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A Rainha Vermelha no Antitruste

Ainda me lembro do tempo em que o Facebook não existia. Também lembro a economia de palavras nas ligações internacionais em que cada segundo tinha peso de ouro. Hoje, Facebook e WhatsApp estão ambos no meu celular, à disposição para facilitar diferentes tipos de interação a quase nenhuma ou mesmo a muitas milhas de distância.

O tema deste post é a junção desses dois gigantes. Ou melhor, do gigante Facebook e do pequeno gigante, WhatsApp, cujo faturamento à época da operação não atingia os patamares de notificação de muitas autoridades antitruste, inclusive do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)[1]. O ano era 2014, ano da fatídica Copa do Mundo no Brasil e da sanção do nosso Marco Civil da Internet. O Facebook anunciara sua intenção de adquirir o WhatsApp em fevereiro e tanto a Federal Trade Commission (FTC) quanto a European Comission (Comissão Europeia), as autoridades antitruste dos Estados Unidos e da União Europeia, respectivamente, aprovaram a operação sem restrições. E o que levou essas duas autoridades a tal decisão?

No caso do FTC, não há documentos públicos que detalhem as motivações da autoridade (salvo melhor juízo ou melhor busca no Google ou no buscador de sua escolha). A Comissão Europeia, por sua vez, explicitou o caminho de análise que a levou a aprovar a operação sem restrições. É esse caminho, ou ao menos parte dele, que convidamos o leitor a trilhar[2]:

A Comissão Europeia avaliou se a operação traria potenciais problemas concorrenciais com foco em 3 mercados:

  1. Comunicação de consumidores (consumer communications services)
  2. Rede sociais (social networking services)
  3. Publicidade online (online advertising services)

Neste post, discutiremos um pouco dos mercados “1” e “3”.

No caso de comunicação de consumidores, um dos focos da autoridade europeia foi definir o mercado relevante para análise em termos de produto. Por exemplo, seriam serviços de comunicação eletrônica tradicionais como SMS, ligações de voz e email substitutos dos aplicativos de comunicação Facebook Messenger e WhatsApp? Seriam estes dois últimos competidores próximos entre si? Quanto menos substitutos para esses serviços, maior a probabilidade de exercício de poder de mercado pelas empresas que se uniam, uma vez que os consumidores “não teriam para onde fugir” em caso de piora dos serviços, por exemplo.

Algumas possíveis segmentações do mercado de comunicação consideradas pela Comissão, mas descartadas, foram por tipo de usuário (consumidor x empresas), funcionalidade (mensagem de texto, mensagem por foto, vídeo etc.) e sistema operacional. Uma segmentação relevante foi a de plataforma, ou seja, se o serviço estava disponível em smartphones, computadores etc. Finalmente, a Comissão preferiu não adotar uma definição precisa do mercado relevante, mas utilizar a visão mais restrita e, portanto, mais conservadora para sua análise: a do mercado de “aplicativos de comunicação para smartphones”.

Para a avaliação dos efeitos da operação sobre esse mercado, três fatores merecem destaque: switching costs; multihoming e efeitos de rede:

Switching costs referem-se a custos de mudança, ou seja, qual o custo que um usuário teria para deixar de usar um aplicativo de comunicação e passar a utilizar outro? Se os serviços do Facebook Messenger ou do WhatsApp se deteriorassem após a operação, qual seria o custo do usuário para migrar para outro aplicativo? Quanto mais altos esses custos, maiores os riscos da operação.

Com base em sua análise, a Comissão entendeu que os switching costs eram baixos, tendo em vista que (i) todos os aplicativos de comunicação eram oferecidos de graça ou a preços muito baixos; (ii) que o download de tais aplicativos era realizável com facilidade em smartphones, e que mais de um aplicativo poderiam coexistir no mesmo aparelho sem tomar muito de sua capacidade; (iii) que, uma vez instalados, os usuários podiam trocar de aplicativo rapidamente; (iv) que a utilização de tais aplicativos requeria custos mínimos de aprendizagem; e (v) que informações e reviews sobre novos aplicativos de comunicação estavam facilmente disponíveis em lojas de aplicativos.

Além disso, a Comissão obteve evidências de que os usuários geralmente realizavam multi-homing, isto é, que os usuários tinham instalado e utilizavam no mesmo aparelho celular diferentes aplicativos de comunicação: entre 80% e 90% dos usuários na Espaço Econômico Europeu usavam mais de um aplicativo de comunicação por mês, enquanto 50% a 60% usavam mais de um desses serviços em base diária.

Outro fator importante na análise da Comissão foi verificar se havia evidência de que o Facebook Messenger ou o WhatsApp viessem pré-instalados em grande parte dos celulares. Caso sim, poderia haver switching costs mais relevantes, tendo em vista o “viés do status quo” associado ao comportamento inercial dos consumidores. Como não houve evidências nesse sentido, a Comissão entendeu que os switching costs eram relativamente baixos.

Por outro lado, a Comissão reconheceu a existência de switching costs associados à necessidade de recriar a rede de contatos em caso de troca de aplicativo de comunicação, isto é, custos associados aos efeitos de rede. Efeitos de rede ocorrem quando o valor de um produto ou serviço aumenta com o número de usuários do produto ou serviço. Quanto mais usuários uma plataforma de comunicação possui, mais interessante ela se torna para os usuários. Qual o valor de um telefone, por exemplo, se não temos a quem ligar? Qual o valor de estar numa rede social, em que nenhum dos nossos contatos está?

A Comissão entendeu que a existência de efeitos de rede de fato gerava switching costs para o usuário e poderia constituir uma barreira à entrada de um concorrente. Contudo, mitigou a importância desse efeito, tendo em vista que o setor era altamente dinâmico, que os outros fatores descritos anteriormente minimizavam os switching costs e que não havia outras barreiras à entrada/expansão significativas. Além disso, nem o Facebook nem o WhatsApp (as ditas Requerentes) detinham controle de alguma parte essencial da rede ou de algum dos sistemas operacionais. Em outras palavras, a Comissão entendeu que os efeitos de rede não eram suficientes para blindar as Requerentes das pressões competitivas advindas de aplicativos concorrentes e de potenciais entrantes.

Em contrapartida, a Comissão também avaliou se a operação poderia aumentar tais efeitos de rede, o que ocorreria se houvesse algum tipo de integração entre o Facebook e o WhatsApp. Uma das possibilidades dessa integração seria a comunicação entre plataformas, que permitisse que usuários do Facebook e do WhatsApp se comunicassem entre si. Contudo, as Requerentes informaram que tal integração enfrentava dificuldades técnicas significativas, tendo em vista dois pontos principais: (i) a necessidade de realizar a correspondência (matching) entre os IDs dos usuários; e (ii) a arquitetura técnica diferente utilizada pelo Facebook e pelo WhatsApp, esta última baseada na nuvem, enquanto aquela não.

Um dos obstáculos associados ao matching era que o identificador do Facebook se baseava em um Facebook ID, enquanto o identificador do WhatsApp se baseava em um número de telefone. Assim, no caso de integração, os usuários teriam que aceitar manualmente esse matching, o que poderia levar parte deles – aqueles insatisfeitos com a integração – a deixar os serviços.

A Comissão avaliou, então, que tal integração parecia improvável, dada sua viabilidade técnica remota e os riscos associados a ela. Além disso, considerou que, mesmo que houvesse integração, o potencial aumento dos efeitos de rede seria mitigado pela sobreposição significativa entre as bases de usuários do Facebook e WhatsApp.

O terceiro mercado analisado foi o de publicidade online. Para essa discussão, é importante introduzir o conceito de plataformas de múltiplos lados. O Facebook, assim como o Google e Uber, são exemplos de plataformas de múltiplos lados. De forma bastante simplificada, isso significa que essas plataformas servem como matchmakers que unem diferentes grupos de usuários.

No caso do Facebook, quando utilizamos as funcionalidades de rede social, somos um dos lados da plataforma. Utilizamos os serviços do Facebook, sem a necessidade de pagar alguma taxa monetária pelo serviço. Mas como qualquer outro negócio, o Facebook precisa se monetizar. Isso é feito no outro lado da plataforma, composto pelos anunciantes que pagam ao Facebook para veicular anúncios para os seus usuários. Portanto, o que o Facebook faz é o match entre nós, usuários, e os anunciantes.

Ora, mas o WhatsApp não tinha e ainda não tem serviços de publicidade. Por que, então, esse lado poderia ter relevância para a análise antitruste? Uma das respostas é justamente a possibilidade de o WhatsApp passar a ter publicidade após a operação. A outra é Big Data. O que torna o Facebook tão competitivo em direcionar anúncios específicos a cada um de nós é que ele conhece (até muito bem) a cada um de nós. Além de todos os dados cadastrais que fornecemos, toda vez que clicamos em algum link no Facebook, ou demoramos um pouco mais num post, revelamos um pouco de nossos interesses e particularidades.

Esses dados associados à utilização de algoritmos permitem à máquina aprender um pouco mais sobre nós (é o tal do machine learning), conseguindo nos direcionar conteúdo e anúncios cada vez mais personalizados. A integração da base de dados do Facebook com a do WhatsApp poderia, portanto, gerar uma vantagem competitiva para o Facebook, que lhe permitiria melhor direcionar anúncios e obter poder de mercado em anúncios online. A detenção de todos esses dados poderia, assim, erguer barreiras à entrada para outros competidores.

A conclusão da Comissão Europeia foi que, mesmo com a integração, continuaria a existir um número significativo de provedores alternativos de anúncios direcionados (pense no Google, por exemplo) e que uma parcela significativa dos dados de usuários úteis para direcionamento de publicidade não era de exclusividade do Facebook, não havendo, portanto, um problema concorrencial.

Assim, já em 2014 a Comissão aprovou a operação e o Facebook adquiriu o WhatsApp. Como apresentado, em sua decisão, a Comissão considerou que não haveria viabilidade técnica de unir as bases de dados do Facebook e do WhatsApp, e que, conforme informado pelas Requerentes, não haveria intenção de o WhatsApp passar a atuar em plataformas de computador.

Como sabemos, hoje os serviços já são integrados e é possível utilizar o WhatsApp pelo computador. Esse foi um dos motivos que levou a Comissão Europeia a aplicar ao Facebook a primeira multa por enganosidade desde a Lei de Fusões de 2004.

Essa multa, de 110 milhões de euros[3], deveu-se ao fato de as Requerentes terem sido enganosas ou negligentes ao afirmar que não seria possível integrar os dados das duas plataformas. O que é interessante também, é que a Comissão não voltou atrás na sua decisão. Isso porque, como explicado, ela já afirmara que, mesmo que fosse possível unir as duas bases, ainda assim a operação não geraria problemas concorrenciais.

Hoje, mais da metade do mercado de anúncios nos Estados Unidos é concentrado nas mãos de Facebook e Google[4]. Isso nos traz algumas questões:

https://contentstorage-nax1.emarketer.com/9dc078228b3f9ba47487e4717565a97a/235954

Fonte: https://www.emarketer.com/content/google-and-facebook-s-digital-dominance-fading-as-rivals-share-grows (Acesso em 09 de outubro de 2018).

A operação terá tornado o Facebook mais apto para rivalizar com o Google pelo lado de anúncios ou terá apenas reforçado um duopólio? Já possuindo uma base de usuários muito grande à época da operação, teria o WhatsApp conseguido expandir seus serviços e tornar-se um novo entrante no mercado de redes sociais para rivalizar com o Facebook, caso não tivesse sido por este adquirido? Qual terá sido o efeito da operação sobre fatores não-preço, como privacidade? O que terá incitado o post de um dos fundadores do WhatsApp, que deixou o Facebook no final de 2017: #deletefacebook?

Fonte: https://www.theguardian.com/technology/2018/mar/20/facebook-cambridge-analytica-whatsapp-delete Acesso em 09 de outubro de 2018.

Outra pergunta que o leitor atento deve estar a se fazer é… e o que tem a Rainha Vermelha a ver com este post? Ao trilhar o caminho da decisão da Comissão Europeia, foi possível nos deparar com novos termos, que só recentemente adentraram o vocabulário antitruste. Switching costs, efeitos de rede, multihoming, big data, todos esses são conceitos que vêm ganhando destaque com o avanço da economia digital e que motivaram a Autoridade de Concorrência alemã, por exemplo, a editar uma emenda[5] à sua legislação antitruste para que esses tópicos sejam levados em consideração na análise de “poder de mercado” em mercados digitais.

Para quem não se recorda da estória, a Rainha Vermelha explicava à maravilhada Alice que era preciso correr tanto quanto possível para permanecer no mesmo lugar[6]. O que vimos é que também no antitruste, essa máxima é válida: para as autoridades da concorrência, escritórios, estudiosos do assunto, você, estimado leitor, e, claro, as próprias empresas de tecnologia.

Patrícia A. Morita Sakowski é técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e exerce a função de Economista-Chefe Adjunta no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Possui mestrado em economia pela Hitotsubashi University (Tóquio-Japão) e gradução em economia pela Universidade de São Paulo (FEA-USP).
  1. “Segundo o artigo 88 da Lei 12.529/2011, com valores atualizados pela Portaria Interministerial 994, de 30 de maio de 2012, devem ser notificados ao Cade os atos de concentração, em qualquer setor da economia, em que pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios total no Brasil, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões, e pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios total no Brasil, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.” (http://www.cade.gov.br/servicos/perguntas-frequentes/perguntas-sobre-atos-de-concentracao-economica Acesso em 09 de outubro de 2018)
  2. Este post traz apenas alguns aspectos da Decisão da Comissão Europeia. Para a análise detalhada, ver http://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m7217_20141003_20310_3962132_EN.pdf
  3. Ver mais detalhes em http://ec.europa.eu/competition/mergers/cases/decisions/m8228_493_3.pdf
  4. Fonte: https://www.appnexus.com/sites/default/files/whitepapers/guide-2018stats_2.pdf (slide 49). Acesso em 09 de outubro de 2018.
  5. https://www.clearygottlieb.com/~/media/organize-archive/cgsh/files/2017/publications/alert-memos/2017_06_28-germany-adjusts-arc.pdf(3a) In particular in the case of multi-sided markets and networks, in assessing the market position of an undertaking account shall also be taken of: 1. direct and indirect network effects, 2. the parallel use of services from different providers and the switching costs for users, 3. the undertaking’s economies of scale arising in connection with network effects, 4. the undertaking’s access to data relevant for competition, 5. innovation-driven competitive pressure.http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_gwb/englisch_gwb.html#p0066
  6. http://www.alice-in-wonderland.net/wp-content/uploads/through-the-looking-glass.pdf (“Now, HERE, you see, it takes all the running YOU can do, to keep in the same place.” p. 17)

 

Data-driven economy e seus impactos sobre os direitos de personalidade

A entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados na União Europeia e a recente aprovação pelo Senado brasileiro do projeto de lei sobre proteção de dados pessoais ressaltaram as inquietações que a data driven economy vem gerando sobre os direitos da personalidade. A discussão mais comum e frequente tem ocorrido em torno da privacidade ou do controle sobre os dados pessoais, muitas vezes coletados de forma ilícita, sem a ciência e a autorização informada dos titulares.

A partir de tais dados, que são os verdadeiros insumos da nova economia, algoritmos conseguem transformá-los em informações economicamente úteis, mas que podem provocar verdadeira devassa na vida privada dos usuários. São exemplos os algoritmos que identificam a orientação sexual a partir do reconhecimento facial, os que decifram emoções a partir da medição de ondas cerebrais, os que diagnosticam crises depressivas e outros transtornos antes mesmo da manifestação de qualquer sintoma médico. É assustador imaginar o tipo de destinação que pode ser atribuída a tais recursos caso não haja nenhum tipo de controle, preocupação que é potencializada com o machine learning.

Uma coisa é certa: algoritmos têm assumido o papel de fazer diagnósticos, julgamentos, classificações e rankings a respeito dos usuários que, embora não necessariamente corretos, serão utilizados pelos próprios agentes econômicos que os exploram e também cedidos para os seus parceiros de negócios em uma infinidade de aplicações que estão fora do alcance da imaginação do cidadão comum.

O problema é que esses julgamentos algorítmicos podem ter impactos diretos nas oportunidades e nas opções de vida dos usuários, pois deles dependerá o acesso a empregos, crédito, seguro e uma série de outros serviços. Por essa razão, a utilização dos dados não diz respeito apenas a problema de violação da privacidade, mas envolve outras relevantes discussões, como o direito de não ser julgado ou categorizado para determinados fins ou o direito de não ser julgado ou categorizado com base em determinados critérios.

A gravidade da situação aumenta quando não se tem nem mesmo como avaliar o potencial danoso de algoritmos, que normalmente se baseiam em dados, correlações e critérios de inferência sigilosos e sem qualquer transparência, que podem ser incorretos ou falsos, e que ainda podem ser utilizados para lastrear correlações que não correspondem a causalidades. Mais grave ainda, podem reproduzir correlações que sejam frutos de discriminações e de uma série de injustiças da vida social.

É por esse motivo que Cathy O`Neil[1] refere-se aos algoritmos como armas matemáticas de destruição, na medida em que, longe de serem neutros e objetivos, embutem em seus códigos uma série de decisões e opiniões que não podem ser contestadas, até porque não são conhecidas. Daí o seu potencial de destruição silenciosa, na medida em que podem basear seus julgamentos em preconceitos e padrões passados que automatizam o status quo e ainda podem ser utilizados para toda sorte de discriminações e violações de direitos.

A falta de transparência é reforçada quando se sabe que tais algoritmos são aperfeiçoados a partir da inteligência artificial, por meio da qual, com a aprendizagem de máquina (machine learning) e com as redes neurais artificiais, mais e mais algoritmos se desenvolvem independentemente, aprimorando a si mesmos e aprendendo com os próprios erros. Como bem resume Harari[2], com a inteligência artificial, o algoritmo “segue o próprio caminho e vai aonde humanos nunca foram antes – até onde nenhum humano pode segui-lo”.

Daí o fundado receio de que dados e correlações manejados por algoritmos possam estar sendo utilizados como veículos de manutenção de discriminações e injustiças, preservando os padrões do passado – ainda que equivocados – ao mesmo tempo em que comprometem as possibilidades do futuro.

Logo, além dos riscos à privacidade e ao controle sobre os dados pessoais, é o próprio presente e o futuro das pessoas que pode estar sendo definido pelos algoritmos, sem que se tenha a possibilidade de conhecer e criticar os dados e correlações que alimentam seus processos decisórios.

Sob essa perspectiva, para o adequado endereçamento do problema, talvez não seja suficiente apenas uma lei de proteção de dados, embora esta seja certamente uma das providências mais importantes nessa seara, até para definir o que pode ser considerado dado pessoal. Há que se verificar igualmente a compatibilidade da utilização dos dados diante do Direito Constitucional, do Direito da Concorrência e do Direito do Consumidor, dentre outros.

Mais do que isso, há que se indagar sobre o grau e os mecanismos de transparência e accountability que se exigirão dos agentes empresariais que se utilizam de algoritmos para compreender e categorizar usuários para os mais diversos fins, o que traz impactos para a sua identidade pessoal – já que podem estar sendo definidos e classificados de forma equivocada – bem como para as oportunidades e opções de vida desses usuários, as quais podem estar sendo indevidamente restringidas em razão de diagnósticos apressados ou claramente equivocados.

Ainda há que se analisar outro preocupante efeito da destinação dos dados pessoais: é que todo o conhecimento sobre os usuários ainda pode ser utilizado para, associado ao poder da comunicação e aos estudos da biologia, neurociência e psicologia, manipular as pessoas, bem como tentar modificar suas crenças e opiniões.

Como explica Tim Wu[3], a partir do momento em que atenção se torna comoditizada, o tempo em que as pessoas passam em determinadas plataformas passa a ser importante fator não apenas para sujeita-las à publicidade e à coleta dos seus dados, mas também para sujeitá-las a estratégias que visam influenciar e alterar suas preferências e visões de mundo[4]. É por essa razão que Tim Wu sustenta que o verdadeiro negócio de muitas das indústrias da nova economia é o de influenciar consciências.

Vista a questão por esse ângulo, a tecnologia pode estar sendo utilizada contra aquilo que temos de mais precioso: a nossa individualidade. A partir do momento em que as máquinas conseguem nos conhecer melhor do que nós mesmos, podem utilizar nossas fragilidades para manipular nossas emoções, crenças e opiniões para os mais diversos fins, inclusive políticos. Aliás, as eleições de Donald Trump e do Brexit ilustram bem tal preocupação.

Como bem afirma Castells[5], a forma mais fundamental de poder é a de moldar a mente humana. No mesmo sentido, Martin Moore[6] destaca que as grandes plataformas adquiriram enorme poder de influenciar a ação coletiva e mesmo o voto das pessoas.

Ora, se o mais importante instrumento de poder em uma sociedade tecnológica e informacional é a capacidade de influenciar e manipular as pessoas, é fácil concluir que os principais riscos da nova economia vão muito além da violação à privacidade dos usuários, alcançando a identidade pessoal, a própria liberdade e, consequentemente, a cidadania e a democracia.

Como se procurou demonstrar ao longo do artigo, a coleta de dados e a sua utilização pelos diversos agentes da economia movida a dados vem colocando a personalidade sob um triplo risco: (i) a coleta em si dos dados, o que já seria preocupante do ponto de vista da privacidade e do controle dos dados pessoais; (ii) a utilização dos dados para a construção de julgamentos a respeito dos usuários que, corretos ou não, podem causar diversos danos a estes conforme os fins a que se destinam, limitando o acesso a produtos, serviços e oportunidades de vida e (iii) a utilização dessas informações com o propósito de manipular os próprios usuários, para os fins mais diversos, inclusive políticos.

Logo, o manuseio dos dados enseja preocupações que vão muito além da privacidade e do controle sobre os dados pessoais dos usuários: na verdade, o que está em jogo é a manutenção de valores como a identidade pessoal, a liberdade, as oportunidades e perspectivas do presente e do futuro das pessoas e a própria democracia.

  1. Op.cit.
  2. HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã [edição eletrônica]. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  3. WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get insideour heads. Nova Iorque: Knopf, 2016.
  4. Ver: FRAZÃO, Ana. Prefácio. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA, Henrique Araújo; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Tecnologia jurídica e direito digital. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
  5. CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Tradução Vera Lucia Joyceline. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2015.
  6. MOORE, Martin. Tech Giants and Civic Power. https://www.kcl.ac.uk/sspp/policy-institute/cmcp/tech-giants-and-civic-power.pdf. Acesso em 14.06.2018.
Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília – UnB. Ex-Conselheira do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2012-2015). Ex-Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (2009-2012). Graduada em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, Especialista em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília – UnB e Doutora em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Líder do GECEM – Grupo de Estudos Constituição, Empresa e Mercado.

Como permitir a competição na economia digital?

A economia digital tem trazido uma série de comodidades para o cidadão. Aplicativos cada vez mais potentes e interativos permitem-nos realizar, com poucos toques no celular, desde transações financeiras internacionais até uma consulta sobre avaliação de um determinado restaurante. É inegável que a tecnologia digital proporciona economia de tempo tanto para tarefas domésticas quanto para atividades no trabalho. No entanto, as características do mercado digital, principalmente no que se refere aos seus aspectos competitivos, revelam que ainda há muito a ser estudado sobre o tema.

É necessário que haja um ambiente digital adequado no presente para que uma empresa possa competir no futuro. É importante incentivar a disseminação das tecnologias digitais, mediante facilitação de compra de equipamentos até investimentos em infraestrutura. Um exemplo que ressalta esse argumento refere-se ao desenvolvimento dos automóveis autônomos. De acordo com estudos da OCDE, para que um carro autônomo possa operar, é preciso uma rede móvel de altíssima velocidade e baixa latência de comunicações, o que, hoje, somente é possível obter com o uso da tecnologia 5G. Um país que queira desenvolver, inovar e promover tecnologias na área não pode prescindir de uma infraestrutura de ponta.

Dito isso, é preciso buscar outro nível de análise para compreender os verdadeiros desafios da economia digital em nível de competição. É importantíssimo entender a diferença de uso de tecnologia e desenvolvimento. Como já bastante discutido neste blog, o verdadeiro benefício para o crescimento relativo de uma economia está no desenvolvimento de tecnologias e plataformas digitais com alcance global, que permitem interações entre usuários localizados em lados diferentes de uma determinada transação. O incentivo ao uso das ferramentas é relevante e pode ser uma etapa anterior necessária para que promova um ambiente digital adequado que permita o advento de desenvolvedores de tecnologia.

Em um mundo ideal, a estratégia de incentivos funcionaria bem. Entretanto, o ambiente digital está repleto de barreiras de entrada não tradicionais. Por exemplo, entre os principais fatores para que haja um ambiente favorável à criação de “start ups” de plataformas digitais estariam o pleno desenvolvimento de mercado de capital de risco (“corporate venture capital”) – que permita a taxas de juros e condições de financiamento empréstimos para empreendedores no setor – e uma oferta de mão de obra mais qualificada – preparada para os desafios da economia digital.

As plataformas digitais operam em um esquema de efeito de rede (“network effect”) que denota o aumento de valor de um produto ou serviço cada vez que um novo usuário utiliza um produto ou serviço. O Facebook pode ser um exemplo interessante. Quanto mais usuários utilizam o Facebook, mais valioso se torna o serviço prestado pela empresa. Isso cria uma externalidade positiva, pois um utilizador, ao inscrever-se no Facebook, cria valor para os outros utilizadores, mesmo sem intenção de fazê-lo.

Isso dá características próprias ao mercado digital (Verzeni P). Entre as positivas, plataformas digitais permitem (i) uma conexão mais eficiente (retira arbitragem) entre ofertantes e demandantes; (ii) maior transparência e fluxo de informação, o que possibilita que os consumidores tenham mais escolhas e as façam de melhor maneira; (iii) que novos entrantes tenham acesso direto a consumidores sem enfrentar elevados custos fixos; e (iv) alcançar uma massa crítica de usuários (quantidade suficientemente grande de vendedores e compradores) de modo a alcançar um equilíbrio entre preço e capacidade de atração.

Entre as negativas, o atual ambiente digital cria algumas barreiras de entrada, tais como (i) a mesma massa crítica necessária para alcançar um equilíbrio de preço demanda uma quantidade muito alta de usuários, o que pode desencorajar novos desenvolvedores de plataformas; (ii) os efeitos de rede criam custos para que os usuários troquem de plataforma (necessidade de operar um novo sistema, criação de uma nova rede de contatos, por exemplo); e (iii) a necessidade de atração de cada vez mais usuários leva as plataformas a buscarem o domínio do mercado, inclusive mediante o monopólio.

A literatura sobre o tema tem crescido bastante, mas ainda faltam estudos empíricos que consigam mensurar quais são as externalidades positivas dos efeitos de redes e quais são as perdas de bem-estar social oriundas do efeito de monopolização dessas mesmas redes. Além disso, as próprias redes modificam os ecossistemas onde elas estão inseridas criando maiores complexidades para análise do tema com ferramentas econômicas tradicionais.

Vale ter presente, por fim, que o favorecimento do desenvolvimento de plataformas digitais parece ser um desafio importante para os países. Ao mesmo tempo em que os países precisam permitir condições para o incentivo da disseminação de tecnologias digitais, devem ter o cuidado de impedir que o uso da própria infraestrutura ou de plataformas digitais inviabilize a criação de novas plataformas.

O estudo mais qualificado dos aspectos competitivos da economia digital pode auxiliar nesse debate, permitindo contornos e limites mais claros para políticas na área.

Verzeni P., COMPETITION LAW IN THE DIGITAL ECONOMY: A FRENCH PERSPECTIVE, Italian Antitrust Review, n.2 (2017), pp 85-99.

 

20 anos do Google: Como a empresa evoluiu seguindo métodos e princípios não tradicionais

Em 2018, o Google completa 20 anos de sua fundação nos Estados Unidos. Desde 1998, a empresa é ao mesmo tempo produto e propulsora da globalização, pelo grande espectro de serviços fornecidos e pela explosão do número de dados on-line reproduzidos e disponibilizados. Já não é mais aceitável a concepção de um mundo sem o acesso livre e imediato à informação como o de décadas atrás.

É notável a importância da economia digital e dos serviços para o desenvolvimento econômico, e da adaptação às tendências. Muitas sociedades e organizações diversas buscam grandes resultados, e para isso desejam uma inserção mais ativa no mundo digital, para isso, tendem a abandonar práticas que possam ser disfuncionais no século da Internet.

Comumente sociedades discutem sobre a criação e replicação de “Vales do Silício”, regiões que concentrariam uma proliferação de inovações, de startups, e de empresas visionárias. O que também merece atenção são fatores como a cultura, a filosofia, e os novos modos de operação e de organização das empresas que despontaram como grandes plataformas. O Google é uma dessas plataformas, e alguns dos seus princípios e métodos foram descritos na obra “How Google Works” (2016) de Schmidt, Rosenberg e Eagle. Muitos desses princípios e métodos são compartilhados por outras grandes empresas do ramo, salvo algumas exceções (como a plataforma aberta).

A autonomia de pensamento é um princípio indispensável para o processo de criação e colaboração, e está desde o início no Google. É uma influência da raiz no mundo acadêmico da empresa, ao ser criada por Larry Page e Sergey Brin, cientistas da computação na Universidade de Stanford, com o suporte posterior de engenheiros e profissionais criativos. Na empresa, a discordância não é só estimulada, como é necessária, o que dá maior liberdade de opinião nas reuniões e encontros. E a qualidade da ideia é muito mais importante do que quem a sugere. Inclusive, há momentos em que, para o bem da empresa, a opinião da pessoa que recebe mais (tratadas de “Hippos”: Highest-Paid Person Opinions) não deve ser ouvida (!). Isso pode afetar o processo de criação na empresa, e o surgimento de novas ideias na equipe. Além disso, é muito valorizado na empresa a diversidade de origens dos talentos contratados, o que fornece vários pontos de vista e pensamentos.

Organizações de estrutura excessivamente hierárquica inibem a colaboração ativa e o questionamento. Tais estruturas supostamente promovem maior estabilidade, e os processos de tomada de decisão estão concentrados. No entanto, a competição com organizações de sucesso que estão mais adaptadas ao século das tecnologias da informação e comunicação pode tonar mais evidente a falta de progresso das empresas tradicionais. Ainda que seja necessária uma estrutura organizacional formal, arranjos mais planos permitem o acesso mais direto aos tomadores de decisões finais e fornecem maior celeridade na realização de projetos.

A própria organização do local de trabalho no Google é realizada de forma a valorizar a autonomia e a liberdade dos trabalhadores (o filme de comédia “The Internship”, de 2013, ajudou a difundir o ambiente pouco tradicional do Google ao público geral). Nesse ambiente, não necessariamente o reconhecimento está no tamanho da sala ou a vista mais bonita da janela. Os escritórios são projetados para maximizar a colaboração e a interação, evitando também a formação de “silos”, grupos que falham ao não se comunicarem livremente e efetivamente entre si.

O ambiente mais livre e que valoriza a autonomia de pensamento também é atrativo aos talentos denominados como “smart creatives”, trabalhadores multifuncionais e muito valorizados no mercado de trabalho. A contratação desses profissionais é uma das atividades mais importante dos executivos. E os líderes serão aqueles que demonstrarem maior paixão e desempenho (e não necessariamente experiência), sendo em torno deles/delas que serão formadas as equipes de trabalho. Nesse sentido, a recomendação é a de que os empreendedores invistam muito mais nas pessoas e na formação de equipes do que nos planos de trabalho. Os planos devem ser flexíveis e mudarão de acordo com o progresso e com as novas descobertas sobre produtos e tendências de mercado, e os talentos irão descobrir novos caminhos naturalmente.

No Google, assim como em outras plataformas digitais, a filosofia de trabalho defendida é a de foco no usuário e na excelência do produto. Para isso, a recomendação é apostar mais nos insights técnicos dos produtos e serviços do que necessariamente na receita. Supostamente, a receita acompanhará o ganho de mercado da excelência produzida. Como destacam Schmidt, Rosenberg e Eagle (2016), inicialmente os fundadores do Google não sabiam claramente como criar um modelo geral de receitas com adverstising, mesmo tendo uma ideia de um potencial. Larry Page e Sergey Brin passaram mais tempo no aumento de escala da plataforma. Mais tarde, a chegada de profissionais de conhecimento dos negócios ajudou no marketing e na captação de recursos.

Os insights técnicos promovem uma solução inovadora para algum problema, e são sobre eles que os produtos e plataformas são construídos. Exemplo disso é o mecanismo de anúncio e publicidade do Google que gera a maior parte da receita da empresa: o Google AdWords. O serviço foi baseado no insight de que os anúncios pudessem ser classificados e colocados em uma página com base em informações de valor e utilidade para os usuários, e não por quem ou qual empresa estivesse disposta a pagar mais (Schmidt; Rosenberg; Eagle, 2016).

O rápido crescimento da plataforma Google foi possível diante de outra importante decisão da empresa desde seus primeiros anos: deixá-la aberta aos usuários, o máximo possível. Após adquirir o sistema operacional Android em 2005, por exemplo, o Google optou por mantê-lo aberto, concedendo liberdade para usuários desenvolverem novos produtos, além de tê-lo disponibilizado para operadoras e fabricantes dos aparelhos. Tal decisão permitiu que a plataforma Google – e o acesso à Internet de modo geral – se expandisse ligeiramente pelos aparelhos móveis. Apesar disso, é claro que nem todo o sistema Google é aberto. A empresa mantém algoritmos relacionados ao mecanismo de pesquisa em segredo, sob a justificativa de manter a qualidade do serviço além da proteção da propriedade intelectual.

O Google inicialmente no final dos anos 1990 – com a concorrência da Netscape e da Microsoft – focou-se na qualidade de seu mecanismo de pesquisa, medindo-o em termos de velocidade, precisão, facilidade de uso, abrangência e atualização. Ao tornar-se principal referência na área no mundo, expandiu sua linha de atuação e de produtos. A empresa mais uma vez apostou mais nos insights técnicos e menos na pesquisa de mercado, buscando assim oferecer aos consumidores o que ainda não sabiam o que queriam (ponto também várias vezes destacado por Steve Jobs, apaixonado por excelência, e inspiração para os próprios fundadores do Google).

As atividades do Google foram e têm se expandido de tal forma que os seus fundadores realizaram em 2015 a maior restruturação da companhia ao criar a holding Alphabet. Dentre os objetivos estava o de tornar o Google mais enxuto e dedicado às atividades mais vinculadas aos serviços na Internet. Além, é claro, do Google, a Alphabet incorpora uma série de empresas e projetos: Fiber, serviço de Internet ultrarrápida; Verily, com pesquisas sobre saúde e prevenção de doenças; Sidewalk Labs, destinado a criar ambientes melhores nos centros urbanos; Calico, voltada à biotecnologia, e pesquisa sobre a longevidade; os braços de investimento CapitalG e GV; Jigsaw, que utiliza tecnologia para lidar com desafios de segurança global, como censura on-line, extremismo, ataques digitais; DeepMind, destinado à pesquisa sobre inteligência artificial; Waymo, para desenvolvimento de carros autônomos; Loon, voltada à provisão de acesso à Internet em áreas rurais e remotas; Project Wing, para desenvolvimento de drones para serviços de entrega; X, a fábrica de ambiciosos projetos de P&D; e Nest, voltada a produtos e dispositivos de automação residencial – “internet das coisas”, e incorporada pela equipe de hardware do Google. Esse “guarda-chuva” parece estar em constante mutação de acordo com o surgimento de novos projetos.

Apesar do sucesso, a dimensão de empresas como o Google merece muita atenção. Quanto maior o uso, maiores as plataformas, mais investimentos e recursos elas alavancam, e maior poder e concentração de mercado conseguem reter. Além disso, empresas de destaque como as citadas DeepMind e a Nest acabaram sendo adquiridas pelo próprio Google/Alphabet, o que o mantém numa posição muito privilegiada no mercado de inovação. Do ponto de vista da sociedade como um todo, essa concentração pode levar a questionamentos diversos, dentre eles a dificuldade de entrada de novos competidores e da livre concorrência.

Grande exemplo foi a decisão de autoridades antitruste da União Europeia em julho de 2018 de aplicar uma multa recorde de 4,34 bilhões de euros contra o Google por “utilizar o Android como um veículo para consolidar a posição dominante em seu motor de busca”, violando, assim, regras de livre concorrência, como o favorecimento de seus aplicativos. Além da grande parcela de mercado atingida, questiona-se a adoção de práticas abusivas pela empresa. A Comissão Europeia alega que o Google estaria obrigando operadoras e fabricantes a instalarem determinados aplicativos para ter acesso aos demais, além de incentivos financeiros, e impedimento para instalação de sistemas operacionais rivais por meio do Android. Outras investigações estão em andamento, como a do sistema de publicidade AdSense. O Google irá recorrer da decisão, e destaca os preços considerados acessíveis e a inovação rápida colaborativa dentro do ecossistema da plataforma.

Por fim, o século da Internet deve combinar a colaboração e a abertura, para que empreendedores tenham uma liberdade real de poder ascenderem nas redes com propostas inovadoras. Por outro lado, grandes plataformas digitais como o Google ditam os rumos da tecnologia e inovação, e possuem grande capacidade de se reinventarem. Por essas razões, possuem certo “poder de realizar previsões”. Logo, é extremamente importante acompanhá-las, e compreender sua forma de atuação – e suas mudanças, para que possamos conhecer um pouco do nosso futuro.

Por que algumas empresas crescem exponencialmente?

Na economia digital, o grande número de usuários das maiores plataformas chama a atenção. É ainda mais impressionante pensar que a maioria das empresas que detém essas plataformas não tem mais que duas décadas. Um grande punhado, menos até que uma década. Então o que explica, por exemplo, uma empresa como o Facebook ter mais de 2 bilhões de usuários em menos de 15 anos de operação?

Antes de responder a esta pergunta, vale ressaltar o quanto é anormal (ou era, até algumas décadas) um crescimento como o de serviços digitais atuais. O infográfico abaixo compara o tempo que algumas tecnologias levaram para alcançar 50 milhões de usuários. Enquanto o avião e o automóvel demoraram 68 e 62 anos respectivamente para chegar a essa marca, o Facebook e o Twitter demoraram apenas 3 anos. O jogo Pokémon Go atingiu essa marca em meros 19 dias.

Imagem 1 – Tempo que cada tecnologia demorou para alcançar 50 milhões de usuários

Obviamente, não existe uma única resposta para a pergunta inicial, mas há dois fatores que são essenciais para entender o crescimento de empresas como o Facebook e o Uber: o modelo plataforma e o efeito-rede, assuntos que tanto temos debatido neste blog.

O modelo plataforma, seguido por empresas como o Facebook, Uber, Google, Amazon e outras, pressupõe o uso de ativos externos para a criação de valor.  O modelo esquemático abaixo, retirado e traduzido livremente de artigo de Van Alstyne, Parker e Choudary (2016), mostra como costuma funcionar uma plataforma digital, usando o exemplo do sistema operacional para smartphones Android, do Google.

No modelo, o “dono” da plataforma (Google) cria e gere a infraestrutura necessária e determina as regras do jogo para a participação de produtores e consumidores. O gestor da plataforma conta com fornecedores (que não são, necessariamente, fornecedores diretos dele) que suprem as interfaces que podem acessar a plataforma. No caso do Google, esses fornecedores são a Samsung, Sony, Motorola, etc, que produzem smartphones que vêm com o Android instalado. Por fim, produtores (por exemplo, desenvolvedores de apps) que criam as ofertas disponíveis na plataforma e consumidores (por exemplo, usuários de apps) que demandam essas ofertas se encontram e transacionam por meio da plataforma.

Essas transações geram dados e valor para todos os atores da plataforma. O Google passa a saber mais sobre o comportamento e as preferências dos consumidores e produtores. As empresas que fazem smartphone descobrem as utilizações mais frequentes dos usuários e também se a plataforma segue relevante ou não. Os desenvolvedores aprendem sobre as preferências dos seus consumidores e dos consumidores de outros apps. Já os consumidores se utilizam dos feedbacks de outros usuários para saber quais apps valem a pena ser baixados ou comprados.

Imagem 2 – Modelo esquemático de uma plataforma típica

Em um modelo linear, ou “não plataforma”, o Google não só criaria e manteria a infraestrutura tecnológica, como ,também, produziria os smartphones que viessem com Android e criaria aplicativos para que os consumidores se interessassem pelo Android. Para manter o seu produto vivo, ela teria que constantemente criar, e aceleradamente, novos aplicativos e smartphones que acompanhassem os gostos em constante mudança dos seus clientes.

Para dobrar o número de aplicativos, o Google provavelmente teria que aumentar consideravelmente os seus ativos, incluindo os empregados. Ainda assim, provavelmente o Android não chegaria aos 2,8 milhões de aplicativos que constavam na plataforma até março de 2017.

Já imaginou como seria um YouTube em que o Google seria o criador de todos os vídeos da plataforma?

Em suma, empresas que funcionam no modelo “linear” dificilmente crescem de maneira “exponencial”, como as empresas que se utilizam de modelos do tipo plataforma. Isso ocorre porque uma empresa-plataforma depende principalmente de ativos externos para crescer. Nesse modelo, o mais importante é manter a plataforma viva e interessante, tanto para usuários quanto para produtores. Se houver um desequilíbrio, em qualquer uma das duas pontas, é provável que a plataforma enfrente dificuldades. Imagine, por exemplo, uma plataforma de vídeos com muitos consumidores e poucos produtores: eventualmente, consumidores vão começar a migrar para outras plataformas que tenham maior diversidade de conteúdo. O mesmo vale para uma plataforma com muitos produtores, mas que atrai poucos usuários: os produtores acabarão migrando para uma plataforma na qual eles encontrem mais consumidores.

O modelo das plataformas está intimamente ligado ao efeito-rede, que é o outro fator que ajuda a explicar o crescimento desse modelo de negócios. Na definição de Parker, van Alstyne e Choudary (2016), “[e]feitos-rede se referem ao impacto que o número de usuários de uma plataforma tem no valor criado para cada usuário.” Em geral, o valor de uma plataforma bem gerida está diretamente relacionado ao seu número de usuários (sejam eles produtores ou consumidores). O exemplo clássico disso é o de uma rede social como o Facebook ou o WhatsApp. Quanto mais pessoas usarem a plataforma, mais conteúdo será gerado, mais conexões poderão ser feitas, e daí por diante. Por melhor que seja uma rede social concorrente ao WhatsApp (por exemplo, o Telegram), tudo o mais constante, dificilmente os usuários migrarão para essa nova rede se os amigos desses usuários não estiverem em massa nessa rede.

Ao mesmo tempo, quanto mais usuários tiver uma plataforma, mais dados a empresa gestora da plataforma terá sobre os seus usuários e, por meio do processamento deles, será possível oferecer mais e melhores serviços para a plataforma cada vez mais customizados para seus usuários. Portanto, a plataforma que consegue ganhar espaço em um nicho e crescer rapidamente o seu número de usuários tende a ganhar participação de mercado rapidamente. Não à toa, o mercado das plataformas tende a formar monopólios e oligopólios. Basta ver o número de usuários das maiores redes sociais, na casa dos bilhões (ver gráfico abaixo).

Gráfico 1 – Usuários ativos nas principais plataformas sociais em 27 de janeiro de 2018

Fonte: Digital in 2018 (we are social & Hootsuite, 2018).

Toda essa discussão importa para países emergentes como o Brasil. Na era da commoditização digital, o valor de se usar as tecnologias dominantes tende a ser muito baixo ao longo tempo, já que, na era digital, praticamente todos tendem a aderir a essas tecnologias rapidamente. No século XXI, o valor deverá se concentrar cada vez mais nos donos e gestores dessas tecnologias e plataformas. O problema é que a grande maioria dessas tecnologias nascem e/ou crescem na Califórnia e poucos outros lugares, incluindo, mais recentemente, a China.

Sobrará algo para países como o Brasil, que são grandes usuários, mas pouco criadores dessas plataformas vencedoras? A ver.

Plataformas digitais: para onde vamos?

Em recente decisão, a Corte de Justiça da União Europeia (ECJ) classificou o Uber como um serviço de transporte. A corte explicou que, em razão de o Uber intermediar a relação entre motoristas e passageiros, incluindo pagamentos pelas corridas e o controle de qualidade dos condutores, haveria, simultaneamente, uma oferta de serviços de transporte e o estabelecimento de uma rede capaz de organizar o fluxo das pessoas que pretendem usar esse tipo de atividade, tornando-a essencial às duas partes do negócio. “A ECJ entende que este serviço de intermediação deve ser considerado parte integrante de um serviço global cujo elemento principal é um serviço de transporte e, portanto, que não corresponde à qualificação de serviço da sociedade da informação, mas, sim, de serviço no domínio dos transportes.”

A decisão da ECJ aponta para uma tendência de maior regulação das atividades relacionadas à economia digital. Devido à importância do tema, seria útil buscar esclarecer alguns pontos relacionados aos ganhos e aos riscos da economia digital para a sociedade.

A economia digital tem ganhado relevo na atual ordem econômica, fornecendo oportunidades para a diminuição dos custos de transação e para a eliminação de intermediários. Dentro dessa ordem econômica diferenciada, o pleno aproveitamento das novidades tecnológicas torna-se questão fundamental para a sobrevivência das empresas, especialmente para aquelas que operam na área de economia digital. Para isso, faz-se uso de um constante processo de inovação capaz de manter o consumo por novidades tecnológicas em nível que permita a manutenção de empresas da área no setor.

É bem verdade que a economia digital possibilita a inserção de pequenas empresas em fluxos de trocas que, sem o uso das ferramentas tecnológicas atuais, seriam inviáveis. Não obstante, essas empresas necessitam de canais de comunicações — em geral controlados por grandes empresas — para se manterem em contato com seus consumidores.

São nesses canais de comunicações, doravante denominados plataformas digitais, ou simplesmente plataformas, que as estruturas de mercado se concentram em número muito limitado de empresas. Exemplos de plataformas seriam os sistemas da Google, o AirBnB, o Uber, o Whatsapp, o site de vendas da Amazon e os sistemas do Facebook. No caso do Google Play, aplicativo que disponibiliza a compra de softwares para smartphones que operam com sistema Android, os compradores utilizam-se da plataforma para adquirirem esses aplicativos. De mesma forma, o desenvolvedor do aplicativo é obrigado a seguir padrões para poder oferecer seu produto nessa mesma plataforma.

Ficará, assim, necessária a distinção dos termos “usuários” e “desenvolvedores” de plataformas, conforme Arbache (2015). Enquanto a maioria das empresas e dos clientes são usuários de plataformas, um conjunto extremamente limitado de empresas são desenvolvedoras dessas plataformas, portanto, capazes de definir padrões de uso. Os usuários (tanto as empresas quanto os clientes) dessas plataformas têm ganhos de produtividade, pois aumentam sua eficiência. É, portanto, nessa ótica, positivo o uso de plataformas digitais. No caso do Uber, por exemplo, o cliente que usa o aplicativo tem a possibilidade de pagar menos por uma corrida, além de ter ganhos com a praticidade do uso do aplicativo. O motorista que usa o Uber também ganha, pois consegue oferecer o serviço sem precisar de comprar licenças ou passar por complexos processos burocráticos para operar um táxi, por exemplo.

Um paralelo pode ser feito com a questão da agricultura. É óbvio que o uso de tratores e de dispositivos de georreferenciamento possibilitam ganhos importantes para o aumento da produtividade do campo. Na realidade, o fato de o produtor deixar de usar equipamentos modernos inviabiliza, em razão do nível de concorrência internacional e dos respectivos custos de produção, o cultivo da maioria das commodities agrícolas. O uso, nesse caso, passa não mais a ser um diferencial competitivo, mas mais uma técnica necessária para a manutenção de determinado negócio. O diferencial não estará, assim, no produtor que usa o trator, porquanto todos usam, mas no país que desenvolve o trator. Ali estará a técnica mais avançada, onde o conhecimento exigido para a concepção dos tratores exige maior capacitação e tecnologia.

Nos países em que se desenvolvem os aplicativos como o Uber, além de potenciais usuários do sistema, há ganhos de inovação e de produtividade no desenvolvimento das plataformas. A imposição de padrões de uso funciona como uma reserva de mercado para esses desenvolvedores, que podem atribuir taxas para que outras empresas operem em suas plataformas. O Airbnb, por exemplo, cobra de seus anunciantes uma taxa para a oferta de seu serviço. Caso o ofertante não concorde com as condições ali impostas, há somente uma saída: não oferecer seu serviço no Airbnb.

Há um outro lado da história. É sempre necessário frisar que a concorrência perfeita – eficiente em termos de Pareto – leva em consideração que são várias e pequenas empresas que ofertam produtos. Uma vez que, dentro da economia digital, há poucas empresas que criam barreiras para entrantes, tem-se a formação de estruturas oligopolizadas quando não monopolizadas de mercado. Há, assim, surgimento de problemas de ineficiência econômica no sentido de Pareto: o conhecido peso morto discutido na microeconomia básica.

As plataformas da economia digital que se apresentam como fundamentais para a criação de eficiência nos mercados, por formarem mercados extremamente concentrados, geram também ineficiências econômicas. Ademais, em geral, essas empresas estão geograficamente concentradas nos EUA e mais recentemente na China, gerando grandes excedentes que remuneram alguns poucos trabalhadores qualificados naquela região.

A decisão do ECJ, por mais precipitada que possa parecer, mostra que pouco se sabe quais são os reais ganhos e riscos relacionados às plataformas da economia digital. Possivelmente, estudos pormenorizados sobre os ganhos e perdas em termos de eficiência econômica da economia digital possam dar um norte mais qualificado a essa discussão.

 Diplomata, trabalha no Ministério das Relações Exteriores. Mestrando em economia na UnB.

O setor de serviços e o desafio da revolução digital na China

Mudanças estruturais no perfil da demanda chinesa estão em aceleração, seguindo o esgotamento do modelo baseado em investimentos, exportações e na produção estritamente industrial. Mesmo com a redução do crescimento da população trabalhadora migrante no país, muitas de suas cidades costeiras já possuem uma alta densidade populacional. Além disso, desde 2011, a população passou a ser mais urbana do que rural. Há a expectativa de crescimento dos serviços tradicionais, pela demanda da população sobretudo urbana, e dos serviços avançados pela demanda do setor manufatureiro.

Com a desaceleração do setor industrial, voltam-se as preocupações com a redução da demanda chinesa por importações, que foi um dos mecanismos importantes para a recuperação da economia global. Há uma emergência do setor de serviços na China, mas há quem defenda que ainda é improvável que isso possa compensar a redução da participação chinesa no comércio global, ou que vá apoiar as exportações do resto do mundo no curto prazo (SPIEGEL, 2015).

Ao se analisar o setor externo pelo lado dos serviços, a dinâmica aparenta ser bem diferente da verificada no setor industrial. Nota-se um grande crescimento das importações pela China a partir de 2010, saltando de US$ 140 bilhões para mais de US$ 450 bilhões em 2016. Já as exportações de serviços pelo país nesse mesmo período apresentaram-se quase constantes após um aumento de 2010 para 2011, variando em valores próximos a US$ 200 bilhões anuais desde então (ver figura abaixo). Claramente, a China não parece apresentar, no setor de serviços, a mesma competitividade verificada no setor manufatureiro, e isso pode ser um importante entrave para a continuidade no processo de forte crescimento que o país tem apresentado nas últimas décadas.

Figura – Exportações e Importações de Serviços da China

Fonte: elaboração própria, com base nos dados do Banco Mundial.

Ao mesmo tempo em que há um problema de competitividade dos serviços chineses, o país tem passado por um processo de aceleração da transformação digital nos últimos anos. Dinâmicas importantes do perfil de consumo e do padrão de vida de sua sociedade, cuja renda nacional média em termos de Paridade do Poder de Compra saltou de US$ 2.900 em 2000 para US$ 15.500 em 2011, aumentaram o ritmo dessa transformação.

De acordo com dados do Banco Mundial, o uso de celulares móveis na China saltou de 6,7% em 2000 para 63,2% em 2010, para então 92,2% em 2016. Quanto à porcentagem de usuários da internet, essa representava apenas 1,8% da população em 2000, elevando-se para 34,3% em 2010, até que, em 2016, a maior parte passou a ser usuária (50,3%). Esses dados mostram um crescimento considerável de conectividade, mas que ainda apresenta grande margem a ser explorada, seja em números absolutos de potenciais usuários da internet, seja no fechamento do hiato “celular e acesso à internet”.

Ainda que pouco mais da metade da população utilize Internet, por seu tamanho, o país possui a maior população de usuários da internet, em torno de 721 milhões. No entanto, é mais do que claro que o país conta com rígidas restrições de presença de grandes empresas estrangeiras e de acesso de seus cidadãos a plataformas globais, e que isso pode interferir na expansão digital futura. A internet para China funciona mais como uma espécie de intranet, na qual muitos sites de alcance global como o Google, Youtube e Facebook possuem acesso censurado ou conteúdo bloqueado. Como resultado, outras plataformas, em geral chinesas, passam a funcionar como ‘substitutas’ ou ‘paralelas’, como Baidu, Youku, Weino e WeChat.

As restrições políticas e regulatórias interferem claramente nas decisões de investimentos, mas algumas empresas estão dispostas a se adaptar ao regime. A Apple instalou o primeiro centro de dados na China, seguindo as regras mais rígidas implementadas recentemente por Pequim quanto à segurança cibernética, segundo as quais todos os dados coletados de cidadãos chineses devem ser armazenados em território chinês. As informações incluem mensagens privadas, fotos e back-ups de dispositivos (BRADSHAW; FENG, 2017). É uma espécie de concessão para que as empresas internacionais acessem o maior mercado de celular móvel do mundo, em troca de fornecer maior garantia ao governo chinês de controle e inspeção.

De acordo com o Fórum Econômico Mundial, em uma pesquisa de opinião realizada com executivos na China, foi revelado que a maior preocupação da comunidade de negócios do país é a dificuldade em inovar. É notório que os Estados Unidos são a economia mais competitiva no setor de serviços avançados muito em razão de seu ambiente e cultura favoráveis à proliferação de práticas inovadoras e empreendedoras. Sendo assim, cabe o questionamento: será a China capaz de criar condições e incentivos em larga escala para a inovação e livre iniciativa na economia de serviços e sem prejudicar os avanços da revolução digital? O desafio da transição estrutural pode se apresentar como um teste à própria resiliência do modelo político-econômico chinês.

Multa da Google, rendição da Nike e desenvolvimento econômico: o que há em comum?

Em 27 de junho, o órgão de defesa da concorrência da União Europeia (UE) anunciou uma multa recorde de € 2,42 bilhões para a Google. Trata-se da maior multa já aplicada pela UE para uma empresa por conduta anticompetitiva. A sanção se deveu por abuso de posição dominante em buscas na internet para favorecer o próprio comparador de preços para compras online, o Google Shopping. A Google também responde a dois outros processos na UE. Um relacionado à sua ferramenta de publicidade e outro relacionado ao Android, que já vem com diversos aplicativos próprios pré-instalados. Em ambos, a acusação é a mesma: prática anticompetitiva.

Por anos, a Nike se recusou a vender seus produtos no marketplace da Amazon por entender que este não seria o melhor caminho para a imagem da marca e para o seu modelo de negócios. Recentemente, porém, a Nike jogou a toalha e se associou ao gigante do e-commerce para comercializar os seus produtos.

O que essas duas estórias aparentemente dissociadas têm em comum? A explosiva importância da economia digital para determinar os contornos da economia no século XXI e os meios utilizados pelos grandes operadores para ampliar e manter o seu domínio.

Conforme indicou a UE, a Google usa e abusa de expedientes não competitivos para seguir ampliando a fatia da sua plataforma em vários segmentos da Internet. Ainda que isto possa lhe custar sanções, não é óbvio que a Google abandonará práticas competitivas questionáveis, já que os benefícios podem ser enormes. Já a Amazon, através de uma formidável capacidade de ação, ameaça sem cerimônia o varejo de rua não apenas dos Estados Unidos, mas, também, de outros países.

Há, definitivamente, uma transformação econômica em curso associada à economia digital e empresas com ambições globais sabem que é preciso se preparar para ela sob pena de ficarem pelo caminho. Ou de se tornarem dependentes da plataforma de alguma outra empresa.

Neste momento, observam-se plataformas segmentadas e plataformas mais amplas. Dentre as plataformas segmentadas incluem-se a PayPal, a SAP e outros serviços de propósitos específicos que se tornaram influentes em suas áreas, inclusive contribuindo para determinar padrões e regras.

Já as plataformas amplas atuam em frentes diversas e oferecem cada vez mais um leque de bens e serviços de A a Z . Ali estão as temidas superestrelas, como a Amazon e a Google. Os efeitos-rede e plataforma que essas empresas têm sido capazes de criar são de tal monta que tornou-se quase impossível contestá-las, ao menos no horizonte previsível. Isto explica, ao menos em parte, as práticas não-competitivas ousadas da Google e a capitulação da Nike.

Esse movimento também ajuda a explicar o definhamento dos unicórnios, startups que chegaram a valer US$ 1 bilhão ou mais e que, até recentemente, incomodavam as superestrelas. A PayPal, por exemplo, está perdendo clientes para a Amazon simplesmente porque uma plataforma de pagamentos segmentada tem menos condições de competir com um sistema de pagamentos próprio já “pré-embarcado” numa plataforma geral.

O que está em jogo nem sempre é a melhor prestação de serviços para o consumidor ou mesmo o melhor algoritmo, mas o modelo de negócios mais adaptado ao  agressivo ambiente que se desenrola. Por isto, o futuro da PayPal é incerto.

O que tudo isto tem a ver com o desenvolvimento?

Haverá um acelerado processo de consolidação de vários segmentos que estão direta ou indiretamente expostos à economia digital dando origem a conglomerados sem precedentes com enorme poder de ação e influência global.

A despeito da briga de foice que se trava entre empresas dos Estados Unidos e de outros países avançados pela dominância de mercados digitais, esta estória não é neutra do ponto de vista do desenvolvimento. Afinal, como temos reiterado neste blog, o mundo está sendo dividido entre usuários de um lado, e desenvolvedores, distribuidores e gerenciadores de commodities digitais de outro.  E neste último grupo estão países como Estados Unidos, Alemanha e Japão, e, correndo por fora, a China.

Esse movimento sugere fortemente a necessidade de governos e reguladores se atentarem para o canto da sereia das supostas belezas da convergência regulatória e da liberalização dos mercados digitais sem terem uma estratégia de longo prazo.  Diferentemente de mercados convencionais, como  automóveis, têxteis e produtos químicos, a economia digital não é mais do mesmo. Ao tempo em que é uma grande ameaça para aqueles que ficarem para trás em áreas variadas como perspectivas de crescimento econômico, criação de empregos, carga tributária, privacidade e proteção de dados e segurança nacional, a economia digital ainda oferece enormes oportunidades, justamente em razão da sua natureza tecnológica.

China e Índia já entenderam isto e trabalham com estratégias bem definidas tanto para protegerem seus interesses como para contestarem mercados e se tornarem players globais.

O caminho a seguir é o de desenvolver políticas públicas que identifiquem e removam obstáculos e criem oportunidades para o país participar da economia digital como desenvolvedor, distribuidor e gerenciador de commodities digitais e não apenas como usuário.

Fortalecer o conhecimento das crianças e jovens em matemática, ciências da vida, machine learning, programação e desenvolvimento de algoritmos e línguas estrangeiras; criar um ambiente favorável para o surgimento, crescimento e atração de startups; e colaborar com centros de pesquisa estrangeiros e com empresas multinacionais de economia digital devem ser parte de uma agenda mais extensa e ambiciosa que proteja os interesses do Brasil ao tempo em que otimiza o seu potencial de voos mais altos na economia global.

A consolidação de Amazon, Google e outras grandes plataformas

Como extensivamente noticiado, a Amazon, terceira maior varejista dos Estados Unidos, anunciou a compra da rede Whole Foods, a maior varejista de produtos orgânicos e naturais do país, por US$ 13,7 bilhões. Essa compra é um indicativo de um movimento cada vez mais claro do avanço de grandes empresas de tecnologia em mercados mais tradicionais e da consolidação dessas empresas em grandes plataformas de serviços.

O Google, fundado em 1998, que por muito tempo foi uma mera ferramenta de busca, hoje forma um conglomerado (Alphabet) que oferece de serviço de e-mail a carros autônomos. O Facebook, que em 2004 era uma mera rede social para universitários americanos, hoje já conta com quase 2 bilhões de usuários, é dona do Whatsapp (que tem mais de 1 bilhão de usuários) e do Instagram (mais de 700 milhões de usuários), além de fabricar óculos de realidade virtual e aumentada, por meio de sua subsidiária Oculus.

Vale lembrar, também, que a Amazon, que começou vendendo livros em 1995, hoje é a maior provedora de serviços de hospedagem do mundo, além de ser uma grande plataforma para pequenas empresas venderem seus produtos internacionalmente, por meio do seu marketplace. Fora isso, a empresa fabrica bens físicos que entregam serviços da Amazon e seus parceiros, como leitores de e-books, assistentes virtuais como o Alexa, drones, leitores de e-books, etc.

Movimentos similares são observados em empresas como Microsoft e Apple, em um processo de consolidação das gigantes de tecnologia em grandes plataformas de serviços e até de produtos.

Com a demanda por serviços cada vez mais customizados, os dados e algoritmos que permitem conhecer melhor cada consumidor e se antecipar às suas demandas se tornam um diferencial competitivo quase imensurável. Nesse quesito, essas grandes plataformas, à medida que vão crescendo e expandindo seus serviços, vão progressivamente expandido a sua base de clientes, conhecendo-os mais profundamente e se tornando mais indispensáveis.

Por meio de um processo virtuoso, essa expansão permite que seus algoritmos sejam continuamente aperfeiçoados, o que torna cada vez mais difícil concorrer com essas grandes empresas. Ou seja, o efeito rede alimenta o efeito plataforma e vice-versa. Soma-se a isso a inteligente estratégia de fusão e aquisição dessas gigantes: a título de exemplo, assim que o Whatsapp começou a se tornar uma ameaça aos serviços do Facebook, o Facebook simplesmente comprou o serviço.

Para o consumidor, no curto prazo, os serviços mais customizados – e em sua maioria baratos ou gratuitos – dessas plataformas podem ser bem-vindos. No médio e longo prazo, porém, tamanha concentração pode trazer problemas.

O primeiro deles, já mencionado rapidamente, é o possível aumento das barreiras à entrada por conta da vantagem competitiva dessas grandes plataformas. Com o avanço dos algoritmos dessas gigantes da tecnologia, será que vão seguir surgindo empresas capazes de concorrer nos seus mercados?

O segundo problema se refere a questões regulatórias. Pelo caráter global dessas empresas, regular seus serviços é extremamente complexo. Exemplo disso são os casos de processos antitruste contra a Microsoft e o Google na Europa, ou as polêmicas com o Facebook por suas táticas de evitar o pagamento de impostos ao redor do mundo.

Além disso, mudanças nas políticas de uso de uma plataforma como o Alibaba ou a Amazon podem ter efeitos em mercados do mundo inteiro. Como o custo de estar fora dessas plataformas é muito alto, pequenas empresas em geral simplesmente têm que se submeter às regras estabelecidas por essas grandes empresas, de forma que estas acabam se tornando uma espécie de regulador de facto.

O terceiro, e talvez o maior problema, relacionado aos dois anteriores, refere-se ao efeito dessa grande consolidação nos países em desenvolvimento. Como tem sido extensivamente discutido neste blog, o futuro, em termos de oportunidades de crescimento econômico, será daqueles países que não apenas consomem tecnologias, mas, acima de tudo, que desenvolvem, essas tecnologias e plataformas. A maior parte dessas grandes plataformas são originárias de países industrializados e, por mais que elas criem oportunidades de acesso a conhecimento e negócios nos países em desenvolvimento, o grosso do valor criado fica no primeiro grupo de países, não no segundo. Isso pode levar a um aumento da desigualdade global e a uma maior dificuldade de convergência de renda.

Por este motivo, preparar esta e as próximas gerações para as habilidades do século XXI, como programação, capacidade de trabalhar com machine learning, inteligência artificial, novos modelos de negócios, resolução de problemas complexos, etc, deveria ser prioridade das economias emergentes. Se não fizerem isso, estes países correm o risco de ficarem ainda mais despreparados para a corrida pelo desenvolvimento.

O que está havendo com as Operadoras de Telecomunicações na Era Digital?

A forma como consumimos produtos e serviços tem sido drasticamente alterada pelas mudanças trazidas pela revolução digital. Essa tendência tem desafiado vários setores da economia, com profundas consequências para os modelos de negócios tradicionais. Dessa forma, a sobrevivência das organizações no ambiente estruturado a partir da era digital exige que elas redefinam seus papeis.

A variável chave que permite o funcionamento dos diversos setores dentro desse novo contexto é a conectividade. Assim, seria de se esperar que o setor responsável pela infraestrutura essencial à conectividade ― as operadoras de telecomunicações ― estivesse em uma situação confortável. Contudo, ao observar os balanços desse segmento, nota-se justamente o contrário: apesar de deterem ativos essenciais à difusão da economia digital, essas empresas vêm sofrendo forte corrosão em suas margens.

Na realidade, a infraestrutura das operadoras, construída para suportar seus próprios serviços e produtos, também permitiu o surgimento e o crescimento de empresas que se baseiam na troca de serviços pela Internet ― apelidadas de over-the-top (OTTs). As OTTs, por sua vez, mudaram de maneira irreversível os modelos de negócios da oferta de serviços B2C e B2B. Elas inventaram as mídias sociais, a busca por informações, além de transformarem o mercado de hotelaria, de entretenimento e de transporte individual de passageiros. Elas inventaram as plataformas de trocas digitais, permitindo que seus usuários troquem valor por meio da rede. Alavancadas na infraestrutura de nuvem, elas são extremamente competentes em inovar em modelos de negócios. Assim, as mudanças disruptivas oriundas do surgimento das OTTs estão se alastrando por todos os mercados de serviços, atingindo, inclusive, a cadeia de valor de telecomunicações.

Durante esse processo, a participação das teles na agregação de valor em toda a cadeia tem sido reduzida. O maior valor não mais está em quem detém as redes, e sim em quem inova em serviços prestados por meio delas. De fato, como ocorre em outros setores, há uma espécie de “commoditização” desses ativos de infraestrutura, o que pode ser explicado essencialmente em quatro tendências.

A primeira consiste na migração dos serviços, antes restritos às redes proprietárias das operadoras, para serviços baseados 100% em dados. Esse movimento tem facilitado o aumento da presença de OTTs e fabricantes na cadeia de valor por meio do desenvolvimento de serviços que usam tecnologias inovadoras. As principais consequências para as teles foram, portanto, o aumento da competição e a diminuição considerável da capacidade de diferenciação de seus serviços tradicionais.

Puxada pela primeira, a segunda tendência corresponde à mudança nos modelos de negócios das operadoras, que passaram a centralizar o seu modelo em dados e a investir em redes de nova geração (ou all-IP). Na era da dominância de dados, os estímulos passam a se voltar puramente para o aumento da capacidade de banda larga ao menor custo possível. Contudo, em um cenário altamente competitivo com as OTTs, também marcado pelo forte crescimento na demanda por tráfego e pela predominância de estruturas tarifárias flat, justificar os investimentos das operadoras tem se tornado cada vez mais difícil.

Dissociação entre receitas e custo

De acordo com Cisco VNI, entre 2016 e 2021, o crescimento global do tráfego de Internet fixa é estimado em 26% ao ano, enquanto o crescimento do tráfego móvel está estimado em 46% anuais para o mesmo período. Mas esse aumento não é acompanhado pelo aumento da receita. Devido à predominância de estruturas tarifárias flat, o aumento do tráfego não traz nenhum benefício financeiro para as operadoras de telecomunicações. Na realidade, essas empresas vêm sofrendo grande corrosão em suas margens. Estudos da Junipter Reserch indicam que, entre 2013 e 2015, as receitas das operadoras de telecomunicações caíram 18,8%. Em 2016, a perda de receitas por substituição foi quantificada em 84 bilhões de dólares. Para 2017, a expectativa é que esse valor seja de 103,7 bilhões de dólares, 23% maior que o anterior e equivalente a 12% das receitas globais.

A terceira tendência consiste na evolução das gigantes OTTs em plataformas verticalmente integradas. Por meio delas, as OTTs prestam serviços de comunicação e entretenimento a partir de dispositivos que independem da operadora utilizada, com canais direto ao consumidor e plataformas extensíveis em nuvem que suportam constante inovação a custos marginais.

O que torna essa indústria única é o seu ritmo de mudança e seu impacto muitas vezes disruptivo sobre as indústrias tradicionais. Há um fenômeno de consolidação no mercado de serviços online, cada vez mais concentrado em grandes players globais. A natureza global desses serviços, por sua vez, permite às empresas alcançar economias de escala muito superiores às das operadoras de telecomunicações. Os serviços OTT têm audiência global porque enfrentam pouca ou nenhuma barreira regulatória e geográfica. Além disso, são serviços beneficiados por significativas externalidades positivas de rede (também chamada de “efeito-rede”): quanto maior a base de usuários, mais valioso é o serviço OTT para o seu usuário efetivo e, portanto, mais atrativo para os usuários em potencial.

Essa ideia nos leva à última tendência: a consolidação global dos grupos de telecom que, para fazer frente à nova realidade, precisam se tornar mais enxutos. Essas empresas estão buscando ganhos de escala oriundos do tamanho absoluto das suas redes, uma vez que deter uma rede massificada responsável por grande parte do volume global de dados terá um valor não desprezível na era digital. Dada a dificuldade de diferenciação capaz de fazer face às três tendências anteriores, essa também parece ser uma tendência crescente.

Como resultado de todas essas tendências, apesar de fundamental, o setor de telecomunicações deixou de ser o protagonista da economia da Internet e sofreu forte redução em sua parcela na cadeia de valor da Internet. De acordo com estudo publicado pela GSMA, a economia da Internet valia o equivalente a 3,5 trilhões de dólares em 2015. Deste total, somente 17% (577 bilhões de dólares) correspondiam às receitas auferidas pelos provedores de acesso à Internet. Já as OTTs, com seus serviços online, respondiam por quase 50% da cadeia de valor.

Diante desse cenário, parece evidente que mesmo as empresas detentoras das redes que fazem a Internet funcionar precisarão se reposicionar na Era Digital. Tal como ocorreu em outros setores tradicionais, faltou visão e criatividade para fazer frente às inovações trazidas pelas empresas de serviços na Internet.  Em vez disso, ao perceberem seu terreno diminuindo, a solução aventada pelas operadoras parece bastante frágil: primeiro tentaram dificultar o acesso a serviços concorrentes e, mais recentemente, recorrem aos governos para que submetam as OTTs ao arcabouço regulatório de telecomunicações. Ora, se a chave para agregação de valor consiste em inovar, a estratégia “antifrágil” para os grupos de telecom passa pela criação de oportunidades para a gestão da inovação concentrada em nichos cujo domínio das redes gere ganhos convexos.

Por outro lado, se o ambiente competitivo estivesse bem estabelecido, as prestadoras de telecom poderiam mudar seus planos tarifários para ajustar o mercado. Como isso não está acontecendo, essa concorrência parece estar disfuncional. Como vimos, muitos serviços prestados por OTTs competem com serviços prestados pelas operadoras. Entretanto, as empresas da Internet não estão submetidas às pesadas regulamentações setoriais do setor de telecomunicações. No máximo estão sujeitas a regulações concorrenciais e consumeristas às quais também estão submetidas as operadoras. É preciso lembrar que muitas das inovações da Internet foram possíveis pela liberdade desse ambiente. O horizonte regulatório dos próximos anos precisa levar esse cenário em consideração e criar espaço para a inovação no setor de telecom.

A questão mais importante de todo esse contexto (e que deve ser considerada pelos tomadores de decisão) é: como garantir a sustentabilidade dos investimentos nas redes de banda larga, tão necessárias para suportar a Economia Digital?

Juliana Müller é Engenheira de Redes de Comunicação e Engenheira Eletricista com especialização em Gestão de Políticas Públicas. Atualmente é Assessora na Secretaria de Política de Informática do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

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