Novas pesquisas (que detalharemos mais na frente neste post) indicam curiosos e inesperados vínculos entre três dimensões ou variáveis já amplamente tratadas na literatura: educação, distribuição de renda e incentivos.

Iniciemos a nossa discussão com uma lembrança: a educação foi, desde os primórdios da economia como ciência (Smith), associada à produtividade, ao crescimento da renda dos indivíduos e das nações e vinculada a aspectos distributivos e de pobreza. Essa singularidade multifacetária da educação mereceu um particular tratamento na moderna Teoria do Capital Humano (Becker, Schultz, etc.), e hoje está relativamente bem sedimentada na literatura. Em realidade, esses atributos da educação surgem devido à mesma estar associada a um maior desenvolvimento da capacidade cognitiva, proficiências, habilidades, etc., dos indivíduos (ver, por exemplo, Hanushek (2008)). Em geral, o capital humano está associado, primordialmente, à escolaridade, tanto em termos quantitativos (anos de estudo) quanto qualitativos. Dessa forma, o ativo de um país em termos de formação, habilidades e proficiências de sua força de trabalho é corriqueiramente vinculado aos anos de estudo e, nas análises mais sofisticadas, essa dimensão quantitativa é corrigida por algum fator que incorpora a qualidade (Hanushek and Kimko (2000)). A partir dessa correspondência entre capital humano acumulado no sistema escolar e instâncias como crescimento, distribuição, pobreza, etc. gerou-se uma enorme polêmica sobre a relevância dos recursos alocados na educação (especialmente gastos públicos) nos resultados atingidos. Em um famosíssimo artigo (Hanushek (1986)), um dos mais conhecidos teóricos da economia da educação chega à conclusão que os gastos em educação não parecem guardar correlação robusta com o produto (“there appears to be no strong or systematic relationship between school expenditures and student performance”). Esta conclusão foi, obviamente, amplamente debatida na literatura, sendo contestada em outros artigos (“Do school inputs matter for the educational attainment of children? The answer is a resounding yes”, ver aquí). A eficiência e eficácia dos gastos dependeria tanto de como os mesmos são alocados (bibliotecas ou laboratórios ou salários dos professores) quanto da faixa etária da criança ou jovem privilegiado, sendo consensual hoje que os primeiros anos de vida são cruciais para determinar o futuro desenvolvimento cognitivo (ver aqui) e mesmo a trajetória na vida ativa do indivíduo (ver aqui).

Contudo, toda essa polêmica sobre a eficiência/eficácia do gasto, a alocação ótima do mesmo e a etapa da vida mais importante tem como eixo o sistema escolar. Em realidade, a capacidade cognitiva de um indivíduo, seu sistema de valores, sua maturidade sócio-emocional, sua autonomia, etc., todos fatores cruciais para sua futura produtividade, é uma mélange do incorporado no sistema escolar, do ambiente familiar, de seu entorno sócio-econômico, etc.. Essas distintas instâncias se superpõem e interagem. Um indivíduo criado em um ambiente familiar de elevado capital humano e com uma conseguinte renda elevada, frequentará estabelecimentos escolares de qualidade, os pais transmitirão capital humano, valores, prioridades, etc. complementando, também, as tarefas da escola/colégio. A criança/jovem interagirá com colegas oriundos de um contexto socioeconômico similar, conviverá com familiares, etc. e, em todos os casos, irá formando seu perfil de personalidade que não unicamente formatará sua vida particular senão também seu perfil profissional. Obviamente, a esse viés se agregam nexos de relações sociais e pessoais que também alimentam a estratificação e inércia da estrutura social. Em outros temos, as características individuais que determinarão a trajetória profissional futura de uma pessoa não podem ser creditadas, exclusivamente, ao estabelecimento escolar.

Essa interação entre diferentes dimensões (sistema escolar, família, amigos, etc.) que acabam desaguando na formação particular de cada indivíduo tem como corolário algumas singularidades bem inusitadas. Citemos uma delas que será a referência para colocações que realizaremos nos próximos parágrafos. Imaginemos que os pais de um núcleo familiar têm uma dada meta em termos de educação de seus rebentos. Nesse caso, a eficiência/eficácia e os recursos disponíveis no sistema educativo podem determinar o esforço ou dedicação que a família dedica à educação no lar. Uma elevação na eficiência/eficácia do estabelecimento escolar pode redundar em menores engajamentos ou, ao contrário, no contexto de uma deterioração no processo educativo, atingir a meta desejada pode induzir os pais a alocarem maiores horas na ajuda da criança/jovem a fim de complementar a formação e atingir um nível dado de habilidades. Ou seja, dado um objetivo em termos de educação, o esforço e tempo dedicado ao complementar à formação das crianças e jovens no seio da unidade familiar pode ser a variável de ajuste. Nesse contexto, os resultados nos sistemas de avaliação devem ser olhados com extremo cuidado. Por exemplo, maior alocação de recursos públicos no ensino pode não ter como corolário melhores indicadores, sugerindo, equivocadamente, falta de eficácia na sua aplicação. Contudo, esses maiores recursos podem ter como conseqüência menor dedicação da família nas tarefas de formação dos filhos e, nesse sentido, concluir que, dado que os indicadores de resultado não variaram, existe ineficiência na aplicação dos recursos, seria um erro.

Se transitamos desse nível micro (o indivíduo) para um nível mais macro (a distribuição), as inter-relações entre crescimento e concentração de renda foram território de duas grandes e conflitivas interpretações. A primeira, sustentava que uma renda concentrada permitiria fugir da armadilha da pobreza: países pobres não investem porque têm baixa poupança, alimentando um círculo vicioso. A concentração de renda abriria espaço para elevar a taxa de poupança (os ricos poupam, os pobres não), viabilizando o investimento e conseqüente crescimento. No longo prazo, o desenvolvimento acabaria beneficiando toda a população, inclusive os que, transitoriamente, tinham sido penalizados pela concentração. A frase atribuída a Delfim Neto na época do milagre (“primeiro crescer depois distribuir”), sintetizaria esta posição. A China pós-Mao seria um exemplo bem-sucedido desta hipótese. O dinamismo econômico desde os anos 80 do século passado retirou mais de 600 milhões de pessoas da pobreza em um reduzido tempo histórico (um quarto de século). Hoje menos de 3% da população vive abaixo da linha de pobreza.[1] Contudo, a China hoje é uma sociedade mais desigual que no período maoísta. No caso da maior desigualdade propiciar maior crescimento que acaba beneficiando os mais vulneráveis, essa maior concentração seria, para Rawls (1999), legítima. Lembremos que, no Princípio de Diferença de Rawls, as desigualdades de renda (e de poder) só se justificam se contribuem para melhorar o bem-estar dos mais desfavorecidos. Em outros termos: para Rawls a igualdade sempre será preferível, exceto quando a desigualdade acaba melhorando as condições de vida de todos, inclusive e preferencialmente dos mais pobres.

Além do efeito sobre a poupança, maior desigualdade geraria um sistema de incentivos capaz de tornar atrativos investimentos, recompensar esforços, elevar a eficiência na alocação de recursos, etc., fatores que redundariam em um maior dinamismo econômico. Ou seja, via incentivos, a concentração, indiretamente, acabaria beneficiando a todos e, nesse sentido, seria legítima na perspectiva de Rawls. Voltando à Teoria do Capital Humano, maiores retornos a investimentos em educação seriam a outra face de uma maior concentração dos rendimentos do trabalho. Quanto maiores os diferenciais de salários, segundo escolaridade, maiores seriam os incentivos à acumulação de capital humano (freqüência escolar), tendo desdobramentos sobre os rendimentos individuais em paralelo a uma dilatação das fronteiras de crescimento.

Logicamente, estes supostos benefícios de uma maior concentração sobre o crescimento e, no longo prazo, sobre a pobreza, têm um histórico de críticas na literatura (ver, por exemplo, aqui). Uma corrente interpretativa associa maior desigualdade a menor crescimento potencial, uma vez que a concentração de renda geraria sociedades com tal grau de instabilidade política que acabaria afetando os investimentos via elevação do risco (ver aqui).

Essas diferentes escolas de pensamento e o conseqüente debate são conhecidos e a polêmica está longe de esgotar-se. Contudo, dois autores (Matthias Doepe e Fabrizio Zilibotti) abriram ainda mais o leque de variáveis e correlações (ver aqui e aqui). Basicamente eles revelam a existência de uma robusta correlação entre desigualdade de renda, a dedicação que os pais dedicam à educação de seus filhos e o tipo de educação que proporcionam.

A primeira correlação encontrada diz que, quanto maior a desigualdade de renda de um país maior será o tempo, os esforços e a dedicação da família à formação dos filhos. Assim, China, Rússia e EUA, países com elevados parâmetros de desigualdade, apresentam, também, alto engajamento dos pais no “êxito” escolar de seus rebentos, uma vez que sabem que o fracasso pode representar uma perda importante na posição social (absoluta e relativa) futura. Contrariamente, em países com um desenvolvido Welfare-State e reduzida desigualdade, (os países Nórdicos, por exemplo) o envolvimento da família é muito menor, deixando as tarefas a cargo do Estado. O fracasso ou uma precária formação escolar não redundará em grandes privações materiais ou distanciamento com respeito à média.

A segunda correlação diz respeito ao tipo de formação procurada pelos pais. Em sociedades muito desiguais, a formação pretendida pela família tende a ser mais estreitamente vinculada ao mercado de trabalho ou a habilidades e proficiências com matching nos perfis requeridos nos empregos. O perfil educativo dado aos jovens tenderá a privilegiar aspectos como a disciplina, obediência, etc., particularmente valorados no mercado de trabalho. Nas sociedades com menores graus de desigualdade, as famílias favoreceriam uma formação que poderíamos definir como “mais humanista”, onde a liberdade dos alunos, o desenvolvimento da imaginação, da autonomia, do espírito crítico, etc. são valorizados.

Os autores ressaltam que estas associações (que se teriam aprofundado nas últimas décadas) tendem a alimentar um círculo vicioso que torna as estruturas sociais menos permeáveis à mobilidade e aprofundariam a polarização. Famílias com elevados agregados de capital humano (já hoje no topo da distribuição) teriam mais facilidades em complementar no lar a formação adquirida no sistema escolar. Por outra parte, um elevado grau de rendimentos abriria espaço para financiar formação complementar (aulas particulares, idiomas, etc.). O contrário sucederia na medida em que nos deslocamos aos estratos de famílias com menores acumulações de capital humano e rendimentos. Ou seja, em sociedades muito desiguais o engajamento das famílias na formação dos filhos seria maior e adquiriria um viés mais economicista (muito dirigido ao mercado de trabalho). Nesse contexto, a desigualdade tenderia a se perpetuar, com pouco espaço para a mobilidade. Contrariamente, em sociedades menos desiguais e com Estados de Bem-Estar generosos, a formação seria dada, primordialmente, pelo sistema escolar público, sendo o conteúdo dos currículos menos economicista. Neste caso, o perfil menos excludente da sociedade tenderia, também, a se perpetuar.

Contudo, há outro aspecto não explorado pelos autores. Na medida em que sociedades desiguais tendem a induzir maior participação dos pais na educação de seus filhos e direcionam o perfil de formação em direção a aspectos particularmente valorados pelo mercado (disciplina, conteúdos técnicos, controle sócio-emocional, etc.), o crescimento potencial pode estar sendo ampliado. Aqui voltaríamos a encontrar, por outros caminhos, uma correlação positiva entre desigualdade e crescimento, mas esta vez por meio do comprometimento das famílias na acumulação de capital humano das gerações que no futuro vão integrar a força de trabalho. Os objetivos familiares seriam tanto quantitativos quanto qualitativos (tipo de educação). O velho trade-off equidade-eficiência retornaria, ainda que as variáveis causais sejam outras.

Obviamente, mesmo assumindo que esses vínculos positivos entre desigualdade e quantidade e tipo do capital humano acumulado sejam confirmados em futuras pesquisas, não se pode deduzir de forma direta que o bem-estar das sociedades onde prevalecem a desigualdade e o elevado crescimento seja necessariamente maior. Uma educação na qual se privilegie a autonomia na formação das crianças/jovens sem absurdas pressões sobre os resultados (em termos de notas e competição) pode ser superior, em escalas de bem-estar, quando comparado a um sistema no qual a principal meta da freqüência escolar seja um perfil de habilidades exclusivamente direcionado ao mercado de trabalho, com todas as exigências em termos de disciplina, obediência e dedicação que tal contorno requer. Nesse sentido, a experiência observada nos países nórdicos, por exemplo, faz duvidar que, inexoravelmente, uma menor participação dos pais na formação dos filhos e um perfil educativo não exclusivamente pautado pelas exigências das oportunidades de emprego tenha, fatalmente, impactos negativos sobre a produtividade e o crescimento.

  1.  Fonte: Banco Mundial.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.