Vimos, em um post anterior uma descrição conceitual do que chamamos de “semiformalidade”. Agora apresentaremos um exemplo de como esse constructo se desenvolve na realidade do espaço econômico brasileiro. Se observarmos com cuidado as cadeias de produção e de consumo de vários setores da economia nacional, constataremos que a complementaridade entre formal-semiformal-informal se reproduz em muitas delas. No entanto, alguns desses casos podem ser considerados como paradigmáticos. Descreveremos aqui o caso da cadeia de produção e consumo do automóvel, um dos bens de maior “desejo” na sociedade brasileira.
A figura 1 e o quadro 1 apresentam uma representação esquemática da estrutura da cadeia de produção e de consumo que se desenvolve a jusante da indústria do automóvel. No esquema, estão apresentados apenas alguns dos componentes dessa cadeia que, evidentemente, é bem mais complexa do que aquilo que está aqui representado. Além disso, as características atribuídas a cada um dos agentes da cadeia são as que nós consideramos como dominantes; isto é, características que podem ser encontradas com razoável frequência nesses agentes e cuja constatação pode ser feita tanto pela observação direta, quanto por registros da imprensa.
FIGURA 1 – Cadeia de Produção e Consumo a Partir dos Automóveis
QUADRO 1 – Cadeia de Produção e Consumo a Partir dos Automóveis
Nessa cadeia podemos ver, em primeiro lugar, o conjunto de serviços prestados aos proprietários de veículos. Inicialmente, temos os serviços de reparos automotivos [A]. Existem, como prestadores desses serviços, oficinas autorizadas pelos fabricantes, todas elas formais e operando, a princípio, integralmente na formalidade. Existem também as pequenas oficinas independentes; são empresas com existência formal (CNPJ), mas que em muitos casos têm boa parte de suas operações na semiformalidade (isto é, sem Nota Fiscal). Finalmente, temos as oficinas conhecidas como de “fundo de quintal”; oficinas sem existência legal, muitas operando até mesmo nas vias públicas.
As autopeças [B] utilizadas pelas oficinas podem provir de um mercado formal, no qual são comercializadas as chamadas “peças originais”, produzidas por fabricantes “reconhecidos” pelas montadoras de veículos e que possuem autorização para utilizarem suas marcas. Além desse, há também o “mercado paralelo”, caracterizado por autopeças que são cópias das “originais”, mas provenientes de fabricantes não reconhecidos e que possuem variados níveis de qualidade. Além de parte desse mercado operar na semiformalidade, há contendas legais acerca do uso de marcas e desenhos industriais, com destaque para uma disputa no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre a Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças (Anfape) e as montadoras Ford, Fiat e Volkswagen que, em 2010, foi decidida em Averiguação Preliminar favoravelmente à primeira (D’Araújo, 2015). Há, ainda, os desmanches de carros (ou “ferros-velhos”), que comercializam peças e componentes usados oriundos, a princípio, de veículos acidentados. Nesse mercado, é possível encontrar empresas com registro legal (CNPJ), mas que, em geral, operam na semiformalidade, e empresas informais, isto é, sem existência legal. Além disso, nesse segmento ocorrem também operações criminosas, nas quais são comercializadas peças de veículos roubados. Estas são realizadas tanto por empresas formais, quanto por organizações informais.
Ainda nos serviços, existem aqueles que são prestados aos proprietários de automóveis nas ruas das cidades [C]. Relacionamos, em primeiro lugar, os serviços de estacionamento. Nesse grupo, podem ser encontradas os concessionários oficiais de estacionamento, que operam dentro da formalidade sob concessão das prefeituras. A esses, somam-se os guardadores autônomos de veículos; categoria essencialmente semiformal, uma vez que são também “legitimados” pelas prefeituras. Há ainda os chamados “flanelinhas”, que são também guardadores autônomos, mas que não são cadastrados (“legitimados”) pelos governos municipais. Finalmente, há um esquema de extorsão travestido de serviço de guarda e estacionamento: são indivíduos que, a partir de uma ameaça velada ou explícita de perpetrarem danos ao veículo, exigem uma determinada quantia para “vigiar” o carro estacionado. É uma prática análoga ao notório “seguro” oferecido pelas diversas “Máfias” aos comerciantes de suas áreas de atuação (Saviano, 2008). Além da guarda, nesta mesma categoria de serviços, há a lavagem de automóveis. Quando executados por empresas formais, é prática corrente a subnotificação fiscal (semiformalidade). Também é um serviço que pode ser encontrado sendo prestado em vias públicas de modo totalmente informal. Por fim, registramos uma prática frequente nas grandes cidades, que é a lavagem de para-brisas de veículos nos sinais de trânsito, oferecida em sua totalidade por menores carentes em troca de algumas moedas.
O segundo elo da cadeia que relacionamos é o de fornecimento de combustíveis (gasolina, álcool, diesel e GLP). Ele é composto, primeiramente, pelo varejo de combustíveis [D]: os postos de abastecimento. Salvo exceções, são empresas formalmente estabelecidas e cuja maior parte das operações comerciais ocorrem dentro das normas legais de registros fiscais. Todavia, é muito comum que essas empresas façam uso de empregados sem contratos formais de trabalho e sem o cumprimento de inúmeras obrigações trabalhistas, caracterizando-se, portanto, como atuando na semiformalidade nesse aspecto específico. Há ainda, e é fato frequentemente registrado nesse mercado, a ocorrências de venda de combustíveis adulterados com a adição de diversas outras substâncias (na maioria dos casos, álcool na gasolina). Nestes casos, ultrapassa-se a extralegalidade para se ingressar no mundo do crime.
Os postos de combustíveis usualmente aceitam como meio de pagamento os cartões de débito e de crédito [E]. As operadoras desses cartões são empresas multinacionais vinculadas às instituições bancárias do país. São, portanto, empresas essencialmente formais e os registros dessas transações, até onde se saiba, se dão dentro do mais estrito cumprimento da legislação fiscal. Porém, todas essas operadoras terceirizam seus serviços de teleatendimento [F]. Jessé de Souza e Ricardo Visse (Souza et al., 2012) descrevem as características de precarização do trabalho formal que se desenvolve nas empresas que prestam esse tipo de serviço. A essa análise, acrescentamos aqui o fato notório de que muitas dessas empresas, visando burlar as obrigações legais trabalhistas, contratam seus operadores de atendimento na forma “contratos de estágio universitário”, o que caracteriza mais um caso de semiformalidade em razão da precarização das relações de trabalho. Essa situação suscitou até mesmo a promulgação de um novo dispositivo legal, a Lei Nº 11.788/2008 (Brasil, 2008), como uma tentativa de coibir tal prática.
Na continuidade dessa cadeia, temos a produção de combustíveis [G], na qual novamente a semiformalidade se manifesta nas relações de trabalho: nas usinas de álcool e fazendas de cana-de-açúcar [H] frequentemente são verificadas condições de trabalho precário, inclusive com registros de exploração de trabalho escravo, o que constitui atividade criminosa. Fazendo parte dessa mesma cadeia, existem as refinarias e empresas e exploração de petróleo [I]. Esse segmento é dominado quase que exclusivamente por uma empresa estatal, que é a maior empresa do país (a Petrobrás), e por grandes corporações transnacionais, caracterizando-se, portanto, por operar – ao menos em tese – na mais estrita formalidade. Complementando esse ramo da cadeia, podemos ver os centros de pesquisa da indústria de petróleo [J], atividade que envolve institutos pesquisa, centros de P&D de empresas, e universidades. Nessas instituições são desenvolvidas tecnologias extremamente sofisticadas, que vão desde técnicas para exploração de petróleo em águas profundas, ao desenvolvimento de combustíveis de alta performance para a Fórmula 1. Ou seja, as atividades mais “nobres” e sofisticadas de todo o complexo econômico. Neste segmento, é comum a existência de serviços de consultoria altamente especializada prestada por indivíduos autônomos, mas que são contratados como se fossem pessoas jurídicas, mascarando assim relações de trabalho sujeitas a regulação específica.
O último ramo da cadeia aqui considerado é o relativo à regulação do uso dos automóveis. Consiste, basicamente, no licenciamento de veículos e na habilitação de condutores [K]. Ambas são atividades privativas do Estado. No entanto, há a possibilidade de intermediação [L]. No caso das habilitações, essa intermediação é obrigatória, uma vez que o candidato à licença de condutor deve necessariamente frequentar um curso de formação oferecido por uma autoescola, que são empresas privadas, homologadas pelo poder público e que tendem a operar na formalidade. No entanto, a existência de um comércio criminoso de carteiras de habilitação (concessão da licença sem que o candidato se submeta aos exames necessários) é fato amplamente conhecido e noticiado. Já para o processo de licenciamento anual (e transferência de propriedade) de veículos, a intermediação não é obrigatória, podendo o cidadão cuidar pessoal e diretamente de todos os trâmites. Entretanto, em face de entraves burocráticos e da frequente precariedade no atendimento, é comum que o proprietário do veículo recorra a um despachante, os quais, comumente, desenvolvem parte de suas operações na informalidade.
A partir desse exemplo – que possui um representativo peso na economia nacional – podemos constatar como, partindo de empresas transnacionais e atividades de altíssimo conteúdo tecnológico, passando pelo Governo, e chegando até a serviços prestados por indivíduos nas vias públicas da cidade, a formalidade e a informalidade, através de um processo de simbiose, se imbricam e se complementam na construção do espaço da semiformalidade.
Outra constatação é o relevante papel do setor de serviços nesse construto, mesmo quando se trata da cadeia de produção e consumo de um produto (um bem) típico da manufatura.
Há, ainda, a possibilidade do caminho inverso, no qual a construção da semiformalidade e seu imbricamento em uma cadeia de produção e consumo se dão a partir de uma trajetória que parte do mundo informal em direção ao formal. Mas este será assunto para um outro post…
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei do Estágio. Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes; altera a redação do art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996; revoga as Leis nos 6.494, de 7 de dezembro de 1977, e 8.859, de 23 de março de 1994, o parágrafo único do art. 82 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e o art. 6o da Medida Provisória no2.164-41, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Brasília, 2008..
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SAVIANO, Roberto. Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
SOUZA, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
NOTAS:
Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).
As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
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