres.

Além do efeito sobre a poupança, maior desigualdade geraria um sistema de incentivos capaz de tornar atrativos investimentos, recompensar esforços, elevar a eficiência na alocação de recursos, etc., fatores que redundariam em um maior dinamismo econômico. Ou seja, via incentivos, a concentração, indiretamente, acabaria beneficiando a todos e, nesse sentido, seria legítima na perspectiva de Rawls. Voltando à Teoria do Capital Humano, maiores retornos a investimentos em educação seriam a outra face de uma maior concentração dos rendimentos do trabalho. Quanto maiores os diferenciais de salários, segundo escolaridade, maiores seriam os incentivos à acumulação de capital humano (freqüência escolar), tendo desdobramentos sobre os rendimentos individuais em paralelo a uma dilatação das fronteiras de crescimento.

Logicamente, estes supostos benefícios de uma maior concentração sobre o crescimento e, no longo prazo, sobre a pobreza, têm um histórico de críticas na literatura (ver, por exemplo, aqui). Uma corrente interpretativa associa maior desigualdade a menor crescimento potencial, uma vez que a concentração de renda geraria sociedades com tal grau de instabilidade política que acabaria afetando os investimentos via elevação do risco (ver aqui).

Essas diferentes escolas de pensamento e o conseqüente debate são conhecidos e a polêmica está longe de esgotar-se. Contudo, dois autores (Matthias Doepe e Fabrizio Zilibotti) abriram ainda mais o leque de variáveis e correlações (ver aqui e aqui). Basicamente eles revelam a existência de uma robusta correlação entre desigualdade de renda, a dedicação que os pais dedicam à educação de seus filhos e o tipo de educação que proporcionam.

A primeira correlação encontrada diz que, quanto maior a desigualdade de renda de um país maior será o tempo, os esforços e a dedicação da família à formação dos filhos. Assim, China, Rússia e EUA, países com elevados parâmetros de desigualdade, apresentam, também, alto engajamento dos pais no “êxito” escolar de seus rebentos, uma vez que sabem que o fracasso pode representar uma perda importante na posição social (absoluta e relativa) futura. Contrariamente, em países com um desenvolvido Welfare-State e reduzida desigualdade, (os países Nórdicos, por exemplo) o envolvimento da família é muito menor, deixando as tarefas a cargo do Estado. O fracasso ou uma precária formação escolar não redundará em grandes privações materiais ou distanciamento com respeito à média.

A segunda correlação diz respeito ao tipo de formação procurada pelos pais. Em sociedades muito desiguais, a formação pretendida pela família tende a ser mais estreitamente vinculada ao mercado de trabalho ou a habilidades e proficiências com matching nos perfis requeridos nos empregos. O perfil educativo dado aos jovens tenderá a privilegiar aspectos como a disciplina, obediência, etc., particularmente valorados no mercado de trabalho. Nas sociedades com menores graus de desigualdade, as famílias favoreceriam uma formação que poderíamos definir como “mais humanista”, onde a liberdade dos alunos, o desenvolvimento da imaginação, da autonomia, do espírito crítico, etc. são valorizados.

Os autores ressaltam que estas associações (que se teriam aprofundado nas últimas décadas) tendem a alimentar um círculo vicioso que torna as estruturas sociais menos permeáveis à mobilidade e aprofundariam a polarização. Famílias com elevados agregados de capital humano (já hoje no topo da distribuição) teriam mais facilidades em complementar no lar a formação adquirida no sistema escolar. Por outra parte, um elevado grau de rendimentos abriria espaço para financiar formação complementar (aulas particulares, idiomas, etc.). O contrário sucederia na medida em que nos deslocamos aos estratos de famílias com menores acumulações de capital humano e rendimentos. Ou seja, em sociedades muito desiguais o engajamento das famílias na formação dos filhos seria maior e adquiriria um viés mais economicista (muito dirigido ao mercado de trabalho). Nesse contexto, a desigualdade tenderia a se perpetuar, com pouco espaço para a mobilidade. Contrariamente, em sociedades menos desiguais e com Estados de Bem-Estar generosos, a formação seria dada, primordialmente, pelo sistema escolar público, sendo o conteúdo dos currículos menos economicista. Neste caso, o perfil menos excludente da sociedade tenderia, também, a se perpetuar.

Contudo, há outro aspecto não explorado pelos autores. Na medida em que sociedades desiguais tendem a induzir maior participação dos pais na educação de seus filhos e direcionam o perfil de formação em direção a aspectos particularmente valorados pelo mercado (disciplina, conteúdos técnicos, controle sócio-emocional, etc.), o crescimento potencial pode estar sendo ampliado. Aqui voltaríamos a encontrar, por outros caminhos, uma correlação positiva entre desigualdade e crescimento, mas esta vez por meio do comprometimento das famílias na acumulação de capital humano das gerações que no futuro vão integrar a força de trabalho. Os objetivos familiares seriam tanto quantitativos quanto qualitativos (tipo de educação). O velho trade-off equidade-eficiência retornaria, ainda que as variáveis causais sejam outras.

Obviamente, mesmo assumindo que esses vínculos positivos entre desigualdade e quantidade e tipo do capital humano acumulado sejam confirmados em futuras pesquisas, não se pode deduzir de forma direta que o bem-estar das sociedades onde prevalecem a desigualdade e o elevado crescimento seja necessariamente maior. Uma educação na qual se privilegie a autonomia na formação das crianças/jovens sem absurdas pressões sobre os resultados (em termos de notas e competição) pode ser superior, em escalas de bem-estar, quando comparado a um sistema no qual a principal meta da freqüência escolar seja um perfil de habilidades exclusivamente direcionado ao mercado de trabalho, com todas as exigências em termos de disciplina, obediência e dedicação que tal contorno requer. Nesse sentido, a experiência observada nos países nórdicos, por exemplo, faz duvidar que, inexoravelmente, uma menor participação dos pais na formação dos filhos e um perfil educativo não exclusivamente pautado pelas exigências das oportunidades de emprego tenha, fatalmente, impactos negativos sobre a produtividade e o crescimento.

  1.  Fonte: Banco Mundial.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Domenico de Masi e a Sociedade Pós-Industrial

Em uma recente entrevista para o Estadão (ver aqui), na ocasião da publicação de mais um livro seu, o popular sociólogo Domenico de Masi sintetiza com peculiar nitidez uma corrente interpretativa notoriamente difundida e aceita. Essa escola define o atual período histórico como sendo pós-industrial (etapa na qual o setor predominante em termos de emprego, produto e dinamismo seriam os serviços) e vem acompanhado de um diagnóstico pessimista e de propostas de política. De forma muito sintética, esse diagnóstico identifica uma nova etapa histórica (pós-industrial) na qual os ganhos de produtividade seriam tão elevados que, na ausência de uma nova política pública, o desemprego e a desigualdade definiriam o novo ciclo. Essa nova política consistiria, basicamente, na redução do tempo de emprego (nas atividades mercantis) e, para um dado nível de PIB e uma dada produtividade, na distribuição das necessidades de trabalho de forma mais equitativa. Por outra parte, essa diminuição do tempo de emprego abriria espaço para tarefas criativas (mais ócio, lembremos que de Masi é popularmente conhecido como um teórico do denominado “ócio criativo”), elevando o bem-estar dos indivíduos, ainda que não necessariamente o PIB.

Essa perspectiva parece gozar de certo apelo popular e mesmo acadêmico (especialmente depois dos livros de Daniel Bell). Uma vez que a recente entrevista de de Masi, no Estadão, é uma boa representação dessa perspectiva, vamos avaliar a sua consistência teórica e a aderência com os dados contidos na mesma. Nos próximos parágrafos pretendemos mostrar que, tanto em um caso (analiticamente) quanto em outro (empiricamente), essa identificação de um novo ciclo histórico produtivamente dinâmico porém, pelo desemprego que gera, socialmente excludente, não se sustenta. Ao menos não se ampara em argumentos e dados usualmente expostos pelos seus teóricos.

De Masi afirma:

“Um desempregado trabalha mais do que um empregado. Porque para conseguir comer à noite deve fazer mil coisas para ter o mínimo de comida. O desempregado é o trabalhador mais intenso que existe. Ninguém trabalha como os desempregados, eles fazem os trabalhos que nós evitamos, carregam malas, são babás, lavam pratos”

Essa afirmação carece de qualquer consistência lógica: um desempregado que trabalha não é, por definição, desempregado. Segundo consenso metodológico na construção de estatísticas, a caracterização de um indivíduo como desempregado é a interseção de dois requisitos: não estar empregado e estar procurando emprego. Essa designação pode ou não ser mais elaborada e contar com outros requisitos, mas essencialmente essa é a premissa. Por exemplo, a definição de um limite de horas trabalhadas a partir do qual o indivíduo pode ser definido como ocupado. No caso do Brasil, a PNAD Contínua considera esse limite de uma hora de trabalho completa (remunerada ou não remunerada) na semana de referência. Também podemos sofisticar a quantificação da sub-utilização da força de trabalho segundo situações de desalento, desejo de trabalhar mais horas que as realmente realizadas, etc.. Em geral, seguindo recomendações internacionais, especialmente da OIT, os institutos nacionais de pesquisa (como o IBGE) acompanham essas alternativas metodológicas. Contudo, em nenhum caso se pode afirmar que os desempregados são os indivíduos que mais trabalham. Essa afirmação é um contra-senso. A principal atividade na qual um desempregado aberto está dedicado é a procura de emprego, que leva tempo, esforço e tem custos financeiros. Um ocupado pode estar insatisfeito com as tarefas realizadas ou se sentir sobre-qualificado para a vaga que está ocupando, não ser reconhecido, etc., mas em todos os casos não pode ser qualificado como um desempregado. Ou seja, a afirmação de de Masi não se sustenta.

Em outra parte da entrevista, o sociólogo afirma:

“Conseguimos produzir sempre mais, trabalhando sempre menos. Na Itália, em 1891, éramos 30 milhões e trabalhamos 70 milhões de horas. Em 2018, 61 milhões trabalharam 40 milhões de horas. E produzimos 20 vezes mais. Isso é o que em economia se chama jobless growth (crescimento sem trabalho)”

De Masi confunde. Isso não se chama “jobless growth”, isso se chama “productivity growth”. Se trabalhando quase 13% menos (em horas) os italianos produzem 20 vezes mais significa que a produtividade (por hora) cresceu 2.100% no período. Ele fala que esse aumento da produtividade foi gerado “…sobretudo a causa do desenvolvimento tecnológico”. Basicamente o argumento diz que o desenvolvimento tecnológico, ao propiciar ganhos de produtividade, não gera empregos. Nesse sentido, a sociedade pós-industrial seria singularizada pela predominância do trabalho intelectual como gerador de valor, sendo os ganhos de produtividade de tal ordem que seria utópico imaginar o pleno emprego nesse contexto.

Podemos identificar, nesse argumento, três fragilidades.

A primeira se nutre de pretender teorizar sobre uma quase tautologia. A produtividade é definida dividindo o PIB pelo número de trabalhadores ou as horas trabalhadas (PIB/L, sendo L=trabalho, medido em número de indivíduos ou horas trabalhadas). Assim, a variação da produtividade é a variação do PIB menos a variação do emprego. Quanto maior for a elevação da produtividade menor será a elasticidade PIB/emprego. Esse “resultado” é o corolário óbvio e incontornável de se trabalhar a partir de uma definição. Não existe a possibilidade de o aumento da produtividade não ser “jobless”. Se o aumento da produtividade não é “jobless” ou não estamos diante de um aumento ou o que estamos medindo não é produtividade. Isso na sociedade pós-industrial, na industrial ou na agrícola.

Em outros termos, a utilização de menos trabalho por unidade de produto não seria uma característica de nossas sociedades hoje (pós-industriais) e sim seria uma peculiaridade de qualquer sociedade que esteja elevando a sua produtividade. Nesse sentido, nos encontramos diante da segunda fragilidade: o dilema atual seria produto de uma sociedade incapaz de dar oportunidades de emprego a toda sua força de trabalho devido ao desenvolvimento tecnológico. Vamos retroagir no tempo. Mais precisamente quase dois séculos. Na terceira edição de Princípios de Economia Política e Tributação (1821), Ricardo agrega a seu livro um novo Capítulo (XXXI), intitulado Sobre a Maquinaria (On Machinery), no qual discorre sobre os efeitos da introdução de máquinas sobre o trabalho, chegando a sustentar (Ricardo):

 

“…but I am convinced, that the substitution of machinery for human labour, is often very injurious to the interests of the class of labourers………. All I wish to prove, is, that the discovery and use of machinery may be attended with a diminution of gross produce; and whenever that is the case, it will be injurious to the labouring class, as some of their number will be thrown out of employment, and population will become redundant, compared with the funds which are to employ it”

Nossa intenção não é polemizar sobre as afirmações de Ricardo, senão lembrar que a questão do desenvolvimento tecnológico, a substituição de trabalhadores por capital, etc. está presente desde os primórdios das sociedades modernas. O movimento ludista, da Inglaterra no século XIX, está aí para nos referenciar. Assim, associar um suposto excedente estrutural de trabalho (desempregados, que em realidade parece que são, segundo de Masi, os que mais trabalham) a uma hipotética tipicidade contemporânea própria de uma sociedade pós-industrial é uma afirmação sem qualquer aderência à história. O temor que o desenvolvimento tecnológico (a máquina, o computador, a inteligência artificial, etc.) substitua o trabalho humano e, ao elevar a produtividade, torne enormes contingentes de indivíduos em um descomunal exército de reserva é um temor recorrente, mas, como veremos nos próximos parágrafos, infundado, sem âncora em séries históricas ou nas trajetórias concretas dos países.

A terceira falta de correspondência entre as afirmações de de Masi e os dados está vinculada à suposta aceleração dos ganhos de produtividade como produto da globalização e do desenvolvimento tecnológico (“A causa da globalização é sobretudo a causa do progresso tecnológico, conseguimos produzir sempre mais, trabalhando sempre menos”). O aumento da produtividade, sempre segundo essa interpretação, teria se acelerado na nova etapa histórica (sociedade pós-industrial). Ocorre, porém, justamente o contrário. Os ganhos de produtividade são, hoje, inferiores aos prevalecentes na era de ouro da indústria e, nesse sentido, os dados são eloqüentes, consensuais e geram um outro tipo de debate. Nos anos 60, as variações da produtividade cresciam a taxas (hoje inacreditáveis) de 4%, com percentuais superiores nos “tigres” desses anos (como Alemanha e Japão, que chegaram a atingir 6/8%). Hoje a variação está no intervalo entre 0/2% (ver aqui) . Por que essa redução ? Justamente, a crescente participação do setor de serviços não estaria alheia a esse fenômeno (um retorno ao Modelo de Baumol ou a prova de sua pertinência). Ou seja, não obstante a proliferação de novas formas de organização do trabalho, da economia digital, a inteligência artificial, da rapidez nas comunicações, etc., a produtividade estaria longe de igualar os patamares atingidos no ciclo dourado da sociedade industrial. Está fora dos objetivos deste post refletir sobre a aparente contradição entre a revolução tecnológica em curso e a quase estagnação da produtividade, mas o certo é que a denominada sociedade pós-industrial não se caracteriza por elevações de produtividade de magnitude tal que gerariam um exército de reserva nunca visto antes na história da humanidade. O contrário, segundo diversos teóricos (ver, por exemplo, Gordon (2017)) o mundo estaria entrando em uma etapa de estagnação secular. No tocante ao nível de emprego, os dados assinalariam que os países desenvolvidos estariam vivendo uma situação próxima do pleno emprego, fato que levou a The Economist a titular um recente artigo: The rich world is enjoying an unprecedented jobs boom.

Mas vamos continuar avaliando esse argumento em termos de sua aderência com as estatísticas. Se a produtividade seria inimiga do emprego e geradora de um excedente estrutural de desocupados, ter-se-ia que observar uma estreita correlação entre aquelas economias que gozam de uma elevada produtividade e suas respectivas taxas de desemprego. Quais seriam os líderes hoje em termos de produtividade ? Alemanha, por exemplo, uma potência exportadora e com um superávit em conta corrente que chega a 8% do PIB. Sua taxa de desemprego ? 3,3%, pleno emprego. Suíça, outra potência mundial exportadora (superávit em conta corrente de pouco mais de 9% do PIB). Sua taxa de desemprego ? 2,6%, pleno emprego. Geralmente EUA é tido como a fronteira em termos de produtividade e desenvolvimento tecnológico. Sua taxa de desemprego ? 3,8%, pleno emprego. Poderíamos continuar com os exemplos. Quais são os países que apresentam as maiores taxas de desocupação? Grécia (20%), Espanha (16%), Itália (11%), etc., justamente economias com problemas estruturais de produtividade.[1] Ou seja, os dados induzem a pensar que, ao contrário da afirmação de de Masi, existe uma correlação positiva: maiores produtividades viabilizam menores taxas de desemprego.

Direcionemos agora a nossa atenção à solução proposta por de Masi: distribuir o tempo de emprego mediante a redução da jornada de trabalho. O raciocínio é extremamente simples (até pode ser qualificado como simplório). Suponhamos que um país produza 100 carros (esse seria seu PIB) com 10 assalariados que trabalham 8 horas. Ou seja, para produzir 100 carros, dada a produtividade, se precisaria de 80 horas. Assumamos que 6 pessoas estejam desempregadas. Nesse caso, se os 10 assalariados no lugar de trabalhar 8 horas trabalhassem 5 horas, viabilizariam o emprego da totalidade da força de trabalho (16 assalariados com uma jornada de 5 horas totalizariam as mesmas 80 horas). Ter-se-ia atingido o mesmo PIB com pleno emprego, menos horas de trabalho e mais tempo de lazer. Em princípio, essa relação linear imaginada por de Masi depende de diversas hipóteses (características da função de produção, a existência de custos fixos, etc.). Se assumimos que a produtividade individual possa variar em função das horas trabalhadas (por exemplo, a primeira hora de trabalho é mais produtiva que a oitava), a regra de três de de Masi não se sustenta. Contudo, uma vez que os resultados dependem de hipóteses (sobre a função de produção, custos fixos, etc.) o mais conveniente é ter como referência as avaliações que foram realizadas nas diversas tentativas de elevar o emprego por meio da redução do tempo de trabalho. Nesse sentido, a França é um bom espaço para realizar avaliações, uma vez que essa “política de emprego” foi ensaiada na França em diversas oportunidades (1936, 1981, 1998). Os resultados são diversos, com algumas pesquisas encontrando resultados favoráveis (ver aqui, por exemplo) e outras bem mais pessimistas (ver aqui). Contudo, essa política de redução das horas trabalhadas, como forma de gerar emprego, está sendo paulatinamente abandonada. Em geral, as variáveis que hoje são avaliadas para explicar porque países vivem em situação de pleno emprego (EUA, Suíça, Holanda, Alemanha, Japão, etc.) e outros convivem com um desemprego cronicamente elevado (Espanha, Grécia, Itália, etc.) não passam pelas horas de trabalho, mas concentram-se no crescimento do PIB, nas instituições que regulam as relações capital/trabalho, na formação/educação, nos custos de contratação e nos encargos trabalhistas, etc.. Assim, afirmar que “Os desocupados devem lutar pela redução de horário de trabalho. Não existe nenhuma outra solução para o desemprego” é uma alegação carente de referencial empírico e de uma absurda simplificação analítica.

Essas são, em geral, as duas singularidades que parecem definir o diagnóstico e as propostas de política de de Masi. Um discurso simplista, com apelo a um suposto “bom senso” e, por isso mesmo, de relativo apelo popular (uma auto-ajuda econômica-sociológica de cunho populista), frágil teoricamente e que esqueceu de combinar com os dados.

  1. / A fonte dos dados de desemprego é OCDE.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

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