Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Bernardo Mueller

O Fim do Mundo como o Conhecemos?

Vivemos em tempos sombrios. Pelo menos é isto que se é levado a crer pelo zeitgeist atual, conforme refletido em uma série de livros, artigos, blog posts, podcasts e outros meios de expressão. Aparentemente, algumas das realizações e expressões mais estimadas da humanidade (ocidental) estão a perigo ou efetivamente mortas. O caso mais saliente é a democracia. Há tantos livros sobre a morte da democracia, que a resenha no Washignton Post sobre o livro How Democracies Die por Steven Levitsky e Daniel Ziblat (2018) o classifica como sendo: “The best death-of-democracy book I read in 2018.” O tema também tem feito aparições assíduas em podcasts recentes, como o episódio The Death of Democracy no podcast Start the Week da BBC4, ou então o episódio Is Democracy Dead? no podcast Please Explain. Variações em torno do tema anunciam a morte do discurso político civilizado (Washignton Post), e o fim do consenso (The Guardian).

Da mesma forma, tem-se ouvido muito a respeito da morte do liberalismo, entendido como a situação onde uma maioria pode de facto e de jure violar os direitos de minorias, mas opta por não fazê-lo. A chegada recente ao poder de uma série de líderes populistas e autoritários, mesmo em países onde este tipo de coisa não costumava acontecer, seria evidência do fim da ordem liberal mundial. Vide, por exemplo, o artigo Liberal World Order R.I.P. Segundo um debate recente na London School of Economics com o título Crisis of the Liberal World Order, or is the West in Decline?, estaríamos vendo o declínio do senso compartilhado de sucesso, dentro de países e entre grupos de países. É este senso compartilhado de sucesso que garantia o mínimo de terreno comum para que se pudesse resolver ou atenuar conflitos e permitir a continuada geração de prosperidade. Segundo trabalho recente de Dani Rodrik há uma diferença crucial entre democracias eleitorais, que escolhem seus líderes através de eleições, e democracias liberais, que asseguram igualdade perante a lei para minorias. E pelo que se lê e ouve recentemente teremos cada vez mais eleições, mas cada vez menos igualdade e respeito aos direitos de minorias raciais, religiosas, de gênero, de classe, de origem geográfica, etc.

Há alguns anos atrás já havíamos sido informados por Larry Summers que vivemos em uma Estagnação Secular, e por Tyler Cowen que já colhemos os frutos mais baixos e estamos fadados a passar por uma Grande Estagnação. Isto quer dizer que não devemos esperar, como no passado, que crescimento econômico eventualmente retorne e resolva todos os problemas. A expectativa que cada geração terá uma qualidade de vida melhor que a anterior, supostamente não vale mais. Produtividade segue enigmaticamente em queda contínua, apesar de todo avanço tecnológico que parece estar à nossa volta, um fenômeno cunhado de Paradoxo da Produtividade por Robert Solow. E se você acha que pesquisa e inovação vai virar o jogo, pense novamente: a taxa global de inovação já vem arrefecendo a algum tempo. E se você tem esperança que globalização e maior interação entre os países possa ser a solução, a revista The Economist recentemente trouxe uma capa sobre Slowbalization, a morte da globalização.

Anuncia-se também a morte do sonho de um mundo menos desigual, a medida que aumenta o fosso entre os mais ricos e os mais pobres em diversos países do mundo, conforme documentado por Thomas Piketty. Isto, por sua vez, está relacionado com a morte da classe média: a NPR (Radio Nacional Pública dos EUA) noticiou em 2016 que pela primeira vez desde 1970 a classe média não era o principal estrato populacional nos EUA. Isto, por sua vez, vem acompanhado da morte do emprego fixo (the end of work) e carreiras imersas na incerteza da gig economy.

Uma vez que se começa a prestar atenção, passa-se a encontrar cada vez mais notícias da morte de algo que antes parecia eterno, incluindo algumas coisas que supostamente já morreram há algum tempo, como o fim das religiões, o fim do futebol arte, e, como nos avisou The Who lá atrás em 1972, a morte do rock’n roll (dê uma olhada no The Hot 100 da Billboard e veja quantos grupos de rock você consegue encontrar. Reposta: nenhum! Experimente comparar com o Hot 100 de qualquer semana quinze anos ou mais atrás.) Já se anunciou até que estamos vivendo em uma era pós-verdade e não podemos acreditar em que nos dizem. Caso eu tenha omitido a morte de alguma realização humana importante, peço que os leitores incluam nos comentários.

Tudo isto é muito alarmante e desestabilizante. Mas, como afirmou Mark Twain: “The rumours of my death have been greatly exaggerated.” Basta pensar bem sobre qualquer um destes casos e provavelmente a tranquilidade se reestabelece. Não é de hoje que ‘a morte de X’ vem sendo anunciada, e no mais das vezes o futuro se recusa a cooperar. A figura de profetas vestindo um cartaz “O Fim é Eminente” (The End is Nigh) é um estereótipo, mas vários cultos autênticos já passaram pelo vexame de chamar a atenção do mundo para o dia do juízo final, e depois ter que explicar por que a profecia falhou. O termo ‘dissonância cognitiva’ foi criado por Leon Festinger da New School for Social Research, justamente para retratar a insistência de membros de tais grupos em continuar acreditando, apesar das reiteradas evidências em contrário (vide o livro When Prophecies Fail). Um exemplo acadêmico dos riscos de se profetizar ‘o fim de X’ é o best-seller de Francis Fukuyama The End of History de 1992, onde sugeriu que com a queda do Muro de Berlim, a última alternativa ao liberalismo havia morrido e com isto o mundo entraria em uma nova e última fase onde veríamos o triunfo do Ocidente. Outro exemplo é a previsão Marxista de que o capitalismo continha dentro de si sua própria destruição, que levaria necessariamente ao socialismo.

É interessante que previsões alarmantes e pessimistas parecem atrair muito mais atenção do que analises otimistas e baseadas mais rigorosamente em evidências que mostram o quanto as coisas tem melhorado ao longo do tempo, como o livro The Better Angels of Our Nature: Why Violence has Declined, de Steven Pinker (2011) e o trabalho de Hans Rosling com seu projeto Gapminder que visa disseminar o uso intensivo de estatísticas para melhor se compreender o mundo.

Então, não há motivos para pânico e podemos dormir tranquilos.

Mas será que realmente podemos? Recentemente tenho visto em diferentes lugares uma nova previsão que me parece um pouco mais preocupante do que as outras: o fim da competição, e com isto o fim do capitalismo como o conhecemos. O que mais me chamou a atenção foram as fontes que têm feito este alerta, pois são fontes explicitamente liberais, pro-mercado e não afeitas a sensacionalismo ou teorias de conspiração. A primeira foi um special report na The Economist com o título The Age of Giants, no qual alertam que um grupo de empresas têm se tornado excessivamente poderosas e que governos e antitruste tradicional estão cada vez mais incapazes de regulá-las ou impedir as consequências nefastas que sua atuação vêm cada vez mais trazendo à luz. As pessoas costumam colocar a culpa do estado das coisas em banqueiros, políticos, especialistas, burocratas, estrangeiros, na China, entre outros. Mas segundo este artigo a verdadeira ameaça pode estar justamente naquelas empresas que nos provêm, muitas vezes de graça, os produtos e serviços que mais gostamos. Onde antes competição via mercado ou imposta por autoridades antitruste seriam capazes de limitar o abuso do poder destas grandes empresas, hoje, com efeitos de rede e outras características de mercados digitais, não haveria forças capazes de contê-las (vide o post de João Pedro Arbache neste mesmo blog em 31/01/2019 sobre as características destes novos mercados). Segundo a revista o aparato antitruste desenvolvido para a velha economia de cimento e tijolo está em um perigoso estado de decadência intelectual que favorece uma perigosa falta de ação em um mundo que está rapidamente mudando.

Recentemente o Departamento de Justiça Americano tentou impedir uma fusão entre a AT&T e a Time Warner, mas foi revertida por um juiz que chancelou o acordo de US$85 bilhões. Uma fusão posterior entre a Walt Disney e a Twenty-First Century Fox valendo US$71, 3 bilhões não foi contestada nos EUA, e está sendo acompanhada pelo CADE assim como autoridades antitruste na Europa e até na China. Em outro caso recente a American Express ganhou na Suprema Corte Americana um caso em que o governo a acusava de abusar sua posição como mercado de lados. Eu não quero sugerir que necessariamente estes casos em particular sejam evidência de erros na área de competição, mas sim que ilustram a natureza cada vez mais complexa das situações que envolvem muitas grandes empresas atualmente. É justamente a incapacidade do aparato antitruste teórico e prático atual de nos ajudar a entender a fundo estes casos que é o problema.

A segunda fonte com uma mensagem semelhante foi o podcast Econtalk (25/02/2015) que entrevistou Mike Munger (Duke University) sobre um texto recente com o título The Road to Crony Capitalism. Em 1944 Hayek avisou do perigo da intervenção governamental em The Road to Serfdom ao prevenir que mesmo um pouco de planejamento central tendia a gerar distorções que requerem cada vez mais planejamento, até que não há mais volta de uma economia ineficiente e atrasada. Em The Road to Crony Capitalism o argumento é que a medida que as empresas crescem e se tornam cada vez mais poderosas, elas estão cada vez mais em posição de usar o Estado, via lobby, tarifas, concessões, regulamentação, etc., para atingir seus fins, fazendo com que fiquem ainda mais poderosas e dominantes, levando também a uma economia desigual e ineficiente. No novo cenário de economias de rede, as empresas tenderiam cada vez mais a se encontrar em tal situação, e mesmo aquelas que preferissem optar por não jogar o jogo do capitalismo de compadrio, não teriam esta opção, pois seriam forçadas a participar pelos seus próprios acionistas que esperam lucros, ou por investidores hostis sem tais escrúpulos. Bill Gates, por exemplo, tentou evitar que a Microsoft lançasse mão de lobistas e outras estratégias semelhantes. Para ele a Microsoft seria uma empresa diferente. Mas após o traumático caso antitruste do governo Americano contra a inclusão do Internet Explorer no Windows 95, ficou claro que esta não era uma opção viável. Da mesma forma, a Google, que provavelmente vislumbrava algo semelhante quando escolheu em 2000 o motto Do No Evil, optou recentemente por remover esta menção em seu código de conduta oficial.

O que é mais alarmante diante destas perspectivas é que, se realmente forem verdadeiras estas ameaças, o que pode ser feito? A primeira linha de defesa deveria ser a competição. Normalmente o próprio mercado daria um jeito à medida que lucros altos fizessem com que novos entrantes criassem novos produtos e novas firmas que corroeriam as vantagens adquiridas pelas grandes empresas. Quando isto falhava, havia sempre antitruste, que é uma forma de competição artificial, quando a coisa real não emerge por conta própria. Mas, conforme argumentado acima, e conforme um novo livro por Tim Wu (que cunhou o termo ‘neutralidade de rede’) The Curse of Bigness: Antitrust in the New Gilded Age, o estado atual do estabelecimento antitruste não é capaz de nos proteger. A situação é de tal forma desesperadora, que no episódio de Econtalk mencionado acima, os interlocutores se veem forçados, com embaraço confessado, a sugerir que o que precisamos é de pessoas boas e morais. Nenhum sistema pode funcionar se as pessoas não tiverem um mínimo de escrúpulos, princípio e normas. Se os donos e dirigentes das empresas se recusarem a jogar o jogo do capitalismo de compadrios a situação poderia ser atenuada.

Este argumento parece incrivelmente ingênuo e vazio, especialmente vindo de dois economistas libertários e adeptos à Public Choice. Economistas tendem a ser mais maquiavélicos e defender que um bom sistema tem de ser desenhado para funcionar até com pessoas com as piores intenções. Ou, como colocou Milton Friedman:

It’s nice to elect the right people, but that isn’t the way you solve things. The way you solve things is by making it politically profitable for the wrong people to do the right things.

No entanto, o argumento que uma Economia funcional não pode prescindir de boas pessoas vêm ganhando força, mesmo dentro da profissão dos economistas, onde considerações de valores morais e virtudes nunca foram bem vistas. O título do livro de 2016 de Samuel Bowles, The Moral Economy: Why Good Incentives Are No Substitute for Good Citizens expressa bem esta noção. Diedre McCloskey não só lançou uma trilogia sobre o papel de valores e ética no crescimento econômico, mas seu próximo livro, a ser lançado este ano, se chama How to be a Humane Libertarian: Essays for a New Liberalism. Há também o livro de Timothy Besley (2007) Principled Agents? The Political Economy of Good Government que enfatiza a importância de ter um sistema que escolha bons dirigentes.

Com as fragilidades da teoria econômica atual expostas pela crise econômica global, o clima está mais propício do que nunca para a consideração de moralidade e virtude. O problema principal agora é como implementar essas ideias.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

O Desafio de Acemoglu e Robinson

Em 2012 James Robinson e Daron Acemoglu lançaram o livro Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity and Poverty que foi um sucesso imediato, não só no mercado acadêmico, mas também no mercado editorial geral. A hipótese central do livro é que instituições, e não cultura, geografia, ou sorte, são a causa fundamental do crescimento econômico de longo prazo. Era essencialmente a mesma mensagem que algumas décadas de literatura da nova economia das instituições já havia desenvolvido (Douglass North, Ronald Coase, Oliver Williamson e Elinor Ostrom): que instituições abertas e inclusivas, caraterizadas por impessoalidade e rule-of-law e acompanhadas por freios e contrapesos sobre o poder do Estado, são imprescindíveis para que um país se torne verdadeiramente desenvolvido. Eles mostram através de inúmeros exemplos históricos e dados comparativos que somente um pequeno grupo de países em todo mundo conseguiu atingir este tipo de desenvolvimento, enquanto a grande maioria, onde prevalecem instituições extrativas e acesso limitado a mercados econômicos e políticos, falharam.

Com o sucesso do livro os autores foram convidados a dar palestras e apresentações em vários lugares diferentes. Na época, eu devo ter ouvido mais de uma dezenas de palestras via podcasts ou no Youtube. Dado o nível dos autores e sua segurança na exposição de seus argumentos, sempre havia a sensação de que o público estava convencido. Mas inevitavelmente, quando o moderador abria o microfone para a sessão de perguntas do público, vinha a mesma pergunta avassaladora que fazia muitos reconsiderar sua posição: “Mas então como vocês explicam a China? É uma ditadura, com instituições fechadas, extrativas e excludentes, e, no entanto, é o país que mais cresce no mundo há muito tempo e logo será o país mais rico do mundo.” Os autores sempre davam a mesma resposta, na linha desta argumentação em seu Why Nations Fail Blog:

When economic institutions take steps towards greater inclusivity — which has happened many times in history and is exactly what happened in China starting in 1978 — this can usher a rapid period of economic growth. Where political institutions come in is that inclusive economic institutions can emerge and encourage growth in the short run but cannot survive in the long run under extractive political institutions. It is for this reason that the rapid growth of China over the last three decades isn’t an exception to our theory.

E eles seguem com o seguinte desafio: Se a China continuar a crescer por mais várias décadas e chegar a níveis de PIB per capita comparáveis aos dos EUA e da Alemanha, mantendo o tempo todo o mesmo tipo de instituições políticas autoritárias e extrativas, então isto refutaria a sua teoria. É assim que deve ser a ciência, sujeita à falsificação pelas evidências. No entanto, naquelas palestras esta resposta dos autores não parecia convencer muitas pessoas. Afinal a China não parava de crescer e de deslumbrar o mundo com sua capacidade de exceder todas as expectativas. Talvez instituições sejam importantes, mas a China seja um caso especial que desafia as explicações convencionais.

Este ainda não é o momento de tirar a prova e ver quem vence o desafio. A transição da China ainda está se processando e não é possível ainda tirar conclusões definitivas. A China já está alcançando os EUA em termos de PIB nominal, mas ainda está mais ou menos no mesmo nível do Brasil em termos per capita. Como diz o desafio, trata-se de uma questão de longo prazo (várias décadas) e não de conjuntura. No entanto, pode ser interessante ver como estão evoluindo algumas variáveis da economia e sociedade chinesa para termos uma ideia de como vai a contenda até agora.

Não é preciso fazer muito esforço para argumentar que a trajetória ascendente da China continua forte. Sua economia continua crescendo a altas taxas independente de crises mundiais. Em janeiro deste ano um artigo de capa da The Economist explica How China Could Dominate Science. No mesmo mês uma nave Chinesa foi a primeira a aterrissar no lado escuro da lua. Dos 20 prédios mais altos do mundo 10 estão na China (11 se contar um em Taiwan). As companhias de tecnologia da informação da China já rivalizam as ocidentais, com o trio BAT (Baidu, Alibaba e Tencent) valendo atualmente acima de um trilhão de dólares.

Em novembro, de 2017 eu estive na China pela primeira vez, para uma conferência em Shenzhen. Nesta cidade, mais jovem do que Brasília, porém já com uma população de mais de 12 milhões de pessoas, eu quase me convenci de que Acemoglu e Robinson estavam errados. A cidade era imensa, moderna, agradável e bonita. Além disto, os anfitriões nos levaram para visitar o moderníssimo trem-bala que estavam prestes a inaugurar, ligando à cidade a Guangzhou em menos de 50 minutos (em vez de duas horas) Um país que tinha a capacidade de fazer cidades e infraestrutura assim certamente tornar-se-ia em pouco tempo um país desenvolvido.

Mas apesar de todo este deslumbre, havia alguma coisa errada. Demorou até que eu conseguisse perceber o que era, mas logo ficou claro: onde estão os pobres? Embora a China tenha bolsões de prosperidade, como Shenzhen, ainda é um país predominantemente pobre. O fato de não haver pobres em Shenzhen não era algo natural. Cidades de países pobres costumam ser feias e sujas exatamente por que os pobres migram para as cidades em busca de melhores oportunidades e serviços públicos. Se não havia mendigos ou favelas em Shenzhen não era por que eles não quisessem estar lá, mas por que lá há acesso limitado às cidades, algo que só pode ser mantido com mão de ferro. Da mesma forma, as ferrovias, hidroelétricas e prédios não deviam tanto à engenharia chinesa como à capacidade de construir sem ter que se preocupar com questões de direitos de propriedade, direitos humanos e maio ambiente.

Estas questões ilustram por que é tão difícil prever quem está vencendo o desafio. Por um lado, há diversas evidências de progresso, crescimento e prosperidade. Por outro, há desigualdade, exclusão e acesso limitado. Sempre é possível imaginar que um dos lados eventualmente irá prevalecer, extinguindo o outro. Talvez seja preciso primeiro crescer para depois redistribuir como afirmava Delfim Neto na década de 1970 e Ronald Reagan na de 1980 com trickle-down economics. Pode ser que democracia e direitos humanos sejam bens de luxo, cujo consumo só aumenta à medida que a renda suba suficientemente. Sob esta perspectiva, à medida que a população chinesa enriquecesse, surgiria uma grande classe média que demandaria voz, participação e rule-of-law.

Um artigo recente no The Economist nota que a mesma dúvida sobre a trajetória futura da China já existiu com relação à União Soviética. Nas décadas de 1950 e 1960 muitos observadores ocidentais, inclusive o eminente economista Paul Samuelson, achavam que a União Soviética estava mostrando uma forma superior de organizar a economia e que estava fadada a dominar o mundo. Assim como a China, a União Soviética atingiu maiores taxas de produtividade e de crescimento transferindo pessoas do campo para as cidades. Porém lá, este tipo de crescimento eventualmente se esgotou, e o efeito das instituições fechadas e extrativas foi exatamente o que as teorias institucionalista previam.

Seria a China diferente? Certamente há bastante diferenças. A China possui uma economia essencialmente capitalista e está integrada na economia global. Sabemos muito mais sobre a China hoje do que sabíamos sobre a União Soviética. Mas, e quanto às instituições políticas? Existe alguma evidência de alguma abertura política ou na direção de mais voz, inclusão e participação da população? Estes são os elementos chave na teoria do Acemoglu e Robinson, sem os quais, segundo eles, a China não poderia sustentar o crescimento recente.

Em um post não é possível considerar toda a evidência que seria necessário para resolver esta questão. Vejamos, no entanto, quatro fatos sobre a evolução recente das instituições políticas Chinesas, escolhidos, admitidamente, com um certo viés de confirmação. São todos elementos que refletem mudanças recentes nas instituições políticas Chinesas:

  1. Em Fevereiro de 2015 o Partido Comunista Chinês eliminou a regra que limitava o Presidente a um mandato único. Isto permitirá a Xi Jinping permanecer indefinidamente no poder. Como a China já era uma ditadura, pode não parecer uma mudança particularmente importante. Outras mudanças simultâneas, porém, sugerem uma centralização e endurecimento contrários à aparente abertura que muitos desejavam ver. Em outubro de 2017, a Constituição do Partido Comunista adicionou um novo princípio aos 23 já existentes. O novo princípio estabelece o conjunto de normas de comportamento e crenças conhecido por Xi Thought, como guia para o socialismo com características chinesas para a nova era. Já existe um instituto de Xi Jinping Thought com o objetivo de desaminar este conhecimento nas universidades e entre a juventude. Four legs good, two legs bad! Four legs good, two legs bad!
  2. Hoje o setor privado é responsável por 80% da produção industrial chinesa. Embora o Presidente Xi costume enaltecer este setor em seu discurso, tem havido uma clara tendência de aumento da interferência e usurpação do Estado em firmas privadas, muitas vezes para favorecer as grandes empresas estatais. Isto inclui desde interferência política nas decisões das firmas, pressão para incluir membros do Partido Comunista nas diretorias e até a compra forçada da empresa. O fenômeno é tão prevalecente que tem até um nome; guojin mintui, ou seja, ‘o Estado avança enquanto o setor privado se retraí’. Está certo que isto costuma acontecer em vários países. O Brasil, por exemplo, tem sua própria versão de guojin mintui tupiniquim. A questão de quão nocivo isto possa ser para a eficiência, investimento e inovação no longo prazo talvez dependa da existência de salvaguardas e freios e contrapesos que os empresários e investidores possuam para recorrer contra abusos e injustiças (Levy and Spiller, 1996). No Brasil existe um judiciário independente, uma imprensa livre, um ministério público atuante, uma sociedade civil organizada e participante, e eleições periódicas. Na China não há nada disso.
  3. O crescimento econômico chinês gera prosperidade e confortos, mas naturalmente tem os seus descontentes. O Partido Comunista permite protestos de massa, e eles existem em grande número. Não se tem números muito claros pois o Ministério da Segurança Pública parou de divulgar dados e vários pesquisadores e ONGs que tentam documentar os protestos costumam ser presos ou reprimidos. Em geral, os protestos permitidos são aqueles que não são percebidos como ameaça, em particular protestos que não tem alcance nacional. O Partido Comunista até encoraja protestos locais – muitas vezes relacionados à propriedade da terra, poluição ou escolas – como uma forma de controlar e monitorar políticos locais.
  4. A China construiu mais arranha-céus em 2018 do que qualquer outro lugar no mundo ou da história de acordo com o Council of Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH). São 88 prédios de mais de 200 metros. Isto pode parecer uma coisa boa. Existe porém uma maldição dos arranha-céus (skyscraper effect) segundo a qual a construção de arranha-céus em um país costuma levar a recessão. Esta regularidade empírica foi notada primeiro pelo economista Andrew Lawrence em 1999. Não se trata de superstição ou mandinga. O efeito atua através de distorções nos mercados de crédito, capital, terra e trabalho, além do gasto público, assim como a realização de Olimpíadas costuma deixar um contra-intuitivo legado negativo nos países hospedes.

Possivelmente, daqui a cinco ou dez anos iremos olhar para trás e estes quatro pontos terão sido pequenos percalços eventualmente superados por uma China próspera, dominante e democrática. Se este for o caso, Acemoglu e Robinson não terão sido refutados. As instituições políticas terão mudado e permitido que um crescimento de curto prazo se tornasse desenvolvimento de longo prazo. Se, porém, estes quatro indícios recrudescerem e forem seguidos de outros desenvolvimentos semelhantes, e isto provar ser um empecilho à transição chinesa, mantendo o país em uma armadilha da renda média (middle-income trap), eles não terão sido refutados. Façam as suas apostas.

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Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

Seinfeld e a Economia de Serviços

Muitos leitores deste blog devem conhecer a série de comédia Seinfeld, que foi ao ar entre 1989 e 1998. Segundo a Wikipedia, esta série é considerada “uma das melhores e mais influentes sitcoms jamais produzidas, tendo sida ranqueada entre os melhores programas de televisão de todos os tempos por publicações como a Entertainment Weekly, Rolling Stone, e TV Guide.” A Guilda de Escritores da América escolheu a série como a segunda mais bem-escrita de todos os tempos (após The Sopranos). Uma rápida pesquisa no IMDb, site de dados e informação sobre filmes, televisão, vídeo e games, que permite que os usuários criem suas próprias listas de melhores programas de todos os tempos, mostra o impacto que a série teve na cultura popular mundial.

Mas o que isto tem a ver com a Economia de Serviços? A série é conhecida por ser ‘um programa sobre nada’. Os personagens basicamente se encontram no apartamento em Nova Iorque do protagonista Jerry Seinfeld e conversam sobre trivialidades do dia-a-dia ou seguem suas rotinas diárias onde nada de particularmente importante parece acontecer. Nenhum dos personagens tem características ou personalidades fora da média: não são particularmente feios ou bonitos, amáveis ou deploráveis, e são medianamente hedonistas, preguiçosos e centrados em si mesmos como a maioria das pessoas. Então novamente a pergunta: o que uma comédia sobre nada, ou sobre as miudezas da vida diária tem a ver com este blog?

Talvez um breve resumo de alguns dos episódios mais memoráveis trará algumas dicas.

No episódio ‘Soup Nazi’ (S07E06) os personagens vão à uma loja de sopas extremamente popular, com filas na porta, mas onde o proprietário é autoritário e impaciente, capaz de se negar a vender a sopa caso o cliente não sega à risca a peculiar etiqueta: manter a fila em ordem, não fazer perguntas, não falar desnecessariamente, não elogiar ou criar qualquer outra comoção. No episódio ‘The Alternate Side’ (S03E10) Jerry está na locadora de veículos onde, embora ele tenha reservado um carro médio, a loja está sem carros médios e querem lhe dar um compacto. Em ‘The Understudy’ (S09E24) Elaine (amiga do Jerry) acha que as manicures Coreanas estão falando mal dela quando conversam entre si em coreano (e sim elas estão). Em ‘The Pothole’ (S08E16) Elaine quer encomendar um delivery de um restaurante Chinês especial, mas seu apartamento fica uma rua além da fronteira para a qual eles entregam, obrigando-a a fingir ser a faxineira do prédio da frente para enganar o entregador. Em ‘The Smelly Car’ (S04E21) um valet com odor corporal extremo deixa o carro do Jerry fedendo tanto que nem lavagens especiais resolvem. Com certeza leitores se lembrarão de vários outros exemplos.

O que todos estes episódios têm em comum é o papel central de relações entre provedores de serviços e os clientes que estão sendo servidos. Não é coincidência que uma série que trata da rotina diária de pessoas comuns nas grandes cidades acabe sendo também uma série sobre a ubiquidade de relações entre provedores e clientes. Dado o elevado nível de especialização na sociedade moderna, cada indivíduo acaba se engajando diretamente em um conjunto de ocupações e tarefas cada vez mais estreito e se volta a outros indivíduos e firmas para obter a variada gama de outros bens e serviços de que precisa, tais como sopa, locação de veículos, manicure, comida chinesa, e estacionamento. Sob esta perspectiva, seria quase impossível fazer uma serie sobre a vida contemporânea sem que esta estivesse, assim como Seinfeld, totalmente embrenhada por relações de serviços.

No entanto, os escritores de Seinfeld tiveram a sensibilidade de perceber uma sutileza sobre estas relações que pode não ser imediatamente óbvia para a maioria dos espectadores. As situações apresentadas na série não se limitam a retratar superficialmente serviços sendo demandados e ofertados pelos personagens. Em vez, o foco é, de maneira bastante perspicaz, serem essas relações frequentemente envoltas em conflito, decepções e frustrações. Existe uma tensão latente em cada transação de serviço. Quando Jerry e Elaine são convidados para um jantar e passam em uma confeitaria para comprar um bolo de presente, eles esquecem de pegar uma senha e acabam perdendo o último babka de chocolate¸ levando a desgosto e arrependimento (The Dinner Party S05E13). No banheiro de um restaurante Jerry vê que o cozinheiro não lavou as mãos e depois, constrangedoramente se recusa a experimentar a pizza especialmente preparada para a sua mesa (The Pie S05E15). Em uma livraria George, amigo de Jerry, leva um livro para o banheiro e é depois obrigado a comprar o livro (The Bookstore S09E14).

Após assistir algumas temporadas de Seinfeld o espectador se convence que toda relação de serviços é uma potencial fonte de atrito. Uma forma econômica de entender este fenômeno está na percepção de que estas trocas necessariamente envolvem custos de transação e direitos de propriedade incompletos. Para adquirir um serviço, há todo um processo de busca, avaliação, negociação, matching, feedback, etc. que é repleto de incertezas e assimetrias de informação. Por mais que existam intermediários, reguladores e apps dedicados a resolver estes dilemas, alinhar expectativas, e dirimir conflitos, a relação envolve contratos incompletos e continua sujeita a surpresas e consequências não-intencionadas. Um cliente em uma mercearia tem o direito de experimentar uma uva? E se forem dez uvas? Pode-se apertar os tomates? Até que nível de força é aceitável? Por mais que se estabeleça normas formais e informais, alguns direitos de propriedade sempre estarão mal especificados e, portanto, no domínio público. Tudo isto é fonte de conflitos, pendengas e discussões, levando às situações típicas de Seinfeld.

Outra ótica pela qual se pode analisar a questão é pela psicologia social. A relação de serviço é muito mais que uma mera transação comercial. Ela envolve expectativas que costumam não ser atendidas, não somente com relação ao serviço em si, mas principalmente sobre o que o comportamento do outro revela sobre como somos percebidos e avaliados pelos outros. Um sorriso amarelo, uma má escolha de palavras, ou um olhar de canto de olho podem estar carregados de sentimentos de desprezo, desdém ou apequenamento. É como se cada transação fosse um julgamento de seu pertencimento e valor. Seu desconforto quando o garçom demora para trazer sua bebida não é tanto devido à sede, e sim ao que este comportamento lhe diz sobre a importância que o garçom lhe atribui relativo aos outros clientes. Afinal, aquele outro casal chegou depois e já está com suas bebidas. O episódio The Chinese Restaurant (S02E11) se passa inteiramente na entrada de um restaurante chinês enquanto Jerry, Elaine e George se desesperam na suspeita de que estão sendo passados para trás na lista de espera.

Adam Smith já havia intuído no século 18 que não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que devemos esperar o nosso jantar, e sim do seu interesse próprio. Seinfeld nos mostra que a realidade é até pior. A nossa dependência de uma gama variada de serviços não só não pode contar com benevolência dos provedores, mas ainda deve aturar o seu desdém, menosprezo e antipatia. Ou seja, o que Hamlet de Shakespeare (no monólogo “Ser ou não ser”, ao considerar se matar devido a este estado de coisa) classificou como the whips and scorns of times, ou seja, todas as humilhações da vida:[1]

For who would bear the whips and scorns of times

Th’ oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,

The pangs of despised love, the law’s delay,

The insolence of office, and the spurns

That patient merit of th’ unworthy takes …

A beleza do mercado é que apesar de tudo isto, as coisas ainda funcionam bem e no final das contas podemos ser felizes, contanto que encaremos com naturalidade os atritos inevitáveis das relações de serviço.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

  1. Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
    O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
    Toda a lancinação do mal-prezado amor,
    A insolência oficial, as dilações da lei,
    Os doestos que dos nulos têm de suportar
    O mérito paciente, quem o sofreria,
    Quando alcançasse a mais perfeita quitação
    Com a ponta de um punhal?

    https://www.pensador.com/frase/NTcxODg2/

Um Nobel para a Economia de Serviços?

Em outubro deste ano o Prêmio Nobel de Economia foi concedido a Paul Romer (em conjunto com William Nordhaus) “for integrating technological innovations into long-run macroeconomic analysis.”[1] Os modelos de crescimento endógeno introduzidos por Romer na década de 1980 incorporaram explicitamente a decisão de firmas e indivíduos de investir em novas ideias e inovação. Na época, esta aparentemente óbvia contribuição significou um grande avanço sobre os modelos existentes que tratavam mudança tecnológica com algo exógeno. O fato de Paul Romer ser agraciado neste momento com o prêmio máximo na área das Ciências Econômicas pareceria indicar que esta linha de pesquisa está vibrante e repleta de conquistas. No entanto, este não é o caso. A concessão do Prêmio a ele já era esperada a vários anos. Ele conta inclusive que quando recebeu o telefonema na segunda-feira de manhã de 8 de outubro de 2018, achou que era um trote, pois há vários anos nesta época já vinha recebendo este tipo de brincadeira. Certamente a escolha do Sr. Romer é justa e merecida, mas não deve ser interpretada como chancelando a supremacia dos modelos por ele criados. De fato, a revista The Economist, na coluna Free Exchange do dia 13 de outubro analisa da seguinte forma o legado desta linha de pesquisa:

Os modelos de crescimento ‘endógenos’ produzidos pelo Sr. Romer, e por outros influenciados por ele, já foram aclamados como o passo crítico para entender os padrões de crescimento econômico em todo o globo. Estes modelos não atenderam à expectativa: conhecimento pode ser necessário para atingir crescimento, mas claramente não é suficiente. No entanto, as próprias limitações destes modelos têm sido importantes para levantar questões sobre as teimosas disparidades em taxas de crescimento entre países. … Ao provocar tais questões, o trabalho do Sr. Romer identificou uma rica veia para outros pesquisadores explorarem. (The Economist, Oct. 13, 2018, traduzido do inglês)[2]

E não é somente The Economist que pensa assim. Em uma entrevista concedida alguns anos atrás em Hong Kong, o próprio Paul Romer afirmou o seguinte sobre o estado da arte dos modelos de crescimento:

Nós tivemos um estouro de teorias de crescimento nas décadas de 1950 e 1960. Depois, crescimento saiu de moda. Teorias de crescimento endógeno surgiram no começo dos 1980 e perseguiram uma nova direção. Desde os 2000, a área de crescimento tem estado quieta. Há trabalho sendo feito em aplicações empíricas da teoria de crescimento, mas francamente eu acho que muito do que está sendo feito na direção de examinar os fundamentos do crescimento está perseguindo um beco sem saída. Assim, não é necessariamente algo ruim que a área esteja parada por um tempo. (Romer, 2015: 13, traduzido do inglês)[3]

Mais adiante ele deixa claro quais são estes esforços que estão explorando ‘becos sem saída’. Sem medo de controvérsias ele explicitamente critica três linhas de pesquisa proeminentes na área de crescimento, cada uma associada a outros nomes de peso: Jeffrey Sachs e o papel de ajuda internacional, Daron Acemoglu e James Robinson e a economia política do crescimento, e Esther Duflo e Abhijit Banerjee com experimentos randomizados.[4]

Mas se o Sr. Romer não tem mais fé e interesse na área de crescimento econômico, a qual área e temas ele tem dedicado sua mente ainda inquieta? Quando perguntado pelo entrevistador o que ele acha das três linhas de pesquisa mencionadas acima ele deixa claro: “Quer saber, eu não concordo com nenhuma destas três. Eu acho que urbanização é o que devemos estudar” (pg. 14). Ele nota que existe no mundo uma demanda não atendida por oportunidades urbanas para bilhões de pessoas. Muita desta demanda será atendida pelo aumento das cidades já existentes, mas uma parte significativa será, e já vem sendo, provida por novas cidades criadas especificamente com este propósito. Esta possibilidade tem um potencial maior do que praticamente qualquer outra política pública para afetar o bem-estar de enormes contingentes de pessoas no futuro, e por isto deveria ser um tema prioritário para economistas e outros especialistas. Há algum tempo, Paul Romer já vem trabalhando nesta área, não só no nível acadêmico, mas principalmente como ativista e perito, instigando e aconselhando governos. O Urbanization Project que fundou na New York University trabalha tanto com expansão urbana como com a criação de novas cidades, e tem o objetivo de “harness the growth of cities to speed up global progress.”[5]

Uma das principais vias pelas quais Romer vem explorando a noção de urbanização planejada como solução dos problemas econômicos de países e sociedades é através da criação de Charter Cities.[6] Inspiradas no papel que Hong Kong e Zonas Econômicas Especiais tiveram em fomentar a modernização e o crescimento econômico da China, as Charter Cities envolvem a construção de cidades novas a partir do zero em uma área concedida por um país e no qual o governo do país abriria mão de certa soberania permitindo a construção de leis, regras e governança diferentes do resto do país e que visassem criar um ambiente que atraísse voluntariamente investimentos, trabalhadores e moradores. A ideia é que não só o próprio ambiente fomentaria um ciclo virtuoso de migração e atividade econômica para se aproveitar das condições propícias criadas para este fim, mas eventualmente a cidade ‘contaminaria’ virtuosamente o resto da economia com seu exemplo e práticas. Romer esteve pessoalmente envolvido em um empreendimento de Charter City em Honduras, mas, fiel à sua personalidade contenciosa, abandonou o projeto quando sentiu que o governo Hondurenho quebrou sua promessa ao tentar interferir mais diretamente na criação da cidade. Atualmente há diversas outros projetos similares sendo perseguidos em outros países.

A ideia de planejar uma cidade a partir do zero é controversa. Opositores históricos a esta ideia, como Jane Jacobs[7] e James Scott[8] há tempos criticam a pretensão e arrogância embutida na ideia de achar que se pode controlar o sistema complexo que é uma cidade. O sub-título do livro de 1998 de James Scott expressa bem esta crítica: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Uma versão atual desta crítica está no livro de Geoffrey West (2018), Scale: The Universal Laws of Life, Growth, and Death in Organisms, Cities and Companies (Penguin Random House). Já uma visão mais simpática à ideia vem de outro economista renomado, Edward Glaser em (2011) Triumph of the City: How Our Greatest Invention Makes Us Richer, Smarter, Greener, Healthier, and Happier (Penguin Random House).

Seja como for, o ponto aqui é que a criação de uma nova cidade a partir de um terreno vazio para uma vibrante rede de infraestrutura, pessoas, firmas e atividades é necessariamente e acima de tudo um exercício em estabelecer e tecer uma gama intensamente diversificada e variada de serviços. É claro que o exercício envolve também criar de maneira pensada e planejada infraestrutura física (bairros, prédios, ruas, viadutos, etc.) e infraestrutura institucional (governo, polícia, tribunais, etc.) Mas, quase tudo que se pode imaginar acontecendo nesta futura cidade irá envolver serviços públicos e privados, que podem ser organizados e providos de maneira mais ou menos eficientes. A cidade precisa prever e prover habitação, transporte, comunicação, comércio, saúde, saneamento, educação, lazer, entre outros milhares de serviços que precisam ser coordenados entre si desde a fase de planejamento. O melhor ou pior funcionamento destes serviços irá afetar crucialmente a capacidade da nova cidade de atrair moradores e investidores, determinando assim a capacidade do empreendimento atingir o objetivo de melhorar a vida de grandes parcelas da população de seus países e de servir de exemplo para outras cidades vizinhas, conforme intenção declarada do projeto de Charter Cities. O tamanho do desafio e o tamanho do que está em jogo neste processo explica talvez por que alguém como Paul Romer teria dado as costas à linha de pesquisa que lhe rendeu tanto reconhecimento para se dedicar a algo ainda tão incipiente.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

Referências

  1. https://www.nobelprize.org/prizes/economic-sciences/2018/press-release/
  2. https://www.economist.com/finance-and-economics/2018/10/13/paul-romer-and-william-nordhaus-win-the-economics-nobel .
  3. https://paulromer.net/interview-on-urbanization-charter-cities-and-growth-threory/index.html
  4. Paul Romer é um polemista inveterado. Tem alimentado uma briga acadêmica criticando figurões do nível de Robert Lucas, Ed Prescott e Thomas Piketty por ‘mathiness’, que é o seu termo para o abuso e mal uso de matemática em trabalhos acadêmicos com o intuito de esconder as falhas e premissas duvidosas (veja sua crítica em https://pubs.aeaweb.org/doi/pdfplus/10.1257/aer.p20151066). Mais recentemente, Romer foi despedido do cargo de Economista-chefe do Banco Mundial por brigas com vários membros do staff do banco sobre a qualidade da pesquisa realizada. Romer afirmou por exemplo que: “nunca em minha vida profissional eu encontrei tantos economistas profissionais que dizem tantas coisas que são fáceis e verificar e que acabam não sendo verdade.” (ver https://www.ft.com/content/be72f8e2-0144-11e8-9650-9c0ad2d7c5b5)
  5. http://www.stern.nyu.edu/experience-stern/about/departments-centers-initiatives/centers-of-research/urbanization-project .
  6. Sobre as Charter Cities, ver https://www.cgdev.org/article/charter-cities-qa-paul-romer.
  7. Jacobs, Jane. (1961) The Death and Life of Great American Cities. New York, Random House.
  8. Scott, James C.(1998) Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Yale University Press.

 

Por que mais recursos, leis, dados, e peritos não significam melhores serviços ou políticas públicas?

Uma fatia supreendentemente grande da atividade econômica mundial se concentra em um pequeno número de mega-projetos. Estes são projetos “de larga escala e alta complexidade que custam mais do que 1 bilhão de US$, demoram vários anos para serem desenvolvidos e construídos, e envolvem múltiplos stakeholders públicos e privados, sendo transformacionais e impactando milhões de pessoas” (Flyvbjerg, 2014, p. 6). Exemplos de mega-projetos são a Estação Espacial Internacional (custo previsto US$150 bilhões), Dubailand (um parque de atrações em Dubai, custo US$ 64 bilhões), e a ponte Hong-Kong-Macau (US$ 10.6 bilhões) (Desjardins, 2017). No Brasil temos mega-projetos antigos, como a construção de Brasília e a Transamazônica, recentes, como Belo Monte e a Copa do Mundo, e planejados para o futuro, como o trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro e a transposição do Rio São Francisco. Segundo Flyvbjerg (2014) o gasto com mega-projetos já alcança 8% do PIB mundial e está crescendo. A prevalência deste tipo de empreitada se deve aos ‘quatro sublimes’ que atraem uma coalizão diversas de atores. O ‘sublime’ tecnológico atrai engenheiros e apaixonados por tecnologia; o ‘sublime’ político atrai os políticos; o ‘sublime’ econômico atrai os empresários, banqueiros, investidores, sindicatos e consultores; e o ‘sublime’ estético atrai aqueles que gostam de desenho icônicos.

À primeira vista mega-projetos não parecem ter muito a ver com serviços, pois tendem a ser grandes, circunscritos e materiais. No entanto, uma segunda reflexão revela que envolvem uma variada e complexa rede de serviços para serem projetados, construídos, operados e mantidos. Além disto, muito deles são essencialmente plataformas que ofertam uma gama de serviços, por exemplo, o parque de Dubailand ou o aeroporto Internacional Beijing Daxing sendo construído na China. Sendo assim, qualquer problema ou ineficiência que possa ser identificada na concentração tão grande de recursos, esforço e atividade econômica em um pequeno número de projetos também seria um problema relevante para o setor de serviços. E de fato existem problemas.

Flyvberg (2014) coletou dados de todos mega-projetos dos últimos 70 anos e chegou à seguinte conclusão:

Sucesso na realização de um mega-projeto é tipicamente definido como ocorrendo quando um projeto é entregue dentro do orçamento, dentro do prazo estipulado e com os benefícios prometidos. Se, como parece ser o caso, aproximadamente um em dez projetos está dentro do orçamento, um de dez está dentro do prazo, e um em dez entrega os benefícios prometidos, então aproximadamente um em mil projetos é um ‘sucesso’, definido como cumprindo as três condições. Mesmo se estes números estiverem errados por um fator de dois – tal que dois, e não só um de cada dez projetos cumpra cada condição – orçamento, prazo e benefícios, respectivamente – então a taxa de sucesso ainda seria deprimente, agora oito de cada mil projetos (Flyvbjerg, 2014, p. 11, tradução minha).

 

Por que sempre dá errado?

É claro que não são só mega-projetos que falham. Em “Por que Políticas Públicas Falham” (disponível em http://bpmmueller.wixsite.com/bernardo-mueller) eu discuto por que políticas públicas em geral são tão propensas a deixar de atingir um ou mais dos objetivos almejados. E além de mega-projetos e de políticas públicas, projetos privados de todos tamanhos também costumam decepcionar. Nenhuma reforma da minha casa saiu dentro do prazo, dentro do orçamento ou dentro do esperado.

Parte da explicação para tanta ineficiência, decepção e desperdício é óbvia. Todas as fases de concepção, projeção, implementação e operação destes projetos e políticas públicas são permeadas de incompetência, ignorância, corrupção, interesse próprio e custos de transação. Ou seja, eles difíceis de fazer e repletos de incentivos perversos. Porém, o ponto central do argumento aqui é que mesmo que consigamos resolver ou drasticamente atenuar todos estes problemas, ainda assim continua sendo o caso que os projetos e políticas falharão em grande medida.

Isto se dá por que estas atividades se dão em contextos de sistemas complexos, que por sua natureza não podem ser controlados nem previstos. Sistemas complexos são caracterizados por uma interação de grandes números de agentes heterogêneos, agindo localmente, seguindo regras simples, sem informação do todo, e sem controle centralizado, com a interação dando emergência a padrões, ordem, estruturas, e funcionalidades em um nível macro, que não foram planejadas nem previstas, e muitas vezes nem compreendidas, pelos agentes individualmente. Exemplos de sistemas complexos são a economia, uma cidade, um cérebro, o sistema imunológico, uma firma, um protesto, um formigueiro, uma rede social, linguagem, etc. Em todos casos a chave é o nível de interconexão, diversidade, conectividade e adaptabilidade dos agentes. Um momento de reflexão deixa claro que projetos ou políticas públicas se realizam em sistemas complexos. Serviços em particular fazem parte de redes complexas que conectam diferentes provedores com usuários em estruturas específicas que cumprem funcionalidade não-desenhadas e emergentes.

Se projetos, políticas públicas e serviços são tão propensos a ineficiência, desperdício e falhas, o que podemos fazer a respeito? A reação instintiva de economistas, administradores, juristas, jornalistas e outros peritos costuma ser sugerir que se empregue mais esforço, mais recursos, mais leis, mais dados, mais computadores, mais boa vontade e mais empenho para fazer as coisas funcionarem desta vez. Ou seja, faça o que já vinha fazendo, mas faça mais e melhor. Certamente, estas coisas podem ajudar em certa medida. Mas quando se trata de sistemas complexos há uma complexidade irredutível que não pode ser eliminada. Esta complexidade vem da natureza do sistema. Em particular, a abordagem tradicional de economistas e formuladores de políticas públicas não é apropriada para lidar com este tipo de problema. A abordagem tradicional é linear, reducionista, gaussiana, estática, ergódiga (presume que o futuro será igual ao passado) e em grande medida ignora as interações que são o foco do problema. Teoria da Decisão, por exemplo, que é uma das pedras fundamentais destas abordagens, requer que se compare os custos e os benefícios de todas as situações que podem vir a ocorrer, levando em conta as probabilidades de cada estado do mundo. Mas em um sistema complexo, não só não se sabe o que vai acontecer, como não se sabe o que possivelmente pode vir a acontecer.

TI é a solução?

Diante da inutilidade de muito de nosso conhecimento para melhorar o desempenho de políticas, projetos e serviços, o que pode ser feito? Será que novas tecnologias de informação como Inteligência Artificial, Big Data, Machine Learning, blockchain, redes neurais, além de aplicativos e sabe-se lá o que irá surgir no futuro, podem ser a solução? De fato, muitas destas técnicas e processos tem características que as tornam bons instrumentos para lidar com sistemas complexos. Em “Por que as Políticas Públicas Falham” eu descrevo algumas abordagens modernas que parecem promissoras para lidar com este problema por não precisarem de previsão ou controle do sistema. No entanto, a minha conclusão ali é que mesmo se estas técnicas e instrumentos consigam melhorar nossa capacidade de criar, implementar e gerir projetos, políticas e serviços, jamais termos o nível de controle que a abordagem tradicional supõe ser possível. Mesmo com abordagens mais adequadas à sistemas complexos, há limites ao que pode ser conseguido. No final das contas, será necessário adotar uma postura de maior modéstia epistemológica e reconhecer nossas limitações, admitindo que o nível de controle e agência que costumamos almejar, não podem ser realizados.

Isto não quer dizer que não há nada que se possa fazer. Sistemas complexos podem ser influenciados e cutucados para evitar alguns tipos de resultados e induzir outros, mesmo que não seja possível impor uma sintonia mais fina. O importante é reconhecer a natureza de um sistema complexo quando se lida com um, e usar as intervenções próprias a um sistema com tais características, que algumas vezes pode ser simplesmente não fazer nada.

Salto no escuro ou humildade epistemológica?

Na década de 1960 Albert Hirschman notou um padrão em diversos projetos que ele visitou em diferentes países em suas viagens como um economista interessado em desenvolvimento econômico. Os países embarcavam em grandes e ambiciosos projetos, como grandes represas ou novas indústria, com um otimismo ingênuo que não via a complexidade e dificuldade inerente à empreitada. Ele cunhou a expressão “Hiding Hand Principal” para se referir, em uma alusão à Adam Smith, a esta tendência de formuladores de política e gerentes de projetos de subestimar o nível de incertezas e complicações inerentes no projeto em que embarcavam (Hirschman, 1967). Segundo ele, se esta realidade fria não fosse mascarada pelo otimismo simplista dos atores, poucos projetos seriam tentados. E embora os projetos, de fato, frequentemente não atingiam seus objetivos, eles muitas vezes levavam o país a uma situação não antecipada que permitia lampejos de criatividade para adaptar o projeto para outros fins que se mostravam viáveis ao longo da jornada.

A atitude de Hirschman combina em parte com o argumento apresentado aqui. Embora ele não usasse a teoria de sistemas complexos em sua análise, a ideia de que há uma incerteza fundamental por trás de projetos e políticas públicas é parecida. No entanto, a recomendação de política é bem diferente. Enquanto Hirschman reage à impossibilidade de prever o futuro e de controlar um sistema complexo sugerindo um salto no escuro com a esperança de que no final tudo vai dar certo, eu estou sugerindo ser mais realista com o que pode ser atingido e adaptar o alcance e a natureza da intervenção à esta realidade, mesmo que signifique que não possamos fazer tudo que gostaríamos de fazer.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

Referências

Flyvbjerg, B. (2014). What you Should Know About Mega-Projects and Why: An Overview. Project Management Journal, 45(2), 6-19.

Flyvbjerg, B., & Sunstein, C. R. (2016). The Principle of the Malevolent Hiding Hand; or, the Planning Fallacy Writ Large. Social Research, 83(no. 4, Winter), 979-1004.

Hirschman, A. O. (1967). The Principle of the Hiding Hand: Brookings Institution.

Mueller, B. (2018). Por que Políticas Públicas Falham. Working paper Departamento de Economia, Universidade de Brasília. http://bpmmueller.wixsite.com/bernardo-mueller