Economia de Serviços

um espaço para debate

Month: agosto 2019

Economia da Corrupção (I)

Conforme as pesquisas de opinião, a corrução é vista pelos brasileiros como um dos três principais problemas do país, superando em alguns levantamentos a saúde e segurança. Em outro levantamento, somente é ultrapassada pela saúde e violência, igualando-se ao desemprego e situando-se bem longe de aspectos sociais como a fome e a desigualdade. Esta não é uma singularidade do Brasil e, em maior ou medida, é um fenômeno mundial, podendo ser identificada como uma das fontes que alimentam a atual onda de populismo que está abalando até países com longa tradição democrática.  A maioria das outras dimensões que fazem parte das apreensões dos indivíduos (como desemprego, educação, saúde, segurança, etc.) mereceu uma particular atenção na academia e na ciência econômica, chegando a uma agregação de conhecimentos e trabalhos técnicos que, em maior ou menor medida, pautam o debate cotidiano e norteiam a formatação de políticas públicas. 

No caso específico da corrupção, não obstante a relevância identificada nas pesquisas de opinião, esse cenário “ideal” (qualificativo que procede uma vez que o debate público e a formatação de políticas estariam ancorados em arcabouços teóricos e pesquisas empíricas) não parece ter-se realizado.  As polêmicas e sugestões de política estão pautadas, quase que exclusivamente, por aspectos legais quando não morais/éticos.  Não podemos negar a relevância dessas dimensões, especialmente pela idiossincrasia do tema.  Contudo, uma disciplina como a economia, que chega a dar “palpites” em áreas que parecem situadas longe dos cálculos financeiros (custos/benefícios), como família, matrimônio, número de filhos, aborto etc., não poderia ficar indiferente a esse tema.  Em realidade, existe uma ampla literatura abordando o tópico (corrupção) usando a perspectiva e as ferramentas usuais no modelo canônico (agentes maximizando uma função objetivo – no caso das firmas, maximizando lucros líquidos de propinas; incentivos, mercado concorrenciais ou não, etc.) e, como não poderia deixar de ser, esse prisma é questionado por paradigmas concorrentes.  Porém, essa profusão de contribuições parece confinada a uma especialidade nos ambientes acadêmicos, com pouca transcendência fora desses círculos restritos.  Pautas éticas/morais e conseguintes recomendações de penalidades legais parecem moldar os discursos.   

No caso específico do Brasil, a “lava jato” se desenvolveu e adquiriu popularidade em um contexto no qual observamos uma notória incapacidade de os resultados da reflexão teórica e empírica na área de economia permear o debate público. Essa segmentação (reflexões acadêmicas na área de economia/debate público) nutre-se de diversas raízes e tem indubitáveis custos.  Vamos começar por estes últimos.

Em termos de custos, a ausência de algum referencial da literatura econômica no debate público que aborda o tema faz com que aspectos éticos/morais/legais monopolizem as posições, enquanto temas complexos (como o próprio processo do desenvolvimento ou a retomada do crescimento, no caso do Brasil) estão sendo colocados em termos de um reducionismo quase absurdo.  Assim, “solucionado o problema da corrupção” o país poderá decolar ou, a mesma proposição em outros termos, o “problema do Brasil é a corrupção”. Nas palavras de Moises Naim: “Corruption has too easily become the universal diagnosis for a nation’s ills. If we could only curtail the culture of graft and greed, we are told, many other intractable problems would easily be solved. Although it is true that corruption can be crippling, putting an end to the bribes, kickbacks, and payoffs will not necessarily solve any of the deeper problems that afflict societies”.  Esse reducionismo foi também alimentado por algumas posições de certos organismos multilaterais os quais, nas últimas décadas, direcionaram seus olhares ao tema da corrupção.  Por exemplo, para o Banco Mundial “Corruption is the single greatest obstacle to economic and social development”. Esta relevância outorgada a um fenômeno que (como veremos nos próximos posts) é extraordinariamente difícil se medir, induz no debate público vieses que chegam a alterar as prioridades e confundir magnitudes.  Por exemplo, a esdrúxula afirmação segundo a qual combatendo a corrupção se poderia reverter o déficit da previdência.  Como bem salientou Pedro Nery, nessa alegação se estão confundindo milhões com trilhões.

Ou seja, um dos custos da monopolização das atenções no combate à corrupção está vinculado ao reducionismo/simplificação de um processo complexo (como a retomada do crescimento e o processo de desenvolvimento em geral), que envolve diversas variáveis (investimento/poupança, educação, abertura ao exterior, etc.) em prol de uma dimensão que, não obstante a sua significância ética/moral, dificilmente possa ser identificada como a  condição  que permita transmudar os obstáculos que o Brasil enfrenta hoje para retomar uma senda de progresso econômico e social.

Contudo, abordar de forma mais rigorosa esse tema não é simples pela própria essência do objeto, fato que justifica o descolamento entre a produção acadêmica na área e sua utilização no debate público. Nos próximos parágrafos vamos detalhar várias dessas complexidades, e mesmo perplexidades, que nos depara o tema mesmo quando abordado a partir do olhar pretensamente rigoroso do modelo econômico corriqueiro. 

Um pré-requisito elementar para iniciar qualquer reflexão consiste em definir o objeto.  Em outros termos, de que estamos falando quando estamos debatendo a “corrupção”?  Essa definição e os corolários que dela se deduzem não são triviais.  Por exemplo, Jain (2001) afirma que: “Although it is difficult to agree with a precise definition there is consensus that corruption refers to acts in which the power of public office is used for personal gains in a manner that contravenes the rules of the game”. Treisman (2000) define a corrupção como “the misuse of public office for private gain”.  Esta definição, que parece ir ao encontro do zeitgeist hoje no Brasil, tem profundos corolários, uma vez que assume que a corrupção é monopólio do setor público, de seus funcionários ou da interação destes com o setor privado.  Não existiria corrupção na interação entre agentes do próprio setor privado.  Nas palavras de Gary Becker: “To Root Out Corruption, Boot Out Big Government”.  Nesta perspectiva, uma das alternativas para reduzir a corrupção seria ampliar os espaços mercantis, nos quais deveriam prevalecer as condições mais próximas à livre concorrência. Em recentes pleitos eleitorais no Brasil, foi utilizada um consigna segundo a qual, se a Petrobrás tivesse sido privatizada, não existiria o denominado Petrolão.  Ainda que os que fantasiaram com essa frase não soubessem, eles eram tributários de Gary Becker.

Essa definição, ao se circunscrever ao setor público, a seus agentes e à interação destes com o setor privado tem imprevistos desdobramentos.  Vamos nos deter em alguns deles, sejam porque são polêmicos seja porque denotam uma extrema fragilidade com a história recente.

Percebamos que restringir a corrupção ao setor público é uma delimitação que deixaria fora do escopo da análise episódios como o da Enron e várias das peripécias da crise da sub-prime nos EUA (AIG, Merrill Lynch, etc.).  Excluir, pela própria definição de corrupção, interações dentro do próprio setor privado do escopo de pesquisas pode induzir a qualificar a essa perspectiva algum matiz ideológico, especialmente porque as recomendações de política que dela se deduzem sempre irão no sentido de que a melhor forma de se combater a corrupção será reduzir o Estado e elevar o grau de concorrência nos mercados. Mais ainda, estender o raciocínio leva a adjetivar a corrupção. Vejamos.

Dessa abordagem decorrem diversas recomendações de política que podem, em princípio, serem vistas como hostis ao próprio senso comum que acompanha a palavra “corrupção”. Por exemplo, é famosa a afirmação de Huntington (1968) segundo a qual “In terms of economic growth, the only thing worse than a society with a rigid, over-centralized, dishonest bureaucracy is one with a rigid, over-centralized and honest bureaucracy”. Ou seja, existiriam situações nas quais, em termos econômicos, um setor público corrupto seria preferível a uma burocracia honesta. Gary Becker afirma que “…some of the corruption in totalitarian systems like the Soviet Union may be of the good kind because the laws are so bad”.

Mas não unicamente teríamos situações nas quais a corrupção seria preferível ou teria impactos positivos.  Segundo a perspectiva que estamos apresentando, ainda em situações menos extremas, como era o caso da União Soviética, as medidas anticorrupção teriam que ser submetidas aos normais critérios de custo/benefício.  Em outros termos, reduzir ou acabar com a corrupção poderia ter custos que superam os benefícios. Uma sociedade que pretendesse acabar completamente com a corrupção poderia incorrer em tais custos que, pelo ângulo dos custos/benefícios, não seria interessante. Assim, da perspectiva legal ou mesmo ética/moral a corrupção constitui uma atividade que sempre e em qualquer circunstância mereceria reprovação e castigo, e se tomarmos o paradigma dominante veremos uma tensão entre essas distintas perspectivas.  O mercado e a livre concorrência seriam um antídoto natural contra a mesma e em uma sociedade imaginária na qual sua forma de regulação estivesse inteiramente pautada pelas forças da oferta e demanda a existência de corrupção seria um contrassenso.  Mas, por outro lado, a mesma lógica de sopesar custos e benefícios pode levar a diagnosticar corrupções “boas” ou “justificáveis” e “níveis ótimos de corrupção”, a partir dos quais os benefícios de reduzir as ilegalidades são inferiores aos custos.  

Por outro lado, a racionalidade econômica que pauta o modelo canônico pode levar a situações paradoxais, próprias daqueles exercícios de laboratório que estão alimentando a popularidade da denominada Economia Comportamental. Lembremos que, no paradigma dominante, os agentes reagem a incentivos e penalidades, com castigos e recompensas que induzem atitudes.  Por exemplo, antecipa-se que a elevação de uma penalidade desincentive o comportamento que se está pretendendo reprimir.  Um estudo de campo ilustrado por Gneezy e Rustichini (2000) manifesta a possibilidade de um resultado que está nas antípodas do esperado.  Nos parece ilustrativo relatar o desfecho dessa experiência uma vez que ela nos pode auxiliar como parâmetro para debater o desenho de políticas anticorrupção.  Em uma escola, os pais retiravam seus filhos depois da hora de fechamento, cuja sequela era docentes e os próprios alunos cansados e entediados na espera.  Foi imaginada uma forma de reduzir essa espera mediante a introdução de uma multa para os pais em atraso, medida que se imaginava moderar o tempo de espera, uma vez que penalizava financeiramente essa conduta.  O resultado foi o contrário: os atrasos aumentaram.  Radicalmente distinto do esperado, os pais viam as multas por atraso como um preço a pagar por sua atitude, sendo um direito ultrapassar a hora na medida em que pagavam por isso.  Vamos agora para o caso da corrupção.  Se a mesma é assumida como estando submetida à racionalidade própria do Homo-Economicus, pretender reduzir a corrupção mediante penalidades maiores ou fiscalizações mais eficientes pode ter como corolário, devido a que o risco se eleva, não uma queda nas práticas senão uma elevação das propinas.

Assim, abordar a questão da corrupção desde a perspectiva do modelo canônico mais elementar, para o qual existiria uma identificação entre Estado e sua burocracia e essas práticas, tem diversos desfechos: o setor privado seria angelical, os mercados, uma maior concorrência e uma maior abertura comercial seriam o antídoto primário contra essas práticas, existiria uma corrupção boa e uma má, o cálculo custo/benefício pode não redundar no objetivo “zero corrupção” e o mecanismo de incentivos (penalidades e recompensas) não necessariamente vai desaguar nos resultados esperados.

Em próximos posts vamos nos concentrar com maior detalhe diversos aspectos que colocamos nos parágrafos anteriores.  Por exemplo, existe um claro problema no tocante à medição do fenômeno.  Nesse sentido, afirmações que identificam na corrupção o “principal obstáculo ao desenvolvimento” tem uma fragilidade intrínseca, uma vez que se podemos ter uma medida mais ou menos exata de outros indicadores (educação da força de trabalho, poupança/investimento, abertura ao exterior, etc.) os esforços para nos aproximar quantitativamente da corrupção partem de levantamentos de percepção da população, que pode não ser uma boa manifestação de fenômenos reais.  Por outra parte, o modelo canônico sofisticou e diversificou abordagens, chegando a uma verdadeira multidão de modelos.  Por último, as correlações entre desenvolvimento e corrupção (à margem das restrições associadas à sua medição, que acabamos de mencionar) são ricas em resultados, mas não deixam de estar abertas a interrogações (por exemplo, a relação de causalidade). 

 

As alterações no FGTS, Incentivos e Produtividade

Em um recente artigo, em sua coluna no Estadão, Pedro Nery avalia as alterações que estão sendo debatidas em torno às mudanças na formatação legal dos resgates no FGTS. Com seu habitual estilo, no qual temas que podem ser complexos e intrincados são apresentados em uma linguagem coloquial extremamente agradáveis de serem lidos, no texto em questão ele compartilha ou assume um diagnóstico relativamente usual em certos ambientes académicos. As atuais propostas de alteração nas retiradas do FGTS têm como referencial conceitual esse diagnóstico que, avaliamos, encerra diversas debilidades teóricas. Nesse sentido, na medida em que as sugestões de novos arcabouços institucionais estão ancoradas nesse posicionamento, debater essas fragilidades conceituais pode acabar sendo uma contribuição para aprimorar o futuro marco legal.

Basicamente, o argumento assumido por Pedro Nery em sua coluna de 30 de julho no Estadão sustenta que o FGTS faz parte de uma ordenação legal de proteção ao assalariado desligado sem justa causa que acaba decorrendo em maior rotatividade (menor tempo de duração do vínculo) e, indiretamente, resulta em menor crescimento potencial. Esta interpretação tem diversos referenciais bibliográficos (ver, por exemplo, Camargo (1996), Gonzaga (1998)), nos quais o FGTS faria parte de um leque de incentivos adversos (os outros seriam a multa sobre o saldo do FGTS, o mês de aviso prévio, as parcelas do seguro-desemprego) à permanência no posto de trabalho, ou seja, constituiria um incentivo à rotatividade. Os meandros mediante os quais esse conjunto de benefícios induziria à rotatividade são diversos. Para nos restringir ao FGTS, podemos citar dois aspectos. O primeiro diz respeito à remuneração desse fundo, que em não poucas oportunidades ficou aquém da inflação (perdas reais). Combinada com essa particularidade, de per si desfavorável a uma aplicação financeira, podemos agregar o segundo aspecto: a taxa de desconto que, no caso dos assalariados mais pobres, pode ser extremamente elevada. Ou seja, existiriam fortes incentivos à retirada dessa poupança forçada (lembremos que o FGTS não é outra coisa que uma poupança forçada) e aplicar esse montante seja em outra opção mais rentável seja no consumo. Existem diversas janelas para a retirada do FGTS (doenças como câncer e aids, compra da casa própria, etc.) mas, na ausência do preenchimento dos pré-requisitos para seu acesso, o óbvio seria forçar o desligamento sem justa causa.

Esses incentivos à rotatividade (uma rotatividade que seria espúria, produto de fronteiras de curtíssimo prazo por parte do assalariado) teriam desdobramentos sobre o longo prazo. Ao estar diante de uma perspectiva de vínculo extremamente reduzida, no olhar do empregador qualquer investimento (qualificação) no capital humano do assalariado não seria rentável. Dessa forma, à reduzida escolaridade da força de trabalho no Brasil (que já, por si só comprometeria a produtividade) deveriam ser agregadas as limitações (via incentivos) que o contexto legal-institucional introduz nas possibilidades de contornar a insuficiência da educação formal via acumulação de habilidades e proficiências no posto de trabalho. O resultado mais ou menos óbvio seria um crescimento potencial de longo prazo em doses homeopáticas.

Qual seria a proposta de política que se deduz desse diagnóstico? Evidentemente alterar esses incentivos à rotatividade e uma das possibilidades seria modificar o pagamento do FGTS. Por exemplo, permitir que o mesmo seja retirado anualmente ou, no outro extremo, só poderia ser retirado na aposentadoria. Nos dois casos, o assalariado não teria a incitação para induzir seu desligamento sem justa causa a fim de resgatar uma poupança que considera própria e que no seu balanço de custo/benefício prevalece a sedução da retirada. Podem ser imaginados outros desenhos institucionais (por exemplo, estabelecer tetos a partir dos quais não existiria contribuição, tornar o percentual variável e decrescente no tempo, etc.), mas, em todos os casos, o objetivo seria o mesmo: reduzir o suposto encorajamento à rotatividade.

Logicamente, o diagnóstico que acabamos de sintetizar precisa de uma validação empírica. Nesse sentido, as pesquisas são reduzidas e prevalece o modelo teórico (ou seja, prevalece uma possibilidade ou hipótese) para subsidiar desenhos de políticas. Porém, consideramos, justamente, que esse modelo apresenta enorme fragilidade teórica, vulnerabilidade que pretendemos desenvolver nos próximos parágrafos.

Observemos que todo o diagnóstico assume um agente (o assalariado) que pauta sua ação em função dos estímulos proporcionados pelo contexto legal/institucional que regula as relações capital-trabalho. Sua perspectiva de ganhos no curto prazo teria custos, seja para o trabalhador ele mesmo (ao inibir a acumulação de capital humano por parte do empregador, reduz as possibilidades de futuros aumentos de salários) seja para o crescimento do país seja para o próprio empregador, que reduziria a possiblidade de incorporar tecnologias, elevar a produtividade, investir, etc.. Os custos para o próprio empregador são evidentes e podem ser observados nas pesquisas que indicam que, para eles (empregadores), a falta de mão-de-obra qualificada é a principal restrição ao crescimento (ver, por exemplo, aqui). A pergunta natural é: por que não investem na qualificação de seus recursos humanos? Sabemos que, internacionalmente, existem diferentes configurações institucionais, podendo prevalecer seja o Estado proporcionando diretamente o treinamento/reciclagem, seja os próprios empresários assumindo a oferta mediante incentivos fiscais, seja iniciativas próprias das firmas à margem de qualquer iniciativa estatal (ver aqui). Existe literatura identificando a possibilidade teórica de uma firma investir no capital humano geral de seus assalariados (capital humano que pode ser utilizado em outras vagas além da firma que proporcionou o treinamento) com certa validação empírica (ver, por exemplo, aqui). Assim, a pergunta pertinente é: os incentivos adversos no Brasil seriam de tal magnitude que interditam o investimento por partes das firmas no seu próprio estoque de assalariados, mesmo identificando na falta de formação de sua mão-de-obra a principal limitação ao crescimento?

Dado que esse contexto institucional é próprio de cada país, voltemos ao modelo teórico que ancora as prescrições que hoje estão sendo discutidas no Brasil.

De início, observemos que esse marco conceitual apresenta só um agente ativo: o assalariado. O seu comportamento penaliza o outro agente (o empregador) que ficaria passivo e a mercê da conduta especulativa do primeiro. Esta suposição é insustentável. Detenhamo-nos neste aspecto.

Os incentivos do marco regulatório das relações capital-trabalho devem pautar não somente a conduta dos assalariados, mas também a dos empregadores. Ou seja, um marco regulatório não gera incentivos apenas a uma das partes, senão a todos os agentes que participam dos jogos. A hipótese de um arcabouço legal que gere incentivos a apenas uma das partes, não obstante seu irrealismo, está implícita no diagnóstico que apresentamos no começo do artigo.

Uma vez que um dos custos da demissão sem justa causa é a multa sobre o saldo do FGTS, o horizonte temporal do vínculo também deve alterar a conduta dos empregadores e existem evidências que o curto-prazismo também pauta o comportamento dos empregadores (ver aqui). Nesse sentido, vamos levantar a passividade do outro agente (os empregadores) e assumir que eles têm capacidade de reagir. Eles, necessariamente, são induzidos a não ficar contemplativos, uma vez que a rotatividade (com seus efeitos deletérios sobre as possibilidades de investimento no seu estoque de capital humano) impõe barreiras ao crescimento da empresa. A pergunta agora é: por que assumir uma atitude totalmente passiva por parte do empregador? qual é a justificativa teórica? A resposta é: absolutamente nenhuma. Não existe justificativa teórica que abra a possibilidade de assumir um jogo com um só jogador (o assalariado), sendo absolutamente passivo o agente que interage com ele, suportando estoicamente os custos. Não existem instrumentos que os empregadores possam recorrer para contornar a conduta especulativa dos assalariados? A resposta é sim, está sedimentada na literatura: o pagamento de salários de eficiência ou o estabelecimento de salário superior aos salários de mercado (salários diretos ou indiretos, como aposentadoria privada, bônus, plano de saúde, etc.). Ou seja, não existem justificativas teóricas que nos permitam assumir que, dado o marco regulatório das relações capital-trabalho, a taxa de rotatividade esteja exógena para o empregador, determinada, exclusivamente, pela conduta especulativa dos assalariados. As firmas têm capacidade de administrar essa taxa e a ferramenta são as remunerações (diretas e indiretas) que pagam a seus assalariados (ainda que possamos imaginar outras possibilidades, como o ambiente do lugar de trabalho, as expectativas de progressão funcional, etc.). Não imaginamos nenhum pretexto para não levar em consideração os modelos de salários de eficiência e as pertinências de uma firma maximizadora de lucros administrar a taxa de rotatividade. Dada a sedimentada literatura em torno do pagamento de salários além dos pagos nos mercados concorrenciais como forma de maximizar lucros, o desafio fica a cargo dos que sustentam o diagnóstico. Ou seja, a não consideração da possibilidade de pagamentos de salários de eficiência teria que ser justificada.

Segundo o modelo canônico, quanto menor a disponibilidade de um fator, maior seu retorno ou rendimento (lembremos as condições de Inada). Ou seja, se as habilidades e competências são realmente escassas e constituem a principal restrição ao crescimento das firmas, seu retorno teria que ser elevado, abrindo espaço para o pagamento de salários de eficiência. Contudo, existe um outro fator que elevaria os custos, além da baixa produtividade, que também não está sendo levado em consideração. Se o diagnóstico segundo o qual o assalariado induz a rotatividade para ter acesso ao FGTS e demais benefícios (multa, aviso prévio, etc.), a relação de causalidade seria: desligamento → contratações. Ou seja, ceteris-paribus, ao provocar seu desligamento, o trabalhador induziria uma nova contratação que visaria sua substituição, o preenchimento da vaga aberta pela sua partida. Legalmente, o aviso prévio serviria tanto para o assalariado se concentrar nas atividades de procura (no caso de um desligamento sem justa causa de iniciativa do empregador) quanto para procurar e treinar um novo assalariado (no caso de um desligamento cuja origem seja uma iniciativa do assalariado). Contudo, na prática, esse intervalo de trinta dias não é respeitado e as relações têm uma ruptura abrupta. Nessas circunstâncias, o desligamento induzido pelo assalariado abriria uma vaga que deverá ser preenchida mediante uma nova contratação, que requer tempo de procura, tempo de treinamento, etc., custos que na literatura se conhece como “custos fixos”. Preencher os requisitos de trabalho de forma imediata pode requerer a utilização mais intensiva de outro assalariado. Nesse sentido, pode-se apelar a horas extras e/ou a um outro assalariado que anteriormente era subutilizado. Ou seja, sabendo-se da rotatividade, o estoque de mão-de-obra pode estar, na posição de equilíbrio, sobredimensionado. Em qualquer caso, estamos diante de elevações de custo (seja pela utilização temporária de horas extras seja por um estoque de mão-de-obra sobredimensionado) que vão além da falta de qualificação (produtividade) dos assalariados. Reduzir esses custos (via queda na rotatividade) também justificaria o pagamento de salários de eficiência.

Ou seja, não existem justificativas teóricas para assumir que a rotatividade está determinada, exclusivamente, pelo comportamento de um dos agentes (o assalariado). As firmas podem administrar a rotatividade e uma vez que o horizonte temporal do vínculo tem desdobramentos sobre os custos, existem elementos para afirmar que existe espaço para assumir que os empregadores poderiam pagar salários de eficiência. Assumir que não estão pagando salários de eficiência pode redundar em abraçar a hipótese de firmas não maximizadoras de lucro, hipótese cara ao modelo padrão.

Direcionemos, agora, nossas atenções ao assalariado. Assumamos que o mesmo tenha uma elevada taxa de desconto intertemporal, admitamos que o retorno financeiro do FGTS possa incorrer em perdas reais e não seja a melhor alternativa de aplicação, etc.. Dado esse contexto, podemos deduzir que é racional utilizar a rotatividade como forma de resgatar o saldo do FGTS e auferir os ganhos complementares (multa, aviso prévio, etc.)? Esse corolário não é necessariamente imediato. Se lembramos que a rotatividade redunda em custos para as firmas, no momento da contratação os empregadores avaliarão os sinais de empregos anteriores, a duração dos vínculos e privilegiarão aqueles candidatos com tempo de permanência mais elevado. Em outros termos, os trabalhadores com maiores índices de rotatividade terão menos probabilidade de preencher as vagas disponíveis. Se assumimos que os assalariados sejam conscientes dessas menores chances e sejam racionais, seria uma hipótese ousada abraçar a ideia que o FGTS e os benefícios a ele atrelados, necessariamente, se exteriorizarão em condutas especulativas que tendem a reduzir o horizonte temporal dos vínculos. A esse risco (menores probabilidades de emprego futuro no segmento formal do mercado) poderíamos agregar outros, como a risco de não ser contratado depois de esgotados os benefícios, por exemplo.

Em qualquer circunstância, ampliar a estabilidade dos vínculos tem benefícios para as partes e externalidade para a sociedade. Sobre esse aspecto existem mais consensos que debate (ver, por exemplo, aqui). Também existe certa unanimidade sobre o circunscrito horizonte temporal dos vínculos celetistas no Brasil, que escassamente ultrapassam os 4 anos (Fonte: RAIS). Ou seja, alongar o limiar dos vínculos deve ser um objetivo de política e formatar um ambiente institucional para facilitar essa ampliação deve necessariamente nortear os debates sobre as reformas legais que pautam a relação capital-trabalho. Contudo, focalizar as atenções, de forma quase excludente, em uma suposta estratégia especulativa curto-prazista dos assalariados para auferir os ganhos financeiros que outorgam o atual marco legal parece uma simplificação analítica pouco sofisticada. Essa interpretação levanta mais perguntas que disponibiliza respostas. Se as entidades empresariais identificam na qualidade da mão-de-obra o principal obstáculos para seu crescimento, por que não investem na sua formação? O horizonte temporal dos vínculos não viabiliza esses investimentos, por que não administram essa rotatividade? Elas têm formas de influenciar no tempo de permanência. Por que o diagnóstico vigente assume que só o assalariado reage aos incentivos? O que leva a assumir que as firmas são passivas, ficando na conduta especulativa do trabalhador o determinante da rotatividade?

Em realidade, o que no fundo deve ser debatido é a qualidade dos postos de trabalho. Mesmo no setor formal, o tempo médio de duração do vínculo no Brasil é a manifestação de uma economia que não é capaz de gerar vagas com elevada produtividade. Não parecem satisfatórios os diagnósticos que se empenham em identificar no FGTS e nos benefícios ao trabalhador desligado sem justa causa uma variável com capacidade de alterar esse quadro. Talvez a relação de causalidade seja outra: dado que os postos de trabalho não são de qualidade (elevada produtividade) as firmas são incapazes de pagar salários de eficiência, os assalariados identificam nas condutas especulativas ganhos que superam os benefícios que obteriam permanecendo na mesma vaga, etc.. Isso, logicamente, não significa que todo o arcabouço regulatório não deva ser repensado, mas as justificativas e o desenho proposto podem ser outros. Por exemplo, carece de racionalidade ter dois tipos de compensação financeira ao celetista desligado sem justa causa (FGTS + seguro-desemprego); o FGTS, ao elevar o custo do trabalho, tem impacto negativo sobre o emprego e ao continuar existindo, o assalariado teria que ter liberdade de aplicar sua poupança na alternativa financeira de sua escolha, etc….. Esses argumentos são válidos. Contudo, não existem elementos que permitam depositar esperanças nas alterações em debate no pagamento do FGTS como um atalho para elevar a proficiência dos trabalhadores via elevação dos investimentos em formação, sendo o corolário postos de trabalho de maior qualidade e produtividade. Os argumentos analíticos que sustentam essa ilusão são de uma assustadora simplicidade.

Autor:

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Crise profunda, retomada lenta: um possível caminho de recuperação robusta para a economia brasileira

Em 2015, a taxa de crescimento da economia brasileira foi de -3,5%, pior resultado do PIB, desde 1990. Em 2016, o resultado também foi negativo em -3,5%, colocando o país em recessão, por dois anos consecutivos, o que não acontecia desde a crise de 1930 – 1931. Em 2017, a taxa de crescimento do PIB foi de apenas 1%, e em 2018, de 1,1% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE). Agora, em 2019, a perspectiva é de que a taxa de crescimento seja de apenas 0,82%.

Nesse contexto, o retorno do crescimento econômico sustentado é um desafio. Economistas apontam a necessidade de aumento do investimento na economia nacional (tanto do ponto de vista público quanto privado). Contudo, a taxa de investimento total em relação ao PIB apresentou declínio, pelo terceiro ano seguido, em 2016, alcançando 16,1%. O resultado em 2017 e 2018 foi ainda pior, ficando abaixo dos 16% a.a. Estes números não só refletem uma evolução interna ruim da nossa capacidade de investir (que já era baixa e, pior, veio se deteriorando nos últimos anos), como também demonstra um desempenho pífio quando comparado a outros países do mundo. Em 2018, por exemplo, 90% dos países apresentaram taxa de investimento maior que o Brasil.

Em especial, os investimentos em infraestrutura apresentaram contração importante no ano de 2015, em relação a 2014. Os dados oficiais de 2016 e 2017 são também frustrantes, mostrando que o investimento em infraestrutura total do país foi de 1,7% e 1,5% do PIB, respectivamente (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base). Em 2018, o montante de investimentos em infraestrutura foi praticamente o mesmo do ano de 2017. Essa situação deve-se, principalmente, à redução nos investimentos públicos, fruto da deterioração da situação fiscal do Estado, observada de forma mais contundente a partir de 2014, ano em que o país passou a apresentar déficits primários anuais, o que não havia acontecido até então. Como os investimentos são despesas ditas discricionárias, sofreram os cortes mais pesados do governo para a promoção do necessário ajuste fiscal. Explicando de modo mais detalhado, o orçamento público hoje é composto, em sua maior parte, por despesas obrigatórias e vinculadas. Portanto, numa situação de aperto fiscal, resta ao governo uma fatia realmente muito pequena que pode estar sujeita a cortes ou manobras. E, dentro dessa pequena fatia, situam-se os investimentos públicos, em especial, os investimentos em infraestrutura.

Entretanto, há vasta literatura que corrobora os efeitos positivos dos investimentos em infraestrutura no crescimento econômico dos países e também do Brasil. Ademais, no caso de investimentos em infraestrutura, há complementariedade entre gastos públicos e privados (Rigolon, 1998; Pêgo Filho, Cândido Júnior e Pereira, 1999), ou seja, um efeito “crowding-in, em que maiores gastos públicos no setor reduziriam custos logísticos e outros custos que compõem o Custo Brasil, atraindo maior monta de investimentos do setor privado, que poderia produzir e escoar sua produção de modo mais eficiente, alavancando sua produtividade e tornando-o mais competitivo.

Infraestrutura, Produtividade e Crescimento

A infraestrutura econômica pode ser definida, de acordo com o BID (2000), como “o conjunto de estruturas de engenharia e instalações – geralmente de longa vida útil – que constituem a base sobre a qual são prestados os serviços considerados necessários para o desenvolvimento produtivo, político, social e pessoal”. Visto dessa maneira, a infraestrutura é o estoque de capital físico sobre o qual são prestados serviços como o de telefonia celular, transporte de cargas, abastecimento de água, entre outros. Se infraestrutura pode ser traduzida em maior estoque de capital físico, então a relação da infraestrutura com as teorias de crescimento econômico pode ser feita, uma vez que maior acumulação de capital leva a maior nível de produto no longo prazo (Solow, 1956). Além disso, se um maior estoque de capital gera externalidades positivas, conforme apontado por Romer (1986), mais infraestrutura levaria a maior crescimento do produto no longo prazo. Isso sem falar nos efeitos indiretos que uma infraestrutura mais abundante e de melhor qualidade traria sobre a produtividade da economia.

Ainda, se a ampliação da infraestrutura estiver associada à investimentos em P&D e inovação tecnológica (como no caso de exploração de petróleo de gás, na área de infraestrutura energética), isso estimularia maiores investimentos e acumulação de capital humano, levando a um melhor desempenho de longo prazo na renda per capita do país, conforme apontaram os trabalhos de Romer (1990) e Lucas (1988).

Com boas instituições (que garantam os direitos de propriedade, sejam transparentes, adotem freios e contrapesos, reduzam custos de transação e riscos de expropriação) e com agências reguladoras que apresentem salvaguardas para o comportamento do regulador (conforme levantado por Levy e Spiller, 1996), os atores econômicos terão mais previsibilidade e segurança com relação ao futuro, o que reduzirá incertezas e a percepção de riscos por parte dos agentes e atrairá mais investimentos, em especial no setor de infraestrutura, que tem como premissa elevados investimentos iniciais e alongamento no tempo de retorno desse investimento. Ou seja, para o setor de infraestrutura, ter um ambiente institucional e regulatório apropriado, que promova investimentos, pode ser ainda mais relevante que em outros setores, devido ao grande montante inicial requerido e ao tempo dilatado de payback.

Portanto, instituições sólidas e respeitadas em conjunto com um ambiente regulatório bem estruturado e desenhado de forma a gerar incentivos corretos para o setor de infraestrutura têm o potencial de alavancar os investimentos na área, promovendo maior acumulação de capital, impactando positivamente na produtividade e no crescimento econômico de longo prazo da economia.

Se o caminho teórico é conhecido e ratificado por uma extensa literatura, o caminho da implementação e da colheita de resultados não é nada trivial. Conforme temos visto desde janeiro desse ano, o novo governo, de forma pragmática, não tem conseguido, ainda, bons resultados em termos de produto e de emprego na economia. Conforme dito no primeiro parágrafo, a última previsão de crescimento do PIB brasileiro para este ano está em apenas 0,82%, valor abaixo do crescimento de 2017 e 2018, e bem menor do que as previsões e expectativas de crescimento no início do ano, quando o atual governo foi empossado (o governo falava em perspectiva de crescimento de 2,5% para o ano de 2019). Ou seja, aparentemente, toda aquela euforia inicial foi perdendo força ao longo do caminho. Como fazer, então, para ganharmos fôlego novamente e voltarmos a ter uma economia com crescimento maior e mais robusto?

É difícil, mas o momento agora é crucial. Com a aprovação da reforma da previdência na Câmara, um passo importante foi dado. Além disso, o setor de infraestrutura tem ganhado atenção do governo Bolsonaro, que tem dado continuidade no trabalho de concessões desenvolvido e aprofundado pela equipe econômica do governo Temer. Avanços estão sendo feitos, em especial, no setor de transportes (rodovias, ferrovias, aeroportos, portos).

O caminho de crescimento e desenvolvimento econômico no país certamente passa por maiores investimentos em infraestrutura. Mas precisamos ter em mente que isso é condição necessária, e não suficiente. Investir em infraestrutura é essencial, mas é preciso também garantir a estabilidade macroeconômica, a segurança jurídica, a confiança dos investidores nacionais e estrangeiros, o bom funcionamento das nossas instituições, a transparência na escolha e implementação de projetos, o sistema democrático. É preciso, ainda, ser otimista, e esperar que amanhã seja melhor do que hoje. I hope so.

Autora:

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.