No contexto atual, no qual empresas tradicionais estão enfrentando forte concorrência de startups ou das grandes empresas de tecnologia, muito tem se falado sobre “transformação digital”. Mas, o que isso significa? De acordo com Khan (2016), transformação digital é o “processo acelerado de adaptação técnica de indivíduos, empresas, sociedades e países à digitalização de tudo.”
A título de exemplo, é assustador o impacto que o smartphone teve na sociedade global em pouco mais de dez anos de existência. Na imagem ao fim deste post, há uma propaganda de 1991 da Radio Shack, uma das maiores redes varejistas eletrônicos nos EUA à época. Nela, 13 dos 15 produtos ofertados são facilmente encontrados em smartphones. A eleição no país mais rico do mundo pode ter sido decidida em grande medida por uma plataforma que começou há 14 anos com o simples propósito de conectar estudantes de Harvard. Redes sociais foram o motor de uma das maiores ondas revolucionárias do Oriente Médio, a chamada Primavera Árabe. Uma empresa de tecnologia da Califórnia compete diretamente com taxistas ao redor do mundo. E por aí vai.
Os exemplos de como as tecnologias digitais têm impactado o mundo são praticamente infinitos. O fato é que as empresas tradicionais que quiserem sobreviver a esse mundo cada vez mais digital têm e terão que se transformar e se adaptar constantemente. Portanto, para empresas, “transformação digital” se refere, principalmente, a se tornarem capazes de se adaptarem a um cenário cada vez mais mutável. David L. Rogers, em seu livro de 2016 “The digital transformation playbook: rethink your business for the digital age”[1], apresenta cinco grandes áreas em que a transformação digital é mais evidente: consumidores, competição, dados, inovação e valor.
Na parte de consumidores, o que é mais destacado é como eles, os consumidores, têm se tornado mais influentes nas decisões de outros consumidores. Atualmente, restaurantes, hotéis, bancos e negócios de qualquer setor sabem (ou deveriam saber) que a sua reputação pode ser profundamente abalada por resenhas negativas em plataformas como o Google, Facebook, Tripadvisor ou ReclameAqui. Por outro lado, se, antes, o fluxo de valor era unidirecional, no sentido empresa-cliente, hoje, ele é recíproco. Um hotel oferece valor (estadia) para um cliente e recebe valor (reputação) do cliente que o resenha. Por fim, nesta área, vale ressaltar a expectativa cada vez mais presente da customização em massa. Da mesma forma que um usuário do Netflix espera que a sua experiência seja customizada especificamente para ele, cada vez mais o consumidor espera o mesmo de cada serviço e produto que ele adquire, seja ele presencial ou digital.
Na área de competição, destaca-se cada vez mais a competição entre empresas aparentemente de setores distintos. Atualmente, uma empresa de tecnologia norte-americana (AirBnB) compete com uma pousada brasileira. O Google compete até com médicos, ao dar informações cada vez mais detalhadas a respeito de doenças, seus sintomas e tratamentos. Ao mesmo tempo, há, em alguns casos, cooperação entre competidores em áreas-chave. Por exemplo, Google, Facebook, Amazon, IBM e Microsoft cooperaram para estabelecer padrões éticos para o uso da Inteligência Artificial. Por fim, no mundo digital, a competição pode ser difusa, mas há tendência, em vários mercados, de um cenário de winner-takes-all por conta dos efeitos-rede e dos modelos de negócio de plataforma.
Os dados também são um componente importante da transformação digital. Até pouco tempo atrás, dados eram caros de se obter e gerenciar. Atualmente, os dados estão cada vez mais abundantes e a principal dificuldade é transformar dados em valor, algo que as gigantes da tecnologia já conseguem fazer com maestria. Só é possível atender à já mencionada demanda por customização com a análise contínua de dados sobre o usuário. Como exemplo disto, basta lembrar o tanto que o Cambridge Analytica declarava conhecer sobre os usuários do Facebook. Segundo foi revelado, com poucos likes, é possível conhecer alguém mais profundamente do que os amigos e familiares da pessoa.
A formas de se inovar também têm mudado consideravelmente. Atualmente, é muito mais barato, rápido e fácil testar ideias. Entre startups, é comum lançar uma página anunciando um serviço que ainda nem existe para medir o interesse dos consumidores na ideia e colher feedback antes mesmo de se começar a desenvolver a ideia.
Outra mudança é o foco no problema. Atualmente, empresas que dominam mercados iniciaram atacando um problema claro e comum aos consumidores: o Uber começou a atuar pois percebeu que táxi era algo caro e burocrático e não resolvia eficientemente o problema do transporte individual; o AirBnB começou pois viu que os hotéis não eram suficientes e nem baratos em grandes cidades; o Google percebeu que, à época, ainda era difícil de se encontrar respostas na Internet, etc. Por fim, as empresas inovadoras têm menos foco no produto “finalizado” e se concentram em lançar um produto minimamente viável (MVP) que resolva um problema específico para aprender com o uso pelo cliente e evoluir constantemente. Serviços como Facebook, Whatsapp e outros têm atualização quase diária, ou seja, nunca têm um produto “pronto”.
Outra área afetada pela digitalização de tudo é o valor. Antes, a proposta de valor de uma empresa era facilmente compreendida: uma empresa automobilística entregava carros como valor. Hoje, uma empresa como a Amazon entrega qual valor exatamente? A empresa, que começou como uma simples loja de livros online, tornou-se megavarejista; fabricante de hardwares que entregam conveniência (Kindle, Amazon Echo, etc); espaço em nuvem para empresas; entre outras atividades, e está constantemente buscando novas formas de entregar valor para os seus clientes. Nas palavras de Rogers (2016), se, no passado, o sucesso permitia a complacência, hoje, “só os paranóicos sobrevivem.” Na visão do autor, as empresas que não buscarem novas formas de gerar valor para os seus clientes provavelmente morrerão antes do que esperam.
Com tantas mudanças, é importante ressaltar que, em geral, a mudança na estratégia e no modelo de negócios de uma empresa costuma ser mais relevante do que a tecnologia em si para responder aos desafios que resultam da digitalização de tudo. Essa é a conclusão de estudo do MIT com Deloitte feito com empresas do mundo inteiro e bem sintetizado e debatido em artigo de Sílvio Meira (2017), do Porto Digital. Afinal, o que há de mais disruptivo no modelo Uber não é a tecnologia em si, mas, sim, o seu uso para viabilizar um modelo de negócios que resolve um problema do dia-a-dia de maneira exponencial.
Em tempos de commoditização digital, se as empresas brasileiras quiserem ter relevância no mercado global, não bastará a elas utilizar as últimas tecnologias. Será preciso usá-las para oferecer produtos e serviços de maneira inovadora.
Imagem – Propaganda da Radio Shack de 1991. 13 dos produtos vendidos estão atualmente embutidos ou vendidos como aplicativos em smartphones
[1]No Brasil, o livro foi traduzido como “Transformação digital: Repensando o seu negócio para a era digital” (Autêntica Business, 2017)
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