Economia de Serviços

um espaço para debate

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Cidades Inteligentes

O desenvolvimento das cidades se dá pelo acúmulo no espaço dos resultados sucessivos decorrentes de múltiplos e heterogêneos agentes que interagem entre si e com o seu meio. Nessas interações, indivíduos e empresas decidem estrategicamente suas ações mediando suas expectativas de pay-off com o conjunto de informações que os mesmos extraem do contexto onde estão inseridos.

Tais informações podem ser referentes às características e comportamentos dos demais agentes, à disponibilidade de recursos e as condições para acessá-los visando o alcance dos resultados desejados, às instituições (formais e informais) que regulam as relações sociais e econômicas da sociedade, às restrições impostas pelo meio físico (natural e construído), às forças políticas que atuam no ambiente, etc. Todas esses pedaços de informação se juntam formando um todo que configura um determinado espaço.

Uma característica dos agentes é que nas suas múltiplas rodadas de interação eles aprendem com a experiência, adquirem novas informações e modificam e adaptam suas estratégias e suas ações, o que produzirá cumulativamente no espaço novos resultados e novas informações, as quais, por sua vez, deverão ser processadas pelos agentes. Assim, na medida em que as cidades crescem, mais complexo se torna o ambiente, como nas regiões metropolitanas, ficando cada vez mais difícil o conhecimento e o processamento de todas as informações que o ambiente está constantemente produzindo.

Considerando a limitada capacidade do ser humano para processar quantidades gigantescas de informação, esse processamento é muito difícil também para aqueles que atuam no planejamento e na gestão das cidades, haja visto que elas podem evoluir tais como organismos vivos, muitas vezes sofrendo mutações no meio do caminho e mudando o curso do que foi planejado. Informação incompleta e planejamento baseado em tendências do passado que não necessariamente irão continuar no futuro muitas vezes produzem políticas públicas insuficientes ou inócuas para garantir um desenvolvimento urbano sustentável. Mudanças repentinas de rumo, em geral, não são bem aceitas pelos planejadores.

Ferramentas e sistemas digitalizados já são utilizados há algum tempo para tentar lidar com as informações relativas ao espaço urbano, cruzando dados georreferenciados, sobrepondo mapas, localizando infraestruturas, etc.; de modo a orientar a tomada de decisão no planejamento e na gestão das cidades. No entanto, as novas tecnologias digitais (internet das coisas, computação em nuvem, conectividade entre equipamentos, big data, inteligência artificial, internet de alta velocidade, etc.), tem oferecido um novo conjunto de soluções para lidar com a dinâmica da vida nas cidades, manejando um conjunto crescente de informações e elevando a um novo patamar o planejamento das cidades e a gestão na prestação de serviços públicos.

Por exemplo, o monitoramento em tempo real de atividades nas áreas públicas, de funcionamento de serviços públicos e o cruzamento simultâneo de informações de diversas fontes em bases territoriais oferecem a oportunidade para que o gestor público responda com mais agilidade a eventos fortuitos, tomando decisões mais seguras e rápidas.

Essas mudanças caracterizam, grosso modo, o surgimento das Cidades Inteligentes (Smart Cities) que, basicamente, podem ser descritas como cidades nas quais o aumento da capacidade de integração de dados e processamento de informações nos processos de planejamento e gestão das políticas públicas permitidas pelas tecnologias digitais, aumenta a eficiência e a eficácia na prestação de serviços à população e promove um desenvolvimento urbano mais sustentável. Certamente, o foco não é no uso da tecnologia em si, mas na utilidade que o seu uso gera para o cidadão, ao permitir que o poder público atenda as diversas demandas da sociedade com a utilização mais racional e eficiente dos recursos disponíveis, resultando na melhoria da qualidade de vida urbana.

O conceito de Cidades Inteligentes envolve mais elementos do que o simples uso de tecnologias digitais, desde que incorpora também noções de desenvolvimento sustentável, criatividade e inovação, cooperação e engajamento coletivo, participação social, parcerias público-privadas, difusão de conhecimento e co-criação em redes, novas abordagens de ensino e aprendizagem, ganhos de produtividade, clusters tecnológicos integrando indústrias e universidades, transparência e políticas de dados abertos, start-ups, etc. Por trás disso tudo está a organização do espaço físico e virtual tendo o conhecimento e o fluxo de informações como fatores de integração.

A incorporação de ferramentas tecnológicas digitais que permitem a utilização cada vez mais intensa das informações produzidas no dia-a-dia da vida urbana para atacar os principais problemas das cidades já é uma realidade em vários países, e cada vez mais intensa no Brasil.

No mercado já existem tecnologias digitais para transportes e mobilidade urbana, mitigação de congestionamentos com informação de tráfego e navegação em tempo real, semaforização inteligente, cobrança eletrônica de pedágios, sistemas de compartilhamento de veículos, geração de energia renovável e eficiência energética, iluminação pública inteligente, sistemas inteligentes e automatizados de distribuição de energia, abastecimento de água, detecção de perdas e furtos do sistema de abastecimento de água, monitoramento da qualidade da água, monitoramento digital do descarte de lixo, otimização de rotas e coleta seletiva de resíduos sólidos, resiliência e segurança em espaços públicos, mapeamento de crime em tempo real, detecção sonora de disparos de armas de fogo, sistemas avançados de vigilância e reconhecimento facial, sistemas de alertas de emergência de eventos climáticos extremos, aplicativos de alerta pessoais e domésticos, engajamento comunitário e participação social, monitoramento ambiental (temperatura, emissão e redução de gases, umidade relativa, precipitação), dentre outras soluções.

A promoção das cidades inteligentes no Brasil tem crescido atraindo diversos players para o desenvolvimento de soluções para as cidades, o que exige mais investimentos na melhoria da infraestrutura de telecomunicações e internet de alta velocidade no país. Exige também, novas estruturas organizacionais e de governança no setor público. Pouco adiantará soluções tecnológicas integradas se ainda estiverem atreladas a ideias e instituições obsoletas, como a lógica organizacional hierárquica baseada em processos verticais excessivamente formais e burocratizados. Organizações constituídas de unidades autônomas organizadas em redes, adotando processos horizontais, mais ágeis e flexíveis, e soluções integradas por meio do compartilhamento de informações podem garantir melhores resultados na utilização das novas tecnologias digitais.

Cada vez mais o crescimento econômico estará atrelado ao acesso e utilização de informações nos processos produtivos. Indivíduos, empresas e o próprio setor público tomarão suas decisões a partir do processamento de uma quantidade quase infinita de informações o que demanda, além da mencionada melhoria da infraestrutura de IC, investimentos em capacitação.

A capacitação de pessoas já é estratégica, considerando o conhecimento necessário para utilização das novas tecnologias digitais, como utilizar as informações produzidas, a mão-de-obra disponível mais e mais envelhecida e o desaparecimento de algumas profissões com o surgimento de outras novas. Isso será fundamental para não ampliar ainda mais as desigualdades sociais, em especial nas áreas urbanizadas onde a maior parte do PIB é produzida e onde se encontra grande parte da pobreza, comprometendo o próprio desenvolvimento do país. A implementação de cidades inteligentes, no seu conceito mais amplo, será um imperativo cada vez mais forte para a atração de investimentos e mão-de-obra qualificada, para garantir uma maior qualidade de vida nas cidades e para a promoção do desenvolvimento sustentável.

Paulo Ávila é arquiteto e mestre em planejamento urbano pela Universidade de Brasília. Atua profissionalmente na área de planejamento urbano e regional, com ênfase em aspectos econômicos do espaço urbano. Foi professor no Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade Católica de Brasília. Atualmente é Analista de Infraestrutura lotado na Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) do Ministério das Cidades onde coordena o Programa Nacional de Capacitação das Cidades.

Neutralidade de Redes e o Serviço de Prestação de Acesso à Internet

A Internet está presente em todos os aspectos da vida moderna. Desde o envio de uma simples mensagem de texto até o acesso a serviços essenciais, o acesso à Rede de redes é primordial para a execução de grande parte das nossas atividades cotidianas. Hoje é praticamente impossível imaginar “uma vida sem Internet”. Mas nem sempre o uso do serviço de acesso à Internet acontece de maneira satisfatória. Para um usuário de Internet, termos como “site indisponível”, “travar”,“lag” “velocidade lenta” também fazem parte da experiência de uso do acesso à Internet. O que imensa maioria dos usuários desconhece é que existe um princípio que garante o livre acesso à Internet e que este acesso não deve ser passível de interferências de qualquer tipo pelo provedor do serviço de acesso. Além disso, no Brasil o princípio é assegurado aos usuários por lei. Esse princípio pouco conhecido, mas muito importante, é chamado de Neutralidade de Redes.

O princípio da Neutralidade de Redes tem como objetivo garantir o acesso, amplo e irrestrito, aos usuários finais, por meio de sua conexão de acesso à Internet, a serviços, conteúdos e aplicativos legais e que não sejam prejudiciais à integridade e confiabilidade da rede.[1] O debate sobre Neutralidade de Redes, ao longo de quase duas décadas, tem sido bastante polêmico, em que as várias visões sobre o tema têm sido discutidas até mesmo de forma passional no âmbito acadêmico, empresarial, legislativo e governamental. Os críticos do tema já declaram a sua “morte” e a perda de sua relevância.[2] Apesar de momentos em que o princípio perdeu um pouco do seu apelo, sua importância ressurgiu e considero que o tema permanece pertinente.

A discussão sobre neutralidade evidencia que a ideia original para a Internet, como um ambiente que oferece igualdade de acesso e atuação para todos os usuários, vem sendo contestada pela atuação de alguns agentes, que tentam atuar sobre o acesso, utilização, fornecimento de conteúdo e, efetivamente, introduzir práticas que podem prejudicar a concorrência e os usuários.[3] A garantia do acesso amplo e irrestrito à Internet, que é o centro do princípio de neutralidade, envolve a consideração de diversos subtemas e questões, desde a discriminação de acesso a um site por um provedor de acesso à Internet até a interconexão entre as redes mais amplas e de longa distância da infraestrutura das redes de acesso.

Diante dessa variedade de desafios, cabe observar que é inviável esgotar todas as questões atinentes à Neutralidade de Redes em um único trabalho. Portanto, o foco deste artigo está na relação entre os provedores de acesso à Internet em banda larga, por meio da infraestrutura física fixa, e os provedores de aplicativos, serviços e conteúdo e os usuários. Nesse sentido, a Neutralidade de Redes consiste na garantia de acesso, amplo e irrestrito, aos usuários finais, por meio de sua conexão de acesso à Internet em banda larga fixa, a serviços, conteúdos e aplicativos legais e que não sejam prejudiciais à integridade e confiabilidade da rede.[4] Assim, não serão discutidas aqui questões, igualmente importantes para o debate, tais como privacidade, uso e guarda de dados, inovação, propriedade intelectual, censura a conteúdos específicos, liberdade de expressão, entre outros.

O debate sobre a Neutralidade de Redes e a ocorrência de casos de violação à neutralidade suscitaram a instituição de normas regulatórias em diversos países.[5] Em geral, o objetivo de uma intervenção regulatória de neutralidade consiste em garantir: (i) acesso e utilização, pela livre escolha dos usuários, de qualquer aplicativo, serviço ou conteúdo legal de Internet; e (ii) preservação e fomento da competição entre provedores de serviços de acesso à Internet, provedores de aplicativos,serviços e conteúdo. Em apertada síntese, a preservação da Neutralidade de Redes envolve uma avaliação da necessidade (ou não) de impor limitações sobre interesses privados dos operadores das redes físicas em nome da preservação do bem-estar social inerente à manutenção e desenvolvimento do espaço público que é a Internet.

No Brasil, as primeiras ocorrências de práticas de bloqueio e/ou discriminação de tráfego foram verificadas em 2005, quando provedores do serviço de acesso à Internet tentaram bloquear a oferta de serviços de telefonia via Internet (Voice over Internet Protocol – VoIP).[6] A Telemar foi denunciada por bloqueio do uso do aplicativo Skype nas suas redes de acesso à Internet. À época, os contratos da Telemar com os usuários continham uma cláusula que proibia o uso de qualquer serviço de VoIP. Adicionalmente, consumidores insatisfeitos com tentativas malsucedidas de utilizar o aplicativo Skype apresentaram reclamações à Anatel. A Anatel emitiu nota à imprensa sobre o uso de aplicativos de VoIP, para esclarecer que os contratos de prestação serviços de acesso à Internet em banda larga não poderiam impor restrições à transmissão de nenhum tipo de sinal. A Telemar removeu a cláusula de seus contratos com usuários sem a necessidade de uma intervenção direta da agência.

Em 2006, a GVT apresentou reclamação à Anatel de que a Brasil Telecom estava bloqueando chamadas oriundas de sua rede. A Anatel determinou que a Brasil Telecom cessasse com as práticas de bloqueio. Pode-se afirmar que essas ocorrências levaram ao aumento da preocupação com a possibilidade de práticas de interferência no tráfego e no uso de aplicativos por parte dos provedores de serviço de acesso à Internet. Por fim, a disseminação do serviço de acesso à Internet em banda larga pode ser apontada como um dos fatores que levou ao surgimento de preocupações com a discriminação de tráfego de dados.

Assim, a partir de 2006, a interferência dos provedores de acesso à Internet sobre o tráfego de dados e discriminação entre serviços utilizados por meio do serviço de acesso à Internet passaram a ser relevantes no Brasil. Em 2010, o projeto de lei do Marco Civil da Internet teve origem em projeto do Ministério da Justiça, quando a primeira minuta de projeto foi apresentada à sociedade para discussão. Após um longo período de debates, a Lei 12.965/2014 foi promulgada em 23.04.2014, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, dispONDO em seu art. 2º, IV, que “a preservação e garantia da neutralidade de rede” é um dos princípios para o uso da Internet no Brasil.

A nova Lei introduziu a intervenção setorial específica sobre Neutralidade de Redes. Em 11.05.2016, o Decreto n.º 8.711, que regulamenta a Lei no 12.965, entrou em vigor para: (i) tratar das hipóteses admitidas de discriminação de pacotes de dados na Internet e de degradação de tráfego; (ii) indicar procedimentos para guarda e proteção de dados por provedores de conexão e de aplicações; (iii) apontar medidas de transparência na requisição de dados cadastrais pela administração pública; (iv) e estabelecer parâmetros para fiscalização e apuração de infrações. O tema foi debatido de maneira extensa e a introdução de normas de neutralidade representa um grande avanço institucional para o Brasil.

A regulação de Neutralidade de Redes é importante e necessária, dadas as características do mercado brasileiro de provimento de acesso do serviço à Internet em banda larga. Este mercado possui três grandes provedores de serviços de acesso: (i) o grupo Mexicano América Móvil, que opera com as marcas NET, Claro e Embratel; (ii) o grupo espanhol Telefonica, que opera com a marca Vivo. O grupo incorporou a GVT em 2015; e (iii) o grupo brasileiro Oi/Brasil Telecom. Estes três provedores de acesso respondem por 77,31% dos acessos realizado por meio acesso em banda larga fíxa, conforme dados da Anatel de março de 2018.[7]

A partir das informações obtidas do sítio da Anatel, verifica-se que 3.030 municípios brasileiros (59% do total) contam com a oferta de apenas um provedor de serviço de acesso à Internet em banda larga; 1.182 municípios (23%) possuem dois provedores para a oferta do serviço; 528 municípios (10%) contam com a presença de 3 provedores e 374 municípios (8%) possuem acesso a mais de 4 provedores do serviço. O Grupo Oi enfrenta concorrência da América Móvil e da Telefonica (com a rede da GVT) na maior parte dos municípios da sua área de concessão, enquanto que a Telefonica tem com principal competidora a América Móvil. O mercado, desse modo, apresenta uma estrutura com monopólios/duopólios em 82% dos municípios e poucos municípios contam com a oferta de mais de três provedores de serviços de acesso à Internet. Diante dos dados apresentados, verifica-se que a oferta no mercado brasileiro de acesso à Internet é bastante concentrada.

A ausência de concorrência suficiente no mercado brasileiro evidencia a importância da regulação de Neutralidade de Redes, estipulada pelo Marco Civil, e por seu decreto de regulamentação, pode ser caracterizada por um regime de neutralidade flexível, pois os dispositivos legais não proíbem taxativamente o gerenciamento de tráfego pelos detentores da infraestrutura de redes.[8] Há uma regra geral para a neutralidade, com possibilidade de exceções para o gerenciamento de tráfego, o que permite a ocorrência de algumas “discriminações”. O Decreto incorpora algumas definições importantes para práticas excepcionais relativas à discriminação e à degradação de tráfego. Adicionalmente, detalha requisitos técnicos indispensáveis, que devem ser observados na transmissão, comutação ou roteamento, além de impor a prestação de informações sobre práticas de gerenciamento.

A análise da regulamentação evidencia seu caráter amplo, genérico e que há, ainda, lacunas importantes. Questões específicas, dentre elas detalhes relacionados ao gerenciamento de tráfego e a transparência dessas práticas, permanecem sem endereçamento adequado. Desse modo, algumas inovações devem, eventualmente, ser incorporadas ao Decreto, para complementar a regulação e buscar sua maior efetividade e aplicabilidade. Cabe ressaltar que estas lacunas na regulação decorrem, principalmente, de questões políticas. A Anatel, após Consulta Pública de 2011, atua apenas pontualmente em questões relativas à neutralidade. A discussão sobre Neutralidade de Redes ficou concentrada na Casa Civil da Presidência da República até o impeachment da Presidente Dilma Rousseff em 2016. Nesse sentido, é importante notar que o Decreto de regulamentação do Marco Civil foi promulgado um dia antes do impeachment. Desde então, o tema não tem sido discutido amplamente por nenhum órgão do governo. Assim, a questão permanece em aberto e o aprofundamento e a melhoria da regulação vão depender da sua inclusão na agenda política do próximo governo para o setor de comunicações.

Tatiana Britto é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Doutora em Economia – Universidade de Brasília. Visiting Scholar – University of Illinois at Urbana-Champaign(2015/2016). MBA em Gestão de Empresas – Eastern Illinois University. Mestre em Economia – Universidade de Brasília. Bolsista da CAPES.

Referências Bibliográficas

BRITTO, Tatiana Alessio, Neutralidade de redes – mercado de dois lados, antitruste e regulação, Tese de Doutorado, Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Gestão de Políticas Públicas, Universidade de Brasília, 2018.

MARSDEN, C. Network Neutrality – from policy to law to regulation. Manchester: Manchester University Press, 2017.

PEREIRA JUNIOR, Ademir Antônio. Infraestrutura, regulação e Internet: a disciplina jurídica da neutralidade das redes. Tese de Doutorado, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2018.

RAMOS, P. H. S. Neutralidade da Rede e o Marco Civil da Internet: um guia para interpretação. In: Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2015.

YOO, C. Innovations in the Internet´s architecture that challenge the status quo. Journal on Telecommunications and High Technology Law, vol. 8, 2010.

WU, T. Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal on Telecommunications and High Technology Law, vol. 2 (1), 2003.

  1. MARSDEN, 2017.
  2. YOO, 2010.
  3. WU, 2003.
  4. BRITTO, 2018.
  5. MARSDEN, 2017.
  6. PEREIRA JUNIOR, 2018.
  7. Dados obtidos dos sítios dos três grupos econômicos, do Teleco www.teleco.com.br e da Anatel http://www.anatel.gov.br/dados/destaque-1/269-bl-acessos. Acesso em 06/06/2018.
  8. RAMOS, 2015.

 

Data-driven economy e seus impactos sobre os direitos de personalidade

A entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados na União Europeia e a recente aprovação pelo Senado brasileiro do projeto de lei sobre proteção de dados pessoais ressaltaram as inquietações que a data driven economy vem gerando sobre os direitos da personalidade. A discussão mais comum e frequente tem ocorrido em torno da privacidade ou do controle sobre os dados pessoais, muitas vezes coletados de forma ilícita, sem a ciência e a autorização informada dos titulares.

A partir de tais dados, que são os verdadeiros insumos da nova economia, algoritmos conseguem transformá-los em informações economicamente úteis, mas que podem provocar verdadeira devassa na vida privada dos usuários. São exemplos os algoritmos que identificam a orientação sexual a partir do reconhecimento facial, os que decifram emoções a partir da medição de ondas cerebrais, os que diagnosticam crises depressivas e outros transtornos antes mesmo da manifestação de qualquer sintoma médico. É assustador imaginar o tipo de destinação que pode ser atribuída a tais recursos caso não haja nenhum tipo de controle, preocupação que é potencializada com o machine learning.

Uma coisa é certa: algoritmos têm assumido o papel de fazer diagnósticos, julgamentos, classificações e rankings a respeito dos usuários que, embora não necessariamente corretos, serão utilizados pelos próprios agentes econômicos que os exploram e também cedidos para os seus parceiros de negócios em uma infinidade de aplicações que estão fora do alcance da imaginação do cidadão comum.

O problema é que esses julgamentos algorítmicos podem ter impactos diretos nas oportunidades e nas opções de vida dos usuários, pois deles dependerá o acesso a empregos, crédito, seguro e uma série de outros serviços. Por essa razão, a utilização dos dados não diz respeito apenas a problema de violação da privacidade, mas envolve outras relevantes discussões, como o direito de não ser julgado ou categorizado para determinados fins ou o direito de não ser julgado ou categorizado com base em determinados critérios.

A gravidade da situação aumenta quando não se tem nem mesmo como avaliar o potencial danoso de algoritmos, que normalmente se baseiam em dados, correlações e critérios de inferência sigilosos e sem qualquer transparência, que podem ser incorretos ou falsos, e que ainda podem ser utilizados para lastrear correlações que não correspondem a causalidades. Mais grave ainda, podem reproduzir correlações que sejam frutos de discriminações e de uma série de injustiças da vida social.

É por esse motivo que Cathy O`Neil[1] refere-se aos algoritmos como armas matemáticas de destruição, na medida em que, longe de serem neutros e objetivos, embutem em seus códigos uma série de decisões e opiniões que não podem ser contestadas, até porque não são conhecidas. Daí o seu potencial de destruição silenciosa, na medida em que podem basear seus julgamentos em preconceitos e padrões passados que automatizam o status quo e ainda podem ser utilizados para toda sorte de discriminações e violações de direitos.

A falta de transparência é reforçada quando se sabe que tais algoritmos são aperfeiçoados a partir da inteligência artificial, por meio da qual, com a aprendizagem de máquina (machine learning) e com as redes neurais artificiais, mais e mais algoritmos se desenvolvem independentemente, aprimorando a si mesmos e aprendendo com os próprios erros. Como bem resume Harari[2], com a inteligência artificial, o algoritmo “segue o próprio caminho e vai aonde humanos nunca foram antes – até onde nenhum humano pode segui-lo”.

Daí o fundado receio de que dados e correlações manejados por algoritmos possam estar sendo utilizados como veículos de manutenção de discriminações e injustiças, preservando os padrões do passado – ainda que equivocados – ao mesmo tempo em que comprometem as possibilidades do futuro.

Logo, além dos riscos à privacidade e ao controle sobre os dados pessoais, é o próprio presente e o futuro das pessoas que pode estar sendo definido pelos algoritmos, sem que se tenha a possibilidade de conhecer e criticar os dados e correlações que alimentam seus processos decisórios.

Sob essa perspectiva, para o adequado endereçamento do problema, talvez não seja suficiente apenas uma lei de proteção de dados, embora esta seja certamente uma das providências mais importantes nessa seara, até para definir o que pode ser considerado dado pessoal. Há que se verificar igualmente a compatibilidade da utilização dos dados diante do Direito Constitucional, do Direito da Concorrência e do Direito do Consumidor, dentre outros.

Mais do que isso, há que se indagar sobre o grau e os mecanismos de transparência e accountability que se exigirão dos agentes empresariais que se utilizam de algoritmos para compreender e categorizar usuários para os mais diversos fins, o que traz impactos para a sua identidade pessoal – já que podem estar sendo definidos e classificados de forma equivocada – bem como para as oportunidades e opções de vida desses usuários, as quais podem estar sendo indevidamente restringidas em razão de diagnósticos apressados ou claramente equivocados.

Ainda há que se analisar outro preocupante efeito da destinação dos dados pessoais: é que todo o conhecimento sobre os usuários ainda pode ser utilizado para, associado ao poder da comunicação e aos estudos da biologia, neurociência e psicologia, manipular as pessoas, bem como tentar modificar suas crenças e opiniões.

Como explica Tim Wu[3], a partir do momento em que atenção se torna comoditizada, o tempo em que as pessoas passam em determinadas plataformas passa a ser importante fator não apenas para sujeita-las à publicidade e à coleta dos seus dados, mas também para sujeitá-las a estratégias que visam influenciar e alterar suas preferências e visões de mundo[4]. É por essa razão que Tim Wu sustenta que o verdadeiro negócio de muitas das indústrias da nova economia é o de influenciar consciências.

Vista a questão por esse ângulo, a tecnologia pode estar sendo utilizada contra aquilo que temos de mais precioso: a nossa individualidade. A partir do momento em que as máquinas conseguem nos conhecer melhor do que nós mesmos, podem utilizar nossas fragilidades para manipular nossas emoções, crenças e opiniões para os mais diversos fins, inclusive políticos. Aliás, as eleições de Donald Trump e do Brexit ilustram bem tal preocupação.

Como bem afirma Castells[5], a forma mais fundamental de poder é a de moldar a mente humana. No mesmo sentido, Martin Moore[6] destaca que as grandes plataformas adquiriram enorme poder de influenciar a ação coletiva e mesmo o voto das pessoas.

Ora, se o mais importante instrumento de poder em uma sociedade tecnológica e informacional é a capacidade de influenciar e manipular as pessoas, é fácil concluir que os principais riscos da nova economia vão muito além da violação à privacidade dos usuários, alcançando a identidade pessoal, a própria liberdade e, consequentemente, a cidadania e a democracia.

Como se procurou demonstrar ao longo do artigo, a coleta de dados e a sua utilização pelos diversos agentes da economia movida a dados vem colocando a personalidade sob um triplo risco: (i) a coleta em si dos dados, o que já seria preocupante do ponto de vista da privacidade e do controle dos dados pessoais; (ii) a utilização dos dados para a construção de julgamentos a respeito dos usuários que, corretos ou não, podem causar diversos danos a estes conforme os fins a que se destinam, limitando o acesso a produtos, serviços e oportunidades de vida e (iii) a utilização dessas informações com o propósito de manipular os próprios usuários, para os fins mais diversos, inclusive políticos.

Logo, o manuseio dos dados enseja preocupações que vão muito além da privacidade e do controle sobre os dados pessoais dos usuários: na verdade, o que está em jogo é a manutenção de valores como a identidade pessoal, a liberdade, as oportunidades e perspectivas do presente e do futuro das pessoas e a própria democracia.

  1. Op.cit.
  2. HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã [edição eletrônica]. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  3. WU, Tim. The attention merchants: the epic scramble to get insideour heads. Nova Iorque: Knopf, 2016.
  4. Ver: FRAZÃO, Ana. Prefácio. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA, Henrique Araújo; PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Tecnologia jurídica e direito digital. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
  5. CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Tradução Vera Lucia Joyceline. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2015.
  6. MOORE, Martin. Tech Giants and Civic Power. https://www.kcl.ac.uk/sspp/policy-institute/cmcp/tech-giants-and-civic-power.pdf. Acesso em 14.06.2018.
Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília – UnB. Ex-Conselheira do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica (2012-2015). Ex-Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (2009-2012). Graduada em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, Especialista em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília – UnB e Doutora em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Líder do GECEM – Grupo de Estudos Constituição, Empresa e Mercado.

Concorrência na Economia Digital?

As preocupações do direito da concorrência nos mercados digitais perpassam todas as suas principais esferas: atos de concentração, combate a condutas coordenadas e também unilaterais.

Diversos eventos no Brasil e no exterior têm discutido esse tema. Pela primeira vez na história recente, o FTC realizará Hearings na Georgetown University , nos dias 13 e 14 de setembro, justamente sobre as mudanças na economia decorrentes das novas práticas comerciais, das novas tecnologias e dos seus desdobramentos, que podem demandar ajustes na definição de prioridades do FTC (https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2018/08/ftc-announces-opening-session-hearings-competition-consumer). Outro evento, que se realizará em novembro deste ano de 2018, na Harvard Law School, terá objeto semelhante de discussão (http://lawprofessors.typepad.com/antitrustprof_blog/2018/08/challenges-to-antitrust-in-a-changing-economy.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+typepad%2FFBhU+%28Antitrust+%26+Competition+Policy+Blog%29)

Pelo que tenho observado das discussões, quanto aos atos de concentração, duas são as principais linhas de preocupação:

(1) critérios de notificação de uma operação de concentração econômica. Será que os critérios tradicionais de faturamento, tais como o adotado pela Lei 12.529/201, são suficientes em uma economia digital? Se sim, porque aquisições como a do Whatsapp pelo Facebook não foram notificadas, mesmo diante do seu claro impacto na vida dos brasileiros? Esse não seria um indicativo de que outros parâmetros devem ser utilizados para parametrizar as análises antitruste? Mas quais seriam estes parâmetros? (ex. quantidade de dados armazenado pelas empresas?)

(2) critérios materiais de análise de uma operação de concentração econômica. Será que concentrações econômicas envolvendo empresas de tecnologia, que têm acesso a dados, por exemplo, devem seguir critérios diferenciados? Seria necessário adaptar os testes tradicionais de definição de mercado relevante? Como analisar os níveis de participação de mercado como competitivos (ou não)? A privacidade deve ser considerada uma dimensão de análise, ou deve ser relegada aos órgãos de defesa do consumidor ou à regulação? A dissertação de mestrado da Gabriela Monteiro, da FGV, que tive a alegria de compor a banca avaliadora, discute justamente este tema: https://drive.google.com/open?id=1uthgkOn6pKUCSL3mQ0jLvE5k8ipbCx9B.

Já com relação às condutas unilaterais, um dos artigos recentes de maior impacto na doutrina antitruste foi escrito por uma jovem de 29 anos, a Lina Kahn. Em seu trabalho intitulado “Amazon`s Antitrust Paradox“, a autora questiona a postura antitruste tradicional segundo a qual o “bem estar do consumidor” deva ser o foco antitruste, analisado por métricas de curto prazo, como preços e oferta. Segundo esta ótica, o antitruste não de focar no bem estar dos produtores ou na saúde dos mercados. Com isso, a Amazon teria até o presente momento escapado do escrutínio antitruste nos EUA, como se desenhasse suas práticas comerciais justamente nesse “vácuo”. “It is as if Bezos charted the company’s growth by first drawing a map of antitrust laws, and then devising routes to smoothly bypass them. With its missionary zeal for consumers, Amazon has marched toward monopoly by singing the tune of contemporary antitrust.“. Este viés desconsideraria então o risco de preços predatórios e também os riscos concorrenciais decorrentes da integração das diversas atividades da Amazon, enquanto plataforma. A empresa deveria ser então considerada uma infraestrutura essencial, o que a permite inclusive explorar as informações coletadas para prejudicar seus competidores. Artigo do NYT que comenta a trajetória e as repercussões trazidas pela Lisa Kahn podem ser acessados aqui: https://www.nytimes.com/2018/09/07/technology/monopoly-antitrust-lina-khan-amazon.html. Para rebater os argumentos da autora, diversos acadêmicos e profissionais escreveram artigos (alguns deles financiados pelas próprias Amazon, FB, etc.). Numa dessas tentativas, chamaram esse movimento de “Antitruste Hipster”, que deixa de focar unicamente no bem estar do consumidor (que é o cerne nos EUA há décadas) e passa a buscar uma concorrência mais qualitativa, segundo a qual os consumidores buscam qualidade, inovação e qualidade. Já fiz um post sobre esse tema (https://www.amandaathayde.com.br/single-post/2018/04/25/Uma-nova-era-de-antitruste-hipster).

Ainda, chamo atenção para a atuação da autoridade de defesa da concorrência da Alemanha (o Bundeskartellamt), que tem sido uma das mais atuantes nesse tema. Recentemente, em agosto de 2018, foi publicado o relatório anual da autoridade, em que seu presidente, Andreas Mundt, indicou suas duas prioridades sobre no contexto da economia digital (https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Meldung/EN/Pressemitteilungen/2018/27_08_2018_Jahresbericht.html?nn=3591568):

(1) manter os mercados abertos a contestabilidade de concorrentes, de modo que as empresas continuem a ter a oportunidade de serem bem sucedidas quando tiverem novas ideias; e

(2) garantir que os consumidores possam selecionar seus produtos e serviços em um ambiente justo e transparente.

Por fim, quanto às condutas coordenadas, uma das principais discussões concorrenciais nos mercados digitais é a respeito do uso de algoritmos pelas empresas de internet. Haveria a possibilidade de colusão via algoritmos? Os autores STUCKE e EZRACHI são as referências sobre esse tema, tendo publicado um primoroso livro, intitulado “Virtual Competition“. Segundo os autores, haveria quatro tipo de agentes implementadores de uma colusão via algoritmos:

(1) Mensageiro (messenger): humanos que concordam em realizar a colusão e que utilizam computadores para executar essa vontade. Sobre esse tipo de colusão, já houve persecução pelo DOJ nos EUA, no caso United States vs. Topkins

(2) Hub and spoke: vários usuários horizontalmente relacionados utilizam um único algoritmo para definir seus preços, de modo que a colusão entre os concorrentes se dá por meio de um elo comum, verticalmente relacionado. Sobre esse tipo de colusão, há condenações nos EUA, Europa e também investigações no Brasil

(3) Agente previsível (predictable agent): humanos que desenvolvem unilateralmente seus algoritmos, que são desenvolvidos para preverem o comportamento do mercado e se enquadrarem

(4) Máquina autônoma (autonomous machine): humanos desenvolvem e utilizam suas máquinas e algoritmos unilateralmente. As máquinas, através de autoaprendizagem e testes, determinam meios de maximização de lucro sozinhas (que podem ser colusivos), sem qualquer interferência dos humanos.

A pergunta que se faz é a seguinte: como atribuir responsabilidade a cada um desses tipos de agente no Brasil, diante do fato de que a Lei 12.529/2011 exige, para as pessoas físicas, o elemento de culpa ou dolo? No caso dos agentes (1) e (2), acredito que não haveria maiores problemas em se considerar um ilícito pelo objeto e, portanto, investigar as pessoas físicas diretamente envolvidas, já que há claro elemento culposo. Quanto aos agentes (3) e (4), por sua vez, é possível que se questione se há no mínimo o elemento da culpa. Ainda assim, considerando a teoria do risco empresarial e o fato de que aquele que criou o algoritmo pode ser considerado, no mínimo, negligente pela colusão via algoritmos, acredito que seria sim possível também haver essa persecução administrativa.

Essa responsabilidade seria imputável, portanto, aos agentes que diretamente se envolveram na conduta. Mas e os administradores/dirigentes que, de algum modo, deixaram que isso acontecesse? Acredito que, se essas pessoas físicas deixarem de ser responsabilizadas nos termos antitruste, tendo em vista eventual elemento probatório de culpa, elas poderiam, ainda assim, ser responsabilizadas nos termos societários, pela violação ao dever de diligência e lealdade (no caso de uma SA, nos termos dos arts. 154 e 155). Já escrevi sobre isso em um artigo que consta aqui no site: https://docs.wixstatic.com/ugd/7d56b7_2bae006e9f9d405cbf5a93448d0476e8.pdf, em que apresento inclusive a possibilidade de essa ação social ser proposta por acionistas minoritários.

Acredito que o “pulo do gato”, porém, está em como responsabilizar eventuais acionistas controladores, que estão envolvidos no desenho competitivo da empresa mas que não ocupam estes cargos de gestão. Nos termos da LSA, os deveres atribuíveis aos controladores são de algum modo “menos incisivos” do que aqueles atribuídos aos administradores (art. 116), razão pela qual doutrinadores no Brasil, como Calixto Salomão Filho e Ana Frazão têm estudado mecanismos de responsabilização e imputação dos controladores.

Diante de todo esse contexto, como está a atuação do CADE nos mercados digitais? Se você tivesse que apontar um dos três níveis seguintes, quais seria? A autoridade antitruste brasileira atua nesses mercados com indiferença, desconfiança ou desconforto?

Amanda Athayde é Professora Doutora Adjunta de Direito Empresarial na Universidade de Brasília (UnB) e de Direito Econômico e da Concorrência no Instituto de Direito Público Brasiliense (IDP). É Doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP), Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Administração de Empresas com habilitação em Comércio Exterior pelo Centro Universitário UNA. Foi aluna da Université Paris I – Panthéon Sorbonne, e é autora de livro, de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, da Concorrência e Econômico. É servidora pública de carreira do executivo federal, Analista de Comércio Exterior do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), tendo atuado na negociação de acordos internacionais para cooperação e facilitação de investimentos. De 2013 a 2017, foi Chefe de Gabinete da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG/Cade) e Coordenadora do Programa de Leniência Antitruste, referente a casos de cartel. Em 2017 Amanda se tornou Chefe de Gabinete do Ofício do Ministério Público Federal junto ao Cade (MPF/CADE), elaborando pareceres em processos de direito da concorrência e auxiliando investigações criminais e na cooperação jurídica internacional.

Como permitir a competição na economia digital?

A economia digital tem trazido uma série de comodidades para o cidadão. Aplicativos cada vez mais potentes e interativos permitem-nos realizar, com poucos toques no celular, desde transações financeiras internacionais até uma consulta sobre avaliação de um determinado restaurante. É inegável que a tecnologia digital proporciona economia de tempo tanto para tarefas domésticas quanto para atividades no trabalho. No entanto, as características do mercado digital, principalmente no que se refere aos seus aspectos competitivos, revelam que ainda há muito a ser estudado sobre o tema.

É necessário que haja um ambiente digital adequado no presente para que uma empresa possa competir no futuro. É importante incentivar a disseminação das tecnologias digitais, mediante facilitação de compra de equipamentos até investimentos em infraestrutura. Um exemplo que ressalta esse argumento refere-se ao desenvolvimento dos automóveis autônomos. De acordo com estudos da OCDE, para que um carro autônomo possa operar, é preciso uma rede móvel de altíssima velocidade e baixa latência de comunicações, o que, hoje, somente é possível obter com o uso da tecnologia 5G. Um país que queira desenvolver, inovar e promover tecnologias na área não pode prescindir de uma infraestrutura de ponta.

Dito isso, é preciso buscar outro nível de análise para compreender os verdadeiros desafios da economia digital em nível de competição. É importantíssimo entender a diferença de uso de tecnologia e desenvolvimento. Como já bastante discutido neste blog, o verdadeiro benefício para o crescimento relativo de uma economia está no desenvolvimento de tecnologias e plataformas digitais com alcance global, que permitem interações entre usuários localizados em lados diferentes de uma determinada transação. O incentivo ao uso das ferramentas é relevante e pode ser uma etapa anterior necessária para que promova um ambiente digital adequado que permita o advento de desenvolvedores de tecnologia.

Em um mundo ideal, a estratégia de incentivos funcionaria bem. Entretanto, o ambiente digital está repleto de barreiras de entrada não tradicionais. Por exemplo, entre os principais fatores para que haja um ambiente favorável à criação de “start ups” de plataformas digitais estariam o pleno desenvolvimento de mercado de capital de risco (“corporate venture capital”) – que permita a taxas de juros e condições de financiamento empréstimos para empreendedores no setor – e uma oferta de mão de obra mais qualificada – preparada para os desafios da economia digital.

As plataformas digitais operam em um esquema de efeito de rede (“network effect”) que denota o aumento de valor de um produto ou serviço cada vez que um novo usuário utiliza um produto ou serviço. O Facebook pode ser um exemplo interessante. Quanto mais usuários utilizam o Facebook, mais valioso se torna o serviço prestado pela empresa. Isso cria uma externalidade positiva, pois um utilizador, ao inscrever-se no Facebook, cria valor para os outros utilizadores, mesmo sem intenção de fazê-lo.

Isso dá características próprias ao mercado digital (Verzeni P). Entre as positivas, plataformas digitais permitem (i) uma conexão mais eficiente (retira arbitragem) entre ofertantes e demandantes; (ii) maior transparência e fluxo de informação, o que possibilita que os consumidores tenham mais escolhas e as façam de melhor maneira; (iii) que novos entrantes tenham acesso direto a consumidores sem enfrentar elevados custos fixos; e (iv) alcançar uma massa crítica de usuários (quantidade suficientemente grande de vendedores e compradores) de modo a alcançar um equilíbrio entre preço e capacidade de atração.

Entre as negativas, o atual ambiente digital cria algumas barreiras de entrada, tais como (i) a mesma massa crítica necessária para alcançar um equilíbrio de preço demanda uma quantidade muito alta de usuários, o que pode desencorajar novos desenvolvedores de plataformas; (ii) os efeitos de rede criam custos para que os usuários troquem de plataforma (necessidade de operar um novo sistema, criação de uma nova rede de contatos, por exemplo); e (iii) a necessidade de atração de cada vez mais usuários leva as plataformas a buscarem o domínio do mercado, inclusive mediante o monopólio.

A literatura sobre o tema tem crescido bastante, mas ainda faltam estudos empíricos que consigam mensurar quais são as externalidades positivas dos efeitos de redes e quais são as perdas de bem-estar social oriundas do efeito de monopolização dessas mesmas redes. Além disso, as próprias redes modificam os ecossistemas onde elas estão inseridas criando maiores complexidades para análise do tema com ferramentas econômicas tradicionais.

Vale ter presente, por fim, que o favorecimento do desenvolvimento de plataformas digitais parece ser um desafio importante para os países. Ao mesmo tempo em que os países precisam permitir condições para o incentivo da disseminação de tecnologias digitais, devem ter o cuidado de impedir que o uso da própria infraestrutura ou de plataformas digitais inviabilize a criação de novas plataformas.

O estudo mais qualificado dos aspectos competitivos da economia digital pode auxiliar nesse debate, permitindo contornos e limites mais claros para políticas na área.

Verzeni P., COMPETITION LAW IN THE DIGITAL ECONOMY: A FRENCH PERSPECTIVE, Italian Antitrust Review, n.2 (2017), pp 85-99.

 

Determinantes do engajamento nas negociações internacionais em comércio eletrônico

Como já apontado por este blog, no âmbito multilateral e plurilateral existem diversos acordos comerciais que já contemplam o tema do comércio eletrônico. Diferentemente do que ocorria há cerca de cinco anos, esse tema deixou de ser uma novidade nos acordos regionais, sendo proposto não apenas por países de renda mais elevada, mas, também, por países em desenvolvimento. O que se observa, todavia, é que o nível de engajamento em acordos de comércio eletrônico tem relação bastante próxima com a estratégia traçada por esses países para conquistar espaço na arena digital, que é o que se explora neste post.

A ideia geral do post é apresentada na tabela em anexo.

Há clara divisão de interesses nas negociações internacionais em e-commerce. Esses interesses estão relacionados à posição dos países no mapa econômico digital. Notoriamente, países que possuem empresas líderes no desenvolvimento, gerenciamento e distribuição de tecnologias digitais, os quais chamaremos de Developers of Digital Technologies – DDTs, destacam-se pelo seu engajamento e incentivo a  acordos que contemplem cláusulas fortes em comércio eletrônico. São países que têm incumbentes em diversos setores e nichos de atuação e cadeias de valor no setor digital já estabelecidas e com interesses já mapeados sobre os benefícios potenciais de acordos em e-commerce.

Em geral, os DDTs têm marcos regulatórios consolidados sobre questões fundamentais para o desenvolvimento digital e buscam ser referência regulatória e de padrões técnicos para os demais países. Suas empresas buscam maximizar os benefícios da gestão de plataformas e de tecnologias digitais pela disseminação do acesso e uso de seus serviços e têm retornos crescentes de escala advindos do uso de suas tecnologias e do efeito-rede e efeito-plataforma. Não por outro motivo, esses países  têm interesses fortemente ofensivos em comércio digital.

Já os países que chamamos de Users of Digital Technologies Countries – UDTs têm empresas que são, com exceções pontuais, se muito, majoritariamente usuárias e não desenvolvedoras, gerenciadoras e distribuidoras de commodities digitais. A consequência disto é um engajamento mais modesto em acordos internacionais e posições essencialmente reativas.

Os UDTs têm oportunidades de ganhos potenciais com acordos, pois maior acesso à tecnologias digitais, tais como computação em nuvem, inteligência artificial, big data, data analytics, sensores, robôs, impressoras 3D, entre outras, pode possibilitar melhorias de eficiência, desempenho, produtividade e competitividade de curto prazo. Essas tecnologias podem também beneficiar consumidores, que usufruirão de maior gama de serviços.

Todavia, há que se qualificar os benefícios que os UDTs podem usufruir em razão da adoção massificada de tecnologias digitais associados à “commoditização digital” (Arbache, 2018). Esse processo significa que ainda que as empresas tenham ganhos de eficiência e competitividade com a adoção de novas tecnologias digitais — os denominados benefícios de primeira ordem — esses ganhos tendem a diminuir e, eventualmente, a convergir para zero à medida que mais empresas adotam aquelas mesmas tecnologias. Já os benefícios associados ao desenvolvimento, gestão e distribuição de tecnologias — os denominados benefícios de segunda ordem —  são usufruídos apenas por poucas empresas e suas cadeias de produção. Em razão dos efeito-rede e efeito-plataforma, acordos internacionais liberalizantes de e-commerce criam enormes oportunidades de crescimento e lucros para as empresas dos DDTs.  

O confronto entre os benefícios de primeira e segunda ordem está no cerne do debate sobre a associação entre economia digital e desenvolvimento sustentável.  

Comparemos três casos de alto engajamento em acordos e portanto, de países que são ou buscam ser DDTs: Estados Unidos, países desenvolvidos do Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP, na sigla em inglês) e países da União Europeia. Apesar de diversas diferenças entre eles, os três grupos de países têm interesses ofensivos em comércio eletrônico. Buscam se posicionar como protagonistas da era digital, dentre outros, por meio de regras que limitem o espaço para desenvolvimento de regulamentações domésticas discriminatórias e protecionistas e até mesmo que gerem segurança ao ambiente de negócios online.

Considere o caso dos Estados Unidos. Não há dúvidas que o país exerce, hoje, liderança digital, sendo detentor das principais empresas de tecnologia e  sede das principais plataformas B2B, B2C e C2C. Suas big techs e respectivas plataformas capturam cada vez mais valor a partir da imensa capacidade de acesso a dados que as colocam em posição ímpar de desenvolver e fornecer soluções às demandas por novos serviços e novas aplicações. O país busca conter o que o próprio governo americano classifica como protecionismo digital, que é o levantamento de barreiras ao livre fluxo de dados entre fronteiras, vital para o modelo de negócios das big techs. Para além de acordos plurilaterais, a arena escolhida para isso é a OMC que, apesar de todos os impasses e críticas colocados pelos próprios Estados Unidos em relação ao multilateralismo, recebe forte pressão do país para iniciar discussões em formato de texto negociador e busca mandato negociador na Conferência Ministerial do órgão em 2019.

Japão, Austrália, Canadá, Cingapura, entre outros, seguem diretriz parecida: são países que têm o que oferecer em termos de plataformas e soluções digitais e que tomaram a frente do CPTPP. Buscam garantir a formação de regras para o comércio eletrônico que correspondam aos seus interesses de exercer influência e contrabalancear o avanço das titãs digitais americanas e chinesas.

A União Europeia tem um grupo de países com razoável grau de desenvolvimento em economia digital e em e-commerce, mas com poucas big techs e plataformas em nível global. Apesar disso, a UE tem avançado de forma consistente na promoção da economia digital no bloco, com o “mercado digital comum”, e na regulação sobre questões cruciais, como proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais. Com regulação forte e “in place”, o bloco garante um ambiente de negócios digital próspero que repercute em sua posição também avançada nas negociações bilaterais de e-commerce.

Já a China tem estratégia e objetivos claros quanto ao e-commerce e à economia digital e já são desenvolvedores, distribuidores e gestores de grandes plataformas globais de e-commerce. Ao mesmo tempo, a “Great Firewall of China” mantém o mercado doméstico praticamente fechado, o que restringe o fluxo de dados e os investimentos em serviços de nuvem cross border, dentre outros.

Os UDTs posicionam-se no outro lado do espectro e têm engajamento basicamente reativo em acordos que contemplam comércio eletrônico. Aqui temos os países africanos, a Índia (que está na “ponta final” desse espectro, já que não tem frentes negociadoras abertas em e-commerce) e países como Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Malásia, Vietnã e Indonésia.

É claro que há diferenças significativas entre esses países. No caso de Chile, Colômbia e Costa Rica, por exemplo, observa-se uma abordagem mais arrojada dentre os UDTs. No caso do Vietnã, Malásia e México, o que se vê é que esses países endossam a posição já aceita em acordos como o CPTPP, que é replicada nos seus acordos seguintes.  Buscam ganhos como hubs regionais de comércio e investimentos advindos de economias avançadas. É possível que esses países se beneficiem de ganhos de produtividade e de bem estar para o consumidor. Mas os ganhos estruturais são incertos, posto que não há razões para esperarmos que passarão da condição de UDTs para a de DDTs.

E o Brasil? O país parece se encaixar bem no perfil dos “strategy seekers”, que são países com grande mercado (classe média com relativo poder de compra e avidez por compras online) e infraestrutura de TIC suficiente para sustentar a expansão do e-commerce, com plataformas locais ou domésticas de e-commerce que se beneficiam da limitada penetração de plataformas globais em razão do ambiente problemático de negócios. Assim como a Argentina, o país busca ser usuário qualificado de e-commerce e ampliar o acesso à novas tecnologias. Todavia, não possui empresas e plataformas de peso que, de fato, façam comércio eletrônico em bens em nível internacional. Em serviços em geral, a atuação se limita a alguns nichos, como engenharia e TI.

As provisões em e-commerce devem ser vistas não como provisões regulatórias e adicionais aos demais capítulos já negociados mas, sim, como formadoras de um capítulo transversal capaz de alavancar o potencial de ganhos advindos de capítulos mais tradicionais, como bens, serviços e propriedade intelectual. A adoção cada vez mais generalizada de um capítulo que tem profunda relação com a estratégia que os países tem desenhado para avançar na era digital mostra o interesse de economias como os Estados Unidos, Japão, Canadá,  países da União Europeia e China em garantir que o comércio se manterá como peça-chave para esse avanço — não o comércio tradicional, mas o comércio de bens e serviços digitais, que hoje já explica grande parcela  dos fluxos de comércio global.

A transformação digital impulsiona o futuro sustentável da agricultura

A conjunção de condições do solo, clima, relevo, ciência, tecnologia, políticas públicas e competência dos agricultores tornou o Brasil um dos líderes mundiais na produção e exportação agrícola. Esse setor representa, aproximadamente, 25% do Produto Interno Bruto (PIB) e 50% das exportações. Significa que a cada R$ 4 que circulam no país, R$ 1 é agrícola. E, de cada US$ 2 que alimentam a nossa economia pela exportação, US$ 1 tem origem em chácaras, sítios, fazendas e estâncias brasileiras. Projeções recentes do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)[1] indicam que a produção de grãos poderá passar do atual patamar de 230 milhões de toneladas podendo chegar a entre 300 e 350 milhões de toneladas na safra de 2027/2028. Quanto à produção de carnes (frango, suína e bovina), projeções indicam que passaremos dos atuais 27 milhões para 34 milhões de toneladas até o final da próxima década. Há, também, crescente demanda por frutas, que ocupam cada vez mais uma posição de destaque no mercado nacional e internacional.

A modernização da agricultura brasileira e sua eficiência produtiva formam o suporte para esse desempenho. As safras recordes registradas germinaram nas instituições de pesquisa e ensino e foram plantadas no solo brasileiro na forma de inovações e tecnologias a cada ano-safra. Só nas duas últimas décadas, aumentamos a produção de grãos em aproximadamente 250% com apenas 50% na expansão da área plantada. Desse modo, produzimos mais alimentos, fibras e bioenergia com menos recursos naturais, fazendo do Brasil também uma potência ambiental com 60% de sua área ainda preservada, e menos de 30% do território do país destinado à agropecuária. Em análise desenvolvida pela Embrapa, tecnologia foi identificada como o fator mais importante para esse crescimento. Ela contribuiu com aproximadamente 60% do valor bruto da produção agropecuária e o somatório dos demais fatores — terra, mão de obra, e recursos financeiros — respondeu por 40%.

Por sua vez, o aumento da população mundial, a contínua urbanização, a maior expectativa de vida e o poder econômico elevarão ainda mais o consumo de alimentos, fibras e energia nos próximos anos e o Brasil deverá assumir um papel de ainda maior protagonismo na produção agrícola e na responsabilidade ambiental. As tecnologias digitais elevam as possibilidades de ampliar o conhecimento e a interação entre todos os elos das cadeias produtivas. Podem ajudar a resolver uma equação complexa e com inúmeras variáveis econômicas, sociais e ambientais em que é preciso produzir mais alimentos, com qualidade e com menor uso de recursos naturais.

Essa “digitalização da agricultura” pode ser entendida como interdisciplinar e transversal, não limitada a culturas agrícolas, regiões ou classe de produtores. Em um mundo cada vez mais dinâmico, a agricultura tem a possibilidade de utilizar avanços como as tecnologias de informação e comunicação (TICs), internet das coisas agrícolas (IoTA), inteligência artificial, agricultura de precisão, automação, robótica e big data e small data. Estimativas apontam que o mercado mundial da agricultura digital em 2021 será de 15 bilhões de dólares e que 80% das empresas esperam ter vantagens competitivas nesse setor[2].

O Brasil já possui papel inovador no agro focado em uma Agricultura 4.0. Novas abordagens são aplicadas no planejamento da produção, manejo, colheita, acesso a mercados, comercialização e transporte de grãos, frutas, hortaliças, carnes, leite, ovos, fibras e madeira. Os produtores já podem contar com apoio público, cooperativas, associações, sindicatos ou com serviços privados baseados em imagens de satélites, veículos aéreos não tripulados (VANTs) e sensores terrestres, sistemas de posicionamento global por satélite (GPS) e sistemas de informações geográficas (SIG).

Esses instrumentais são determinantes para o planejamento rural, redução de custos e aumento da produtividade e renda dos produtores. Já fazem parte de atividades como o cadastro ambiental rural (CAR) o zoneamentos e a aptidão agrícola. Também intensificam a aplicação da certificação ambiental de propriedades e processos, ajudam na gestão do bem-estar animal e na georrastreabilidade, elevando a qualidade e segurança dos alimentos.

A agricultura digital mostra desempenho amplificado na análise integrada de uso de insumos com a variabilidade do solo e água de sítios, fazendas e estâncias pela agricultura, pecuária e floresta de precisão. Máquinas e equipamentos conectados têm atividades gerenciadas por meio de sistemas de telemetria otimizando seu uso. Imagens de satélite e de VANTs, GPS, georreferenciamento e mapas de produtividade são termos cada vez mais frequentes no vocabulário dos produtores rurais. Esses instrumentos apoiam o planejamento do uso e ocupação da terra por práticas agrícolas mais resilientes, a exemplo da integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) e do plantio direto.

Novos satélites geoestacionários e de constelações de nanossatélites do setor privado de comunicação, monitoramento de recursos naturais e agricultura já orbitam a Terra. Monitoramentos geoespaciais asseguram a conservação, recuperação e uso sustentável de ecossistemas terrestres e aquáticos. Dão sustentação à implementação da gestão sustentável de florestas plantadas e restauração de florestas e pastagens degradadas. Sistemas de telemetria e GPS colaboram em medidas preventivas e corretivas envolvendo o tráfico de espécies da flora e fauna protegidas, mantendo a biodiversidade e elevando as oportunidades locais de subsistência sustentável de comunidades tradicionais. Bancos de dados armazenam informações de recursos genéticos vegetais e animais (nativos e exóticos), cadastramento de conhecimentos tradicionais, produtos locais e um catálogo de atrações que promovem o turismo rural.

Novos aplicativos, disponíveis para tablets e smartphones, são um suporte na tomada de decisão sobre inúmeras práticas envolvendo a produção animal e vegetal. Ajudam a compreender as condições meteorológicas, como secas e inundações, colaborando preventivamente na manutenção da qualidade do solo, água e ar. Permitem identificar, monitorar e reduzir a incidência de pragas e doenças. São imprescindíveis no gerenciamento de sofisticados sistemas de irrigação, minimizando desperdícios. Minimizam perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita. Auxiliam o gerenciamento técnico-financeiro de propriedades e se tornam fundamentais para a sustentabilidade do negócio rural.

Na vanguarda da inovação digital e com grande potencial para a agricultura, entram em campo as startups, com soluções disruptivas a problemas antes cristalizados. A “uberização” de máquinas e serviços já é uma realidade no meio rural, diminuindo custos de produção e aumentando postos de trabalho. Conceitos da economia digital, como fintech (finance & techonology), blockchain e criptomoedas servem de soluções para as áreas financeiras envolvendo o comércio internacional, importações e exportações de insumos e produtos agropecuários.

Os desafios estão em conferir maior dinamismo e integração entre a pesquisa, ensino, indústria, comércio, assistência técnica e extensão rural brasileira. Aproveitar o mundo rural mais conectado e fortalecer o processo de educação a distância (EAD) no campo. Atrair mais jovens, capacitar produtores rurais e profissionais para gerarem soluções cada vez mais interdisciplinares no dia a dia nas propriedades rurais elevando a produtividade e com menor pressão nos recursos naturais. Um perfil inovador, empreendedor e multiplicador é imprescindível a todos que buscam a digitalização da agricultura.

Esse ambiente digital molda agendas de desenvolvimento em várias escalas. Internacionalmente, pode ser associado à Agenda 2030 que envolve 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nesse contexto, a transformação digital na agricultura pode contribuir significativamente para o alcance desses objetivos, por meio de um maior compartilhamento de informações, aumento da produtividade, irrigação de precisão, ampliação do poder de informação, monitoramento do desperdício da produção, maior integração entre o campo e as cidades, aperfeiçoamento das cadeias produtivas, da melhoria na produção aquícola, na gestão do território e uso eficiente da terra (Figura 1).

http://breakthrough.unglobalcompact.org/site/assets/files/1332/6_9_26691_digital_agriculture_07_hr.1630x0.jpg

Exemplos de aplicações da agricultura digital aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Fonte: United Nations Global Compact. Digital Agriculture. 2017.

http://breakthrough.unglobalcompact.org/disruptive-technologies/digital-agriculture

Essa transformação possui uma velocidade exponencial, com maior amplitude na economia, governo e pessoas, tendo impactos cada vez mais sistêmicos nos indivíduos e na sociedade. A integração entre o conhecimento rural tradicional e o tecnológico inovador é fundamental para fortalecer ainda mais o desenvolvimento da agricultura. Estudo recente da Embrapa[3] destaca que, nesse paradigma, os negócios convencionais se desenvolverão sob a ótica do mercado digital, no qual o relacionamento entre consumidores e clientes será fortalecido por meio dos ecossistemas empresariais, do uso intensivo da automação e da convergência das TICs na agricultura.

Diminuir a pobreza, promover a prosperidade e o bem-estar para todos, proteger o meio ambiente e enfrentar as mudanças climáticas devem integrar agendas públicas e privadas nas próximas décadas.

Essas condições têm impulsionado a demanda por atividades cada vez mais complexas na agricultura. O uso da tecnologia digital no dia a dia das propriedades rurais não é questão de opção, mas um caminho obrigatório para tornar a agricultura mais competitiva e com maior agregação de valor. Com a transformação digital na agricultura, o mundo rural é repleto de novas oportunidades para trabalhar, produzir e viver com qualidade. É necessário fortalecer ainda mais a geração de conhecimentos, tecnologias e inovações a serviço do desenvolvimento sustentável da agricultura brasileira.

 Édson Bolfe é Pequisador da Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Suas áreas de pesquisa são geotecnologias, modelagem agroambiental, planejamento territorial e cenários de desenvolvimento da agricultura.  

Descubra mais em: www.embrapa.br/agropensa

Referências

  1. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Projeções do Agronegócio 2017/2018 – 2027/2028. http://www.agricultura.gov.br/assuntos/politica-agricola
  2. Parte superior do formulárioUnited Nations Global Compact. Digital Agriculture. 2017. http://breakthrough.unglobalcompact.org/disruptive-technologies/digital-agriculture
  3. Embrapa. Agropensa. Visão 2030: o futuro da agricultura brasileira. Brasília, DF: Embrapa, 2018. https://www.embrapa.br/visao/o-futuro-da-agricultura-brasileira

Os principais desafios das empresas na era da Economia Digital

Uma pesquisa realizada pela Accenture Strategy com o intuito de apresentar a importância e crescimento da Economia Digital no mundo, estima que, em 2015, a economia digital representou 22,5% da economia mundial, valor considerado muito baixo para o que ainda pode ser explorado.  O estudo concluiu que ainda há muito a ser explorado por governos e empresas e que o PIB dos países será maior se os investimentos forem direcionados às suas necessidades.

Um estudo feito pela OCDE (2016) mostra o crescimento do setor de serviços e a adaptação de algumas firmas, apresentando as mudanças dos serviços exigidos em cada época. Nesse estudo foi realizado uma comparação entre as principais empresas baseadas na Internet, por capitalização de mercado, em 1995, e as principais empresas de 2015. No início, a maioria das maiores empresas comercializavam hardwares, softwares ou realizavam serviços de provedores de internet e mídia, enquanto que em 2015 as maiores empresas eram desenvolvedoras e gestoras de plataformas digitais.

As 15 principais empresas de internet por capitalização de mercado em 1995 e 2015

1995 (Dezembro) Produto Principal ou Atividade 2015 (Maio) Produto Principal ou Atividade
Netscape Software Apple Hardware, serviços
Apple Hardware Google Informação (serviços de busca)
Axel Springer Mídia, publicação Alibaba Bens (e-com)
RentPath Mídia, aluguel Facebook Informação (social, P2P)
Web.com Serviços de internet Amazon.com Bens (e-com)
PSINet Internet Service Provider Tencent Informação (social, P2P)
Netcom On-Line Internet Service Provider eBay Bens (e-com, P2P)
IAC / Interactive Mídia Baidu China Informação (serviços de busca)
Copart Leilões de veículos Priceline Group Serviços
Wavo Corporation Mídia Uber Serviços (P2P)
iStar Internet Internet Service Provider Salesforce.com Serviços
Firefox Communications Internet Service Provider JD.com Bens (e-com)
Storage Computer Corp. Software de armazenamento Yahoo! Informação (serviços de busca)
Live Microsystems Hard- e Software Netflix Serviços (mídia)
iLive Mídia Airbnb Serviços (P2P)

   Fonte: Adaptado de OCDE (2016)

Onze das 13 plataformas digitais em 2015 eram mercados para serviços que operam em diversas áreas, se inserindo em diversos mercados, como o de transporte de passageiros (Uber) e serviços de hospedagem Airbnb, por exemplo. Dentre outros, isso sugere a importância da presença do setor de serviços nas economias e como eles foram expressivos nos últimos anos.

Dado que o mercado encontra-se cada vez mais global e as fronteiras estão reduzidas, um dos principais desafios das empresas é se adaptar às novas tendências globais. As firmas necessitam inovar constantemente para que se tornem cada vez mais competitivas. Parece algo simples, pois se o consumidor está sempre esperando que as empresas lancem novos produtos, com novos serviços embutidos, então é só as empresas tentarem inovar e produzir e pronto. Porém, na prática, isso não funciona bem dessa forma. O que as empresas precisam fazer é, isto sim, lançar algo que agrade o consumidor, observando as tendências para, a partir daí, buscar inovar.

Um exemplo de preferência do consumidor por inovação tecnológica é o iPhone. Os consumidores preferem um iPhone, que possui iCloud, iTunes, Apple Music, entre outros aplicativos, do que um celular simples que apenas serve para fazer ligações e enviar SMS, como os aparelhos comercializados na década de 90. Da comparação simples entre esses dois bens se pode perceber o motivo do sucesso de um sobre o outro. Porém, a diferença entre as preferências se encontra, na verdade, na inovação do produto. No caso do iPhone, à medida que o tempo vai passando, o consumidor vai ficando mais exigente e deseja algo que seja mais atrativo do que a versão anterior, como, por exemplo. Cabe à Apple ter a preocupação de inovar para seguir como tendência de mercado.

Do ponto de vista da indústria, atender a essa demanda não é tão simples assim. Na era da economia digital, para uma empresa se tornar competitiva, ela precisa ter a capacidade de criar “O Novo Serviço”. A indústria é direcionada a uma fase de desafios, onde é preciso descobrir um produto industrial novo, com maiores serviços inseridos nesse produto e, quanto mais serviços esse produto possuir, mais caro é o valor final do bem ofertado. Esses são produtos de alto valor agregado e que de fato contribuem para o desenvolvimento econômico dos países. Para ter sucesso na produção, é preciso que o novo modelo de indústria venha acompanhado de criatividade, mão de obra qualificada, investimento em inovação, estratégias de marketing e, principalmente, elevada competitividade.

Além da necessidade de inovar e de produzir bens e serviços de alto valor agregado, os principais desafios das empresas, para que se tornem competitivas na era da economia digital, são:

  1. Possuir mão de obra qualificada: é fundamental que as empresas possuam mão de obra suficientemente qualificada, que auxiliem no desenvolvimento de novos produtos, ampliando a inovação;
  2. Velocidade da evolução tecnológica: embora possa ter toda a estrutura para produzir, se a empresa não acompanhar com rapidez a evolução das tecnologias ela pode não conseguir se manter competitiva;
  3. Burocracias: as empresas, principalmente as que estão entrando no mercado, podem ter que lidar com burocracias como, por exemplo, regras de importação e exportação;
  4. Ataques cibernéticos: esses crimes podem ser caracterizados como uma das consequências geradas pela globalização, que talvez possa ser sanada com a ampliação dos investimentos em tecnologia.

Apesar da disposição e vontade das empresas de se beneficiarem da economia digital para que elas se tornem competitivas, é fundamental que elas consigam vencer as dificuldades acima listadas.

20 anos do Google: Como a empresa evoluiu seguindo métodos e princípios não tradicionais

Em 2018, o Google completa 20 anos de sua fundação nos Estados Unidos. Desde 1998, a empresa é ao mesmo tempo produto e propulsora da globalização, pelo grande espectro de serviços fornecidos e pela explosão do número de dados on-line reproduzidos e disponibilizados. Já não é mais aceitável a concepção de um mundo sem o acesso livre e imediato à informação como o de décadas atrás.

É notável a importância da economia digital e dos serviços para o desenvolvimento econômico, e da adaptação às tendências. Muitas sociedades e organizações diversas buscam grandes resultados, e para isso desejam uma inserção mais ativa no mundo digital, para isso, tendem a abandonar práticas que possam ser disfuncionais no século da Internet.

Comumente sociedades discutem sobre a criação e replicação de “Vales do Silício”, regiões que concentrariam uma proliferação de inovações, de startups, e de empresas visionárias. O que também merece atenção são fatores como a cultura, a filosofia, e os novos modos de operação e de organização das empresas que despontaram como grandes plataformas. O Google é uma dessas plataformas, e alguns dos seus princípios e métodos foram descritos na obra “How Google Works” (2016) de Schmidt, Rosenberg e Eagle. Muitos desses princípios e métodos são compartilhados por outras grandes empresas do ramo, salvo algumas exceções (como a plataforma aberta).

A autonomia de pensamento é um princípio indispensável para o processo de criação e colaboração, e está desde o início no Google. É uma influência da raiz no mundo acadêmico da empresa, ao ser criada por Larry Page e Sergey Brin, cientistas da computação na Universidade de Stanford, com o suporte posterior de engenheiros e profissionais criativos. Na empresa, a discordância não é só estimulada, como é necessária, o que dá maior liberdade de opinião nas reuniões e encontros. E a qualidade da ideia é muito mais importante do que quem a sugere. Inclusive, há momentos em que, para o bem da empresa, a opinião da pessoa que recebe mais (tratadas de “Hippos”: Highest-Paid Person Opinions) não deve ser ouvida (!). Isso pode afetar o processo de criação na empresa, e o surgimento de novas ideias na equipe. Além disso, é muito valorizado na empresa a diversidade de origens dos talentos contratados, o que fornece vários pontos de vista e pensamentos.

Organizações de estrutura excessivamente hierárquica inibem a colaboração ativa e o questionamento. Tais estruturas supostamente promovem maior estabilidade, e os processos de tomada de decisão estão concentrados. No entanto, a competição com organizações de sucesso que estão mais adaptadas ao século das tecnologias da informação e comunicação pode tonar mais evidente a falta de progresso das empresas tradicionais. Ainda que seja necessária uma estrutura organizacional formal, arranjos mais planos permitem o acesso mais direto aos tomadores de decisões finais e fornecem maior celeridade na realização de projetos.

A própria organização do local de trabalho no Google é realizada de forma a valorizar a autonomia e a liberdade dos trabalhadores (o filme de comédia “The Internship”, de 2013, ajudou a difundir o ambiente pouco tradicional do Google ao público geral). Nesse ambiente, não necessariamente o reconhecimento está no tamanho da sala ou a vista mais bonita da janela. Os escritórios são projetados para maximizar a colaboração e a interação, evitando também a formação de “silos”, grupos que falham ao não se comunicarem livremente e efetivamente entre si.

O ambiente mais livre e que valoriza a autonomia de pensamento também é atrativo aos talentos denominados como “smart creatives”, trabalhadores multifuncionais e muito valorizados no mercado de trabalho. A contratação desses profissionais é uma das atividades mais importante dos executivos. E os líderes serão aqueles que demonstrarem maior paixão e desempenho (e não necessariamente experiência), sendo em torno deles/delas que serão formadas as equipes de trabalho. Nesse sentido, a recomendação é a de que os empreendedores invistam muito mais nas pessoas e na formação de equipes do que nos planos de trabalho. Os planos devem ser flexíveis e mudarão de acordo com o progresso e com as novas descobertas sobre produtos e tendências de mercado, e os talentos irão descobrir novos caminhos naturalmente.

No Google, assim como em outras plataformas digitais, a filosofia de trabalho defendida é a de foco no usuário e na excelência do produto. Para isso, a recomendação é apostar mais nos insights técnicos dos produtos e serviços do que necessariamente na receita. Supostamente, a receita acompanhará o ganho de mercado da excelência produzida. Como destacam Schmidt, Rosenberg e Eagle (2016), inicialmente os fundadores do Google não sabiam claramente como criar um modelo geral de receitas com adverstising, mesmo tendo uma ideia de um potencial. Larry Page e Sergey Brin passaram mais tempo no aumento de escala da plataforma. Mais tarde, a chegada de profissionais de conhecimento dos negócios ajudou no marketing e na captação de recursos.

Os insights técnicos promovem uma solução inovadora para algum problema, e são sobre eles que os produtos e plataformas são construídos. Exemplo disso é o mecanismo de anúncio e publicidade do Google que gera a maior parte da receita da empresa: o Google AdWords. O serviço foi baseado no insight de que os anúncios pudessem ser classificados e colocados em uma página com base em informações de valor e utilidade para os usuários, e não por quem ou qual empresa estivesse disposta a pagar mais (Schmidt; Rosenberg; Eagle, 2016).

O rápido crescimento da plataforma Google foi possível diante de outra importante decisão da empresa desde seus primeiros anos: deixá-la aberta aos usuários, o máximo possível. Após adquirir o sistema operacional Android em 2005, por exemplo, o Google optou por mantê-lo aberto, concedendo liberdade para usuários desenvolverem novos produtos, além de tê-lo disponibilizado para operadoras e fabricantes dos aparelhos. Tal decisão permitiu que a plataforma Google – e o acesso à Internet de modo geral – se expandisse ligeiramente pelos aparelhos móveis. Apesar disso, é claro que nem todo o sistema Google é aberto. A empresa mantém algoritmos relacionados ao mecanismo de pesquisa em segredo, sob a justificativa de manter a qualidade do serviço além da proteção da propriedade intelectual.

O Google inicialmente no final dos anos 1990 – com a concorrência da Netscape e da Microsoft – focou-se na qualidade de seu mecanismo de pesquisa, medindo-o em termos de velocidade, precisão, facilidade de uso, abrangência e atualização. Ao tornar-se principal referência na área no mundo, expandiu sua linha de atuação e de produtos. A empresa mais uma vez apostou mais nos insights técnicos e menos na pesquisa de mercado, buscando assim oferecer aos consumidores o que ainda não sabiam o que queriam (ponto também várias vezes destacado por Steve Jobs, apaixonado por excelência, e inspiração para os próprios fundadores do Google).

As atividades do Google foram e têm se expandido de tal forma que os seus fundadores realizaram em 2015 a maior restruturação da companhia ao criar a holding Alphabet. Dentre os objetivos estava o de tornar o Google mais enxuto e dedicado às atividades mais vinculadas aos serviços na Internet. Além, é claro, do Google, a Alphabet incorpora uma série de empresas e projetos: Fiber, serviço de Internet ultrarrápida; Verily, com pesquisas sobre saúde e prevenção de doenças; Sidewalk Labs, destinado a criar ambientes melhores nos centros urbanos; Calico, voltada à biotecnologia, e pesquisa sobre a longevidade; os braços de investimento CapitalG e GV; Jigsaw, que utiliza tecnologia para lidar com desafios de segurança global, como censura on-line, extremismo, ataques digitais; DeepMind, destinado à pesquisa sobre inteligência artificial; Waymo, para desenvolvimento de carros autônomos; Loon, voltada à provisão de acesso à Internet em áreas rurais e remotas; Project Wing, para desenvolvimento de drones para serviços de entrega; X, a fábrica de ambiciosos projetos de P&D; e Nest, voltada a produtos e dispositivos de automação residencial – “internet das coisas”, e incorporada pela equipe de hardware do Google. Esse “guarda-chuva” parece estar em constante mutação de acordo com o surgimento de novos projetos.

Apesar do sucesso, a dimensão de empresas como o Google merece muita atenção. Quanto maior o uso, maiores as plataformas, mais investimentos e recursos elas alavancam, e maior poder e concentração de mercado conseguem reter. Além disso, empresas de destaque como as citadas DeepMind e a Nest acabaram sendo adquiridas pelo próprio Google/Alphabet, o que o mantém numa posição muito privilegiada no mercado de inovação. Do ponto de vista da sociedade como um todo, essa concentração pode levar a questionamentos diversos, dentre eles a dificuldade de entrada de novos competidores e da livre concorrência.

Grande exemplo foi a decisão de autoridades antitruste da União Europeia em julho de 2018 de aplicar uma multa recorde de 4,34 bilhões de euros contra o Google por “utilizar o Android como um veículo para consolidar a posição dominante em seu motor de busca”, violando, assim, regras de livre concorrência, como o favorecimento de seus aplicativos. Além da grande parcela de mercado atingida, questiona-se a adoção de práticas abusivas pela empresa. A Comissão Europeia alega que o Google estaria obrigando operadoras e fabricantes a instalarem determinados aplicativos para ter acesso aos demais, além de incentivos financeiros, e impedimento para instalação de sistemas operacionais rivais por meio do Android. Outras investigações estão em andamento, como a do sistema de publicidade AdSense. O Google irá recorrer da decisão, e destaca os preços considerados acessíveis e a inovação rápida colaborativa dentro do ecossistema da plataforma.

Por fim, o século da Internet deve combinar a colaboração e a abertura, para que empreendedores tenham uma liberdade real de poder ascenderem nas redes com propostas inovadoras. Por outro lado, grandes plataformas digitais como o Google ditam os rumos da tecnologia e inovação, e possuem grande capacidade de se reinventarem. Por essas razões, possuem certo “poder de realizar previsões”. Logo, é extremamente importante acompanhá-las, e compreender sua forma de atuação – e suas mudanças, para que possamos conhecer um pouco do nosso futuro.

O mundo é digital: e é pra lá que eu vou

Eu sei, parece que a administração pública do Brasil não percebeu o potencial da tecnologia na melhoria da gestão e da qualidade dos serviços prestados à população. E olha que começamos bem: em 2003, estávamos em 41º no ranking de governo digital da Organização das Nações Unidas e chegamos a 33º em 2005. Infelizmente, nos perdemos em algum lugar pelo caminho e caímos até a 61ª posição em 2010. Em 2016, subimos um pouquinho e chegamos a 51ª, ufa!

Já nós, cidadãos brasileiros, invadimos o mundo digital. Somos o 4o maior país do mundo em número de usuários na internet. Conhecidos como early adopters de redes sociais, não resistimos a uma novidade.

Mas não foi só o governo que ficou para trás nessa história.

A vanguarda ficou do lado de fora da porta do trabalho. Inicialmente, nem o setor público nem o privado deram prioridade para a transformação digital e a inovação. O IBGE já mostrou que somente cerca de 35% das empresas investem em novos bens ou serviços ou na melhoria dos processos no Brasil.

E o mais curioso, eu costumo dizer, é que o desafio da transformação digital não é tecnológico, e sim conseguir reunir os diversos – e muitas vezes repetidos – esforços da sociedade e do governo para que o País esteja melhor preparado para aproveitar as oportunidades que a economia digital vem proporcionando.

Acredito que boa parte dos gestores públicos concordam que a tecnologia se tornou o motor do serviço público e que a transformação digital promove economia e simplificar a vida dos cidadãos brasileiros.

Hoje, entre outras conquistas, destaco o Processo Eletrônico Nacional (PEN), o portal de Serviços, o Login único e o caçula Documento Nacional de Identidade (DNI), ainda em piloto. Estes são componentes da Plataforma de Cidadania Digital, a partir da qual estamos acelerarando a transformação de serviços e de políticas públicas.

Desde o 2o semestre de 2017, lançamos 41 serviços públicos em ambiente digital, que  apresentaram redução da ordem de 90% no custo para o estado e para o cidadão. Parece promissor, mas ainda estamos muito longe de onde queremos e podemos chegar.

Primeiro é preciso ter em mente que a burocracia no setor público acaba por prejudicar as pessoas que mais precisam. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) fez um levantamento na América Latina e revelou que, em média, um quarto dos serviços públicos requer três ou mais interações, às vezes presenciais, até ser concluído.

Dá para imaginar o tanto de dinheiro, tempo e paciência que os cidadãos perdem por ano porque um serviço não foi modernizado? São passagens de ônibus, combustível, ligações telefônicas, preenchimento de formulários e tempo gasto em filas.

Até o ano passado, os jovens brasileiros de 18 gastavam R$ 118 milhões por ano para fazer o Alistamento Militar Obrigatório. Depois da transformação digital, o alistamento é feito pela Internet, e a presença do jovem só é necessária se ele for realmente servir. Além disto, para o governo, reduzimos a despesa em R$ 180 milhões por ano. Viu como dá para melhorar?

O Censo de Serviços Públicos, realizado pela primeira vez em 2017, revelou que menos de 40% de todos os serviços públicos prestados pelo Governo Federal são digitais. Ou seja, temos mais de mil serviços que devem ser transformados para efetivamente comemorarmos a virada.

Por fim, segundo a Accenture, a cada 1% de crescimento na digitalização do governo, crescerá 0,5% o PIB do país, 0,13 o IDH, 1,9% o comércio internacional entre diversos outros benefícios menos tangíveis. Ou seja, o desafio é grande, mas ainda maior será a recompensa: quem está comigo?

 Luis Felipe Salin Monteiro é Secretário de Tecnologia da Informação e Comunicação do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, responsável pelo processo de transformação digital do governo federal. É Mestre em gestão de tecnologia da informação pela Universidade Católica de Brasília e pela Fundação Getúlio Vargas, com graduação em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Maria.
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