Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Mauro Oddo Nogueira

Nem formal, nem informal, o Brasil é semiformal [Parte III – O caso do Carnaval]

[Ver nota do autor]

 

Em um post anterior, apresentamos um exemplo de como a cadeia de produção e consumo indústria globalizada vai se integrando à informalidade e acaba por construir a semiformalidade na economia brasileira. Todavia, esse processo também se desenvolve a partir de um caminho inverso: a semiformalidade também se conforma em uma trajetória que parte do mundo informal em direção ao formal.

Para exemplificar esse processo, observaremos aqui o que talvez seja o caso mais emblemático da imbricação entre setores formais e informais da economia nacional: as escolas de samba. Roberto DaMatta (2000) afirma que o carnaval é o espaço privilegiado capaz que equacionar as contradições entre a “casa” e a “rua”, os dois elementos que, ao se confrontarem, dariam origem ao “dilema brasileiro” e cuja articulação e equalização permitiria o que o autor chama de “atualização” desses supostos dois “brasis” tão diferentes entre si.

Nós, aqui, sugerimos que o carnaval – talvez até mesmo por conta dessa característica apontada pelo autor – é também o espaço privilegiado do equacionamento e atualização do formal com o informal, o que o transforma no processo paradigmático da expressão econômica desse “dilema brasileiro” e de como este se atualiza no contexto da produção e distribuição de riquezas por intermédio da conformação da semiformalidade.

Nascidas nas favelas do Rio de Janeiro[1], as escolas de samba floresceram, em seus primeiros anos, no contexto extralegal que caracteriza tais áreas, no qual predominam as atividades econômicas e moradias informais. Em um dado momento de sua trajetória, por razões cuja descrição foge ao escopo deste post, parte substancial de seu financiamento passou a ser feita pelos banqueiros do Jogo do Bicho. Este consiste em uma loteria privada e é há décadas uma atividade ilegal no país. Junto com o financiamento, o controle administrativo da maioria das escolas de samba passou para a mão desses chamados “bicheiros” ou “banqueiros do bicho”: indivíduos que controlam essa modalidade de jogo (DaMatta e Soáres, 1999). Além de ilegal de per si, o Jogo do Bicho possui também notórias ramificações em diversas atividades do crime organizado.

De início, perseguida pela polícia, essa modalidade de atividade carnavalesca foi, com o passar dos anos, sendo cada vez mais tolerada. A partir do momento em que adquiriu dimensão expressiva no carnaval da cidade, foi incorporada ao calendário de eventos oficiais do carnaval carioca. Desde então, o Estado passou não só a financiar parte dos seus desfiles, como também a estabelecer as regras que disciplinam o desfile e a competição que se realiza entre essas agremiações. O passo seguinte no processo evolutivo foi a aquisição, por parte da grande mídia – especialmente da televisão – dos direitos de transmissão do desfile de escolas de samba, transformando-o em um de seus mais importantes produtos, inclusive para exportação. Ao mesmo tempo, somou-se interesse semelhante e complementar por parte da indústria fonográfica, que explora um rentável mercado de comercialização dos sambas-enredo.

Na continuidade da evolução, os desfiles de escolas de samba se transformaram também no principal produto da indústria de turismo carioca, que chega mesmo a incluir o direito de participação nos desfiles em seus “pacotes”. Esse direito é adquirido por turistas de todo o mundo nas operadoras/agências a valores que chegam a ultrapassar os US$ 500 por pessoa. Dados seus interesses, todos esses setores passaram a influenciar também a própria dinâmica dos desfiles. Paralelamente, à medida que estes foram adquirindo notoriedade, outros setores formais também começaram a ter interesse, como estratégia de marketing, em se incorporar ao evento na condição de patrocinadores. Um dos que merece destaque é o setor de bebidas. Em especial, as grandes cervejarias passaram a disputar ferrenhamente o direito de patrocinar a realização dos desfiles, bem como as transmissões de TV.

O passo final da absorção dos desfiles pelo mundo formal foi a substituição de uma parte do financiamento direto das escolas de samba, até então subsidiado pelos “bicheiros” e pelo governo municipal da cidade, por patrocínios (muitas vezes não explícitos) de diversas das escolas de samba por parte de empresas dos mais diferentes ramos, assim como por governos de administrações públicas de unidades subnacionais da federação em ações para atrair o turismo. Em ambos os casos, os patrocinadores impõem à escola o tema (o “enredo”) que será apresentado pela escola em seu desfile, utilizando-se assim do próprio desfile da escola como mídia de promoção.

Observe-se que foi um processo de aglutinação de interesses e esforços. As comunidades originais, assim como o Jogo do Bicho, não foram alijadas do comando das escolas de samba. Os novos agentes que passaram a participar não foram absorvidos por “substituição”, mas por “incorporação” à dinâmica do evento.

Hoje, parte significativa da produção dos desfiles das escolas de samba continua ocorrendo nos universos informal e semiformal. A confecção de fantasias é feita por costureiras autônomas, geralmente das próprias comunidades nas quais as escolas estão sediadas, e quase sempre à margem do sistema tributário oficial. Situação semelhante se verifica na construção dos carros alegóricos. A organização e preparação de cada escola contam com profissionais contratados formalmente (alguns com remunerações muito elevadas, como no caso dos carnavalescos mais famosos, cujos salários rivalizam com os dos astros do esporte e da música pop), profissionais contratados sem vínculo formal e até mesmo trabalho voluntário realizado por membros das comunidades.

Assim, o desfile de escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro movimenta diretamente dezenas de milhões de dólares, emprega milhares de pessoas em contratos permanentes e temporários, parte com contrato formal de trabalho e parte sem, e conta com a participação voluntária de outros tantos milhares.

Em suma, uma parcela da operação dessas agremiações envolve o Estado, outra envolve desde grandes corporações transnacionais até microempresas; outra continua se desenvolvendo no universo informal; e parte ainda é operada pelo Jogo do Bicho. Desse modo, em cada uma dessas agremiações encontram-se operando, conjunta e articuladamente, a informalidade absoluta; a semiformalidade; o crime organizado; o Estado; e empresas formais e semiformais de todos os portes e dos mais variados setores, incluindo grupos transnacionais. E isso tudo dando forma a organizações que fogem consideravelmente ao modelo racional-legal weberiano, mas cuja capacidade de produção se equipara, como demonstra Souza (1989) em sua interessante obra Engrenagens da Fantasia: engenharia, arte e convivência – a produção nas Escolas de Samba, àquela das organizações mais bem estruturadas do ponto de vista das modernas tecnologias de gestão. Isso também pode ser depreendido pelo livro Sem Segredo: estratégia, inovação e criatividade, de Paulo Barros (2013). Este último, por sinal, é um daqueles carnavalescos regiamente remunerados aos quais fizemos referência anteriormente.

DaMatta (2000), em seu estudo sobre o carnaval, chama a atenção para o fato de que se trata de uma festa de “inversão”, na qual tem lugar um processo de catarse social. Ou seja, é um momento no qual os participantes manifestam-se frequentemente por meio de uma troca em seus papéis sociais, por exemplo, a doméstica fantasiada de rainha ao lado do patrão, fantasiado de mendigo. E é justamente por esse processo de inversão que conseguimos constatar na arquitetura organizacional responsável pela construção da festa aquilo que é imanente – mas não assumido – das regras de “operação” da nossa sociedade.

Como afirma Maria Laura Cavalcanti (in Gomes, Barbosa E Drummond, 2001):

O carnaval, “comentário complicado sobre o mundo social brasileiro”, dramatiza e acomoda a tensão entre o princípio hierárquico e o princípio igualitário, ambos cruciais na sociedade nacional. […] A pergunta sobre a nacionalidade […] torna o carnaval símbolo integrador de uma imagem de Brasil na coerência aprisionante de um dilema. Mas esse dilema, feito da superposição dos sistemas de valores hierárquico e igualitário, é sobretudo a fonte do movimento da sociedade brasileira, que se resolve desdobrando-se num sistema ritual e simbólico altamente criativo e original (p. 155).

Assim, não é por acaso que essa fusão dos princípios constituidores da sociedade brasileira se manifesta de forma tão explícita na própria organização do carnaval. Sendo esta a principal manifestação da cultura popular nacional, é nela que o referencial simbólico nacional encontra seu veículo mais poderoso de expressão. E é nela também que encontramos uma representativa síntese da construção do espaço econômico da nação.

Mais um exemplo que merece destaque, e que também ocupa espaço proeminente no contexto cultural brasileiro, é o das feiras e mercados. Estes são, também, um locus privilegiado da manifestação da semiformalidade no qual, por sua abrangência territorial, pela concentração espacial e diversidade das atividades, dos agentes envolvidos e de suas relações, a semiformalidade se desenvolve em sua plenitude. Note-se que estes mercados se constituem essencialmente com operações de serviços.

Em um estudo que teve como objeto a Feira de Caruaru (e sua articulação com a Feira da Sulanca) e o Mercado Ver-o-Peso, de Belém, Souza et al. (2012) deixam visível a articulação e a complementaridade entre os setores formais e informais na construção de um sistema único que se desenvolve nesses espaços. Do ponto de vista da oferta, esses espaços operam como pontos de distribuição de produtos de praticamente todas as espécies, indo desde bens manufaturados por grandes indústrias e branding companies[2] (além, evidentemente, do contrabando, da falsificação e da pirataria desses produtos), até produtos agropecuários originários de estabelecimentos familiares de subsistência. O processo de distribuição envolve desde grandes atacadistas, a fornecimento direto pelo produtor. As operações de venda final ao consumidor envolvem desde empresas com porte razoavelmente grande, que controlam diretamente dezenas de pontos de vendas ou operam por meio de mecanismos de sociedades cruzadas que implicam controle indireto também de dezenas de pontos de venda, até ambulantes que oferecem suas mercadorias pelos corredores desses estabelecimentos.

Essa dinâmica se reproduz por todo o país em feiras e “mercados municipais” que se replicam em diversas capitais e cidades de maior porte, como, por exemplo, além dos citados, os mercados municipais de São Paulo, de Porto Alegre, e o Mercado Modelo, de Salvador; em pequenas feiras e mercados de cidades menores; no “camelódromo” da Rua Uruguaiana e no “Calçadão de Madureira”, no Rio de Janeiro; na Rua Santa Efigênia e no Brás, em São Paulo; na “Feira do Importados”, em Brasília; e em tantos outros locais. Em todos eles o que se observa é um sistema que forma um continuum integrado de produção e distribuição, que envolve desde grandes firmas essencialmente formais, até o autônomo individual essencialmente informal, a produção artesanal ou a agropecuária familiar, até incluir mesmo atividades ilícitas. Do ponto de vista do trabalho, envolve também desde o trabalho formal (com contrato de trabalho), até o trabalho precário, o autônomo e o trabalhador semiformal, que possui contrato de trabalho, mas tem parte significativa de sua remuneração “paga por fora”. E, mais uma vez, atividades ilícitas por envolverem trabalho escravo utilizado na produção de muitos dos bens ali comercializados, como é o conhecido caso da indústria têxtil.

A partir desses exemplos, podemos aquilatar a dimensão ocupada pela semiformalidade no Brasil e seu papel como integrador dos universos formal e informal, complementares e componentes essenciais de um único sistema socioeconômico. Como destaca Cacciamali (2007):

[Há uma] subordinação do “Setor Informal” ao padrão e ao processo de desenvolvimento capitalista a nível nacional e internacional. Tal subordinação ocorre em função do ritmo próprio da dinâmica capitalista, que flui ao toque das grandes firmas e dos grupos oligopolistas que, em países periféricos, se encontram, muitas vezes, vinculados ao capital estrangeiro e, em geral, reforçados pelas políticas de governo (p. 150).

Um último ponto a ser abordado concerne à necessidade de uma segmentação clara entre os espaços da informalidade e semiformalidade e o espaço da criminalidade. A despeito das frequentes ligações que as atividades informais ou semiformais acabam muitas vezes estabelecendo com a criminalidade, é possível separar claramente pela sua natureza as que têm origem na realidade cultural e socioeconômica do país, daquelas que são operadas pelo crime organizado – ou “crime negócio”. Este tem objetivos exclusivamente econômicos, ou seja, a acumulação individual sem nenhum caráter de “compensação social”, como é, por exemplo, o caso do comércio internacional de drogas, que estabelece, conforme descrito por Saviano (2014), uma profunda articulação com a economia formal, com destaque para o mercado financeiro global.

REFERÊNCIAS

BARROS, Paulo. Sem segredo: estratégia, inovação e criatividade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Lumiar, 1996.

CACCIAMALI, Maria Cristina. (Pré-)Conceito sobre o setor informal, reflexões parciais embora instigantes. Revista Econômica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2007.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

DAMATTA, Roberto e SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia; DRUMMOND, José Augusto. (Orgs.) O Brasil não é para principiantes: Carnavais, malandros e heróis, 20 anos depois. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  A construção social da informalidade e da semiformalidade na economia brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2237).

ROLLI, Claudia. Marca de luxo é ligada a trabalho degradante. São Paulo: Folha de São Paulo (27/07/2013), 2013. 

SAVIANO, Roberto. Zero Zero Zero. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SOUZA, Hamilton Moss de. Engrenagens da fantasia: engenharia, arte e convivência – a produção nas Escolas de Samba. Rio de Janeiro: Ed. Bazar das Ilusões, 1989.

SOUZA, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).

As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

[1] A primeira escola de samba do Brasil, a Deixa Falar, foi fundada por Ismael Silva e outros em 1928 no bairro do Estácio (região das favelas do Morro do Estácio e São Carlos). A ela se seguiram a Cada Ano Sai Melhor, o Grêmio Recreativo e Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e a Vai Como Pode. As duas últimas perduram até hoje – a Vai Como Pode foi depois rebatizada como Grêmio Recreativo e Escola de Samba Portela (G. R. E. S. Portela) – sendo ambas, atualmente, as notórias agremiações do carnaval carioca (Cabral, 1996).

[2] Empresas transnacionais que tem sua marca como “produto principal”. Suas operações se concentram no desenvolvimento de produtos, no marketing e na distribuição, normalmente terceirizando todo o processo de produção e logística. Como principais exemplos podem ser citados as grifes internacionais; os artigos esportivos; computadores e software; e telefones celulares.

Nem formal, nem informal, o Brasil é semiformal [Parte II – Um caso]

[Ver nota do autor]

Vimos, em um post anterior uma descrição conceitual do que chamamos de “semiformalidade”. Agora apresentaremos um exemplo de como esse constructo se desenvolve na realidade do espaço econômico brasileiro. Se observarmos com cuidado as cadeias de produção e de consumo de vários setores da economia nacional, constataremos que a complementaridade entre formal-semiformal-informal se reproduz em muitas delas. No entanto, alguns desses casos podem ser considerados como paradigmáticos. Descreveremos aqui o caso da cadeia de produção e consumo do automóvel, um dos bens de maior “desejo” na sociedade brasileira.

A figura 1 e o quadro 1 apresentam uma representação esquemática da estrutura da cadeia de produção e de consumo que se desenvolve a jusante da indústria do automóvel. No esquema, estão apresentados apenas alguns dos componentes dessa cadeia que, evidentemente, é bem mais complexa do que aquilo que está aqui representado. Além disso, as características atribuídas a cada um dos agentes da cadeia são as que nós consideramos como dominantes; isto é, características que podem ser encontradas com razoável frequência nesses agentes e cuja constatação pode ser feita tanto pela observação direta, quanto por registros da imprensa.

FIGURA 1 – Cadeia de Produção e Consumo a Partir dos Automóveis

Elaboração do autor

QUADRO 1 – Cadeia de Produção e Consumo a Partir dos Automóveis

Elaboração do autor

Nessa cadeia podemos ver, em primeiro lugar, o conjunto de serviços prestados aos proprietários de veículos. Inicialmente, temos os serviços de reparos automotivos [A]. Existem, como prestadores desses serviços, oficinas autorizadas pelos fabricantes, todas elas formais e operando, a princípio, integralmente na formalidade. Existem também as pequenas oficinas independentes; são empresas com existência formal (CNPJ), mas que em muitos casos têm boa parte de suas operações na semiformalidade (isto é, sem Nota Fiscal). Finalmente, temos as oficinas conhecidas como de “fundo de quintal”; oficinas sem existência legal, muitas operando até mesmo nas vias públicas.

As autopeças [B] utilizadas pelas oficinas podem provir de um mercado formal, no qual são comercializadas as chamadas “peças originais”, produzidas por fabricantes “reconhecidos” pelas montadoras de veículos e que possuem autorização para utilizarem suas marcas. Além desse, há também o “mercado paralelo”, caracterizado por autopeças que são cópias das “originais”, mas provenientes de fabricantes não reconhecidos e que possuem variados níveis de qualidade. Além de parte desse mercado operar na semiformalidade, há contendas legais acerca do uso de marcas e desenhos industriais, com destaque para uma disputa no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre a Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças (Anfape) e as montadoras Ford, Fiat e Volkswagen que, em 2010, foi decidida em Averiguação Preliminar favoravelmente à primeira (D’Araújo, 2015). Há, ainda, os desmanches de carros (ou “ferros-velhos”), que comercializam peças e componentes usados oriundos, a princípio, de veículos acidentados. Nesse mercado, é possível encontrar empresas com registro legal (CNPJ), mas que, em geral, operam na semiformalidade, e empresas informais, isto é, sem existência legal. Além disso, nesse segmento ocorrem também operações criminosas, nas quais são comercializadas peças de veículos roubados. Estas são realizadas tanto por empresas formais, quanto por organizações informais.

Ainda nos serviços, existem aqueles que são prestados aos proprietários de automóveis nas ruas das cidades [C]. Relacionamos, em primeiro lugar, os serviços de estacionamento. Nesse grupo, podem ser encontradas os concessionários oficiais de estacionamento, que operam dentro da formalidade sob concessão das prefeituras. A esses, somam-se os guardadores autônomos de veículos; categoria essencialmente semiformal, uma vez que são também “legitimados” pelas prefeituras. Há ainda os chamados “flanelinhas”, que são também guardadores autônomos, mas que não são cadastrados (“legitimados”) pelos governos municipais. Finalmente, há um esquema de extorsão travestido de serviço de guarda e estacionamento: são indivíduos que, a partir de uma ameaça velada ou explícita de perpetrarem danos ao veículo, exigem uma determinada quantia para “vigiar” o carro estacionado. É uma prática análoga ao notório “seguro” oferecido pelas diversas “Máfias” aos comerciantes de suas áreas de atuação (Saviano, 2008). Além da guarda, nesta mesma categoria de serviços, há a lavagem de automóveis. Quando executados por empresas formais, é prática corrente a subnotificação fiscal (semiformalidade). Também é um serviço que pode ser encontrado sendo prestado em vias públicas de modo totalmente informal. Por fim, registramos uma prática frequente nas grandes cidades, que é a lavagem de para-brisas de veículos nos sinais de trânsito, oferecida em sua totalidade por menores carentes em troca de algumas moedas.

O segundo elo da cadeia que relacionamos é o de fornecimento de combustíveis (gasolina, álcool, diesel e GLP). Ele é composto, primeiramente, pelo varejo de combustíveis [D]: os postos de abastecimento. Salvo exceções, são empresas formalmente estabelecidas e cuja maior parte das operações comerciais ocorrem dentro das normas legais de registros fiscais. Todavia, é muito comum que essas empresas façam uso de empregados sem contratos formais de trabalho e sem o cumprimento de inúmeras obrigações trabalhistas, caracterizando-se, portanto, como atuando na semiformalidade nesse aspecto específico. Há ainda, e é fato frequentemente registrado nesse mercado, a ocorrências de venda de combustíveis adulterados com a adição de diversas outras substâncias (na maioria dos casos, álcool na gasolina). Nestes casos, ultrapassa-se a extralegalidade para se ingressar no mundo do crime.

Os postos de combustíveis usualmente aceitam como meio de pagamento os cartões de débito e de crédito [E]. As operadoras desses cartões são empresas multinacionais vinculadas às instituições bancárias do país. São, portanto, empresas essencialmente formais e os registros dessas transações, até onde se saiba, se dão dentro do mais estrito cumprimento da legislação fiscal. Porém, todas essas operadoras terceirizam seus serviços de teleatendimento [F]. Jessé de Souza e Ricardo Visse (Souza et al., 2012) descrevem as características de precarização do trabalho formal que se desenvolve nas empresas que prestam esse tipo de serviço. A essa análise, acrescentamos aqui o fato notório de que muitas dessas empresas, visando burlar as obrigações legais trabalhistas, contratam seus operadores de atendimento na forma “contratos de estágio universitário”, o que caracteriza mais um caso de semiformalidade em razão da precarização das relações de trabalho. Essa situação suscitou até mesmo a promulgação de um novo dispositivo legal, a Lei Nº 11.788/2008 (Brasil, 2008), como uma tentativa de coibir tal prática.

Na continuidade dessa cadeia, temos a produção de combustíveis [G], na qual novamente a semiformalidade se manifesta nas relações de trabalho: nas usinas de álcool e fazendas de cana-de-açúcar [H] frequentemente são verificadas condições de trabalho precário, inclusive com registros de exploração de trabalho escravo, o que constitui atividade criminosa. Fazendo parte dessa mesma cadeia, existem as refinarias e empresas e exploração de petróleo [I]. Esse segmento é dominado quase que exclusivamente por uma empresa estatal, que é a maior empresa do país (a Petrobrás), e por grandes corporações transnacionais, caracterizando-se, portanto, por operar – ao menos em tese – na mais estrita formalidade. Complementando esse ramo da cadeia, podemos ver os centros de pesquisa da indústria de petróleo [J], atividade que envolve institutos pesquisa, centros de P&D de empresas, e universidades. Nessas instituições são desenvolvidas tecnologias extremamente sofisticadas, que vão desde técnicas para exploração de petróleo em águas profundas, ao desenvolvimento de combustíveis de alta performance para a Fórmula 1. Ou seja, as atividades mais “nobres” e sofisticadas de todo o complexo econômico. Neste segmento, é comum a existência de serviços de consultoria altamente especializada prestada por indivíduos autônomos, mas que são contratados como se fossem pessoas jurídicas, mascarando assim relações de trabalho sujeitas a regulação específica.

O último ramo da cadeia aqui considerado é o relativo à regulação do uso dos automóveis. Consiste, basicamente, no licenciamento de veículos e na habilitação de condutores [K]. Ambas são atividades privativas do Estado. No entanto, há a possibilidade de intermediação [L]. No caso das habilitações, essa intermediação é obrigatória, uma vez que o candidato à licença de condutor deve necessariamente frequentar um curso de formação oferecido por uma autoescola, que são empresas privadas, homologadas pelo poder público e que tendem a operar na formalidade. No entanto, a existência de um comércio criminoso de carteiras de habilitação (concessão da licença sem que o candidato se submeta aos exames necessários) é fato amplamente conhecido e noticiado. Já para o processo de licenciamento anual (e transferência de propriedade) de veículos, a intermediação não é obrigatória, podendo o cidadão cuidar pessoal e diretamente de todos os trâmites. Entretanto, em face de entraves burocráticos e da frequente precariedade no atendimento, é comum que o proprietário do veículo recorra a um despachante, os quais, comumente, desenvolvem parte de suas operações na informalidade.

A partir desse exemplo – que possui um representativo peso na economia nacional – podemos constatar como, partindo de empresas transnacionais e atividades de altíssimo conteúdo tecnológico, passando pelo Governo, e chegando até a serviços prestados por indivíduos nas vias públicas da cidade, a formalidade e a informalidade, através de um processo de simbiose, se imbricam e se complementam na construção do espaço da semiformalidade.

Outra constatação é o relevante papel do setor de serviços nesse construto, mesmo quando se trata da cadeia de produção e consumo de um produto (um bem) típico da manufatura.

Há, ainda, a possibilidade do caminho inverso, no qual a construção da semiformalidade e seu imbricamento em uma cadeia de produção e consumo se dão a partir de uma trajetória que parte do mundo informal em direção ao formal. Mas este será assunto para um outro post

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei do Estágio. Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes; altera a redação do art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996; revoga as Leis nos 6.494, de 7 de dezembro de 1977, e 8.859, de 23 de março de 1994, o parágrafo único do art. 82 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e o art. 6o da Medida Provisória no2.164-41, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Brasília, 2008..

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

D’ARAÚJO, Juliana Rafaela Sara Sales. A interatividade entre direito antitruste e propriedade intelectual: A aplicabilidade do controle concorrencial sobre o exercício de direito industrial e análise do caso Anfape. 2015. Monografia (Especialização) – Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  A construção social da informalidade e da semiformalidade na economia brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2237).

SAVIANO, Roberto. Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

SOUZA, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

 

NOTAS:

Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).

As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

Nem formal, nem informal, o Brasil é semiformal [parte I]

Ver nota do autor

Há um fenômeno que permeia todo o espaço econômico da realidade brasileira e que não foi, até hoje, objeto da merecida atenção: a ele damos o nome de “semiformalidade”. É composta, por um lado, por agentes que pertencem ao universo formal, mas que executam parte de suas operações no âmbito da informalidade. Trata-se de empresas que, a despeito de serem formalmente estabelecidas (empresas com CNPJ), não incluem parte de suas operações em seus registros contábeis (transações realizadas sem a emissão do comprovante fiscal, ou Nota Fiscal) e/ou possuem em seus quadros trabalhadores sem contrato formal de trabalho (Carteira de Trabalho assinada). Essa forma de contratação passou a ser reconhecida como “trabalho informal” pela OIT desde 2003 (ILO, 2003). Há, ainda, empresas que remuneram seus trabalhadores em valores efetivos que são superiores àqueles que constam de seus registros contábeis e dos respectivos contratos de trabalho – prática usual no comércio, em que a remuneração variável (comissões de vendas) é paga à margem dos registros oficiais. Esse conjunto de práticas é conhecido pelos nomes de transações por fora ou caixa 2.

Observe-se que tais transações podem se dar tanto em uma relação com outras empresas formais que também atuam na semiformalidade (operações conhecidas como meia nota), quanto com empresas informais, trabalhadores autônomos ou pessoas físicas, sejam atuando como compradores, sejam como fornecedores. Nas grandes cidades brasileiras é sabido que muitos comerciantes “tradicionais”, ou seja, com estabelecimentos comerciais formalmente estabelecidos, empregam vendedores ambulantes (os camelôs), geralmente informais, para venderem suas próprias mercadorias posicionando-os em frente às suas lojas. Seu objetivo não é somente a evasão fiscal, mas também – e principalmente – ocupar uma posição de mercado que, se não fosse ocupada por ele mesmo, seria por um outro qualquer, que concorreria com ele em sua própria porta.

Em que pese não existirem estatísticas que dimensionem com precisão essas operações e seus perfis, a observação da realidade e os “constrangimentos legais” existentes no país nos levam a supor com razoável segurança que sua intensidade é inversamente correlacionada com o porte da empresa. Particularmente no universo das pequenas e microempresas, é um fato notório que, para muitas delas, seus demonstrativos contábeis não têm nenhuma relação com a realidade. Acreditamos ainda que o fenômeno se dá com maior intensidade no setor de serviços, particularmente no comércio.

Outro ponto importante na construção da semiformalidade a ser mencionado relaciona-se com as práticas gerenciais, muitas delas desenvolvidas a partir dos componentes culturais da sociedade: os sistemas informais (até mesmo rudimentares) de controle das operações. Há até uma expressão que designa essa situação como o “controle no papel de pão”, uma metáfora que se refere às firmas que registram suas operações em folhas soltas de papel avulso, alegoricamente o papel usado nos embrulhos de pão. Essa prática não está, necessariamente, associada ao emprego do “caixa 2”, pois os resultados finais apurados nas transações assim registradas podem vir a ser transferidos para os registros contábeis oficiais. Portanto, seu objetivo precípuo não é, necessariamente, a sonegação tributária. É, em grande medida, uma prática de caráter social e que é um componente do arcabouço simbólico do imaginário do povo brasileiro. Essa prática é a tal ponto reconhecida no país que chega mesmo a fazer parte dos atrativos de alguns estabelecimentos. No bar carioca Bip Bip, por exemplo, um dos mais tradicionais da cidade do Rio de Janeiro, as bebidas são servidas pelos próprios clientes, que as retiram pessoalmente da geladeira ou prateleiras e anotam seus nomes e seu consumo diretamente em um caderno colocado sobre uma mesa próxima à entrada do bar; anotação que serve de controle para a cobrança da conta (Silva, 2014).

A semiformalidade é, portanto, construída a partir de atividades formais que, de alguma maneira, conseguem espaços de operação na economia formal. Uma das possibilidades é a existência de agentes informais que transacionam com agentes formais por meio das operações “por fora” descritas acima. Há também os casos em que, a despeito de sua situação de informal, o agente consegue, quando necessário, revestir de “legalidade” algumas de suas operações. Isso se dá principalmente no setor de serviços e o principal instrumento, nesse caso, é a compra de Notas Fiscais emitidas por empresas formais (transação conhecida como barriga de aluguel): a empresa formal emite a Nota Fiscal ou Recibo relativo à transação efetuada pelo agente informal e este assume o pagamento dos impostos correspondentes. Esse pagamento, dependendo da relação existente entre os envolvidos, pode ser com ou sem ágio.

Uma outra situação começou a se tornar mais visível a partir da criação da figura do Microempreendedor Individual, o MEI (Brasil, 2008). Este dispositivo, que entrou em vigor a partir de 01 de Julho de 2009, pretende oferecer condições especiais de legalização (ou formalização) principalmente para o trabalhador autônomo que vem atuando informalmente, sendo este seu alvo principal, porém não exclusivo. O sistema adota um processo de registro extremamente simplificado e que pode ser feito em poucos passos pela Internet, reduzindo sobremaneira os custos de transação para a formalização. Além de oferecer inúmeras vantagens de caráter tributário para o MEI, que visam aprofundar a prevalência do princípio da progressividade na tributação das pessoas jurídicas, o programa tem por objetivo incluir esses trabalhadores no sistema de proteção social por maio da criação de condições especiais de contribuição[2], possibilitando que se integrem ao sistema previdenciário. Espera-se que a possibilidade de operar no mundo formal – possuindo um CNPJ e emitindo Nota Fiscal – seja capaz de melhorar as condições de operação e competitividade desses trabalhadores e, por conseguinte, também sua renda.

No entanto, o programa do MEI é subordinado à Lei Geral das MPEs. Em consequência disso, os MEIs estão submetidos às mesmas exigências que as MPEs em geral. Esta lei não trata apenas de tributos, seu texto também sugere a simplificação e a unificação de licenças (alvará, bombeiros, vigilância sanitária, meio ambiente etc.) e processos para a abertura, manutenção e encerramento das MPEs, visando reduzir os entraves burocráticos e os custos de abertura dessas empresas. A palavra “sugere” não aparece aqui por acaso. O arranjo federativo brasileiro impõe inúmeras barreiras para a universalização da aplicação dos princípios que regem a Lei Geral e o estatuto do MEI, implicando no que chamamos de “formalidade pela metade”. Um exemplo pode ser o de uma van que vende sanduíches nas ruas sem as devidas licenças: o seu proprietário pode possuir o registro como MEI, sendo portanto “formal” do ponto de vista federal; entretanto não possui nem licença da Vigilância Sanitária, nem Alvará de funcionamento, permanecendo, assim, “informal” do ponto de vista estadual e municipal. Esta é mais uma faceta do problema da integração e coordenação vertical das políticas públicas.

O registro da semiformalidade, em certa medida, já havia sido feito por Souza, Feijó e Nascimento e Silva (2006), quando propuseram um sistema de “classificação de níveis” para a informalidade brasileira, sugerindo que os diversos ramos de atividades cobertos pela pesquisa Ecinf 1997 fossem classificados como sendo de Alta Informalidade; Média Informalidade; ou Baixa Informalidade. Essa classificação teria como base caraterísticas observadas no conjunto de empresas de cada ramo no que concerne a seis atributos: 1 – Nível de receita; 2 – Posição do proprietário (conta própria ou empregador); 3 – Local de Funcionamento (domicílio, sem local fixo ou com local fixo); 4 – Mercado Consumidor (pessoas diversas ou clientes fixos); 5 – Controle de Contas (sem nenhum registro, controle pelo proprietário ou existência de contador); 6 – Constituição Jurídica (com ou sem registro formal, isto é, CNPJ). As inúmeras possibilidades de combinação desses seis atributos em seus diversos possíveis graus permitem ter uma ideia da conformação desse espaço que vai desde uma total e completa informalidade até a rigorosa formalidade. Nesse trabalho, os autores destacam que o universo da informalidade, considerado a partir do duplo enfoque propugnado pela OIT, deva ser considerado como parte integrante da estrutura formal, subordinado ao processo de desenvolvimento da economia.

Em outro estudo, Feijó, Nascimento e Silva e Souza (2009, p. 331) assumem como hipótese de trabalho “que, assim como a fronteira entre o trabalho formal e o informal não é bem demarcada, dentro do setor informal também podemos encontrar um continuum de situações em que pressupostos de um trabalho descente estão mais ou menos presentes”. Chamam ainda a atenção para o fato de que a própria OIT considera que “entre a economia formal e a informal não existe um limite claro que as separe”.

Fica evidente que na economia brasileira não há dois espaços “paralelos”: o mundo formal e o informal. Conforme o que está apresentado em maiores detalhes em texto deste autor que trata especificamente da informalidade, estes espaços se imbricam e se complementam na semiformalidade, conformando um único sistema socioeconômico. Essa realidade é análoga àquela descrita por Cacciamali (2001) ao tratar especificamente da questão do trabalho, na qual a autora afirma que os denominados setores formais e informais do mercado de trabalho expressam-se como um continuum de relações existentes nesse mercado, e não como dois setores dicotômicos ou duais.

Assim, entendemos, a semiformalidade como um espaço construído a partir de dois movimentos convergentes e complementares (figura 1).

FIGURA 1 – Representação esquemática da semiformalidade

Elaboração do autor.

Compreender essa realidade é essencial para a compreensão do nosso país, independentemente de quaisquer juízos que se façam dela. O fato é que o Brasil é um país que é o país que é! E é este país que precisa ser mais bem compreendido, assumido como tal e desenvolvido a partir de suas características próprias.

Em um próximo post veremos o papel relevante que o setor de serviços desempenha na conformação desse construto.

 

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008. Altera a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, altera as Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2008.

CACCIAMALI, Maria Cristina. Padrão de acumulação e processo de informalidade na América Latina: Brasil e México. Pesquisa & Debate, v. 12, n. 1, ano 19. São Paulo: PUC-SP, 2001.

FEIJÓ, Carmem Aparecida; NASCIMENTO E SILVA, Denise Britz do; SOUZA, Augusto Carvalho. Quão heterogêneo é o setor informal brasileiro? Uma proposta de classificação de atividades baseada na Ecinf. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, 2009.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Economia informal urbana 1997 – Ecinf. Rio de Janeiro: IBGE, 2003.

ILO – INTERNATIONAL LABOR OFFICE. Seventeenth International Conference for Labor Statisticians. Report of the Conference. Geneve: ILO, 2003.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  A Problemática do Dimensionamento da Informalidade na Economia Brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2221).

SILVA, Priscilla. Bar do Bip Bip traz a alma do Rio de Janeiro e se confunde com a história do Brasil. Olhar Conceito, 13 jan. 2014. 

SOUZA, Augusto Carvalho; FEIJÓ, Carmem Aparecida; NASCIMENTO E SILVA, Denise Britz do. Níveis de informalidade na economia brasileira. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 37, n. 3 , 2006.

NOTAS:

Nota do autor: Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que apresenta as diversas estimativas da dimensão do setor informal na economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas: o livro “Um Pirilampo No Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil” (no prelo).

As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

[2] Quando de sua criação, o MEI poderia contribuir para o sistema previdenciário (Instituto Nacional do Seguro Social – INSS) com base em uma alíquota de 11,0% do Salário Mínimo. A partir de 2011 esta alíquota foi reduzida para 5,0%.

A baixa produtividade das MPEs no Brasil: ameaça ou oportunidade?

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea,  em parceria com a Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe – Cepal, produziu uma série de estudos que tinha como pano de fundo o resgate do conceito de heterogeneidade estrutural e que foram publicados em Por um Desenvolvimento Inclusivo: o caso Brasil (Infante, Mussi e Nogueira, 2015). A obra delineia um retrato da problemática da produtividade do trabalho no país e aponta o fato de que, a despeito das significativas mudanças estruturais verificadas ao longo de sua história, uma profunda dessemelhança nos níveis de produtividade do trabalho – tanto da perspectiva intersetorial quanto intrassetorial – se perpetua ao longo do tempo no país. O que se destacou nos trabalhos foi que o Brasil vive uma situação na qual, em primeiro lugar, a produtividade média do trabalho é consideravelmente inferior àquela observada nos países centrais da economia mundial. Em segundo, que, a despeito das significativas mudanças estruturais verificadas no país ao longo da história, uma profunda dessemelhança nos níveis de produtividade do trabalho – tanto da perspectiva intersetorial, quanto intrassetorial – se perpetua ao longo do tempo. Esta dinâmica se traduz no conceito cepalino de heterogeneidade estrutural (Tabela 1).

TABELA 1Razão entre a produtividade média do trabalho do quartil e a produtividade média do trabalho total da economia brasileira (2002-2009)

Quartil Nível de produtividade 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Alto 9,76 9,78 10,01 9,91 9,93 9,57 9,67 9,96
Médio-alto 2,83 2,89 2,80 2,72 2,62 2,53 2,51 2,51
Médio-baixo 1,19 1,18 1,15 1,16 1,13 1,08 1,03 1,01
Baixo 0,48 0,48 0,48 0,48 0,49 0,50 0,50 0,50

Fonte: Squeff e Nogueira (2015).

Além disso, a par do efeito direto que ações voltadas para o incremento de produtividade dos setores dos estratos inferiores trariam para a redução da heterogeneidade estrutural – e, consequentemente, o aumento da produtividade sistêmica da economia – há ainda um efeito indireto adicional. A teoria neoschumpeteriana supõe que as empresas inovadoras são capazes de produzir a disseminação do progresso técnico pelo conjunto do aparato produtivo do país: os transbordamentos. Estes se traduziriam em um aumento da produtividade sistêmica. Contudo, para que isso ocorra, é necessário que esse sistema econômico seja capaz de absorver estes transbordamentos, incorporando-os em seus processos. Em firmas que operam em níveis de produtividade tão baixo em relação aos segmentos de ponta e que indubitavelmente apresentam um enorme descompasso em termos de estoque de conhecimento, não se verifica a incorporação sequer de muitas das tecnologias mais triviais existentes. É, pois, difícil imaginar que segmentos tão distantes da vanguarda tecnológica sejam capazes de absorver as novas tecnologias geradas pelas empresas mais dinâmicas. Para que tais transbordamentos ocorram, é imprescindível a existência de um ambiente que lhes seja favorável.Constatou-se, também, que os estratos de produtividade mais alta de nossa economia não diferem de forma significativa dos países desenvolvidos. O baixo valor médio deste indicador deve-se, fundamentalmente, à produtividade extremante mais baixa apresentada pelos estratos inferiores. Observa, ainda, que esta situação é um importante obstáculo para a superação das desigualdades sociais no país. Diante disso, é fundamental identificar as possíveis alternativas para a superação desse quadro. Duas são as trajetórias possíveis: a estrutural, na qual se buscaria uma mudança na estrutura produtiva, de modo que os segmentos de mais alta produtividade aumentassem sua participação relativa no agregado; e a setorial, em que se buscaria uma elevação da produtividade dos segmentos menos produtivos. Porém, em função da composição dos estratos de baixa produtividade e de sua forma de inserção no mercado, não se pode esperar que a alternativa estrutural tenha viabilidade ao menos no curto ou médio prazos. Ademais, as firmas que compõem estes estratos não têm capacidade de absorver a mão de obra liberada pelos estratos inferiores, conduzindo assim a um quadro de desemprego. Resta, portanto, como alternativa capaz de promover um processo de desenvolvimento inclusivo no país a trajetória setorial. Neste caso, é necessário avaliar quais sãos as possibilidades e as oportunidades que os setores têm de elevar sua produtividade.

Assim, para melhor compreender a natureza das políticas que precisam ser formuladas e implementadas para a persecução da trajetória proposta, é preciso caracterizar quem são os agentes econômicos que conformam os estratos de baixa produtividade. A observação do conjunto das atividades menos produtivas da economia brasileira aponta que estas são as que concentram a maior parte das empresas de pequeno porte do país (Squeff e Nogueira, 2015). Além disso, desse grupo fazem parte as atividades mais significativas do setor de serviços: comércio; serviços de manutenção e reparação; serviços prestados às famílias e associativas; serviços de alojamento e alimentação; e serviços prestados às famílias. Assim, o segmento responsável por “puxar” a produtividade média da economia para baixo é exatamente o das micro e pequenas empresas, notadamente do setor de serviços. Poderia se chegar à conclusão de que estas empresas seriam um entrave para o desenvolvimento do país. Entendemos que não, pelo contrário. Elas são exatamente a oportunidade, o caminho a ser trilhado para a reversão do quadro atual. É natural a tendência de que as MPEs apresentem produtividades inferiores às das empresas de grande porte, uma vez que a intensidade de capital que caracteriza as grandes empresas normalmente conduz à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra. Entretanto, este hiato de produtividade entre firmas de diferentes portes não tem que ser, necessariamente, da magnitude do observado no Brasil. Comparações internacionais (OCDE e Cepal, 2012 e Nogueira e Pereira, 2015)  demonstram que o hiato de produtividade natural em empresas de diferentes portes é consideravelmente menor nos países da OCDE (ver gráfico abaixo). Há, inclusive, o caso da Noruega, onde as MPEs são mais produtivas que as empresas médias e grandes, e do Luxemburgo, em que as produtividades praticamente se igualam.

Gráfico 1 – Produtividade relativa em países selecionados da América Latina e da OCDE (em %*)

Fonte: OCDE e CEPAL (2012). *Produtividade das grandes empresas = 100%.

Os efeitos do significativo hiato de produtividade existente no Brasil são perversos em vários aspectos. A começar pela sua contribuição para a desigualdade social. Para além da questão social, as discrepâncias nas produtividades levam a um quadro no qual as MPEs articulam-se precariamente com as cadeias produtivas mais dinâmicas do aparato produtivo, reduzindo o potencial de crescimento e desenvolvimento do país. Em um círculo vicioso, a baixa produtividade atua como fator impeditivo do aumento desta própria produtividade, uma vez que resulta em uma baixa capacidade de absorção do progresso técnico. A questão é saber como superar essa realidade.

A baixa produtividade dessas empresas é resultado direto e imediato de uma problemática central: deficiências tecnológicas em seus processos produtivos e de gestão.  Este estudo apresenta como proposição o desenvolvimento de políticas voltadas Assim, é na direção da modernização desses processos que devem se dirigir as políticas públicas, em especial, as de fomento à inovação. E isso pode ser feito por meio da incorporação de tecnologias muitas vezes simples e baratas. Ou seja, políticas públicas fundamentadas em medidas de baixa complexidade e baixo custo podem ter grandes impactos na produtividade das empresas menores e, consequentemente, na produtividade sistêmica da economia brasileira. E isso não só como resultado do aumento da produtividade média decorrente da redução da heterogeneidade, mas também pelo desenvolvimento da dinâmica da economia como um todo, mediante uma melhor e mais qualificada articulação entre as empresas de diferentes portes, como observado nos países mais desenvolvidos. Além disso, no caso da realidade brasileira, essa incorporação de conteúdo técnico significa a adoção gradativa dessas tecnologias, processo que, uma vez associado à continuidade de políticas de distribuição de renda e de universalização do consumo, produziria um círculo virtuoso de evolução simultânea da produção, da renda, da demanda e do consumo, com um crescimento da produtividade do trabalho fundamentado no aumento do numerador (valor adicionado), e não na redução do denominador (pessoal ocupado), para, a partir daí, isto é, da conformação de um ambiente econômico propício, buscar-se uma mudança estrutural que privilegie os setores mais dinâmicos da economia.

Mauro Oddo Nogueira é Doutor pela UFRJ e Pesquisador do Ipea, tendo se dedicado, nos anos recentes, ao estudo da produtividade e da economia das empresas de pequeno porte.

 

Referências

INFANTE, Ricardo; MUSSI, Carlos; NOGUEIRA, Mauro Oddo (Ed.). Por um desenvolvimento inclusivo: o caso do Brasil. Santiago: Cepal; Brasília: OIT; Ipea, 2015.

NOGUEIRA, Mauro Oddo.  Uma reflexão sobre a problemática da baixa produtividade na economia brasileira. Brasília: Ipea, 2016. (Texto para Discussão n. 2208).

NOGUEIRA, Mauro Oddo; PEREIRA, Larissa de Souza. As empresas de pequeno porte e a produtividade sistêmica da economia brasileira: obstáculo ou fator de crescimento? Boletim Radar – tecnologia, produção e comércio exterior, Brasília, n. 38, 2015.

OCDE – ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO; CEPAL – COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE.  Perspectivas económicas de América Latina 2013: políticas de pymes para el cambio estructural. Santiago: Naciones Unidas, 2012.

SQUEFF, Gabriel Coelho; NOGUEIRA, Mauro Oddo. A heterogeneidade estrutural no Brasil de 1950 a 2009. In: INFANTE, Ricardo; MUSSI, Carlos; NOGUEIRA, Mauro Oddo (Ed.). Por um desenvolvimento inclusivo: o caso do Brasil. Santiago: Cepal; Brasília: OIT; Ipea, 2015.

 

[OBS] Este texto é excerto de um trabalho publicado como Texto para Discussão (Nogueira, 2016) que analisa o problema da baixa produtividade sistêmica da economia brasileira. Este, por sua vez, integra um projeto de estudo mais amplo sobre o universo dessas empresas a ser publicado como livro. As opiniões aqui emitidas são de exclusiva e inteira responsabilidade do autor, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.