Em post anterior, falamos sobre as mudanças impostas pelas transformações tecnológicas ao mercado de trabalho, impulsionando a demanda por trabalhadores mais qualificados e a redução do emprego em funções que podem ser automatizadas. Por outro lado, naquele momento não abordamos as possíveis consequência para os trabalhadores menos qualificados.

Em um primeiro momento, muitos diriam que a automação levaria a uma substituição quase imediata de trabalhadores que exercem funções de baixa complexidade. No entanto, a experiência recente tem mostrado que as transformações no emprego diante do uso de tecnologias são ainda mais complexas do que isso. Se, por um lado, o avanço tecnológico tem contribuído para o aumento da ocupação em funções que exigem trabalhadores cada vez mais habilidosos, por outro, observa-se que, simultaneamente, tem aumentado a participação do emprego em atividades que exigem baixa habilidade (que geralmente envolvem habilidades manuais e não podem ser executadas por máquinas). Esse fenômeno tem sido chamado de polarização do mercado de trabalho.

Estudos para economias mais desenvolvidas como Estados Unidos[1] e Reino Unido[2] verificaram um aumento do emprego em profissões que compreendem tarefas de menor habilidade (associadas à execução de tarefas menos complexas) desde os anos 1980.  Em outras palavras, esses países apresentam um fenômeno de polarização do emprego em que tanto as atividades de baixa complexidade quanto as de alta complexidade cresceram em participação no emprego total nos últimos anos.

O gráfico abaixo ilustra o fenômeno de polarização identificado para os Estados Unidos e apresenta evidências preliminares de que algo similar tem ocorrido no mercado de trabalho brasileiro. Os dados mostram a variação (em pontos percentuais – p.p.) na participação no emprego total de cada percentil de salário para os dois países, com base em dados de pesquisas censitárias. A hipótese central é de que o percentil de salário capta não apenas a remuneração pelo nível educacional como também a valoração do grau de complexidade das tarefas desempenhadas pelos empregados em uma determinada função[3].

A figura deixa claro que há um aumento no emprego nos dois extremos de grau de habilidade das ocupações no Brasil entre 2000 e 2010. Assim, são registradas variações positivas na participação das ocupações de menor nível de habilidade (classificadas até o 13º percentil) e das ocupações de maior nível de habilidade (acima do 55º percentil) no emprego total, enquanto as ocupações classificadas entre os percentis 14º e 54º registraram uma variação negativa. Mais ainda, a sobreposição da curva calculada para os Estados Unidos por Autor e Dorn (2013) enfatiza a similaridade entre os casos brasileiro e americano. Embora as curvas tratem de períodos distintos, o fenômeno em si é o mesmo: a ocupação caiu primordialmente em ocupações consideradas de média habilidade nos dois países.

GRÁFICO – Variação do emprego por percentil de salário (Em p.p.)*

Fonte: Censo/IBGE e Autor e Dorn (2013). Cálculos da autora.

Mas, afinal, quais são essas ocupações de baixa e de alta habilidade que lideram o fenômeno da polarização? Basicamente, o aumento da demanda por trabalhadores altamente habilidosos vem ocorrendo em ocupações associadas ao manuseio de tecnologias de ponta, como programadores, engenheiros e cientistas da computação. Por outro lado, o aumento do emprego de baixa habilidade ocorre, primordialmente, entre ocupações associadas a serviços, tais como atendentes, pedreiros, cabelereiros, cuidadores, motoristas, entres outras ocupações ligadas a prestação de serviços pessoais, cuja função ainda não pode ser facilmente substituída por máquinas, embora demandem baixa qualificação do trabalhador.

Nesse sentido, ao que tudo indica, o setor de serviços, mais uma vez, tem uma papel decisivo na definição da estrutura produtiva e, em particular, do padrão de emprego.

Sobre isso, o próximo gráfico desagrega os dados por setor de atividade, permitindo identificar como a variação do emprego na indústria de transformação, na agropecuária e no setor de comércio e serviços contribuiu para o processo de polarização estimado anteriormente. Ao se observar as ocupações de menor habilidade (até o 15º percentil) e as ocupações classificadas acima do 85º percentil, o setor de comércio e serviços é o principal responsável pela expansão do emprego nesses grupos de ocupações. Em outras palavras, mais uma vez evidencia-se a alta heterogeneidade dos serviços: neste caso, vemos a capacidade de esse setor ser capaz de alterar a dinâmica do emprego nos dois extremos de grau de habilidade demandados dos trabalhadores.

GRÁFICO – Decomposição da variação do emprego por atividade econômica entre 2000 e 2010* (Em p.p.)

Fonte: Censo/IBGE. Cálculos da autora.

Diante desse cenário, o setor de serviços aparenta ser o ponto crítico para explicar a polarização. Enquanto a indústria e a agropecuária perderam espaço na economia nas últimas décadas, os serviços se expandiram tanto em atividades que demandam mão de obra de baixa qualificação (como serviços pessoais), quanto em atividades que contratam empregados altamente qualificados (como os serviços empresariais associados ao desenvolvimento de tecnologias e soluções para empresas).

A compreensão desse fenômeno e, especialmente, da alocação de trabalhadores mais qualificados nesse contexto representa um aspecto relevante para o debate sobre as mudanças tecnológicas e seu impacto sobre o mercado de trabalho no futuro.

*Notas metodológicas sobre a elaboração dos gráficos:

  1. As ocupações foram ordenadas pelo log do salário médio em 2000. Foram excluídas observações de pessoas que reportaram renda do trabalho principal inferior a R$ 200.
  2. Para os dados americanos, Autor e Dorn (2013) ordenaram as profissões com base no log do salário médio de 1980. Além disso, os autores excluem ocupações associadas ao setor agropecuário.
  3. A estimação do gráfico baseou-se na mudança suavizada no emprego para cada período, utilizando regressão local ponderada, seguindo a mesma estratégia utilizada para o cálculo da curva de polarização americana de Autor e Dorn (2013).

Para mais detalhes sobre a metodologia, ver o texto original sobre o tema publicado em Machado (2017).[4]

Referências

[1] AUTOR, D.; KATZ, L.; KEARNEY, M. The polarization of the U.S. Labor Market. The American Economic Review, v. 96, n. 2, p. 189-194, 2006.

[2]GOOS, M.; MANNING, A.; SALOMONS, A. Job polarization in Europe. The American Economic Review, v. 99, n. 2, p. 58-63, 2009.

[3]A estratégia para a construção dos gráficos de polarização é similar à adotada por Autor e Dorn (2013) em AUTOR, D.; DORN, D. The growth of low-skill service jobs and the polarization of the US Labor Market. American Economic Review, v. 103, n. 5, p. 1553-1597, 2013.

[4]MACHADO, A. Existe polarização no mercado de trabalho brasileiro? RADAR: Tecnologia, Produção e Comércio Exterior, v. 53, p. 13-17, 2017.