O recém-lançado livro do Professsor Richard Baldwin, “Globotics Upheaval”, é provocante e sedutor. Provocante, porque sugere a reversão de algumas das principais previsões em relação ao comércio internacional para século o XXI. A principal inversão sugerida por ele é que a (aparente) vantagem competitiva generalizada dos países desenvolvidos no setor de serviços não tende a se aprofundar com as novas tecnologias que, segundo ele, inaugurarão uma nova fase da globalização. Sedutor, pelo fato de que essa nova forma de pensar os próximos passos da globalização é condizente com as tendências que vêm emergindo e sugere oportunidades antes distantes para países em desenvolvimento, dentre os quais o Brasil. A maior dessas oportunidades encontra-se naquilo que Baldwin chama “telemigração”. Mas a que se refere esse termo?

O autor emprega a expressão para se referir a trabalhadores estrangeiros que virtualmente migram para outros países através da prestação de serviços que, até recentemente, eram protegidos da globalização. A telemigração tem se tornado possível devido a desenvolvimentos tecnológicos relacionados, principalmente, com a revolução digital. Alguns deles são a tradução automática (que diminui a barreira linguística) e algumas tecnologias de comunicação (como realidade aumentada). Além disso, plataformas on-line (como Upwork, Freelancer e Amazon Mechanical Turk) estão contribuindo substancialmente para unir indivíduos dispostos a realizar essas atividades (telemigrantes) e potenciais empregadores. Relatório produzido pela consultoria McKinsey & Company estimou que já em 2025 as chamadas “plataformas de talento online”, que inclui os sites supracitados e outros como o LinkedIn, podem gerar US$ 2,7 trilhões em ganhos no PIB anual mundial e beneficiar 540 milhões de indivíduos ao redor do globo.

Seriam os países em desenvolvimento candidatos a se apropriar da maior fatia desses ganhos? A resposta de Baldwin para essa resposta é: claramente. A lógica é a mesma que move o comércio de bens. Entendendo a globalização como um fenômeno motivado pela arbitragem entre preços de fatores de produção, a telemigração permite que empresas e indivíduos de países desenvolvidos reduzam seus custos pela contratação de trabalhadores localizados em países em desenvolvimento, os quais possuem salários mais baixos. A diferença é que, diferentemente do que ocorre na manufatura, nos serviços providos por telemigração a empresa que contrata o serviço não precisa mover fisicamente parte do processo produtivo para outro país.

O autor estima, por exemplo, que um programador de computador (profissão cujos serviços podem facilmente ser providos por telemigração) nos Estados Unidos ganha, em média, US$ 4,141 mensais. O mesmo profissional na China ganha em média US$ 252, ou seja, cerca de 20 vezes menos. Para além dessa diferença considerável de custos, há funções nas quais profissionais de países em desenvolvimento têm um desempenho médio superior quando comparados às suas contrapartes de países desenvolvidos. O caso de programadores de computador é novamente um exemplo emblemático. Uma pesquisa realizada em 2016 apontou os (baratos) programadores chineses como os melhores do mundo, enquanto os (caros) programadores norte-americanos não figuraram na lista dos dez melhores. Em face dessa diferença considerável de custo e, por vezes, da qualidade do trabalho, espera-se que empresas e/ou indivíduos tenham fortes incentivos para contratarem provedores de serviços de países em desenvolvimento caso não haja restrições para isso.

Se os países em desenvolvimento são vistos de forma geral como os potenciais beneficiários pela telemigração, como o Brasil insere-se nesse quadro? Em recente entrevista à Folha de S. Paulo por ocasião da sua vinda ao Brasil, Baldwin apontou o país como um dos possíveis casos de sucesso no desenvolvimento da telemigração. A principal razão é que esse tipo de trabalho exige certa infraestrutura e qualificação formal, aliada à um salário mais competitivo do que aquele praticado em países desenvolvidos. Indivíduos de renda média (a nível global) localizados em países de renda média surgem, então, como os maiores potenciais beneficiários. O gráfico abaixo relaciona a distribuição de renda global (eixo vertical) e o percentil de distribuição no país (eixo horizontal) e mostra que o Brasil tem boa parte da sua população próxima da média de salário global, o que em tese o qualifica para ter uma vantagem competitiva com a telemigração. Vale, no entanto, abordar com mais detalhes algumas das exigências para que esse potencial, de fato, se concretize.

Fonte: Milanović (2015)

Barreira linguística

Baldwin é um entusiasta da redução da importância da barreira linguística. Para ele, o desenvolvimento de ferramentas de tradução automática deve praticamente zerar esse obstáculo para boa parte dos serviços que podem ser prestados por telemigrantes. Fato é, no entanto, que até o momento a questão linguística ainda tem um peso importante. Não à toa, a Índia, que possui um grande número absoluto de indivíduos fluentes em inglês, é um dos grandes provedores de serviços para países desenvolvidos anglófonos, como os Estados Unidos e o Reino Unido. O Brasil, no entanto, segue com proficiência baixa na língua inglesa. Isso é um potencial impeditivo para o país se beneficiar com a telemigração. Isso é agravado pelo fato de que o fuso-horário poderá ser um fator determinante para o estabelecimento dos fluxos de telemigração, outra previsão de Baldwin e que coloca o Brasil como um potencial provedor para o grande mercado dos Estados Unidos. Na medida em que países com fuso-horários próximos, como a Argentina, possuem níveis de proficiência melhores do que o Brasil, eles podem largar na frente para prover serviços aos norte-americanos. Considerando que a maior parte dos alunos brasileiros frequenta escolas públicas e que cursos privados de inglês são muitas vezes inacessíveis à maior parte da população, está a cargo sobretudo dos governos municipais, estaduais e federal fazerem os investimentos necessários para melhorar o domínio da língua no país. Pesquisa realizada pelo British Council mostra que uma área fundamental é a provisão de recursos didáticos adequados, o que inclui livros, projetores e acesso à internet. Esse último ponto, inclusive, afeta a possibilidade de desenvolver a provisão de serviços por telemigração para além da questão linguística, como será visto a seguir.

Domínio de Informática e Cobertura Digital

O Professor Alan Blinder, economista da Universidade de Princeton, fez uma lista das ocupações com maior probabilidade de serem realocadas dos Estados Unidos para um outro país devido à diferença de custos (offshored) – fenômeno esse que, no setor de serviços, estamos chamando de telemigração. Das 10 primeiras ocupações identificadas, metade são serviços providos via computador. Isso significa que as principais oportunidades relacionadas à telemigração estarão diretamente relacionadas a uma infraestrutura que permita o domínio de ferrramentas básicas de computação e o acesso à internet. Embora o número de pessoas com conhecimento de informática esteja crescendo no país, o acesso à internet ainda é um desafio no país. Relatório do Banco Mundial de 2016 afirmou que 98 milhões de brasileiros permanecia sem acesso à internet. Mesmo para aqueles que possuem acesso, a qualidade da conexão não é boa. Levantamento feito pela consultoria McKinsey & Comapny (figura abaixo) mostra que a média da velocidade da internet no Brasil é metade da média global. Para que o Brasil possa, efetivamente, ser um provedor de serviços para países desenvolvidos é preciso que essas lacunas sejam enfrentadas de forma prioritária.

McKinsey & Comapny (2019)

Atenção às regras multilaterais de comércio

Assim como há um posicionamento protecionista de países desenvolvidos em alguns dos setores nos quais os países em desenvolvimento possuem vantagens competitivas no comércio de bens (ex. agricultura), se a telemigração tomar a proporção que vem se anunciando, espera-se que haja uma reação semelhante por parte dos países desenvolvidos para frear esse movimento. Nesse ponto, no entanto, as regras multilaterais podem jogar a favor dos países em desenvolvimento. A provisão de serviços já está regulada no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), por meio do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS, na sigla em inglês). Hoekman e Primo Braga (1997) mostram que os países desenvolvidos assumiram mais compromissos de liberalização no GATS em comparação aos países em desenvolvimento. Isso inclui os compromissos relacionados ao Modo 1 (Comércio Transfronteiriço), no qual se classificam os serviços passíveis de serem providos por telemigração.

No entanto, as discussões relacionadas a comércio digital avançam tanto no âmbito multilateral quanto em acordos regionais de comércio. Caberá aos negociadores dos países em desenvolvimento levarem em consideração o fato de que seus países podem ter também interesses ofensivos nesses temas, o que exige um posicionamento mais qualificado do que apenas a histórica proteção no comércio de serviços. Os posicionamentos defensivos dos países em desenvolvimento no setor de serviços precisarão, portanto, ser balanceados com buscas por manutenção dos compromissos de liberalização nos setores em que eles possam se beneficiar. Será necessário, por exemplo, redobrar a atenção para que eventuais novos compromissos não abram brechas protecionistas para os países desenvolvidos nos setores que podem ser providos por telemigração, o que poderia reverter aquilo que já foi previamente negociado no GATS.

Considerações finais

Na essência, o que Baldwin chama de telemigração não é essencialmente novo. Isso nada mais é do que a utilização de um novo (e sugestivo) termo para a caracterização de alguns serviços específicos via Modo 1. A grande virtude do seu novo livro, no entanto, é empregar uma linguagem acessível e refletir sobre aparentes pequenas mudanças presentes no dia-a-dia para caracterizar o que pode vir a ser uma grande reversão no comércio internacional: países em desenvolvimento sendo importantes provedores de serviços para países desenvolvidos. A base desse fenômeno é o emprego de uma vantagem competitiva explícita dos países em desenvolvimento (salários mais baixos) em um segmento no qual ela permanecia largamente velada por limitações tecnológicas (serviços). Essa é uma oportunidade de superar a restrição ao movimento de pessoas físicas (Modo 4) de prestação de serviços que, embora não condizente com a teoria neoclássica de comércio que baseia o sistema multilateral atual, é largamente aceita sob a justificativa de inviabilidade política. Para o Brasil, a telemigração vem como uma rara possibilidade de utilizar a sua renda média como uma vantagem inicial e não como uma armadilha. Ademais, é uma chance de diversificar a nossa pauta exportadora ainda largamente dependente de bens e, mais especificamente, de produtos básicos. Para aproveitar essa oportunidade, será necessário melhorar o domínio de inglês da população, assim como oferecer uma melhor infraestrutura relacionada à informática. A revolução digital é um desses raros momentos em que há oportunidades reais de mudança nos fluxos comerciais, comparável à revolução industrial do início do século XIX. É melhor não perdermos esse novo trem da história (não mais a vapor, mas agora virtual), pois ele pode demorar a passar novamente.

Autor:

Edgard Carneiro Vieira é graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Atualmente, é mestrando em International Affairs pelo Graduate Institute, Genebra.