Economia de Serviços

um espaço para debate

Month: janeiro 2019

Monopoly Digital

Todos conhecem o Monopoly, um dos jogos de tabuleiro mais famosos no mundo, no qual o objetivo é obter o monopólio das propriedades. Também é de conhecimento geral o fato de as tecnologias estarem transformando o planeta. Nesse contexto, é importante evidenciar a concentração nos mercados digitais, nos quais tem-se observado o surgimento de um monopólio (ou melhor, um oligopólio) digital.

Uma pergunta que surge é por quê esses mercados estão sujeitos à concentração. Essa é uma questão delicada, sendo difícil dar respostas concretas. No entanto, existem algumas evidências que podem ajudar a explicar o alto grau de oligopolização.

A própria estrutura dos mercados digitais pode fornecer insights para se responder a esta pergunta. Isso porque muitos dos modelos de negócios presentes na Economia Digital se dão na forma de plataformas, isto é, as empresas atuam como matchmakers entre diferentes grupos de usuários. O mecanismo de busca do Google, por exemplo, possui dois tipos diferentes de usuários: aqueles que procuram, os “pesquisadores”, e aqueles que anunciam, os anunciantes. Assim, o algoritmo do Google seleciona para você os anúncios que ele entende que serão do seu gosto.

Mas o que isso tem a ver com concentração? Em se tratando de plataformas, há uma forte influência do chamado efeito-rede. Pense no Monopoly e no Banco Imobiliário, dois jogos de tabuleiro similares. Se você pode jogar os dois, é possível que você seja indiferente entre um e outro. Entretanto, se seus amigos estão jogando Monopoly, você também escolherá jogar este jogo, pois você não quer ficar sozinho (e não existe um modo solo). O efeito-rede atua de maneira similar ao modo em que a escolha do jogo foi feita. Quanto mais pessoas estão presentes em uma plataforma, mais capacidade ela tem de atrair novos usuários, além do que, estas ficam numa posição melhor quando o número de participantes na plataforma aumenta.

Voltemos para o caso do Google. Quanto mais pessoas pesquisando, mais felizes ficam os anunciantes, pois assim eles atingirão um maior público. E, pelo outro lado, quanto mais anunciantes, mais felizes ficam os “pesquisadores”, pois mais específicos serão os anúncios a eles mostrados. Então por que você usaria o Bing? Viu, o efeito-rede é real!

Outra possível explicação para a concentração nos mercados digitais se dá pela presença de economias de escala. A estrutura de custos de empresas como o Google e Facebook, por exemplo, possui uma proporção de custos fixos muito superior à proporção de custos variáveis, já que esta envolve principalmente sistemas de armazenamento e gerenciamento de dados, servidores, redes privadas super-rápidas, além de datasets, sendo pequeno o custo marginal associado à entrada de um novo usuário na rede. Isso acaba dificultando a entrada nesses mercados, pois apenas o investimento inicial para se obter todos esses recursos seria altíssimo.

Um fator fundamental para as plataformas digitais são os dados, o insumo básico desse mercado. O custo de se obter dados para iniciar um novo empreendimento na Economia Digital é muito alto: ou você, de alguma maneira, atrai um imenso número de usuários para a sua plataforma, conseguindo, então, os preciosos dados, ou você tenta comprar esses dados de outras plataformas, que podem acabar negando a venda, ou então cobrar (muito) caro.

As firmas dominantes desse mercado usam suas gigantescas quantidades de dados a seu favor. Isso se dá pelo fato de muitos dos competidores prospectivos operarem dentro das grandes plataformas, gerando, então, dados que são processados pelos sistemas daquelas empresas. Assim sendo, os gigantes podem dotar-se de seus instrumentos para oportunamente tomar ações preemptivas de modo a evitar a competição, seja criando um produto ou serviço similar, seja comprando o concorrente (por isso, é notória a quantidade de fusões e aquisições na Economia Digital).

Outra razão para a concentração se dá pelo alto custo de mudança entre plataformas. Digamos que você esteja jogando Monopoly e já é dono de uma quantidade considerável de propriedades. De repente, você deseja jogar Banco Imobiliário. O problema surge quando você percebe que não é possível transferir suas propriedades de um jogo para o outro. O mesmo ocorre quando se vai realizar a mudança entre plataformas. Se você deseja se mudar do Facebook para uma nova rede social, você não mais terá os seus amigos, fotos nem posts, o que acaba desincentivando essa transição.

Assim como no Monopoly, na economia também existem regras a serem seguidas. Por ser uma área relativamente nova e altamente dinâmica, a Economia Digital carece de regulamentação e intervenção por parte das autoridades competentes. Somente nos últimos anos esforços maiores têm sido empreendidos a fim de se estabelecer maior controle sobre esses mercados (veja o GDPR na Europa, por exemplo). Como, por muito tempo, houve um enorme vácuo normativo e regulatório, as grandes firmas puderam estabelecer as regras do jogo, imputando padrões privados e dificultando, assim, a participação de novos players.

Aqui foram citados alguns dos possíveis motivos que levam à concentração em mercados digitais. Como as causas já foram elencadas, pode-se, então, apontar para os órgãos reguladores medidas com potencial para estimular a competição, de modo a reduzir as perdas que são trazidas à sociedade e à economia devido à presença de oligopólios digitais. Entretanto, este assunto ficará para um futuro post.

 João Pedro Arbache é estudante de Economia na UnB. É membro do PET (Programa de Educação Tutorial) – Economia, e ocupa o cargo de Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento na Econsult.

A economia do Distrito Federal de acordo com o PIB

O Distrito Federal possui um perfil econômico diferente do resto do país, por ser capital federal, por ser unidade federativa e município ao mesmo tempo (Brasília). O reflexo na economia dessa condição institucional pode ser observado em diversas informações e estatísticas, entre elas o Produto Interno Bruto (PIB) da região. O texto abaixo tem por objetivo expor algumas características econômicas do Distrito Federal, a partir da análise da evolução de seu PIB – estimado, todos anos, pelo IBGE em parceria com a CODEPLAN.

A partir da comparação da evolução do PIB do Distrito Federal com o PIB brasileiro ao longo do tempo é possível identificar um padrão de comportamento da economia regional: o Distrito Federal se mostra menos reativo[1], tendo maior crescimento quando a economia nacional desacelera ou entra em recessão. Um dos resultados dessa maior estabilidade é que o PIB do DF, entre 2002 e 2016 teve uma variação acumulada maior, de 57,4% (média de 3,3% a.a.), frente a do país, de 40,6% (média de 2,5% a.a.).

Para compreender um pouco melhor esse menor dinamismo da economia distrital frente à nacional, pode-se decompor a variação anual do PIB do DF em grandes setores de atividade econômica. Para tanto, se utilizou o Valor Adicionado Bruto (VAB) dos setores e a análise gráfica permite inferir que há diferenças substanciais entre os grandes setores em termos de comportamento.

Em números, enquanto a série de variação percentual do VAB do setor de Serviços de 2003 a 2016 registrou um desvio-padrão relativo de 0,6, a da Indústria registrou 3,9, e a da Agropecuária, 6,7[2]. E, assim como no caso anterior, o PIB que apresentou maior estabilidade foi o que mais cresceu. Desta forma, o setor de Serviços acumulou, em 14 anos, variação de 57,6% no período, a Indústria, 25,3% e a Agropecuária, 15,9%.

Esse resultado aponta para o setor de Serviços como responsável pelo desempenho do Distrito Federal. Fato que é comprovado pela sua participação, de 94,9%, no VAB do DF. A análise gráfica faz um comparativo da composição dos grandes setores no VAB entre DF e Brasil, revelando as diferenças do perfil econômico do DF em relação ao perfil nacional.

Há uma pequena participação da Agropecuária, devido ao seu pequeno território, de forma que Brasília é abastecida em boa parte de seu consumo alimentício, por alguns municípios do entorno da região.

Já a participação da Administração Pública no DF, de 44,6%, advém de seu caráter de capital federal do Brasil, sendo sede do governo central, os ministérios e todos os organismos supremos da administração do Estado. Uma consequência de ser uma região construída para ser um centro provedor de serviços públicos é possuir uma economia de serviços que atua de forma direta ou indireta na complementaridade desses serviços. Este é um dos motivos pelo qual o setor continua a ser preponderante na economia, com 50,3% de participação, mesmo quando se exclui o VAB da Administração Pública.

Pode-se, por exemplo, observar que a participação dos segmentos privados do setor de Serviços ao longo do tempo cresceu 2,4pp em 2016 frente a 2010[3]. Os principais segmentos que auxiliaram o avanço do setor privado de Serviços foram atividades financeiras, de seguro e serviços relacionados, que aumentaram em 2,5pp sua participação na economia distrital, e o educação e saúde privadas, com incremento de 1,9pp, quase dobrando sua fatia.

No primeiro caso, uma explicação está na obrigatoriedade da consolidação de uma gama de operações bancárias ser feita na sede dos bancos, e, sendo DF a capital do país, alguns bancos federais são sediados em Brasília, inclusive o próprio Banco Central. No caso da Educação e saúde privadas, cabe a menção de que o segmento mostrou avanço ao longo de todos os anos, até mesmo no ano de 2015, quando o DF registrou a primeira variação em volume negativa desde que seu PIB é estimado. Isto é, o segmento mostrou uma variação em volume acumulada, entre 2010 e 2016, de 45,2%, enquanto o VAB de serviços do DF acumulou no mesmo período de sete anos crescimento de 10,3%.

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De outro lado, enquanto o setor de Serviços vem crescendo em importância na economia distrital, a Indústria apresentando contração. No DF, a Indústria se caracteriza por forte presença da Construção e por Indústrias de transformação de bens finais. Entre 2010 e 2016, a Indústria perdeu 2,9pp de participação no VAB do DF. Somente a Construção perdeu 2,0pp, sendo um dos principais fatores do encolhimento da Indústria no DF.

Por fim, uma análise que também se faz interessante é olhar para o PIB pela ótica da renda. Isto é, a análise do PIB que mostra como o valor adicionado é apropriado pelo fator trabalho (remunerações), pelo governo (impostos sobre a produção) ou se é transformado em excedente operacional das empresas.

No quadro comparativo com o PIB brasileiro, o que se percebe é que mais da metade do PIB do DF é apropriado por meio de remunerações, sendo que o excedente operacional bruto equivale a somente 30% do PIB distrital. Este é um reflexo direto do perfil econômico da capital, principalmente, da alta participação do setor público.

Diante das características únicas que o Distrito Federal possui quando comparado ao país, a outras unidades da federação ou municípios, faz-se importante para lançar luz sobre sua região e sua economia. Desta forma, há ainda muitos outros estudos estruturais e de acompanhamento da economia do Distrito Federal que foram e/ou serão realizados pela CODEPLAN.

Com o objetivo principal de reunir em apenas um sítio todas as informações e análises do Distrito Federal que a equipe da CODEPLAN produz e dissemina, a Companhia lançou o Blog de Conjuntura Econômica do DF. Assim, caso tenha interesse em saber mais sobre a economia do Distrito Federal, ou acompanhar seu desempenho econômico, acesse:

www.economia.codeplan.df.gov.br

ou

www.conjunturaeconomica.codeplan.df.gov.br

    1. O desvio-padrão relativo (coeficiente de variância) da série de variação percentual ano sobre ano do PIB Brasil foi de 3,3, enquanto para o PIB do DF o número é de 2.4.
    1. A agricultura local é desenvolvida em pequenas áreas, dada a dimensão territorial do Distrito Federal. Qualquer fator que atinja as áreas de cultivo, como efeito climático, infestação de pragas ou aplicação de novas tecnologias gera impactos de grande magnitude na produção agropecuária.
  1. Com a mudança de referência metodológica em 2015, a série de PIB com segmentos mais desagregados foi estimada de 2010 em diante. De 2010 a 2002, a série foi apenas retropolada, não sendo possível usar a série histórica para analisar algumas das desagregações do setor de serviços.
O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é 39445943484_fdb43a6c82_b-1024x683.jpgClarissa Jahns Schlabitz é bacharel em ciências econômicas pela UnB, mestre e doutora em economia pela UFRGS. Atua como Gerente de Contas e Estudos Setoriais da DIEPS/CODEPLAN desde 2017. Possui experiência com assessoria econômica,  análise econômica e de conjuntura setorial e regional.

O Valor e a Medida do que não se Embrulha

O jornalista Elio Gaspari, na sua coluna na Folha de São Paulo do 2 de dezembro, criticando a falta de nomes ligados à produção na equipe de Paulo Guedes, apela a uma suposta definição do banqueiro Gastão Vidigal: “Produto é aquilo que se pode embrulhar. Pregos, por exemplo”. No parágrafo seguinte menciona uma exceção, um nome oriundo do setor privado (Salim Mattar), fundador da Localiza, empresa especializada (nas palavras do próprio Elio Gaspari) no serviço de locação de carros. A crítica de Gaspari está dirigida ao suposto predomínio, na equipe de Guedes, de funcionários procedentes do Setor Público (Mansueto Almeida, Waldery Rodriguez, etc.) sobre indivíduos ligados à oferta de bens que se “embrulham”. A dúvida fica por conta da inclusão de Salim Mattar, que não tem como berço o setor público mas, contudo, a oferta da firma que criou (serviços de locação de carros) não se “embrulha”.

Gaspari, subliminarmente, parece outorgar uma certa superioridade valorativa à oferta daquilo que se “embrulha”. Curiosa essa hierarquia, uma vez que hoje os países, na medida de suas possibilidades (disponibilidade de recursos humanos, tecnologia, capital, etc.) tendem a fugir da produção de “pregos”. As fronteiras, em termos de bem-estar material, se encontram em economias que, justamente, geram e exportam uma oferta de bens que não se “embrulham” e tendem a importar coisas que sim se “embrulham”, como pregos.

Contudo, a oferta composta por coisas que não se “embrulham” reintroduz um desafio já velho na economia: a questão da medição e valoração. O desafio não é novo e não está colocado, exclusivamente, na oferta intangível ou não-embrulhável (como é a quase maioria no caso dos serviços). Lembremos que o quesito da medição era o cerne da denominada “Controvérsia do Capital” ou “Controvérsia das duas Cambridges” no tocante à agregação dos bens de capital e a remuneração desse fator em função da sua produtividade marginal. Muito sinteticamente, o eixo da controvérsia era (e é): como adicionar um trator e um computador ? Simplesmente pelos seus preços de mercado, seria a resposta mais óbvia. Dada essa agregação, a contribuição marginal dessa magnitude seria sua retribuição (∂Q/∂K = r). Ocorre que o valor de K não pode ser seu custo, depende do retorno estimado. Mas se K (como agregado) depende de seu retorno, não podemos estimar a produtividade marginal para estimar o retorno: estamos diante de um referencial auto-circular. O debate não foi conclusivo, está em aberto. Em termos históricos (com Joan Robinson à frente), a Cambridge (UK) questionava o próprio conceito de função de produção e a Cambridge (US), especialmente Samuelson, propunha abordagens alternativas que mantinham o modelo canônico em pé.

Se a questão da medição e agregação é, no caso particular dos bens de capital que se podem “embrulhar”, polêmica, demanda amplos espaços de reflexão teórica e metodológica, o desafio é ainda maior quando estamos lidando com uma oferta que “não se embrulha”, como seria o caso da utilização do conhecimento na produção, de melhoras organizativas, de imagem, etc., ou seja, ativos intangíveis. Percebamos a magnitude do desafio. No caso de um trator temos uma dimensão física, concreta, que devemos quantificar monetariamente. Quando estamos em uma dimensão não tangível, devemos lidar com a reputação de uma firma, o prestígio de uma marca, uma forma de organização, etc. que devemos mesurar em termos de magnitudes de potenciais trocas. O ponto é: como medimos e como é remunerado essa dimensão não tangível?

A questão da medição é crucial uma vez que, se a principal alavanca para transitar de um país de “classe média” (como é o Brasil hoje) rumo ao clube das nações avançadas passa por quesitos não tangíveis (que não se “embrulham”, como educação, formas de organização, incentivos, I+D, etc.), se torna necessário algum tipo de indicador para avaliar e direcionar políticas públicas. Por exemplo, hoje a relação entre investimento e PIB é assumida como um parâmetro crucial para determinar o crescimento potencial. Contudo, nesse investimento só é considerada a oferta que se pode “embrulhar”. Como contabilizar o conhecimento incorporado nas máquinas, na organização das firmas, nos processos, na conduta dos trabalhadores, etc.? Como medir o conhecimento acumulado em firmas e instituições? Como medimos e contabilizamos o capital humano que os assalariados acumulam nos seus anos de experiência nos seus empregos?

A tentação é assumir que a medição/valoração da oferta não-embrulhável pode ser realizada com os mesmos instrumentos metodológicos que o capital físico. Lembremos que uma boa e consensual definição de investimento consiste em determinar quanto abrimos mão do consumo presente para expandir o consumo futuro. Nesse sentido, reduzir o trabalho de jovens hoje para possibilitar a freqüência ao sistema escolar, a fim de elevar sua produtividade no futuro, deve ser considerado um investimento que mereceria receber o mesmo status que a construção de um porto. Contudo, o problema pode ser mais complexo quando, por exemplo, em um país (como é o caso do Japão) os vínculos trabalhistas são mais estáveis (menor rotatividade) e essa característica permite elevar a qualidade (produtividade) da mão-de-obra. O desempenho da PEA (População Economicamente Ativa) pode ser mensurado, não unicamente pela quantidade e qualidade da educação recebida no sistema escolar, senão que, também, pela qualidade das trajetórias profissionais. Os contornos institucionais das firmas em cada país (práticas, processos, formas de remuneração e incentivos, valor das marcas, etc.) parecem constituir fontes de capital intangível com desdobramentos nos níveis de produtividade (ver, por exemplo, os artigos de Cummins; e Lev & Radhakrishnan). Aqui estamos diante das mais diversas nuances que são difíceis de delimitar, medir, valorar. Por exemplo, uma firma pode comprar um novo equipamento, mais desenvolvido tecnologicamente. O provedor pode incluir, no pacote, os serviços de formação dos assalariados da firma compradora, sendo este último um capital intangível e de difícil medição. Outras vezes, a valoração pode utilizar metodologias mais clássicas. Por exemplo, um investimento em I&D pode ser valorado seja pelo seu custo seja pelo valor presente do fluxo futuro de benefícios. Neste último caso, porém, se vai requerer a definição de um horizonte temporal, tarefa não trivial.

Contudo, as dificuldades de medição nos “não embrulháveis” estão no próprio DNA. Como contabilizar, nas Contas Nacionais, o investimento realizado para elevar o valor da marca de um produto? A valoração deste tipo de bens (não tangíveis) já merece esforços de reflexão no âmbito do paradigma mainstream. Ou seja, não é um programa de pesquisa que deva, necessariamente, fazer jus a um carimbo de “heterodoxo”. Existem elementos para afirmar que, em certas economias (EUA, por exemplo) o investimento em intangíveis supera o investimento tradicional. Em geral, quanto maior a importância dos intangíveis no investimento total maior será a importância do capital humano, da inovação, da produtividade, etc. na explicação da performance de uma economia e, nas modernas abordagens, esses parecem ser os nutrientes que permitem fugir de um cenário de estagnação secular no longo prazo.

Estes problemas se agregam a desafios mais antigos e que já receberam amplo tratamento na literatura. Por exemplo, os serviços de saúde. Se uma operação de ponte de safena hoje tem uma taxa de sobrevivência de mais de 90% e uma excelente qualidade de vida posterior, como comparar esse “serviço” (não embrulhável) com a mesma operação feita há 50 anos, quando a taxa de sobrevivência era de 20% (exemplo hipotético) e a qualidade de vida no pós-operatório sofrível. Estamos falando do mesmo produto (operação hoje e há 50 anos)? Neste post direcionamos a nossa atenção ao investimento, uma vez que existe consenso sobre uma das diversas restrições que dificultam a retomada do crescimento no Brasil. Limitar a nossa atenção à clássica relação investimento de “embrulháveis”/PIB, com certeza, deixa fora uma série de fatores que talvez sejam tão ou mais importantes que os tangíveis. Quiçá essa seja uma tarefa inglória e a contribuição dos não embrulháveis continue sendo contabilizada como sendo a PTF (Produtividade Total dos Fatores, denominada, adequadamente, como sendo o tamanho de nossa ignorância) pela nossa incapacidade de dar valor a singularidades tão vagas como capital social, instituições, valor de uma marca, etc. Contudo, seria bom sermos conscientes de nossas limitações.

Carlos Alberto Ramos é Professor do Departamento de Economia, UnB. Graduação Universidad de Buenos Aires, Mestrado na Universidade de Brasília, Doutorado na Université Paris-Nord.

Seinfeld e a Economia de Serviços

Muitos leitores deste blog devem conhecer a série de comédia Seinfeld, que foi ao ar entre 1989 e 1998. Segundo a Wikipedia, esta série é considerada “uma das melhores e mais influentes sitcoms jamais produzidas, tendo sida ranqueada entre os melhores programas de televisão de todos os tempos por publicações como a Entertainment Weekly, Rolling Stone, e TV Guide.” A Guilda de Escritores da América escolheu a série como a segunda mais bem-escrita de todos os tempos (após The Sopranos). Uma rápida pesquisa no IMDb, site de dados e informação sobre filmes, televisão, vídeo e games, que permite que os usuários criem suas próprias listas de melhores programas de todos os tempos, mostra o impacto que a série teve na cultura popular mundial.

Mas o que isto tem a ver com a Economia de Serviços? A série é conhecida por ser ‘um programa sobre nada’. Os personagens basicamente se encontram no apartamento em Nova Iorque do protagonista Jerry Seinfeld e conversam sobre trivialidades do dia-a-dia ou seguem suas rotinas diárias onde nada de particularmente importante parece acontecer. Nenhum dos personagens tem características ou personalidades fora da média: não são particularmente feios ou bonitos, amáveis ou deploráveis, e são medianamente hedonistas, preguiçosos e centrados em si mesmos como a maioria das pessoas. Então novamente a pergunta: o que uma comédia sobre nada, ou sobre as miudezas da vida diária tem a ver com este blog?

Talvez um breve resumo de alguns dos episódios mais memoráveis trará algumas dicas.

No episódio ‘Soup Nazi’ (S07E06) os personagens vão à uma loja de sopas extremamente popular, com filas na porta, mas onde o proprietário é autoritário e impaciente, capaz de se negar a vender a sopa caso o cliente não sega à risca a peculiar etiqueta: manter a fila em ordem, não fazer perguntas, não falar desnecessariamente, não elogiar ou criar qualquer outra comoção. No episódio ‘The Alternate Side’ (S03E10) Jerry está na locadora de veículos onde, embora ele tenha reservado um carro médio, a loja está sem carros médios e querem lhe dar um compacto. Em ‘The Understudy’ (S09E24) Elaine (amiga do Jerry) acha que as manicures Coreanas estão falando mal dela quando conversam entre si em coreano (e sim elas estão). Em ‘The Pothole’ (S08E16) Elaine quer encomendar um delivery de um restaurante Chinês especial, mas seu apartamento fica uma rua além da fronteira para a qual eles entregam, obrigando-a a fingir ser a faxineira do prédio da frente para enganar o entregador. Em ‘The Smelly Car’ (S04E21) um valet com odor corporal extremo deixa o carro do Jerry fedendo tanto que nem lavagens especiais resolvem. Com certeza leitores se lembrarão de vários outros exemplos.

O que todos estes episódios têm em comum é o papel central de relações entre provedores de serviços e os clientes que estão sendo servidos. Não é coincidência que uma série que trata da rotina diária de pessoas comuns nas grandes cidades acabe sendo também uma série sobre a ubiquidade de relações entre provedores e clientes. Dado o elevado nível de especialização na sociedade moderna, cada indivíduo acaba se engajando diretamente em um conjunto de ocupações e tarefas cada vez mais estreito e se volta a outros indivíduos e firmas para obter a variada gama de outros bens e serviços de que precisa, tais como sopa, locação de veículos, manicure, comida chinesa, e estacionamento. Sob esta perspectiva, seria quase impossível fazer uma serie sobre a vida contemporânea sem que esta estivesse, assim como Seinfeld, totalmente embrenhada por relações de serviços.

No entanto, os escritores de Seinfeld tiveram a sensibilidade de perceber uma sutileza sobre estas relações que pode não ser imediatamente óbvia para a maioria dos espectadores. As situações apresentadas na série não se limitam a retratar superficialmente serviços sendo demandados e ofertados pelos personagens. Em vez, o foco é, de maneira bastante perspicaz, serem essas relações frequentemente envoltas em conflito, decepções e frustrações. Existe uma tensão latente em cada transação de serviço. Quando Jerry e Elaine são convidados para um jantar e passam em uma confeitaria para comprar um bolo de presente, eles esquecem de pegar uma senha e acabam perdendo o último babka de chocolate¸ levando a desgosto e arrependimento (The Dinner Party S05E13). No banheiro de um restaurante Jerry vê que o cozinheiro não lavou as mãos e depois, constrangedoramente se recusa a experimentar a pizza especialmente preparada para a sua mesa (The Pie S05E15). Em uma livraria George, amigo de Jerry, leva um livro para o banheiro e é depois obrigado a comprar o livro (The Bookstore S09E14).

Após assistir algumas temporadas de Seinfeld o espectador se convence que toda relação de serviços é uma potencial fonte de atrito. Uma forma econômica de entender este fenômeno está na percepção de que estas trocas necessariamente envolvem custos de transação e direitos de propriedade incompletos. Para adquirir um serviço, há todo um processo de busca, avaliação, negociação, matching, feedback, etc. que é repleto de incertezas e assimetrias de informação. Por mais que existam intermediários, reguladores e apps dedicados a resolver estes dilemas, alinhar expectativas, e dirimir conflitos, a relação envolve contratos incompletos e continua sujeita a surpresas e consequências não-intencionadas. Um cliente em uma mercearia tem o direito de experimentar uma uva? E se forem dez uvas? Pode-se apertar os tomates? Até que nível de força é aceitável? Por mais que se estabeleça normas formais e informais, alguns direitos de propriedade sempre estarão mal especificados e, portanto, no domínio público. Tudo isto é fonte de conflitos, pendengas e discussões, levando às situações típicas de Seinfeld.

Outra ótica pela qual se pode analisar a questão é pela psicologia social. A relação de serviço é muito mais que uma mera transação comercial. Ela envolve expectativas que costumam não ser atendidas, não somente com relação ao serviço em si, mas principalmente sobre o que o comportamento do outro revela sobre como somos percebidos e avaliados pelos outros. Um sorriso amarelo, uma má escolha de palavras, ou um olhar de canto de olho podem estar carregados de sentimentos de desprezo, desdém ou apequenamento. É como se cada transação fosse um julgamento de seu pertencimento e valor. Seu desconforto quando o garçom demora para trazer sua bebida não é tanto devido à sede, e sim ao que este comportamento lhe diz sobre a importância que o garçom lhe atribui relativo aos outros clientes. Afinal, aquele outro casal chegou depois e já está com suas bebidas. O episódio The Chinese Restaurant (S02E11) se passa inteiramente na entrada de um restaurante chinês enquanto Jerry, Elaine e George se desesperam na suspeita de que estão sendo passados para trás na lista de espera.

Adam Smith já havia intuído no século 18 que não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que devemos esperar o nosso jantar, e sim do seu interesse próprio. Seinfeld nos mostra que a realidade é até pior. A nossa dependência de uma gama variada de serviços não só não pode contar com benevolência dos provedores, mas ainda deve aturar o seu desdém, menosprezo e antipatia. Ou seja, o que Hamlet de Shakespeare (no monólogo “Ser ou não ser”, ao considerar se matar devido a este estado de coisa) classificou como the whips and scorns of times, ou seja, todas as humilhações da vida:[1]

For who would bear the whips and scorns of times

Th’ oppressor’s wrong, the proud man’s contumely,

The pangs of despised love, the law’s delay,

The insolence of office, and the spurns

That patient merit of th’ unworthy takes …

A beleza do mercado é que apesar de tudo isto, as coisas ainda funcionam bem e no final das contas podemos ser felizes, contanto que encaremos com naturalidade os atritos inevitáveis das relações de serviço.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e autor dos livros Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change (2016) e Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (2018).

  1. Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
    O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
    Toda a lancinação do mal-prezado amor,
    A insolência oficial, as dilações da lei,
    Os doestos que dos nulos têm de suportar
    O mérito paciente, quem o sofreria,
    Quando alcançasse a mais perfeita quitação
    Com a ponta de um punhal?

    https://www.pensador.com/frase/NTcxODg2/