Em 17 de abril de 2019, foi encaminhado à Câmara do Deputados o Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/20191 que trata da autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira do Banco Central. Apesar de o documento fazer parte das metas para os 100 primeiros dias de mandato do Presidente Bolsonaro, desde 1991 propostas semelhantes são apresentadas ao Congresso Nacional. Entre projetos de lei complementar e propostas de emenda à Constituição, ao todo outros nove documentos que discutem a autonomia do Banco Central foram protocolados junto ao Senado Federal e mais um encontra-se arquivado na Câmara dos Deputados2, local onde o novo PLP começou a tramitar em caráter de urgência. Para ter efeito, o PLP precisa passar pelas duas Casas, sendo aprovado em turno único no Senado e em dois turnos na Câmara, em ambas, exigindo maioria absoluta de votos.

Bancos Centrais e o Debate sobre Autonomia

Em que medida o projeto de autonomia do Banco Central é interessante? Antes de entendermos porque a resposta não é tão óbvia quanto possa parecer, faz-se conveniente entender qual a função dessa instituição e seu protagonismo na formulação e execução da política econômica.

Seja no Brasil, seja no mundo, os bancos centrais atuam com o propósito de garantir o valor de compra da moeda nacional e assegurar a solidez do sistema financeiro. São objetivos amplos que permitem margem para discricionariedade. De tal modo, observa-se diferentes formatos institucionais que divergem quanto aos instrumentos de política econômica, ao grau de intervenção no mercado financeiro e, majoritariamente, sobre a ligação da instituição com o governo. 

Desde que foi formalmente implementado em 1999, o regime de metas de inflação tem logrado sucesso na busca da estabilidade do real.  Apesar do espaço para aperfeiçoamento, esse modelo de regime monetário tem sido o principal alicerce do Banco Central em sua missão de estabilizar a economia brasileira e afastar a recente memória inflacionária das décadas de 1980 e 1990.

No modelo vigente, o grau de autonomia do Banco Central é limitado pelo Decreto 3.088/1999, cujo propósito é definir as prioridades da autarquia no âmbito do regime de metas de inflação. Entre seus principais pontos, destacam-se que “as metas e os respectivos intervalos de tolerância serão fixados pelo Conselho Monetário Nacional – CMN’’, além disso, decreta que “ao Banco Central do Brasil compete executar as políticas necessárias para cumprimento das metas” ³.

Atualmente, portanto, o que se observa é a autonomia de instrumentos, em que as metas são de competência do governo (tal ponto fica mais claro quando a composição do CMN é elencada⁴), e cabe ao Banco Central arbitrar sobre os instrumentos para alcançá-las. Na nova proposta enviada pelo Executivo, o Banco Central não apenas teria voz sobre os instrumentos de operacionalização, como também seria responsável por estabelecer suas próprias metas em ordem de prioridade que deliberar conveniente — pontos específicos da PLP 112/2019 serão discutidos a seguir. Nesse cenário, ter-se-ia um Banco Central com autonomia de mandato, como é o caso do Federal Reserve e do Banco Central Europeu.

Entretanto, a discussão é mais profunda do que parece, uma vez que os bancos centrais, para além do objetivo de manter a inflação estável, podem fazer uso da política monetária para aquecer a economia. Como resultado, a política de estímulos pode gerar algum crescimento de curto prazo vis-à-vis uma tendência inflacionária no longo prazo. É nesse ponto que o porquê da autonomia se torna relevante. 

O Executivo enfrenta um incentivo curto-prazista de estimular a economia e extrair os benefícios no exercício do mandato, postergando para o sucessor os malefícios inflacionários — diz-se, então, que a política monetária sofre de inconsistência dinâmica. Note que estimular a economia pode ser uma arma poderosa em corridas presidenciais, além de passar a sensação de um legado positivo. Além de poderosa, pode ser perversa. No modelo vigente, toda a mesa diretora do Banco Central pode ser exonerada pelo Executivo, o que é um poder de barganha considerável se o objetivo do Planalto for afrouxar o cumprimento da meta de inflação e buscar aumentar o nível de emprego.

Esse cenário ilustra o principal ponto de defesa da autonomia de mandato, qual seja, diminuir a pressão e a discricionariedade do Executivo sobre a autoridade monetária para que essa possa projetar sua atuação pautada na estabilidade macroeconômica como fundamento para o crescimento de longo prazo.

Na literatura sobre bancos centrais, o entendimento geral é que a autonomia está correlacionada com a diminuição da inconsistência dinâmica e, consequentemente, com aumento da credibilidade do policymaker⁵. Notadamente, a credibilidade tem poder de influenciar o impacto da política monetária sobre as variáveis forward-looking, tal como as expectativas quanto ao comportamento da inflação⁶. Portanto, a credibilidade importa porque exige menores custos de desinflação, tanto em termos de taxa de juros como de emprego.

Entretanto, absolutamente nada garante que o Banco Central sabe qual a melhor estratégia a ser seguida, muito menos se o resultado esperado será alcançado e sob os custos intencionados. Além disso, o intento de ter um Banco Central autônomo de mandato não é suficiente para que o texto submetido ao Congresso esteja livre de vícios e seus termos sejam coerentes com o estado das artes da evidência empírica.

Projeto de Lei Complementar 112/2019

Em consonância com o argumento de isolar o ciclo político do ciclo da política econômica e mitigar a problemática da inconsistência dinâmica, o PLP traz em seus pontos restrições à exoneração da mesa diretora, além de instituir mandatos fixos para o presidente e os diretores do Banco Central de quatro anos, intercalados e com possibilidade única reiteração. Pela proposta, seus diretores só serão nomeados e demitidos com o aval do Senado Federal, como já acontece com o presidente da autarquia. Pelas alíneas do texto-base, as situações passíveis de exoneração são restritas e de limitada imputação.

Outro ponto positivo é atribuir respaldo legal para a remuneração de depósitos voluntários junto ao Banco Central, de sorte que sejam usados para controlar a liquidez da economia. Na prática, essa possibilidade serve como mais um instrumento à disposição da política monetária. Em especial, diminui as necessidades do Tesouro Nacional em emitir títulos para Banco Central realizar as operações compromissadas — espécie de empréstimo, lastreado em título público e com liquidação agendada, que é amplamente utilizado para adequar a liquidez da economia à meta de taxa básica de juros.

O PLP também formaliza metas prioritárias para a política econômica, privilegiando a estabilidade de preços e, secundariamente, a solidez do sistema financeiro. No mais, não faz menção alguma a metas de emprego ou nível de renda. Se por um lado o mandato único respalda os pressupostos teóricos por trás da proposta de autonomia e, também, do próprio regime de metas de inflação, por outro, desprivilegia o debate em torno do papel da autoridade monetária em intervir em episódios de choques exógenos, de modo a acomodá-los e suavizar as oscilações do nível de atividade econômica. Tal ponto ganha fôlego quando a observação de práticas de mandatos duplos em países como Estados Unidos, Canadá e Austrália⁷ é contrastada com o baixo desempenho da economia brasileira nos anos recentes e sem expectativa clara de recuperação. Para complexificar mais a discussão, nenhuma dessas economias citadas possui uma taxa de juros estruturalmente tão elevada como a economia brasileira.

Um ponto especialmente incerto trata sobre a desvinculação do Banco Central como Ministério, assumindo, então, status de “autarquia de natureza especial” e livre de subordinação hierárquica. O mesmo artigo advoga que a autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira é necessária para viabilizar o projeto de autonomia de mandato. O texto-base não deixa claro se isso significa que a gestão interna terá autonomia orçamentária para executar contratações sem autorização do Ministério da Economia, além de aprovar aumentos salariais de forma unilateral. Tudo indica ser essa a intenção. A experiência recente mostra que a autonomia orçamentária em órgãos dos Poderes Judiciário e Legislativo é subterfúgio para que uma classe privilegiada desconsidere a realidade fiscal em busca de supersalários e mais regalias.

Entretanto o ponto mais preocupante do PLP trata da “proteção legal de dirigentes e servidores do Banco Central por atos praticados de boa fé no exercício de suas atribuições legais’’. Sobre esse ponto não há hesitação de palavras. Na prática, toda a classe de servidores do Banco Central não pode ser responsabilizada por atos praticados no exercício de suas atribuições, salvo a presunção de dolo ou de fraude. Ainda, essa espécie de foro especial por prerrogativa de função é estendida a todos os ex-servidores.

Tal proposta de imunidade irrestrita dificulta a responsabilização por negligência na supervisão de instituições financeiras, por exemplo. Mais grave, mecanismos ao alcance dos servidores, como as reservas internacionais e a taxa de câmbio, poderiam ser usados para interesses pessoais. Autonomia de mandato não deveria vir acompanhada de anistia e falta de transparência. Tal proposta em nada tem a ver com a função do Banco Central em garantir o valor de compra da moeda nacional e oferecer os fundamentos macroeconômicos necessários para o crescimento sustentado, como defendem os apoiadores do projeto de autonomia. 

Considerações Finais

Ter um Banco Central plenamente autônomo não é uma proposta nova, nem entre os especialistas nem entre os parlamentares.  O primeiro projeto a ser apresentado ao Congresso data de antes da introdução do real. Como visto, são vários os benefícios em diminuir a interferência do Executivo sobre a autoridade monetária. Destarte, o que assusta é o PLP 112/2019 ter sido protocolado com tantos vícios e amadorismo, especialmente em um momento estratégico de reformas. Boas intenções não bastam! Tampouco se elas são disfarçadas de tecnicidades para promover uma agenda de privilégios e lançar incerteza sobre a condução da política econômica.

Referências:

  1. Texto-base do Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/2019 e sua tramitação: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198617
  2. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/04/11/bolsonaro-propoe-autonomia-do-bc-assunto-e-discutido-no-senado-ha-30-anos
  3. Decreto Nº 3.088, de 21 de junho de 1999: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3088.htm
  4. Até 2018, o CNM era integrado pelo ministro da Fazenda (presidente do Conselho), pelo ministro do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e pelo presidente do Banco Central. A partir de 2019, como o superministério da Economia, a composição passou a ser feita pelo ministro da Economia (presidente do Conselho), pelo presidente do Banco Central e pelo secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia.
  5. KYDLAND, Finn E.; PRESCOTT, Edward C. Rules rather than discretion: The inconsistency of optimal plans. Journal of political economy, v. 85, n. 3, p. 473-491, 1977.
  6. BLINDER, Alan S. Central-bank credibility: why do we care? How do we build it?. American economic review, v. 90, n. 5, p. 1421-1431, 2000.
  7. ROGER, S. Inflation targeting at 20: achievements and challenges. IMF Working Papers, v. 9, n. 236, p. 1, 2009.

Autor:

Matheus Biângulo é graduado em Economia pela Universidade de Brasília. Atualmente, é mestrando em Economia pela Universidade de Brasília.