Depois de trinta anos de relativa hegemonia e de fim da história, as noções implícitas do contrato social da democracia liberal estão sendo colocadas em cheque. O aumento da desigualdade e a estagnação das classes médias nos países desenvolvidos em tal período, notadamente nos Estados Unidos, levaram a um movimento anti-globalização e anti-establishment que mudou o centro de gravidade político em uma direção contrária aos preceitos de livre-comércio, igualdade de oportunidades, e rule of law.

Daniel Markowitz, em recente livro sobre The Meritocraty Trap: How America’s Foundational Myth Feeds Inequality, Dismantles the Middle Class, and Devours the Elite (2019), argumenta que o modelo mental compartilhado de meritocracia enraizado na cultura americana – sintetizado no “American dream” e que tem como base a recompensa pelo esforço individual – é essencialmente uma falsa promessa. A suposta meritocracia tornou-se exatamente seu paradoxo. Um mecanismo de concentração e reprodução temporal do status quo via diferenças exorbitantes de investimento em capital humano, capital social (social networking), e conexões privilegiadas feitas nos períodos iniciais de formação.

O próprio neologismo “meritocracia” foi criado de forma satírica por Michael Young, em The Rise of the Meritocracy (1958), para retratar um mundo distópico onde reinaria uma elite baseada na superioridade do seu Q.I. Curiosamente, o conceito específico de American dream como ethos nacional supostamente baseado na meritocracia só foi moldado na profundeza e tardar da Grande Depressão americana por James Truslow Adams, em The Epic of America (1931), como uma reinterpretação folclórica alusiva a declaração de independência.

Seja como for, a centralidade do capital humano como perpetuador e catalizador de desigualdades ao longo do tempo, especialmente em períodos de grande crescimento, é notória. No Brasil, o pioneiro estudo de decomposição econométrica das causas do aumento da desigualdade no período do milagre econômico de Carlos Langoni, Distribuição de Renda e Desenvolvimento Econômico do Brasil (1973), antecipou talvez um movimento similar nos países desenvolvidos causado pela globalização e crescimento mundial sem precedentes, especialmente puxados pela China e Índia.

Langoni iniciou a chamada controvérsia sobre a desigualdade de renda no Brasil. Segundo Langoni, a mudança estrutural de uma economia primário-exportadora para uma economia industrial teve grandes efeitos concentradores de renda pelo aumento de demanda e, consequentemente retorno, de capital humano no mercado de trabalho. A variação de oferta de capital humano foi largamente defasada pelo crescimento de sua demanda. Esse fenômeno poderia ser ilustrado pela parte ascendente da curva de desigualdade com forma de U invertido de Simon Kuznets (1955) – o efeito Kuznets. De outro lado, Albert Fishlow, Edmar Bacha, Lance Taylor, Rodolfo Hoffmann e João Carlos Duarte concentraram-se nos efeitos regressivos de diminuição real do salário médio (via subestimação proposital da inflação esperada) e da massa salarial sobre a distribuição funcional da renda no período – a compressão salarial.

A centralidade do capital humano para as mudanças seculares de distribuição de renda parece ser uma das grandes causas do aumento da desigualdade de renda nos países desenvolvidos e nos Estados Unidos em particular, como argumentam Kevin M. Murphy e Robert H. Topel (2016). Segundo Murphy e Topel, o crescimento da desigualdade americana pode ser atribuída especialmente na falha da oferta de capacidades e habilidades em acompanhar o choque de demanda manifestada em um crescimento inclinado em tecnologia. Os retornos de educação superior aumentaram de forma vertiginosa a partir dos anos 1970s. Tomando o ano de 1979 como base, os retornos de graduação e pós-graduação aumentaram na casa de 200% cada.

Como demonstram os gráficos IA, IB e II de Murphy e Topel (abaixo), o aumento da desigualdade no mercado de trabalho é notadamente devido ao grande crescimento dos salários semanais dos percentis 90 e 95, tanto de homens como de mulheres. O crescimento dos salários de homens e mulheres foram tanto maiores quanto mais alto o seu respectivo percentil na distribuição de renda. Isso, ademais, desencadeou um efeito-renda maior do que um efeito-substituição levando a um aumento de horas médias trabalhadas quanto mais alto o percentil na distribuição, tanto para homens quanto para mulheres – e vice versa para os percentis mais baixos da distribuição. A análise sugere um papel central do capital humano nos movimentos seculares de distribuição de renda e crescimento inclusivo ou não.

Figuras 1A e 1B – Salário semanal médio por percentil para homens (A) e mulheres (B) – 1962 a 2012 em USD de 2012

Figura 2 – Crescimento do salário semanal (em log) por percentil da distribuição salarial de 1970-72 a 2010-2012

Essa narrativa é consistente com o famoso elephant chart de Branko Milanovic, que expõe o enorme ganho de renda real e convergência global de distribuição de renda decorrente da globalização. Decompondo os ganhos de renda real em cada percentil da distribuição de renda global, temos que os maiores vencedores da globalização e liberalização dos mercados foram os pobres e a classe média global (percentis 10 a 65) juntamente com os donos do capital (não só físico mas também humano) que tiveram maiores retornos por tal fator escasso.

Com o crescimento nos países desenvolvidos sendo voltado a maiores retornos ao capital humano (e físico aplicados nos países emergentes), os detentores desse capital – os 5% mais ricos da distribuição global – também auferiram grandes ganhos com a globalização. Já a classe baixa e média dos países desenvolvidos, que são expressos como a classe rica em termos mundiais (percentis entre 65 e 95 da distribuição global), foram os que menos ganharam com tal fenômeno. Tais classes são essencialmente compostas de trabalhadores urbanos e industriais com pouco grau de escolarização, grupos que sofreram com a competição externa da entrada massiva de trabalhadores pouco qualificados dos países emergentes.

Figura 3 – Mudança na renda real entre 1988 e 2008 por percentil da distribuição de renda global (calculada em USD internacionais de 2005)

Fonte: Milanovic (2016)

A mudança de preços relativos causados pela globalização e pelo desenvolvimento tecnológico, levando a um aumento do retorno do capital, tem grandes implicações para políticas públicas e medidas de combate à desigualdade. O tema também se faz presente nas discussões atuais de inteligência artificial e as grandes incertezas causadas pelo efeito líquido de complementariedade ou substituição do trabalho humano. Daron Acemoglu, por exemplo, argumenta que a inteligência artificial deve ser entendida como uma plataforma de interação e criação de novos empregos, indústrias e ocupações tendo como base a formação antecipada de capital humano e habilidades que garantam a complementariedade das tecnologias com o trabalho humano (e.g., ver aqui, aqui e aqui).

A importância de políticas de capital humano que estimulem a complementariedade de trabalho humano e tecnologia pari passu os efeitos do capital humano sobre a distribuição de renda e a desigualdade, onde o crescimento é puxado por inovações tecnológicas e integração dos mercados, parece ser um tema fundamental para manter a coesão e o contrato social necessários a democracia liberal. A corrida do homem e a máquina, como coloca Acemoglu (2018), deve ser moldada por instituições e políticas apropriadas (especialmente no âmbito da educação e capacitação) ao maior bem-estar social. O mesmo parece ser válido para os efeitos deletérios sobre a desigualdade e as fundações da democracia liberal.

Nesse contexto, é pertinente transpor a discussão para o âmbito local do Brasil. Se a democratização do capital humano de ensino superior parece ser uma das causas fundamentais de equidade e horizontalidade social, poder-se-á dizer que a recente expansão desse ensino público no Brasil nas últimas duas décadas terá efeitos seculares na desigualdade de renda. Exatamente o contrário do ocorrido na sociedade americana nos últimos quarenta anos, pode-se argumentar.

Entretanto, essa transposição lógica nos parece ilegítima em sua maior parte. A queda recente da desigualdade de renda no Brasil é devida majoritariamente ao crescimento proporcionalmente maior dos salários dos percentis mais baixos da distribuição de renda (cf. aqui e aqui). Notadamente, a incorporação de grande massa de trabalho no setor de serviços, trabalho intensivo de baixa qualificação, parece ser a causa desse crescimento proporcionalmente maior – um fenômeno associado a formalização do mercado de trabalho. Algo que parece já estar retroagindo com a reversão da formalização e do desemprego no mercado de trabalho. A discussão do papel do capital humano e seus efeitos de complementariedade e substituição na desigualdade dos países desenvolvidos não parece ser diretamente aplicável sem qualificações no Brasil pois a onda recente de crescimento do país não esteve associada a integração global de mercados e nem foi tecnologicamente derivada.

Autor:

Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e é mestrando em Economia pela Universidade de Brasília (UnB).