Economia de Serviços

um espaço para debate

Month: novembro 2019

Educação: o mercado ajusta?

Uma matéria veiculada no jornal Valor da sexta feira 25/10 sugere que o mercado de advogados estaria “saturado”. Basicamente, essa suposta saturação se nutriria de duas dinâmicas: uma oferta crescente e uma demanda em declínio. A maior oferta teria sua origem na quantidade de cursos existente (1.635, segundo a matéria) e nas matrículas nos mesmos (em termos de matrículas, Direito seria o curso mais importante, seguido de Administração. Fonte: Censo Ensino Superior). No tocante às oportunidades de emprego, a crescente automação nos processos reduziria os requerimentos de trabalho. Ou seja, uma oferta crescente enfrentaria a uma demanda minguante.

Esses dados mereceriam as mais diversas leituras e tentativas de avaliação. Uma pergunta pertinente seria: em um país onde, no longo prazo, o objetivo colocado pela necessidade de crescimento da produtividade parece constituir o maior desafio, por que os cursos de engenheira (intuitivamente mais correlacionados com a superação desse obstáculo ao crescimento) não são atrativos? Se a restrição ativa para o desenvolvimento é o aumento da produtividade e os engenheiros teriam o perfil de qualificação funcional a esse desafio, os rendimentos relativos não teriam que induzir um perfil de oferta compatível? Por que são, no Brasil, tão atrativos os cursos de Direito? Aqui não estamos nos referindo à oferta. Ou seja, um curso de advocacia seria mais barato (em termos de infraestrutura necessária para sua oferta) que um curso de medicina ou engenheira, por exemplo. Nesse sentido, a disponibilidade de cursos de advocacia seria naturalmente superior aos de medicina ou de engenheira. A pergunta a ser respondida deve estar mais centrada na demanda que nas vagas ofertadas. Por que se demanda um curso cujo mercado estaria “saturado”? A suposta “saturação” não teria que gerar como natural corolário uma queda dos rendimentos relativos que desestimule a sua procura ? Em outros termos, o funcionamento da “tesoura de Marshall” (interação entre oferta e demanda) não deveria, naturalmente, gerar o ajuste e eliminar a suposta saturação? Na matéria do Valor é colocada a perspectiva da OAB, que manifesta preocupação com a quantidade de cursos autorizados pelo MEC. Ou seja, a regulação teria que ser dada por uma restrição da oferta mediante uma intervenção do Estado. Por que? O mercado não seria capaz de auto-regular-se?

As questões que levantamos no parágrafo anterior exigem respostas que estão além de nossos objetivos neste post. Por exemplo, o mercado de trabalho dos advogados pode ter particularidades devido à importância do emprego público e de salários que, nesse espaço, estão alheios às influências da oferta e da demanda. Uma outra perspectiva de avaliação está associada à própria definição de “saturado”. Qual é seu significado? Qual é o parâmetro que induz a qualificar esse mercado de trabalho com esse adjetivo? Não terão os honorários (Unidade Referencial de Honorários) fixados pelo OAB alguma relação com essa “saturação” (seja lá o que esse termo signifique)?

À margem dessas particularidades no caso dos advogados (e dos evidentes interesses corporativistas que podem permear os requerimentos por uma restrição de oferta), a pergunta mais geral é: o mercado de educação pode se auto-regular? Precisa de uma regulamentação em termos de oferta? Os sinais emitidos pelos rendimentos relativos ou as possibilidades de emprego, não podem induzir em ajustes necessários no mercado da educação ? Esta última pergunta é pertinente por diversos motivos. Por exemplo, o explosivo aumento das matrículas nos cursos de ensino superior na década 2007-017 (+53,1% na rede privada e +41,79% na rede pública; Fonte: Censo da Educação Superior) pode causar desajustes (desemprego, queda dos salários, frustrações entre o capital humano acumulado e o requerido no posto de trabalho, etc.)? Esses desajustes podem ser crescentes? Na medida em que parte desse crescimento foi viabilizado mediante crédito, é factível um cenário futuro no qual a inadimplência seja a norma? É necessária uma regulamentação na oferta ?

Observemos que a educação pode estar associada a um investimento, no qual as usuais ferramentas de avaliação de projetos são aplicáveis. Ou seja, à margem dos gostos, capacidades específicas, etc., a escolha deveria levar em consideração a projeção de rendimentos relativos tendo como referência um horizonte de tempo que abrange toda a vida ativa de um indivíduo (mais ou menos 40 anos, imaginando que ingresse no mercado de trabalho aos 25 anos e se aposenta aos 65). Dificilmente alguém faz esse tipo de projeção. Uma hipótese mais realista consiste em referenciar sua escolha nos salários relativos atuais ou do passado recente. Nesse caso, a dinâmica do modelo (o ajuste ou desajuste no tempo) é mais singular e na literatura se conhece como o Modelo da Teia de Aranha.

Esse arcabouço conceitual, habitualmente estudado nos cursos de Micro, parece representar bem o comportamento dos mercados agrícolas, nos quais as decisões de oferta são tomadas em função dos preços passados. Se temos um mercado cuja oferta está em função dos preços desfasados no tempo e uma demanda referenciada nos preços correntes, um choque que desloque o preço do equilíbrio dá início a um processo que não necessariamente é estável (ou seja, que não retorna a sua antiga posição de equilíbrio). A trajetória no tempo vai depender da relação entre as sensibilidades da oferta aos preços passados e o coeficiente que vincula a demanda ao preço atual. Em termos formais temos que:

  1. Qs = α1 + α2 Pt-1 (Oferta)
  2. Qd= α3 – α4 Pt (Demanda)
  3. Qs-=Qd (Equilíbrio)

(onde αi>0 são parâmetros; Qs=quantidade oferecida; Qd=quantidade demandada; Pt=preço no período t)

Trabalhando com essas três equações chegamos à seguinte equação em diferenças:

(4) Pt = (α3 – α1)/ α4 – (α24) P t-1

Na equação anterior, fora do equilíbrio, a trajetória temporal vai depender da relação entre α24, podendo ser instável (e oscilante, uma vez que os “α” são positivos) se α24 ≥1 e estável no caso de 0<(α24) <1. Em outros termos, nada garante que, dado um choque que situe o mercado fora do equilíbrio, o mesmo retorne à sua posição inicial. Nesse sentido, em um contexto como esse, a intervenção dos governos pode ser necessária.

Paradoxalmente, o mercado da educação pode ser próximo ao mercado agrícola e existe literatura apontando nessa direção (ver o clássico artigo de Freeman (1976) ou Wish and Hamilton(1980) ou Rosen (2004), por exemplo). Na medida em que as decisões de oferta são referenciadas em preços (salários) passados, a possibilidade de uma trajetória divergente (cada vez mais longe do equilíbrio) é certa. Vejamos o seguinte modelo:

(5) Ls,t= α1 + α2 wte

(6) Ld,t = α3 – α4 wt

(7) wte = wt-1

(8) Ls,t=Ld,t,

Onde: Ls,t=Ld,t quantidade de trabalho oferecido e demandado, respectivamente, no período t; wte= salário esperado para o período t. Se assume que α3> α1.

Observemos que o salário esperado para o período t é o salário vigente no período t-1. Ou seja, no momento de escolher um curso, o indivíduo considera que os salários atuais ou do passado recente vão permanecer no futuro.

O salário de equilíbrio (w*=wt=wt-1) será:

(9) w* = (α3– α1)/ (α2+ α4)

Das expressões (5) a (8) uma equação em diferença similar a (8), cuja resolução será:

(10) wt= (α24)t(w0-w*)+w*

Se em algum momento do tempo (w0), por algum motivo, o salário não é o de equilíbrio (w*), a trajetória vai depender do valor da relação (α24). Se α2 > α 4, no caso do salário não estar no equilíbrio, a trajetória subsequente será explosiva, com valores oscilantes e cada vez mais longe do equilíbrio. Em outros termos: teremos períodos de escassez de mão-de-obra e subsequentes ciclos de excesso. A plausibilidade de um mercado instável e oscilante deve ser considerada, uma vez que a natureza do processo vai depender da relação entre as elasticidades de oferta e demanda. Se, no ponto de equilíbrio, a oferta é mais inelástica que a demanda (alternativa realista) o equilíbrio será instável e oscilante.

Ou seja, as demandas da OAB citadas no artigo do Valor (regulação estatal da oferta) poderiam ser admissíveis uma vez que o mercado, diante de um choque, não necessariamente gera um sentido de convergência ao equilíbrio ou, em outros termos, períodos de “saturação” se superporiam a fases de escassez com distâncias crescentes.

Contudo, devemos avaliar esse requerimento de regulação em paralelo a um marco institucional no qual a corporação fixa valores mínimos de rendimentos. Nesse caso, a dinâmica pode se alterar, uma vez que seria um mercado de trabalho no qual estaria vigente um salário (rendimento) mínimo. No modelo anterior existia um equilíbrio inicial (w*; oferta = demanda) e o processo se iniciava diante de um suposto choque exógeno. Contudo, podemos não estar diante de um equilíbrio devido à existência de valores mínimos (a tabela da OAB).

De fato, os patamares mínimos podem não ser (seguramente não são) os que hoje equilibrariam oferta e demanda. Muito provavelmente são superiores e levam em consideração limites inferiores de remuneração que são estabelecidos sem que fiquem muito claro os critérios (presumivelmente aspirações sociais ou culturais). Nesse sentido, possivelmente estejamos (hoje) em uma situação de desequilíbrio e a intervenção pública sugerida pela OAB teria como intuito viabilizar e dar sustentabilidade a esses mínimos por meio da restrição da oferta. Desde outra perspectiva: a limitação da oferta sugerida teria o intuito de atingir um equilíbrio que coincida com os parâmetros mínimos sugeridos pela OAB. Nesse sentido, a “saturação” seria a manifestação de um excesso de oferta que não pode ser neutralizado pelo mercado (interação entre oferta e demanda) devido à existência de mínimos. É fácil ver que o parâmetro a ser alterado é o α1 da equação (5). Essa alteração pode ser atingida, como proposta pela OAB (segundo o Valor), pela restrição dos cursos. Uma outra alternativa seria pela maior exigência no exame requerido para exercer a advocacia.

Obviamente, todo o contexto sofre a existência de um ambiente (direito) onde o emprego do setor público (via concursos) joga um papel importante e os mercados de trabalho no Estado são regulados por outros fatores que não oferta e demanda. Porém, mesmo na presença de um setor público relevante, os argumentos que apresentamos nos parágrafos anteriores continuam válidos.

A partir do modelo básico que apresentamos nos parágrafos anteriores, poderíamos imaginar diversos arcabouços institucionais e diferentes formas de regulação. Por exemplo, é factível assumir um mercado em equilíbrio e com um rendimento mínimo institucionalizado inferior ao de mercado que, porém, só seria ativado no caso de um choque negativo. Nesse caso, é fácil provar que, se de fato esse choque se concretizar, a dinâmica das quantidades e preços (emprego e salários no caso do mercado de trabalho) não necessariamente convergem novamente ao equilíbrio (as trajetórias seriam oscilantes não convergentes).

Uma hipótese mais realista ainda consiste em assumir que a oferta (a eleição do curso a seguir) não depende dos salários dessa profissão senão dos salários relativos. Imaginemos um indivíduo com um perfil de gostos, preferências, habilidades, etc. que o induzem a pensar na escolha de um curso de Administração. Uma vez que a eleição de um curso de Contabilidade pode ser uma opção natural, ele vai comparar os salários relativos (Administração versus Contabilidade) no passado recente. Esse tipo de modelo resulta em uma instabilidade quase similar à que analisamos no caso de apenas um mercado (ver Diebolt e Mur (2004)). A não convergência ao equilíbrio se verá acentuada no caso de mínimos por profissão. Por exemplo, podemos imaginar dois mercados: de advogados e de administradores, sendo a oferta também função dos salários relativos. O poder de fixação de preços (rendimentos) varia, sendo que em um mercado (advogados) o poder de definição é maior que no outro (administração). No limite, podemos imaginar um mercado funcionando segundo os padrões concorrenciais (administração) e outro com mínimos e restrições de oferta (exame do OAB). Nesse caso, as fontes de instabilidade e flutuações em torno do equilíbrio serão ainda maiores.

Em termos gerais, os modelos sugerem equilíbrios não estáveis e oscilantes. Períodos de escassez são seguidos de super-oferta. As respostas variam em função da reversibilidade dos investimentos realizados e da capacidade de fixação de rendimentos ou restrições na oferta. Tomemos o caso dos médicos. A carência de profissionais induziu à abertura de novas escolas de medicina. Muito provavelmente, em um futuro não muito distante, conviveremos com uma super-oferta (“saturação”). Pressões para restrição de oferta surgirão (será questionada a qualidade das novas escolas, serão sugeridos exames para exercer a profissão, tabelamento de mínimos será reivindicada, etc.). Porém, essa administração da oferta não será sem inconvenientes (por exemplo, fechar uma faculdade de medicina não é um objetivo trivial).

Em termos de política pública, o mais sensato consiste em gerar cenários e administrar a oferta de vagas em função dos mesmos. Uma ampla divulgação de salários por profissão, probabilidade de emprego hoje e em um dado horizonte de tempo pode ajudar a minorar as flutuações, uma vez que disponibiliza informação que os indivíduos podem não dispor. Estes tendem a procurar informação na família, amigos, ambiente social, etc., fontes que não garantem a robustez dos dados. No tocante ao poder dos interesses setoriais na fixação de mínimos e na administração da oferta necessariamente, em maior ou menor medida, vão pautar o debate. Em todo caso, existem bons elementos teóricos e empíricos para afirmar que, no caso da educação, o mercado não ajusta.

Novos Serviços, Velhos Dilemas

Historicamente, o setor de serviços era identificado com atividades alheias à produção de bens materiais. A cobertura era ampla e englobava desde subsetores como comunicações e finanças até saúde e educação. Em geral, o que singularizava esta heterogeneidade, ou, em outros termos, o que possibilitava agregar em um setor uma ampla gama de ofertas era a imaterialidade de seu output. Os serviços tanto podiam ser associados à modernização das sociedades como assumidos, paradoxalmente, como sendo a manifestação de uma sociedade incapaz de completar a transição entre uma sociedade arcaica a uma outra denominada de moderna. O primeiro caso (a crescente importância dos serviços como sinônimo de modernização) se justificava pela elasticidade-renda de sua demanda. Na medida em que os países se desenvolviam, a participação dos bens agrícolas e industriais nos orçamentos das famílias decaía, sendo o espaço ocupado pela demanda dos mais variados serviços (saúde, educação, cultura, alimentação fora de casa, etc..). Contrariamente, sociedades com dificuldades em ingressar no clube das nações desenvolvidas conviviam com uma extensão de espaços periféricos nos quais predominavam ocupações e atividades à margem da legislação, com baixa produtividade, reduzidos rendimentos, etc.. O setor informal é, basicamente, um setor de serviços. À própria heterogeneidade intrínseca à sua definição (oferta de saúde, entretenimento, educação, finanças, etc..) se agregava uma outra, um divisor de águas que segmentava serviços associados à modernização daqueles outros que, marginalizados do desenvolvimento, eram o subproduto de uma modernização truncada.

Muito sinteticamente esta era, até recentemente, a forma usual de caracterizar os serviços, não obstante, certos aspectos foram adquirindo outros contornos. Por exemplo, a oferta de serviços foi assumida como sendo compatível com um crescimento ecologicamente sustentável, uma vez que contribuída a desmaterializar o consumo e, dessa forma, reduzir a pressão sobre os recursos naturais. Dessa forma, a imaterialidade de sua oferta e sua crescente importância podia ser vista como a possibilidade de um futuro compatível com a preservação ambiental.

Nas últimas décadas novas atividades, também incluídas no nome genérico de serviços, foram surgindo, mas desta vez umbilicalmente aparentadas com os setores tradicionais, como agricultura e, especialmente, indústria de transformação. Os serviços incorporados na oferta de bens agrícolas e industriais (pesquisa e desenvolvimento, design, etc.) foram ganhando importância no valor agregado e não obstante o perfil de sua oferta (imaterialidade), a mesma começa a adquirir um caráter comercializável (arquitetura, engenharia, seguros, etc.). Assim, o que antes parecia um contrassenso, uma vez que os serviços pareciam ser a própria definição de uma oferta non-tradable, agora ganha um status de modernização na integração do comércio mundial.

Essa irrupção de novas configurações, agora visceralmente associadas à agricultura e indústria, acabou se sobrepondo às antigas atividades do setor serviços, ampliando a sua heterogeneidade. À antiga convivência de um setor associado à urbanização e modernidade com outro identificado, na visão de cunho mais estruturalista, com um excedente estrutural de mão-de-obra (setor informal) se agrega um outro segmento, está vez vinculado à agricultura/indústria e mesmo capaz de integrar o fluxo internacional de comércio (ver, por exemplo, as estatísticas do comércio internacional de serviços em OCDE). Na antiga dualidade (serviços modernos/informalidade) a questão da produtividade se colocava nos dois polos da mesma. No setor informal, por definição, os ganhos de produtividade eram quase inexistentes, o que alimentava um círculo vicioso de estagnação (baixa produtividade-baixa capacidade de gerar excedentes-reduzida aptidão para incorporar tecnologias e capital-……..). Mesmo no setor moderno, a potencialidade de se obter ganhos de produtividade eram assumidos com ceticismo, possibilidade que deu origem ao conhecido Modelo de Baumol e à inflação via equalização de salários entre setores.

Essa heterogeneidade, prevalecente nas nações em desenvolvimento, foi o berço para um amplo debate sobre a institucionalidade da informalidade. Podia o setor informal, dado o marco legal, preencher as condições requeridas para sua formalização? O arcabouço regulatório, capaz de ser respeitado pelo setor de serviços moderno, excluía toda possibilidade de integração aos serviços com reduzidíssima produtividade e relações de trabalho particulares (familiares, contra-própria, etc.)? Podia a relação trabalhista “típica” (assalariado com carteira) ser a norma em sociedades tão heterogêneas? Não era a informalidade a manifestação da falta de harmonização entre o marco legal/institucional e a estrutura produtiva?

Este debate nunca foi encerrado e, agora, existem elementos para pensar que o desafio se aprofundou, uma vez que o setor serviços parece estar na presença de um novo segmento, elevando ainda mais sua heterogeneidade.

Em um recente artigo na revista Forbes, o midiático Joseph Coughlin levanta a hipótese do nascimento de uma nova forma de consumo, não associada à propriedade. O próprio título do artigo é eloquente: “Having It All, But Owning None of It: welcome to the rentership society” Muito sinteticamente, o argumento dele identifica uma nova etapa nas sociedades modernas, nas quais o consumo deixaria de estar associado à propriedade do objeto consumido. Carros, casas, livros, etc. são alugados. São contratados serviços, seja os “serviços” de uma casa ou de um livro, por exemplo, seja os serviços de um trabalhador, como no caso do ifood, ou uma combinação de ambas as cosas (trabalho e bens), como no caso do Uber (onde é contratado o serviço do carro, um bem de capital e do motorista, trabalho). Os bens seriam majoritariamente propriedades de empresas/indivíduos e os consumidores alugariam os serviços deles. As formas de riqueza se alterariam, sua materialização não seria em bens tangíveis (casas, carros, etc.) adquirindo outro perfil (aplicações financeiras). Nas grandes cidades européias a mobilidade vai crescentemente adquirindo a forma de “assinaturas” a favor de empresas donas de bicicletas, motos, patinetes, etc.. Em outro exemplo bem ilustrativo, já é possível alugar livros na internet por mês, semestre, ano. Ou seja, o consumo de um bem deixa de estar vinculado à sua propriedade em itens e em uma extensão nunca vista. O usufruto de um bem material não é obtido mediante a sua posse, senão através da contratação de um serviço.

Ainda é cedo para saber se essa tendência, que Coughlin coloca como uma nova etapa histórica, ainda vai merecer esse qualificativo ou será simplesmente mais um espaço que conviverá (harmoniosamente ou não) com outros. Por exemplo, os conflitos entre os taxistas tradicionais e o Uber ou entre os hotéis e airbnb evidenciam que a coabitação pode não ser amena. Por outra parte, seria prematuro afirmar que, no longo prazo, uma oferta vai substituir a outra ou conviverão de forma mais ou menos conflitiva.

Contudo, concretamente e no curto prazo, acrescentaríamos ao setor serviços, como já afirmamos, um novo segmento, aprofundando ainda mais sua heterogeneidade. A questão que se coloca está vinculada à institucionalidade/legalidade (ou seja, às formas de regulação) que demanda a irrupção de uma nova forma de oferta e consumo. Vamos colocar como exemplo o mercado de trabalho.

O motorista do Uber é um assalariado da “firma Uber” ou um trabalhador independente e o Uber é simplesmente uma plataforma que permite a conexão entre o trabalhador independente e o cliente? Uber tenta transmitir uma imagem de plataforma de intermediação, inclusive com a última iniciativa de oferecer um espaço para o matching entre trabalhadores e empregadores no caso de trabalho temporário. Uma outra possibilidade consiste em supor que o Uber é uma firma tradicional e, nesse caso, obrigada a “assalariar” todos os motoristas. Neste caso estaríamos assumindo que o assalariado tradicional (assalariado com carteira, com direito a férias, décimo terceiro, FGTS, etc.) é a única forma (ou a desejável) de inserção no mercado de trabalho. Todas as outras formas que um vínculo pode adquirir seriam sinônimo de precarização, retrocesso social, etc. e a legislação que regula os setores tradicionais deve aplicar-se também nas plataformas?

Concorrendo com a perspectiva anterior podemos identificar uma outra, na qual o assalariamento tradicional seria uma forma de inserção econômica e social datada no tempo e não necessariamente uma integração imune ao tempo e ao espaço. Em vários lugares do mundo a justiça está identificando as plataformas como empresas convencionais e, nesse sentido, as obrigam a assumir uma relação tradicional com os trabalhadores que antes eram independentes. Os conflitos em Barcelona, por exemplo, onde o Uber chegou a se retirar do mercado, são um exemplo. O ponto é: o usuário aluga os serviços de um carro com condutor e o Uber é simplesmente o intermediário entre oferta e demanda ou o trabalhador independente é em realidade um assalariado camuflado do Uber? Em termos econômicos, devemos revisitar Coase (1937) e nos voltar a colocar uma questão marginalizada na maioria dos cursos de micro: o que é uma empresa ?

Observemos que o marco regulatório institucional/legal é submetido a um novo estresse. Se antes se debatia se a CLT era um arcabouço adequado para um amplo setor do mercado de trabalho que tinha formas “atípicas” (assalariado em micro-unidades de produção com baixíssima produtividade, autônomos, emprego em unidades familiares de produção,…) agora se agregam novas formas de incorporação produtiva. Paradoxalmente até o momento, a controvérsia girava em torno de formas de emprego em espaços quase arcaicos, de baixa produtividade e tecnologia, agora a polêmica gira em torno de um setor de ponta em termos tecnológicos.

As perguntas que levantam essas novas configurações de firmas e as relações comerciais/trabalhistas que se colocam não são menores. Por exemplo, se o motorista que disponibiliza o seu carro na intermediação realizada pelo Uber, pode estar submetido a um máximo de horas de trabalho, férias, etc. ? Não poderia ele escolher a duração da jornada, o período de férias, etc. em função de seus gostos, necessidades,..? Não pode ele ter escolhido esse tipo de inserção em função, justamente, dessa liberdade de escolhas que a relação com o Uber permite ? O marco regulatório imaginado para os tradicionais vínculos capital/trabalho é funcional às novas formas de produção e consumo ? Qual é a regulação, limites e funcionalidades necessários a estes novos espaços ?

Lembremos que, se fugimos de escolhas ideológicas, uma análise da experiência internacional não permite concluir que os resultados satisfatórios ou não de uma dada institucionalidade/legalidade estão em função de sua intensidade. Países muito regulamentados (países nórdicos, por exemplo) têm balanços em termos de emprego, desemprego, crescimento da produtividade, etc., semelhantes a economias com uma institucionalidade muito reduzida e prevalência da oferta e demanda (países anglo-saxões). A questão que se coloca está vinculada à eficiência de uma dada institucionalidade, não à sua densidade. Assemelhar a inserção econômica e social via as novas plataformas a uma forma de assalariamento tradicional pode ter como corolário tolher o amadurecimento de formas de produção e consumo inéditas e aí podem estar concentrados promissores espaços de crescimento da produtividade. Revestidas de um falso progressismo, perspectivas que associam qualquer nova forma de inserção a um retrocesso em termos civilizatórios ou precarização social das sociedades podem chegar a ser classificados, no futuro, como hoje avaliamos os movimentos ludistas do Século XIX.