1. Antes de qualquer coisa: o que é uma firma?

As questões fundamentais da ciência econômica são: o quê, como, quanto e para quem produzir. Portanto, seu objeto de estudo é a alocação de recursos escassos para atendimento de necessidades ilimitadas. Há várias formas de se alocar recursos: os mercados e as firmas são algumas delas.

Uma teoria da firma tem como objetivo explicitar as razões para a existência de tal tipo de organização, bem como suas funcionalidades. Não há consenso, mas uma teoria da firma bastante difundida entre economistas é a teoria dos custos de transação (TCT) do Oliver Williamson, laureado com o Nobel de Economia de 2009 (partilhou a premiação com Elinor Ostrom).

A ideia central da TCT é que usar mercado envolve custo. Por exemplo, no sistema de proto-manufatura do tipo putting out, os mercadores barganhavam uma grande quantidade de contratos de fornecimento com diferentes artesãos autônomos, de forma descentralizada e não sincronizada. Barganhar, coordenar e monitorar contratos envolvia (e ainda envolve) custos e riscos elevados.

Trazer todas as máquinas e artesãos para dentro de um mesmo ambiente de trabalho, onde (i) o processo de produção passou a ser controlado e monitorado; (ii) foram estabelecidas condições de subordinação, hierarquia e comando; e (iii) onde os contratos de fornecimento foram substituídos por contratos de trabalho; foi uma forma de alocar recursos com custos menores, ou seja, de forma mais eficiente. Essa solução alocativa foi chamada de firma.

  1. Concentração: por que as firmas crescem?

A trajetória pela qual um produto ou serviço é desenvolvido, concebido, manufaturado e comercializado envolve uma grande quantidade de transações. Essas transações podem ser conduzidas por meio dos mercados. Quando os custos de transação são elevados, a firma pode internalizar tais trocas. Logo, a firma crescerá à medida que o custo de internalizar tarefas for inferior ao custo de se recorrer às trocas de mercado. Portanto, a eficiência da firma em internalizar custos de transação determinará seu tamanho, bem como seus graus de integração vertical e horizontal.

A dimensão concorrencial (a disputa por frações crescentes de mercado) também determina o tamanho das firmas. Alguns bens ou serviços são produzidos com economias de escala, ou seja, quanto maior o tamanho da firma, menor será o custo de se produzir uma unidade adicional daquele bem. Nestas situações encontramos os monopólios naturais. Barreiras à entrada a novos concorrentes, tais como patentes, também constituem formas de alavancar o crescimento das firmas incumbentes (aquelas que já se encontram nos mercados). As firmas também podem crescer de forma não orgânica, ou seja, simplesmente adquirindo outras firmas.

  1. Por que as firmas da economia digital são tão grandes?

A maioria das empresas de tecnologia são plataformas digitais e plataformas eficientes são plataformas grandes. Por exemplo, uma operadora de plano de saúde é um tipo de plataforma (não necessariamente digital) de dois lados, onde de um lado temos os pacientes e do outro temos os médicos, clínicas e hospitais. Uma administradora de cartões de crédito também é uma plataforma.

Numa plataforma eficiente e bem sucedida, os usuários devem desfrutar dos benefícios dos efeitos de rede (network effect). Esse benefício será maior, quanto maior o número de usuários nos dois lados da plataforma. Por exemplo, nenhum paciente ficará feliz em adquirir um plano de saúde com uma rede credenciada reduzida. Os médicos também terão incentivos reduzidos em aceitarem um seguro de saúde que cobre poucos usuários.

Uma rede social é uma plataforma digital, onde as pessoas partilham conteúdo. Tais plataformas podem trazer grande valor para seus usuários, sem que os mesmos necessariamente paguem por partilhar conteúdos. Os usuários também proporcionam grande valor para as plataformas, afinal a circulação massiva de pessoas e organizações naquela infraestrutura a torna uma espécie de “Rua 25 de Março” de proporções globais. Com uma diferença relevante: a plataforma é capaz de coletar informação estratégica (inferência sobre hábitos, costumes, padrão de consumo, capacidade de pagamento, etc.) de cada uma das pessoas daquela multidão. Tais inferências são possíveis por conta dos comportamentos e dos padrões de interação dos usuários na plataforma. O potencial de geração de valor econômico disso é incomensurável e é refletido no enorme valor de mercado de tais corporações.

  1. O poder de edição das plataformas digitais

O poder de edição das plataformas digitais é também conhecido como gatekeeper power. A teoria do gatekeeper power foi originalmente associada ao poder de edição da imprensa e o suposto exercício de noticiar apenas o que os jornalistas assim desejam. Cabe destacar que não há um consenso na teoria do jornalismo se tal poder de edição de fato exista. No caso das plataformas digitais, o poder de edição se daria de forma semelhante, mas não estaria limitado à circulação de notícias, mas também a qualquer forma de conteúdo partilhável, inclusive publicidade e propaganda.

Algumas questões merecem ser endereçadas nesse ponto: as plataformas digitais teriam de fato poder de influenciar preferências e decisões de consumo? Você compraria um produto pelo simples fato do algoritmo inferir isso e divulgá-lo em sua timeline? As corporações que adquirem espaços publicitários nestas plataformas realmente acreditam que vão alavancar vendas? As respostas parecem ser positivas para todas estas perguntas.

Isso também significa que podemos ser potenciais consumidores de um bem ou serviço que sequer sabíamos da existência, mesmo porque tal bem é capaz de suprir uma necessidade que sequer nos incomodava até então. Mito ou realidade, o fato é que os empreendedores são guiados por tal crença, como pode ser constatado nas palavras de Steve Jobs: “a lot of times, people don’t know what they want until you show it to them”.  Se de fato isso for verdadeiro, o poder econômico de edição das plataformas digitais é, mais uma vez, proporcional ao valor de mercado de tais corporações.

  1. O poder de imputar custos a rivais

O poder econômico de uma grande corporação, associado ao poder de edição de veiculação de informações (gatekeeper power) acerca de bens e serviços (que as pessoas não sabiam que desejavam até que tenham sido apresentados e elas), proporciona à plataforma uma capacidade gigantesca de geração de sinergias com novos negócios. Por exemplo, distribuir e comercializar conteúdo digital em geral, tal como notícias, músicas, filmes, softwares, soluções e aplicativos em geral.

Contudo, o mesmo poder de edição pode ser usado para imputar custos aos rivais e a potenciais entrantes nos diferentes mercados explorados pela plataforma, inclusive contra startups provedoras de produtos altamente inovadores e diferenciados. Um suposto uso abusivo do poder de edição teria como efeito a restrição de espaço para divulgação de tais soluções aos potenciais consumidores, de modo que a probabilidade de sucesso na introdução de uma inovação por rivais ficaria, ao menos teoricamente, bastante reduzida. Parece claro que as consequências disso em termos de bem estar da sociedade são bastante negativas, uma vez que limitaria a velocidade com que as inovações são produzidas e difundidas na economia.

  1. A teoria política da firma e o círculo vicioso de Médici

Em artigo publicado em 2017 no prestigioso periódico Journal of Economic Perspectives, Luigi Zingales sugere a construção de uma teoria política da firma. A proposta teórica do artigo, intitulado “Towards a Political Theory of the Firm”, gira em torno da noção do que o autor denomina de círculo vicioso de Médici, em referência ao poder econômico da família de banqueiros e mecenas fiorentinos da Renascença.

Os Médici não apenas acumularam fortuna com seus negócios, mas também tiveram papel fundamental na construção da revolução cultural e científica do Renascentismo. Adicionalmente, obtiveram êxito político extraordinário ao garantirem, por exemplo, que quatro de seus membros exercessem um dos postos políticos mais poderosos e influentes do mundo ocidental: o Papado da Igreja Católica.

Sabemos que o faturamento de muitas das modernas corporações da economia digital supera até mesmo a arrecadação tributária de vários países. Isso significa que tal poder econômico seja capaz de influenciar de forma decisiva as “regras do jogo” que moldam o ambiente de negócios de uma economia capitalista. Portanto, grandes corporações podem usar o poder econômico para obtenção de poder político, de forma a influenciar as “regras do jogo”, garantindo assim mais poder econômico, que proporcionará mais poder político e ainda maior capacidade de influenciar na construção das “regras do jogo” e assim por diante. Cabendo destacar que as “regras do jogo” não se limitam ao âmbito dos Estados Nacionais, mas também as “regras do jogo” dos mercados globais e dos acordos multilaterais.

A lógica da alocação de recursos no interior das firmas não segue, necessariamente, a mesma lógica de alocação de recursos por meio dos mercados. Como foi brevemente descrito na primeira seção deste artigo, segundo a TCT, quando os custos de transação dos mercados são elevados, a firma internalizaria tais trocas. Portanto, a firma seria, sob algumas condições e circunstâncias, um substituto dos mercados. Logo, não faria muito sentido imaginarmos que firmas e mercados seguissem os mesmos padrões de regras alocativas. Neste sentido, fica claro interpretar o argumento de Zingales, quando o mesmo sugere que a extensão do círculo vicioso de Médici depende de vários fatores não relacionados aos mercados.

  1. Política Antitruste e Defesa da Concorrência

Vários países dispõem de legislação antitruste (algumas mais sofisticadas que outras) que busca endereçar alguns dos problemas acima relacionados. O “pacote básico” de política antitruste inclui controle de concentrações (análise de fusões e aquisições) e repressão às condutas unilaterais (abuso de posição dominante) e concertadas (cartéis).

Algumas jurisdições dispõem de relativa riqueza de recursos humanos e materiais para exercer tais tarefas, como são os casos do sistema FTC/DOJ dos EUA e do DG Comp da União Européia. Mesmo em tais jurisdições, há um debate em torno da ideia de que o atual conjunto de ferramentas disponíveis para estas autoridades não seja suficiente para lidar com os novos desafios impostos pela economia digital. Parte disso se deve ao fato de que autoridades da concorrência se guiam em torno da noção de mercados (principalmente a noção de mercados relevantes) e, como já discutido ao longo deste artigo e sugerido por Zingales, os mercados podem ter muito pouco a revelar acerca da real extensão dos círculos viciosos envolvendo poder político e poder econômico.

No caso brasileiro, dispomos do CADE: uma autoridade antitruste que desfruta de excelente reputação internacional, além de agregar um quadro técnico e diretivo bastante qualificado. Contudo, há uma grande heterogeneidade qualitativa na qual o CADE processa casos envolvendo atos de concentração (AC’s), cartéis e condutas unilaterais. No caso dos AC’s e dos cartéis, o CADE consolidou de forma muito satisfatória sua atuação, de modo que seu desempenho não destoa do que é produzido nas melhores jurisdições do mundo. Contudo, no âmbito da análise das condutas unilaterais, com destaque àquelas relacionadas ao abuso de posição dominante, há um caminho longo a ser percorrido. O problema é que a maioria dos potencias efeitos colaterais da concentração da economia digital são refletidas nestas formas de conduta.

A solução não é muito trivial. Eu mesmo exerci a função de economista-chefe do CADE entre os anos de 2014 e 2016. Costumava interagir com os economistas de outras autoridades, principalmente dos EUA e Europa. A diferença de prioridades era nítida. Enquanto eu tinha como tarefa prioritária contribuir na consolidação de um protocolo de análise prévia de AC’s (atualização de Guia e construção de modelos de simulação) e de estimativas de danos de cartéis, meus colegas dos EUA e Europa já haviam superado isso e toda a energia disponível era alocada para análise de condutas unilaterais.

As prioridades eram óbvias. Da nossa parte, estávamos lidando com um cenário de concentração e consolidação de mercados e cadeias produtivas (inclusive estimuladas por políticas públicas) e com o desmantelamento de cartéis por meio de acordos de leniência, por exemplo. Já nossos colegas de Europa e EUA estavam mais preocupados com a atuação de gigantes da economia digital, pois já sentiam de forma mais evidente os efeitos colaterais de seu gigantismo.

Esse amadurecimento da política antitruste no Brasil foi reportado de forma bastante elucidativa por Amanda Athayde, em seu artigo de opinião de 01/11/2017 no Portal JOTA, intitulado “As três ondas do antitruste no Brasil: A Lei 12.529/2011 e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica”. Como bem apontado pela autora, superamos a primeira (análise de AC’s) e segunda onda (cartéis), mas a “terceira onda” ainda está “a ser iniciada no Brasil”.

Espero que sejamos rápidos, para que também possamos construir e aprimorar nossas “regras do jogo”, que busquem priorizar o gênio inovativo e empreendedor de um capitalismo brasileiro que ainda não tivemos a felicidade de construir.

Luiz A. Esteves é Economista Chefe do Banco do Nordeste (BNB) e Professor do Departamento de Economia da UFPR. Foi Economista Chefe do CADE e Chefe Adjunto da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento. Doutor em Economia pela Universidade de Siena, Itália.