Economia de Serviços

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Economia da Corrupção (II)

Em um post anterior começamos a discutir a abordagem que a economia faz daquilo que comumente (e muito vagamente) se denomina de “corrupção”. Aceitando provisoriamente uma aproximação intuitiva ao termo (veremos em outros posts a relevância e os problemas que uma definição mais específica introduz no debate) a pergunta que nós devemos colocar é:  por que a economia deveria ter “alguma coisa a dizer” sobre um tema que, em princípio, pareceria circunscrito à ética/moral e a aspectos legais?   Por um lado, a resposta é quase unânime entre economistas:  a corrupção tem desdobramentos em quesitos que fazem a essência de seu objeto de estudo:  crescimento, alocação eficiente de recursos, distribuição de renda, trade-off eficiência/equidade, etc..  Por outro lado, no debate cotidiano a corrupção adquiriu tal relevância que em muitas ocasiões é identificada como a raiz última da estagnação conjuntural e uma variável categórica para explicar o atraso do País.  Não existem elementos que permitam classificar as práticas ilícitas que diariamente são divulgadas como o principal fator do fracasso em matéria econômica.  Contudo, existem resultados encontrados na pesquisa empírica que atestam vínculos entre economia (especialmente crescimento) e corrupção.  Vamos a resenhar alguns deles.

Em um famoso paper, Mauro (1995) conclui que a corrupção tem um impacto negativo sobre o investimento privado e sobre o crescimento.  Explicita a conclusão com um exemplo bem ilustrativo. Se a burocracia estatal de Bangladesh tivesse os níveis de integridade do Uruguai seu investimento poderia se elevar em 5% enquanto o percentual de variação do PIB aumentaria 0,5% ao ano. Weil (1997) chega à conclusão que a corrupção eleva o grau de incerteza nos investimentos estrangeiros em um país, com efeito danoso sobre os mesmos, ensaiando também uma comparação: se Singapura, um dos países que as séries indicam como sendo um dos menos corruptos do mudo, tivesse os níveis de corrupção de México, isso seria equivalente a elevar a carga tributária em 32% sobre os investimentos oriundos do exterior.  Poderíamos nos estender nas citações bibliográficas, mas os nexos serão sempre os mesmos: existiria uma relação negativa entre crescimento e índices de corrupção. Contudo, lembremos que a existência de um nexo deixa em aberto a ordem de causalidade, aspecto que trataremos neste post nos próximos parágrafos.  

A alocação de recursos seria outro dos meandros mediante os quais as práticas de corrupção afetariam o crescimento.  Neste caso as interrelações (corrupção/alocação ineficiente de recursos) são as mais difusas e, muitas vezes, surpreendentes.  Por exemplo, Mauro (1998) encontra robusta evidência empírica sugerindo que quanto maior for o nível de corrupção de um país maior será o investimento público em setores (grandes obras de infraestrutura, por exemplo) nos quais a possibilidade de cobrar propinas seja maior.  Assim, seriam penalizadas áreas como educação, nas quais os espaços para tais práticas seriam mais reduzidos. Dessa forma, a alocação de recursos não teria como prioridade a eficiência, equidade, crescimento, etc., e sim a ampliação das fontes potenciais de cobrança de propinas Sem chegar a esses extremos, mesmo políticas que teriam como objetivo induzir maior taxa de crescimento podem ter como correlato a geração de práticas de corrupção que devem ser tidas como custos que alteram o balanço custos/benefícios.  Ades e Di Tella (1997) estudam o caso das denominadas políticas industriais e a eleição dos “campeões nacionais”.  Uma vez que a corrupção reduz o investimento, as medidas tendem a induzir o mesmo e, simultaneamente, abrem espaço para práxis ilícitas que podem chegar a comprometer boa parte dos ganhos que as políticas  impulsionaram (até 84% segundo os dados desses autores).  Nesse sentido, barreiras protecionistas, cotas de importação, etc. caminhariam na mesma direção, uma vez que, ao facilitar a geração de rendas em nichos específicos, criarão incentivos e disputas em torno da sua apropriação. Apropriação que pode ser disputada tanto por agentes do setor público (mediante propinas) ou como do setor privado (contrabando, mercado negro, etc.) (Kruguer (1974)).

Vemos, assim, que as raízes podem ser as mais variadas, até mesmo nobres, como acelerar o crescimento ou encorajar a industrialização.  Podemos imaginar uma situação na qual se objetiva uma aceleração do crescimento. Assume-se, então, um diagnóstico teórico, é estabelecida uma política pública em consonância e, como correlato, temos um espaço propício para o desenvolvimento de um mercado de propinas. Mesmo assumindo como apropriada a política escolhida (aceleraria a variação do PIB), parte desses ganhos seriam neutralizados pelo impacto negativo que a corrupção teria sobre os níveis de investimento.  Nesse caso, o balanço (positivo ou negativo) fica em aberto.  Mesmo em casos nos quais o objetivo do arcabouço legal consiste na correção de falhas de mercado (externalidades), pode-se quantificar o custo de não pretender corrigir essas falhas e comparar essa magnitude com a perda que representa a formação de uma burocracia imaginada para seu reparo, mas que configura um espaço aberto para a corrupção.  

Uma dinâmica similar pode ser deslanchada quando, no lugar de pretender induzir o crescimento, se pretende corrigir falhas de mercado.  Como salientam Acemoglou e Verdier (2000), impor restrições ou induzir condutas implica em vislumbrar controles com as conseguintes estruturas burocráticas, gerando custos diretos e a possiblidade de propinas.  Reduzir a eventualidade de corrupção pode elevar os custos (por exemplo, levando ao pagamento de salários de eficiência nas estruturas burocráticas), resultando em pesados complexos administrativos que, mesmo pagando elevados salários, não necessariamente eliminarão as possiblidades de pagamento de propinas nem contornarão inexoravelmente as falhas de mercado. 

Um caso bem diferente consiste em escolher setores prioritários ou arcabouços legais com o único propósito de gerar espaços capazes de disponibilizar rendas a serem disputadas. Nesse sentido, encontramos interpretações um tanto extremas, nas quais o objetivo último da maioria das normas legais, controles, etc. estaria associado à procura de geração de espaços nos quais é possível extrair rendas (propinas) por parte de agentes públicos (Cheung (1996)).  A hipótese de um comportamento rent-seeking é levada ao limite, uma vez que os burocratas não se aproveitariam das oportunidades abertas pela legislação para extrair rendas (propinas). Em realidade,  a própria legislação seria criada a fim de gerar rendas das quais posteriormente se assenhorariam. 

Como salientamos no post anterior, contudo, existe literatura sugerindo avaliar a corrupção dentro de um dado contexto.  Assim, em determinadas circunstâncias, o suborno à agentes públicos em âmbitos de regulamentação excessiva e mal desenhada seria benéfico para o desenvolvimento (ver bibliografia e citações no post anterior).  Nas palavras de Gray and Kauman (1998), uma frase poderia resumir esta perspectiva: a corrupção seria “….the “grease” that lubricates the “squeaky wheels” of a rigid administration”.

Contudo, se a corrupção pode afetar o crescimento através de diversos labirintos, seu perfil poderia também acentuar ou atenuar esses efeitos perversos. Assim, por exemplo, podemos estar diante de apenas um agente corrupto, de vários agentes que concorrem entre si ou de vários agentes em conluio.  Os modelos indicam que os resultados são diversos e, paradoxal ou contraintuitivamente, quanto mais caótico (menos centralizado) for o mundo dos agentes corruptos maior será o custo em termos de alocação de recursos.  Nas palavras de Canavesse (s/d): “…nos casos de corrupção estudados pode-se afirmar que o crime organizado é mau, mas o crime desorganizado é pior devido aos seus efeitos sobre a alocação de recursos”.  Um caso mencionado diversas vezes na literatura diz respeito ao desmoronamento dos países  Leste Europeu. Nos antigos regimes comunistas, um governo centralizado e forte “administrava” a corrupção.  A derrocada das estruturas do Estado na transição ampliou os agentes e desarticulou a sua centralização (devido à existência de governos frágeis e transitórios), fato que redundou em um ambiente caótico em termos de corrupção, com custos em termos de investimento (Sheilfer and Vishny (1993)).   Na medida em que as esferas de corrupção se multiplicam e superpõem, os custos de transação se elevam.  O tempo gasto nas negociações em distintas esferas governamentais (permissões, licenças, isenções, etc.)  dilata-se, aumentando custos e reduzindo investimentos.  

Além da diversidade de agentes corruptos (sua dispersão ou centralidade, sua coordenação ou não, etc.), uma outra variável que pode diferenciar a corrupção de um país (ou região) diz respeito à sua incerteza.  Em ambientes cuja corrupção é centralizada e sujeita a regras que são cumpridas, o grau de incerteza se reduz e o suposto impacto negativo da corrupção sobre o investimento é atenuado.  Campos, Lein and Pradham (2006) explicam, ao introduzir a variável incerteza, o aparente paradoxo dos milagres asiáticos.  Nessa região imperariam elevados índices de corrupção que, aparentemente, não impediriam a convivência com surpreendentes indicadores de crescimento e investimento.  Justamente, na medida em que as propinas e as regras do jogo da corrupção são conhecidas, estáveis e respeitadas, estas entram nos cálculos de investimento, elevando os custos, mas com risco reduzido.

Mas o ponto que permeia todos os trabalhos que acabamos de citar nos parágrafos anteriores implicitamente justifica o tratamento econômico da corrupção devido aos vínculos entre esta última e a alocação de recursos, investimento e crescimento.  Por diversos meandros (incerteza, custos, etc.), o pagamento de propinas acabaria reduzindo os níveis de crescimento, seja porque reduz o investimento seja porque induz uma alocação de recursos ineficiente. Nesse sentido, a relação entre os indicadores de corrupção (voltaremos sobre eles em próximos posts) e o nível de desenvolvimento é bem estreito: quanto maior for o nível de desenvolvimento de um país menor será seu grau de corrupção. Contudo, sabemos que correlação não significa ordem de causalidade ou as relações podem ser indiretas.  Assumamos, como hipótese, que o grau de corrupção tem a ver com raízes culturais como religião e existem evidências que sugerem que sociedades com tradição protestante parecem ser menos conivente com corrupção.  Nesse caso, podemos retornar, via corrupção, a Max Weber (religião→cultura→ética→investimento→crescimento). Porém, não podemos descartar, também, relações de causalidade contrárias.  Ou seja, o desenvolvimento econômico pode ter impacto sobre os indicadores de percepção de corrupção, como Treisman (2000) salienta.   Ou seja, sociedades economicamente estagnadas podem (controlando, inclusive, por fatores culturais como religião) induzir à corrupção: “Latin American countries are not significantly more corrupt than their Western European and North American counterparts once one controls for their lower economic development and less stable democracy” (Treisman (2000)).  Ou seja, a corrupção não seria a causa do baixo crescimento, senão o contrário, e existem evidências empíricas que sugerem que a relação de causalidade vai nesse sentido (Bai, Jayachandram, Malesky and Olken (2013)).

Em próximos posts direcionaremos nossas atenções a um aspecto crucial implícito (mas essencial) em todos os trabalhos empíricos: a definição de corrupção e sua medição.

Infraestrutura e serviços de infraestrutura: um breve olhar sobre o caso brasileiro

Tendo em vista a atual conjuntura brasileira de retomada ainda tímida de crescimento e grande restrição fiscal por parte do Estado, num contexto de teto de gastos públicos aprovado para as próximas duas décadas, o setor privado terá papel fundamental na realização de investimentos no país, em especial para os principais setores de infraestrutura, como é o caso dos setores de telecomunicações, energia, transportes e saneamento. Além disso, há ainda muito a melhorar na governança e atuação do setor público, com escolhas economicamente mais racionais de projetos, com a uniformização de práticas e a adoção de avaliações de impacto socioeconômico, por exemplo.

Mas o que é infraestrutura? Infraestrutura é “o conjunto de estruturas de engenharia e instalações – geralmente de longa vida útil – que constituem a base sobre a qual são prestados os serviços considerados necessários para o desenvolvimento produtivo, político, social e pessoal” (BID, 2000). Partindo desse conceito, podemos perceber complementariedade entre os chamados serviços de infraestrutura – que visam satisfazer às necessidades de um indivíduo ou de uma sociedade e são considerados serviços de interesse público; e a própria infraestrutura – que é a base física sobre a qual se dá a prestação destes serviços (IPEA, 2010).

Dessa forma, a infraestrutura seria representada por rodovias, ferrovias, terminais portuários e aeroviários, torres de telecomunicação, cabos de transmissão de energia elétrica (entre outros exemplos) que dão a possibilidade de oferta/prestação de serviços de infraestrutura. Já os serviços de infraestrutura são o frete rodoviário, ferroviário, aquaviário, aeroviário (transporte de mercadorias e/ou pessoas de um ponto a outro do território), o transporte urbano de uma cidade (linhas de ônibus, metrô e trens usados pelos cidadãos), os planos oferecidos por uma operadora de celular, etc. Todos esses exemplos de serviços se utilizam do capital físico instalado.

No setor de transportes, por exemplo, quando uma concessionária ganha uma licitação para a exploração da infraestrutura rodoviária e, portanto, passa a ter direitos e deveres contratuais firmados com o poder concedente (o Estado ou um representante do mesmo), todas as obras de manutenção, restauração e ampliação da capacidade da rodovia estarão incrementando os investimentos em infraestrutura, gerando então potencialmente maior estoque de capital fixo e adicionando estrutura física que será utilizada e usufruída pelos prestadores de serviço daquele setor e seus usuários de modo geral.

O setor de transportes, assim como outras áreas da infraestrutura – transportes, energia, saneamento e telecomunicações – possuem grande impacto no crescimento econômico de um país. Há vasta literatura que comprova que maiores investimentos em infraestrutura (fluxo) e maior estoque de capital fixo no setor (mais rodovias, maior capacidade energética instalada, etc.), ou seja, maior estoque de infraestrutura, levam a maior crescimento do produto e também elevam a produtividade, além de reduzirem a desigualdade de renda (Aschauer, 1989; Calderón e Servén, 2004; Ferreira e Maliagros, 1998).

Ainda, no caso específico do setor de transportes, os impactos são bastante relevantes, com efeitos de encadeamento para frente e para trás, relacionando-se ainda de modo importante com outros setores da economia. Para alguns produtos – como a soja e o milho – o valor final no porto é composto em mais da metade pelo chamado custo logístico. Portanto, mais uma vez, voltamos ao fato de que a infraestrutura física e seus serviços acessórios compõem o preço final dos produtos que produzimos e consumimos, seja para o consumo interno, seja para o consumo externo (por meio de exportações).

Dada a má qualidade média das rodovias brasileiras (comprovada pela série histórica das pesquisas anuais da CNT, com exceção das rodovias concedidas à inciativa privada, em especial as do estado de São Paulo) e sua relativa escassez (baixa densidade rodoviária quando comparada a outros países, com exceção também do estado de São Paulo), fatores esses somados ao fato de que cerca de 60% das cargas no Brasil são transportadas via modo rodoviário, percebemos que ainda temos muito a avançar nessa área.

A questão dos fretes, seu valor, sua rapidez, sua segurança, seu adequado manejo das mercadorias, o cumprimento de prazos, entre outros aspectos, ganhou notoriedade recentemente por conta da “greve dos caminhoneiros”, tendo já sido reportados impactos negativos dessa situação sobre o crescimento econômico do país (que foi revisado para baixo esse ano) e sobre a taxa oficial de inflação (que aumentou e elevou o índice esperado para o ano como um todo).

Isto posto, a infraestrutura (base física) precisa ser ampliada. Isso será feito, provavelmente e em grande parte, com a atuação do setor privado. Os programas de concessões foram intensificados nos últimos anos e muitos avanços foram feitos nos desenhos dos editais, contratos e regulamentos, como é o caso dos modos rodoviário e aeroviário. Aprimoramentos interessantes foram incorporados ao longo do tempo, como os gatilhos de demanda, o fator X, o fluxo de caixa marginal, entre outros. Ademais, maior participação do capital privado estrangeiro também tem sido verificada nos últimos 2 anos, tanto no setor de transportes quanto no setor elétrico. Nesse ponto, o papel maior do Estado daqui em diante seria de proporcionar condições macroeconômicas, institucionais e regulatórias apropriadas, robustas e condizentes com o objetivo de gerar incentivos e apoiar o investidor privado – seja ele de dentro ou de fora do país.

Em relação aos serviços de transporte de carga, em especial no caso dos fretes rodoviários, deveria tratar-se de mercado de livre concorrência, cujos preços deveriam seguir as forças de mercado (oferta e demanda). Por isso o “tabelamento de preços”, sancionado pelo Presidente da República em 09 de agosto de 2018, deve ser analisado de modo bastante crítico. O mais importante nesse caso é tentar ampliar e incentivar ganhos de produtividade no setor. Isso pode ser alcançado por meio de algumas inciativas distintas. A primeira seria aumentando o investimento na base física (melhorando a qualidade das rodovias, equipamentos, etc). A segunda forma seria ampliar a capacitação dos trabalhadores do setor (trabalhadores mais qualificados tendem a errar menos e terem melhores relações com seus clientes e fornecedores). A terceira seria promovendo melhorias institucionais, com ênfase na independência e profissionalização das agências reguladoras, tanto em âmbito federal, quanto estadual. Por fim, o incentivo à inovação permitiria o aumento na capacidade da prestação de serviços e até mesmo a abertura de novos mercados. Em resumo: avancemos na agenda de buscar maior produtividade!

Geovana Lorena Bertussi é Professora Adjunta IV do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Ministra disciplinas nas áreas de Economia Brasileira, Macroeconomia e Economia da Infraestrutura, com ênfase nos setores de transportes e energia elétrica.

 

Carlos Eduardo Véras Neves é formado em Engenharia Civil e Mestre em Geotecnia pela Universidade de Brasília. Possui MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Atua no setor público federal na área de infraestrutura desde 2009. Atualmente é Especialista em Regulação da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. É aluno de Doutorado em Economia Aplicada do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.

Referências

Aschauer, D. (1989) “Is Public Expenditure Productive?” Journal of Monetary Economics, 23, pp. 177-200.

Calderón, C.; Servén, Luis. (2004). The Effects of Infrastructure Development on Growth and Income Distribution. Policy Research Working Paper; No.3400. World Bank, Washington.

Ferreira, P.C. and T. Maliagros (1998) “Impactos Produtivos da InfraEstrutura no Brasil — 1950/95”, Pesquisa e Planejamento Econômico, v.28, n.2, pp.315-338.

IPEA (2010). Infraestrutura Econômica no Brasil: diagnósticos e perspectivas para 2025. Livro 6, Volume 1. Projeto Perspectivas do Desenvolvimento Brasileiro.

Serviços, leis de Kaldor e eficiência schumpeteriana

A literatura econômica kaldoriana considera a indústria o setor mais dinâmico, responsável pela disseminação do progresso técnico e pela capacidade de geração de crescimento endógeno e autossustentado. Para essa literatura o setor de serviços não apresenta ganhos de produtividade e não é capaz de gerar crescimento econômico persistente (KALDOR, 1966).

No período recente cresceu internacionalmente a literatura que defende a existência de uma relação de interdependência entre o setor de serviços intermediários e a indústria. As evidências encontradas por esta literatura mostram que o crescimento da produção industrial depende do crescimento do setor de serviços intermediários, sendo a expansão deste setor que viabiliza o surgimento de inovações, o crescimento e o aumento da produtividade da indústria. A ideia principal é a de que no processo de mudança estrutural, atividades mais nobres dos setores industriais e de serviços, intensivas em tecnologia e conhecimento, co-evoluem. Na trajetória de desenvolvimento das nações, a partir de determinado momento histórico, faz-se necessária a existência de uma elevada simbiose entre indústria e serviços, na medida em que atividades manufatureiras passam a demandar mais serviços especializados.

No artigo “Contribution of services to economic growth: Kaldor’s fifth law?” Adilson Giovanini e Marcelo Arend (autores deste post) questionam a existência de uma nova lei de Kaldor. Esta lei evidenciaria que à medida que os países se industrializam e passam a fabricar produtos cada vez mais sofisticados, se elevaria a demanda por maior volume de conhecimento. O desenvolvimento de um setor de serviços intermediários, especializado no fornecimento de soluções tecnológicas e gestão deste conhecimento, viabilizaria a fabricação de manufaturas avançadas e complexas.

Esta hipótese foi testada através da estimação de modelos VAR em painel para oito países desenvolvidos (Japão, Estados Unidos, Dinamarca, Espanha, França, Reino Unido, Itália e Holanda) no período 1980-2009. Os resultados estimados corroboraram a hipótese levantada. O crescimento do setor de serviços intermediários contribui para o crescimento da produtividade industrial; do valor adicionado industrial per capita e da complexidade econômica dos países em análise. Com isto, dadas as devidas ressalvas, os resultados apresentam elementos iniciais favoráveis para a defesa de que os serviços avançados também atuam como um “motor do crescimento econômico”.

A partir dessas conclusões é possível explorar em mais detalhes o “espaço-indústria”, desenvolvido por Arbache (2012), com “pitadas teóricas” da literatura schumpeteriana e estruturalista. O espaço-indústria é constituído por quatro quadrantes que mostram diferentes processos de mudanças estruturais. No quadrante R1 a população é predominantemente rural e a agropecuária é o setor dominante. Neste quadrante o país se encontra preso na armadilha da renda baixa (RODRIK, 2014). Em perspectiva schumpeteriana, tal como Dosi, Pavitt e Soete (1993), podemos derivar que países nesse estágio de seu desenvolvimento possuem exclusivamente eficiência ricardiana, pois a alocação de fatores se realiza em perfeita concordância com o princípio das vantagens comparativas estáticas.

Figura 1 – Espaço-Indústria

Fonte: Adaptado de Arbache (2012)

 

 

 

 

 

 

 

O quadrante R2 é caracterizado pela crescente demanda por produtos industriais básicos e pelo desenvolvimento de uma indústria de baixo valor adicionado e serviços gerais. Nessa trilha, muitos países superam a armadilha da pobreza, com crescimento acelerado proporcionado por um processo de industrialização. As clássicas leis de Kaldor explicam perfeitamente o caminho percorrido até o quadrante R2. Também, poderíamos considerar que nesse processo a eficiência keynesiana funcionaria como um “motor” do crescimento da renda per capita. A condição de eficiência keynesiana implica que a estrutura produtiva abarque cada vez mais ramos que tenham elevada elasticidade-renda da demanda. Isso quer dizer que o país está internalizando setores nos quais a demanda e os mercados crescem rapidamente, abrindo, consequentemente, oportunidades de vendas e de lucros maiores (DOSI; PAVITT; SOETE, 1993). Aliada ao processo de industrialização, a diversificação produtiva amplia-se, conforme demonstrado por Imbs e Wacziarg (2003).

A passagem para o quadrante R3 e deste para o R4 é um caminho que poucos países conseguiram fazer. Muitos países entram em relativa estagnação de seu nível de renda per capita nesse estágio (armadilha da renda média), inclusive apresentando regressão de sua estrutura produtiva, fenômeno associado ao processo de desindustrialização prematura.

Ademais, a região R4 representa o estágio mais avançado do desenvolvimento industrial. Neste quadrante, o processo de expansão da densidade industrial continua e é acompanhado pela existência de demanda mais do que proporcional por serviços intensivos em conhecimento, ao passo que a participação da indústria “tradicional” declina (ARBACHE, 2012). No quadrante R4, se encontram os países industrializados, que possuem renda elevada. Seguindo a linha argumentativa de Imbs e Wacziarg (2003), este quadrante também é caracterizado por relativo retorno à especialização produtiva. A demanda por serviços avançados cresce, de modo que estes países se caracterizam pela fabricação de serviços conectados a manufaturas de elevada complexidade econômica. Pode-se defender, a partir das conclusões de Rodrik (2014), que os países que migram para os quadrantes R3 e R4 são aqueles que conseguiram desenvolver as capacitações necessárias para o desenvolvimento do setor de serviços intermediários e produtos complexos. O “segredo” da prosperidade de alguns países em detrimento dos demais se encontraria em capacidades organizacionais, de distribuição do conhecimento entre os trabalhadores e de utilização coletivamente de volumes maiores de conhecimento.

É nesse momento que consideramos que eleva-se a necessidade de maior simbiose entre a indústria e o setor de serviços, conforme exposto no inicio desse artigo. A saída do quadrante R2, em direção ao R3 e R4, pressupõe a conquista da eficiência schumpeteriana. A eficiência schumpeteriana supõe que existam, na estrutura produtiva, setores nos quais o progresso técnico e os ganhos de produtividade são especialmente elevados. A definição de eficiência schumpeteriana prescreve um padrão de especialização baseado na exportação de produtos para os quais se identifique um elevado grau de oportunidade, apropriabilidade e cumulatividade tecnológica (DOSI; PAVITT; SOETE, 1993). Stojkoski et al. (2016) mostram que os países que apresentam maior exportação de serviços apresentam índices mais elevados de complexidade. Ademais, seus resultados mostram que as economias cuja pauta de exportação é baseada em serviços têm estrutura produtiva mais complexa e maior potencial de crescimento no longo prazo.

Sociedades complexas, com estruturas produtivas complexas, possuem eficiência schumpeteriana. São países que enfrentaram seus processos de desindustrialização, porém sem estagnação de seus níveis de renda. Tais processos deram-se com elevação da densidade industrial e crescimento do setor de serviços intermediários. Portanto, as leis de Kaldor também são válidas para economias com elevada participação do setor de serviços no produto e no emprego, desde que possuam estruturas produtivas complexas e com eficiência schumpeteriana.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARBACHE, J. Industrial-Space and Industrial Development [Mimeo]. Departamento de Economia, Universidade de Brasília, 2012.

DOSI, G.; PAVITT, K.; SOETE, L. La economía del cambio técnico y el comercio internacional. México: Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, 1993.

GIOVANINI, AdilsonAREND, Marcelo. CONTRIBUTION OF SERVICES TO ECONOMIC GROWTH: KALDOR’S FIFTH LAW?. RAM, Rev. Adm. Mackenzie [online]. 2017, vol.18, n.4, pp.190-213. ISSN 1678-6971.  http://dx.doi.org/10.1590/1678-69712017/administracao.v18n4p190-213.

IMBS, J. e WACZIARG, R. Stages of diversification. American Economic Review, v. 93; n. 1, p. 63-86, 2003.

KALDOR, Nicholas. Causes of the slow rate of economic growth of the United Kingdom: an inaugural lecture. Cambridge University Press, 1966.

RODRIK, Dani. The past, present, and future of economic growth. Challenge, v. 57, n. 3, p. 5-39, 2014.

STOJKOSKI, Viktor; UTKOVSKI, Zoran; KOCAREV, Ljupco. The Impact of Services on Economic Complexity: Service Sophistication as Route for Economic Growth. PloS one, v. 11, n. 8, 2016.

O papel dos serviços na complexidade econômica – parte I

Este é um post de uma série no blog que abordará o papel da complexidade no desenvolvimento econômico. O primeiro texto introduziu o leitor à análise da complexidade por meio de cadeias produtivas, utilizando uma matriz mundial de insumo-produto, a WIOD. Os resultados do exercício proposto no primeiro texto apontaram para a capacidade das atividades industriais de servirem como hubs, de conectar setores, podendo funcionar como catalizadores de outras atividades. Esses resultados, entretanto, compõem apenas uma parte do quebra-cabeças do desenvolvimento econômico. O presente texto encaixará mais uma das inúmeras peças desse quebra-cabeças, respondendo (parcialmente) à seguinte questão: qual é o papel dos serviços na complexidade?

Antes de responder à questão, é importante lembrar que os serviços representam um espectro de atividades que não podem ser tratadas de maneira homogênea. Desta maneira, seguindo a proposta de Arbache, os serviços são divididos em duas categorias: serviços de valor e de custos. Serviços de valor são aqueles que contribuem para a customização e a diferenciação dos produtos, como P&D, design, projetos de engenharia, serviços técnicos especializados, serviços sofisticados de TI, softwares customizados, branding e marketing. Já o segundo grupo de serviços é composto por aqueles que afetam principalmente os custos de produção, como logística e transportes, infraestrutura, viagens e acomodação. As duas categorias de serviços se distinguem não somente pela natureza da atividade, como, também, pela função que elas desempenham na complexidade econômica.

A aplicação da metodologia de Hausmann e Hidalgo aos dados da WIOD permite identificar quais economias e quais atividades são as mais complexas sob a ótica de cadeias produtivas, levando em conta a gama complexa de conexões entre os setores ao longo do processo produtivo e capturando melhor o processo pelo qual se embute valor a produtos.

A WIOD compreende as relações de insumo-produto entre 56 setores de 43 países, totalizando 85% do PIB mundial.  Os setores foram classificados como serviços de valor, serviços de custos, industriais ou primários. Todas as economias da amostra são emergentes ou desenvolvidas. Portanto, os resultados desse exercício devem ser interpretados apenas para o estágio intermediário e o avançado de desenvolvimento.

Resumidamente, países que têm competitividade em atividades complexas tendem, também, a serem complexos. Desta maneira, é importante saber se algum dos quatro tipos de atividade é mais complexo.  A Figura 1 apresenta a complexidade média das atividades, de acordo com o setor de fornecimento e de demanda. O primeiro quadrante dessa figura é o que abarca os setores que possuem complexidade média positiva, tanto como fornecedores quanto como demandantes. Todos os serviços de valor – pintados de amarelo – estão incluídos no primeiro quadrante, indicando que essas atividades contribuem para a complexidade de um país. O segundo grupo de atividades que mais se destaca na Figura 1 são os serviços de custos, em laranja. Já os setores industriais e primários, pintados de azul e vermelho, respectivamente, apresentam, em geral, médias de complexidade negativas. Isto não significa que os setores industriais não tenham função no desenvolvimento de uma economia, algo que já foi parcialmente coberto no primeiro texto da série.

O Índice de Complexidade da Economia (ICE) revela a importância dos serviços de valor nos estágios mais avançados do desenvolvimento econômico de um país. A correlação do índice de serviços de valor* com o ICE e com o PIB per capita é de 0,82 e de 0,73, respectivamente. Os resultados não são surpreendentes, já que o desenvolvimento e a gestão de ideias e tecnologias, atividades tão importantes nas economias mais desenvolvidas, estão incluídas no bojo dos serviços de valor.

A Tabela 1 confronta, para 2014, o ranking de complexidade dos países de Hausmann e Hidalgo ao construído com os dados da WIOD. As diferenças entre esses rankings são bem representadas pelo caso do Japão. A economia japonesa é a mais complexa no exercício tradicional, que utiliza dados de exportação de bens. Entretanto, ao utilizar os dados de insumo-produto, que capturam melhor o papel dos serviços, o Japão cai para a 33ª posição de complexidade. Essa pode ser uma das razões para as quais a economia japonesa esteja encontrando dificuldades para crescer nas últimas décadas.

Os serviços de valor são uma peça-chave no quebra-cabeças do desenvolvimento econômico. Economias que têm competitividade nessas atividades tendem a ser mais complexas. Entretanto, o serviço de valor não é maná que cai do céu. Na verdade, sendo o desenvolvimento econômico resultado de um processo típico de sistemas complexos, é essencial observar que essas atividades necessariamente interagem com outras variáveis para produzir complexidade econômica.

Nesse âmbito, qual seria o papel dos serviços de custos para o desenvolvimento econômico? E o relacionamento entre indústria e serviços na trajetória do desenvolvimento econômico? A construção de um espaço-produto com dados de insumo-produto será vital para responder a estas questões, que serão elucidadas nos próximos posts sobre o tema.

*o índice de serviços de valor é a parcela dessas atividades no consumo intermediário

Fonte: Elaboração própria, WIOD. Foram calculadas as médias das complexidades da atividade de acordo com o setor de fornecimento e de demanda. A figura relaciona as complexidades médias por fornecimento e demanda, diferenciando o tipo de setor por cor. Em amarelo, estão os serviços de valor. Em laranja e azul, estão os serviços de custo e os setores industriais, respectivamente. Em vermelho, os setores primários.

Fonte: Elaboração própria, WIOD, Hausmann e Hidalgo (2014). A Tabela lista as posições das economias nos
rankings de complexidade. O Ranking WIOD é o proposto neste trabalho. Ranking HH segue a classificação de Hausmann e
Hidalgo (2014), com dados de exportação de bens. Não há disponibilidade de dados para Taiwan no ranking de Hausmann e Hidalgo.

 

Os serviços podem substituir as manufaturas como mecanismo de desenvolvimento?

A indústria manufatureira cumpriu papel especial como veículo para a criação de empregos, aumentos de produtividade e crescimento nas economias não avançadas a partir de meados do século passado. Primeiro na América Latina, seguida pela Ásia e pela renovação dos sistemas de produção na Europa Oriental, a expansão dos níveis de produção manufatureira serviu como canal para transferir mão-de-obra de ocupações de baixa produtividade para atividades usando tecnologias mais modernas provenientes do exterior.

A facilidade de transferência através das fronteiras adquirida pelas tecnologias de fabricação, particularmente de segmentos intensivos em mão-de-obra na era recente de fragmentação da produção em cadeias de valor, tornou possível tal processo. Uma vez determinadas condições locais mínimas estivessem presentes, a convergência em direção aos níveis de produtividade nos países da fronteira na origem se dava relativamente mais rápida do que em outros setores.

Duas questões estão agora lançando dúvidas sobre as possibilidades de replicar ou aprofundar esse processo. Primeiro, a mesma natureza “descomprometida” da produção manufatureira também leva a sua alta sensibilidade em relação a pequenas mudanças nos fatores de competitividade, como custos trabalhistas, taxas reais de câmbio, ambiente de negócios, infraestrutura e outros. Ao longo do tempo, isso levou a ondas de relocalização e concentração espacial em países específicos do mundo em desenvolvimento para cada uma das camadas de sofisticação nas cadeias de valor. O gráfico 1 descreve a grande variação de experiências com o emprego e o valor agregado bruto na indústria entre os mercados emergentes.

Em segundo lugar, as mudanças tecnológicas atualmente em curso tendem a reduzir o peso dos custos do trabalho e ameaçam reverter a motivação inicial para a transferência de etapas da fabricação para economias não avançadas (Arbache, 2016) (Canuto, 2017). A experiência histórica recente de uso das exportações de manufaturados como plataforma para sustentar elevado ritmo de crescimento se tornará mais difícil de expandir, sustentar ou iniciar. No mínimo, pode-se dizer que requisitos em termos de infraestrutura, ambiente de negócios, disponibilidade local de trabalhadores qualificados e outros fatores de competitividade estão aumentando.

As atividades baseadas em recursos naturais oferecem oportunidades de atualização tecnológica, aumentos de produtividade, exportações e – volátil, mas positivo – crescimento econômico, mas não a criação maciça de empregos como na atividade fabril. Segue-se a questão sobre a possibilidade de serviços substituírem a manufatura em termos de quantidade e qualidade de criação de emprego nos países em desenvolvimento. As mudanças tecnológicas em curso levariam a uma maior transferibilidade das tecnologias de produção e comercialização dos serviços? Em que medida ter bases locais de produção manufatureira ainda importaria como condição prévia para a produção de serviços? Essas são algumas das questões abordadas por Hallward-Driemeier e Nayyar (2017).

Hallward-Driemeier e Nayyar chamam a atenção para o fato de que avanços nas tecnologias de informação e comunicação (TIC) tornaram alguns serviços – financeiros, de telecomunicações e de negócios – cada vez mais comercializáveis através das fronteiras. Esse processo viabilizou a difusão da tecnologia e a possibilidade de exportar em adição ao atendimento da demanda local.

Também destacam o alto potencial de economias de escala em serviços altamente impactados pelas TIC, especialmente porque os custos marginais incorridos pela adição de unidades à produção são muito baixos. A intensidade de P&D aumentou, podendo-se apontar como exemplo o caso das despesas com serviços empresariais, onde os gastos aumentaram de 6,7% em 1990-95 para níveis próximos de 17% em 2005-10.

Por um lado, como na atividade fabril, as oportunidades de aprendizado tecnológico local e de aumento da produtividade nas economias em desenvolvimento podem ser criadas pelo aumento das possibilidades de transferência de tecnologia e de comerciabilidade internacional. Por outro lado, ao contrário da fabricação intensiva em mão-de-obra, tais serviços não devem servir como fonte abundante de empregos para mão-de-obra não qualificada.

Os serviços de baixo custo que permanecem usuários de mão-de-obra não qualificada são menos propensos a criar oportunidades de ganhos de produtividade. Com exceções – os autores mencionam serviços de construção e turismo – há menos escopo no setor de serviços para produzir simultaneamente altos aumentos de produtividade e criação de emprego para mão-de-obra não qualificada, pelo menos em comparação com o desenvolvimento liderado por produção manufatureira nas décadas anteriores.

E quanto à conexão entre produção manufatureira e serviços? Além dos aumentos da demanda por serviços autônomos com alta elasticidade renda, quais são as perspectivas para a demanda por serviços acompanhando a atual transformação da manufatura? Em que medida a oferta e a demanda desses serviços relacionados à fabricação se beneficiam da presença local de bases manufatureiras?

Hallward-Driemeier e Nayyar chamam a atenção para a crescente “servicização” da fabricação, uma vez que a última está cada vez mais “incorporando” e “embutindo” serviços, enquanto a participação da fabricação de componentes e a montagem final no valor adicionado diminuem (Gráfico 2)

A relevância dos serviços incorporados em produtos manufaturados aumentou como insumos (design, marketing, custos de distribuição, etc.) ou facilitadores de comércio (serviços de logística ou plataformas de comércio eletrônico). Além disso, os serviços também estão crescentemente embutidos, ou seja, fornecidos mediante ou adicionados a produtos manufaturados. Servem de ilustração os aplicativos para dispositivos móveis e soluções de software para fábricas “inteligentes”. Hallward-Driemeier e Nayyar concluem (p.162):

“Embora uma gama de serviços “autônomos” e alguns serviços embutidos possa oferecer oportunidades de crescimento sem um núcleo de fabricação, a servicificação do setor manufatureiro ressalta a crescente interdependência entre os dois setores. Dada essa profunda interdependência, as políticas que melhoram a produtividade em diferentes partes da cadeia de valor resultarão no todo ser maior do que a soma de suas partes. A agenda, portanto, deve ser a de países se prepararem para usar sinergias em todos os setores de modo a participar de toda a cadeia de valor de um produto, além de explorar oportunidades individuais para além da produção manufatureira.”

Em suma, os desafios para alcançar simultaneamente o emprego de trabalhadores não qualificados e aumentos substanciais de produtividade estão se tornando mais altos. Além disso, os fatores horizontais de produtividade e competitividade – incluindo a acumulação local de capacidades, baixos custos de transação, melhoria da infraestrutura, etc. – que foram cruciais em todas as experiências de desenvolvimento industrial amplo e profundo estão agora estendidos aos serviços. Há mais complementaridade do que a substitutibilidade entre fatores de produtividade e competitividade que afetam as manufaturas e os serviços. Não há alternativa senão melhorar o suporte horizontal na economia local se um país em desenvolvimento quiser desfrutar de qualquer um destes como motores de crescimento.

Otaviano Canuto é diretor-executivo no Banco Mundial, para Brasil, Colômbia, Equador, Filipinas, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago. Foi vice-presidente no Banco Mundial e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e diretor-executivo no Fundo Monetário Internacional (FMI). As opiniões expressas neste artigo são suas.

Live: Economia digital e seus impactos para o Brasil

No próximo sábado, 25/11, às 15h, a equipe do Blog Economia de Serviços fará uma Live para discutir como a economia digital pode impactar a economia brasileira. A live vai acontecer aqui no site do Blog e na página do Economia de Serviços no Facebook.

Confirme a sua presença na página do evento!

Com as participações do Professor Jorge Arbache, Secretário de Assuntos Internacionais (SEAIN) do Ministério do Planejamento e Professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB); do economista Rafael Moreira, coordenador do Núcleo de Novos Negócios Digitais do Sebrae Nacional; e da economista Vanessa Santos, doutoranda em economia pela UnB e assessora da SEAIN, serão debatidas questões como:

  • Por que a economia digital é a nova face da globalização?
  • Como ela impacta modelos de negócios e padrões de consumo?
  • Como ela pode impactar a renda e o emprego?
  • Qual o impacto dessas mudanças para o Brasil?

Contamos com a participação de vocês!

A Economia Mundial como Rede Complexa

Esse é o primeiro de uma série de textos no blog que abordarão o papel da complexidade no desenvolvimento econômico. Complexidade é aquilo que se observa em um sistema composto por um grande número de agentes inter-relacionados, sem controle central, cujo comportamento global emergente não pode ser explicado ou previsto pela soma do comportamento individual dos agentes. O estudo da complexidade, bem como do mapeamento das interações em um sistema complexo, ou seja, das redes complexas, não é originário das ciências sociais. Dentre as aplicações de origem mais conhecidas, estão, por exemplo, pesquisas sobre a relação entre genes, proteínas e metabólitos para o compreender o funcionamento das células e pesquisas sobre as conexões neurológicas para entender as funções cerebrais. Nas últimas décadas, entretanto, a aplicação das redes complexas ganhou tração nas ciências sociais, sendo identificadas em cidades, na internet, no mercado financeiro, no comércio internacional, entre outros.

Aplicar conceitos de outros campos de estudo não é novidade para os economistas há um bocado de tempo: os pais do marginalismo, Walras e Jevons, revolucionaram nosso campo de estudo ao importarem da Física Mecânica as noções de equilíbrio estável e otimização restrita. Utilizando o instrumental de ciência de redes e complexidade, provavelmente o trabalho que até hoje obteve maior impacto na Economia é o de Hausmann e Hidalgo. Ao observar dados de exportação de bens, esses autores concluíram que o desenvolvimento econômico de um país está intimamente relacionado com o que ele produz. Países mais desenvolvidos seriam aqueles que produzem bens mais complexos, geralmente industriais, como máquinas e computadores, enquanto os menos desenvolvidos seriam especializados em produzir produtos primários, como soja.

Os primeiros passos dados para compreender a natureza do desenvolvimento econômico no âmbito da complexidade fizeram renascer o debate sobre o papel da indústria na trajetória virtuosa de acumulação de riqueza pelos países. Nesse primeiro artigo sobre o tema, proponho que alterar a base de dados do trabalho seminal de Hausmann e Hidalgo pode contribuir para esse debate, lançando algumas conclusões iniciais. Apesar do pioneirismo brilhante em se utilizar exportações de bens para observar o desenvolvimento de um país, esses dados ignoram as relações econômicas desempenhadas domesticamente, bem como a importância dos serviços para a geração de valor econômico, que representam quase 70% do produção mundial. Ademais, atrelar a geração de valor a bens finais também pode ser inadequado, uma vez que está cada vez mais relacionada ao conceito de atividades. Nesse sentido, observar a cadeia produtiva capturaria melhor o processo pelo qual se embute valor a produtos, levando em conta a gama complexa de conexões entre os setores ao longo do processo produtivo. A cadeia produtiva do iPhone, por exemplo, envolve pesquisa e desenvolvimento, design, desenvolvimento de plataforma e de sistema operacional, marketing, produção de semicondutores e de telas de LCD, montagem do produto e diversas outras atividades.

Para operacionalizar a análise de complexidade por meio de cadeias produtivas, utilizo uma matriz mundial de insumo-produto, a WIOD. Essa base de dados compreende as relações entre 56 setores de 43 países, totalizando 85% do PIB mundial. A WIOD apresenta a relação econômica que cada setor de cada país tem com todos os outros setores de todos os países. Para os 2408 “agentes” – setores produtivos – da economia mundial, há quase 6 milhões de conexões que compõem essa malha econômica. Após tratamento de dados*, restaram cerca de 30.000 conexões, com um número médio de conexões por setor-país igual a 18. Os dados da economia mundial de 2014 foram plotados no aplicativo de redes Gephi, via algoritmo de visualização OpenOrd. Veja o resultado abaixo.

Cada nó representa um setor de um país. O tamanho do nó é a soma das suas conexões, ou seja, tanto do que foi oferecido como do que foi demandado de insumos de outros setores. A cor de cada nó segue um algoritmo de detecção de comunidades de acordo com as relações que cada nó tem com seus pares. Como é de se esperar, a cadeia produtiva se organiza de maneira a possuir maior relacionamento entre setores do mesmo país. Dessa maneira, mesmo sem forçar tal resultado, há a formação de agrupamentos de mesma cor, que representam, ultimamente, um país. Os setores brasileiros – os nós verdes ao lado da China – possuem natureza marginal na cadeia global de valor. Estão pouco conectados a setores externos e, quando conectados, a poucos países. Curiosamente, o país mais conectado aos setores brasileiros é a China, não os Estados Unidos.

Note, também, a posição central dos setores estadunidenses na rede. Isso ocorre, em boa parte, devido à grande importância dos setores aos quais os setores americanos estão conectados. A eigencentralidade, uma das diversas medidas de importância de cada nó na rede, captura esse efeito “diga-me com quem andas que eu te direi quem és”. Já a centralidade de intermediação mede a capacidade de um nó de transmitir informação para toda a rede, como um broker. Se para “caminhar” entre dois nós quaisquer da rede, deve-se passar frequentemente por um nó específico, esse nó possuirá grande centralidade de intermediação.

De acordo com os resultados da Tabela 1 abaixo, os nós que possuem as maiores estatísticas de centralidade na rede são os setores industriais. Dessa maneira, a participação desses setores nas cadeias domésticas e globais de valor não somente revela a capacidade de contribuir diretamente à geração de valor, já que são os maiores nós da rede, como também a capacidade de conectar diversos setores ao longo do processo de produção, já que são os nós mais centrais da rede. O mais importante, certamente, é essa capacidade de servir como hubs, de conectar setores, pois ela amplifica o papel indutor que as atividades industriais possuem, similar à ideia de backward e forward linkages, proposta por Hirschman décadas atrás. Antes de fazer qualquer análise sobre a complexidade econômica das atividades industriais, é importante ressaltar, portanto, que essas atividades demandam e são demandadas por soluções que muitas vezes transbordam o seu escopo, gerando inovação e ganhos econômicos difusos. Não à toa, apesar de representar 15% do valor adicionado do PIB da União Europeia em 2015, a indústria correspondeu por 64% dos investimentos totais em P&D.

O estudo da economia mundial como rede complexa pode auxiliar a compreender a função que atividades econômicas desempenham nesse grande emaranhado produtivo. Estatísticas de redes apontam a importância das atividades industriais como conectores econômicos, podendo funcionar como catalizadores de outras atividades. Para escapar da armadilha da renda média e garantir o desenvolvimento econômico, seria suficiente, portanto, apenas industrializar um país? E qual seria o papel dos serviços? E o relacionamento entre indústria e serviços na trajetória do desenvolvimento econômico? Internalizar o instrumental de redes complexas parece ser importante para chegarmos um pouco mais perto de responder a essas perguntas. Entretanto, só conseguiremos usufruir eficientemente desse novo instrumental caso consigamos debater o problema de maneira agnóstica. Quem sabe, assim, para a ciência econômica, não se concretize a previsão de Stephen Hawking feita em 2000: I think the next century will be the century of complexity.

*O tratamento de dados consistiu em agrupar alguns setores para viabilizar a comparação entre setores de países e a aplicação de um filtro de US$200 milhões para facilitar a visualização da rede.

Serviços e riqueza

Como os serviços contribuem para a geração de riquezas? As respostas são, naturalmente, muitas e dependem do país e do seu estágio de desenvolvimento, da sua demografia e estrutura econômica, das condições internacionais, dentre outros aspectos. Mas uma das respostas está associada à relação entre os serviços e os demais setores da economia.

Evidências empíricas mostram que não é o tamanho do setor de serviços na economia que mais importa para a geração de riquezas, mas sim a parcela dos serviços que são voltados para a produção (e não para consumo). No Brasil, o setor de serviços responde por cerca de 74% do PIB, mas os serviços técnicos comerciais profissionais (PBS), que são insumos pré- e pós-produção, respondem por 18% do PIB. Nos Estados Unidos, os serviços representam 82% do PIB e o PBS por 31%, portanto, proporção mais que o dobro da brasileira.

A diferença entre Brasil e Estados Unidos não é casual. Afinal, o padrão e a quantidade de serviços produtivos são preditores da estrutura de produção e da complexidade do país e, assim, do estágio de desenvolvimento econômico. De fato, enquanto a economia brasileira é concentrada em serviços de consumo, bens manufaturados de baixo valor adicionado e commodities, a americana é concentrada na produção de serviços de média e alta sofisticação, manufaturas de alto valor adicionado e bens de capitais.

Conforme este blog tem destacado, os serviços estão se tornando componentes cada vez mais importantes – e determinantes, até – da produção da manufatura, agricultura e até mesmo da mineração. De serviços de logística, de manutenção de máquinas e equipamentos e financeiros a serviços de P&D, TI e design, as evidências empíricas mostram que os serviços se tornaram o componente com maior participação no valor adicionado. No Brasil, os serviços respondem por 64% do valor adicionado da manufatura. Nos Estados Unidos, passam dos 75%. No caso do iPhone, por exemplo, a participação dos serviços  é largamente predominante no valor adicionado.

Se os serviços correspondem a parcela tão elevada do valor adicionado, então a capacidade de desenvolver e gerenciar serviços produtivos é condição determinante para se ter uma economia competitiva. Há que se esperar, desta forma, relação positiva entre tamanho do PBS e variáveis como densidade industrial.

O gráfico 1 abaixo mostra evidências nesta direção. Observam-se, grosso modo, dois grupos de países. De um lado (parte alta e mais à direita), estão países de alta densidade industrial e alta renda per capita e; de outro lado estão países de baixa densidade industrial e de renda per capita relativamente mais baixa (parte de baixo e mais à esquerda).

Uma economia tão avançada e dinâmica com a alemã, por exemplo, cuja densidade industrial passa dos US$ 11 mil, requer muita capacidade de desenvolvimento de softwares, serviços de gestão de redes de distribuição e de cadeias de produção globais, logística avançada e tantos outros serviços críticos para se agregar valor à sua sofisticada manufatura. Não por acaso, a participação do PBS no PIB é de 28%. Já Turquia, Rússia e México têm densidade industrial de cerca de US$ 1800 e PBS no intervalo de 11% a 14%.

Para além do tamanho do PBS e da sua relação com a densidade industrial está a composição do PBS. Este blog classifica o PBS em dois grupos: serviços de custos e serviços de agregação de valor e diferenciação de produto. O primeiro grupo é composto, grosso modo, por serviços convencionais de cadeias de valor, como logística, manutenção de equipamentos, serviços de TI, financeiros e de telecomunicações básicos e tantos outros serviços que estão nas planilhas de custos das empresas. Já os serviços de valor incluem P&D, design, marketing, distribuição, marcas, instrumentos financeiros sofisticados, softwares customizados dentre outros que diferenciam o produto e lhes agregam valor.

Evidências empíricas mostram que a parcela de serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos são maiores nos países de alta densidade industrial. E mostram,  também, que aqueles serviços estão por detrás do crescimento da produtividade, em contraposição aos serviços de custos, que têm pouco ou nenhum impacto nessa variável.

Em resposta à pergunta do início, os serviços contribuem para a geração de riquezas majoritariamente através do PBS e, mais especificamente, dos serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos. Logo, para se ter indústria, agricultura ou mineração competitivos é também preciso que o país seja capaz de disponibilizar serviços modernos, sofisticados e competitivos.

Gráfico 1 – Densidade industrial e serviços técnicos comerciais e profissionais (PBS)

Nota: fontes primárias dos dados: densidade industrial – World Development Indicators; PBS – WIOD. Densidade industrial é expressa em dólar corrente. PBS é expresso em parcela do PIB (0-1). Densidade industrial refere-se ao valor adicionado da manufatura per capita (dividido pela população total do país). PBS (professional business services).

O Milagre Econômico da E-stônia

O ano é 1991.  Gorbachev anuncia a dissolução da União Soviética, reconhecendo a independência de diversas repúblicas que pertenciam à antiga União. O anúncio foi recebido festivamente, principalmente pelo menor desses estados, a Estônia, que usufruía de independência pela segunda vez na sua história; a primeira durara apenas vinte e dois anos, no período entre-guerras. O longo histórico de ocupação territorial obrigava os estonianos a se fortalecerem politicamente e economicamente para se afirmarem como estado independente

A liberdade, entretanto, não garantiu prosperidade. Pelo contrário, a quebra da estrutura econômica e das conexões comerciais com sua antiga matriz gerou dificuldades imediatas. Em 1992, o pequeno estado báltico sofreu uma queda de 30% na produção industrial e de 45% nos salários reais, além de apresentar taxa de inflação que superava 1000%. A economia não conseguia se estabilizar, ocasionando um declínio acumulado de 36% no PIB estoniano entre 1990 e 1994.

No meio do caos, há sempre uma oportunidade. O corte dos laços com a antiga estrutura econômica e política produziu grandes dificuldades para a Estônia, mas também configurou uma janela de oportunidade para que o país se reconstruísse a partir do zero. As reformas de estabilização macroeconômica aplicadas na década de 1990 abriram o caminho para políticas de inovação, de abertura econômica, de inclusão digital e de governança.

O processo de inclusão digital merece especial atenção. Em 2000, a Estônia se tornou o primeiro país a declarar o acesso à Internet um direito humano básico, mesmo ano em que ratificou lei reconhecendo assinaturas digitais. Os estonianos também foram os primeiros a permitir votação on-line em eleições, em 2005. Já em 2012, o sistema escolar do país começou a ensinar programação aos seus alunos. Reivindica-se que 99% dos serviços públicos migraram para plataformas digitais, funcionando 24 horas por dia.

A confluência de políticas favoráveis à digitalização e à abertura de negócios rendeu resultados, principalmente ao setor de serviços. Inúmeras startups de tecnologia emergiram da capital Tallinn nas  décadas recentes, dentre eles os famosos Skype e Kazaa. Robôs que realizam entregas (Starship Technologies) e plataformas que angariam capital para startups utilizando blockchain (FunderBeam) estão entre as novas soluções que essas empresas oferecem.

Pode-se afirmar que esse pequeno estado báltico, hoje pertencente à Zona do Euro, escapou da armadilha da renda média. O processo de desindustrialização ocorrido desde a independência foi acompanhado da ascensão de uma ampla gama de serviços profissionais e comerciais (PBS), como exemplificado acima, e, por conseguinte, do crescimento da densidade industrial. Lastreada em conexões industriais, a parcela de PBS no PIB somou 25% em 2014, valor similar ao da Dinamarca. As Figuras 1 e 2 explicitam a trajetória que o país tomou no espaço-indústria (clique aqui para saber mais sobre esse conceito), entre 2000 e 2014. O México, país que possuía densidade industrial similar à Estônia no começo desse período, percorreu outro caminho.

Atualmente, a Estônia tem PIB (PPP) per capita superior a US$27.000 e é a mais próspera das ex-repúblicas soviéticas. O país aproveitou a janela de oportunidade que surgiu e garantiu a sua passagem para o desenvolvimento.

Em momento de crise e discussão de políticas públicas no Brasil, pode-se aprender muito com o experimento estoniano, com a ressalva de que desenvolvimento não se faz como receita de cozinha. Talvez não tenhamos os ingredientes para reproduzir a legítima pirukas estoniana, mas nada impede que as nossas ideias e reflexões possam ser inspiradas pelos eestlased.

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A Armadilha da Renda Média no Espaço-Indústria

A armadilha da renda média é um fenômeno que foi cunhado na literatura econômica em meados da década de 2000. Inicialmente, o termo foi utilizado para definir o processo comumente observado de diminuição do crescimento de uma economia quando esta se desloca da renda baixa para a média. Nesse processo, os fatores que geralmente impulsionam o crescimento – mão-de-obra barata, catch-up tecnológico e realocação estrutural da agricultura para a manufatura – perdem momentum, ao longo do desenvolvimento econômico, forçando o país a estabelecer novas fontes de crescimento quando a economia atinge a renda média.

Desde que fora sugerido, o termo ganhou tração no mundo acadêmico e na imprensa internacional, porém sem haver consenso sobre sua validade. O apelo e a controvérsia desse fenômeno devem-se à ausência de uma teoria que satisfatoriamente aponte políticas de desenvolvimento para economias de renda média. As teorias de crescimento endógeno são adequadas apenas para países de renda alta – que somam um bilhão de pessoas – e o modelo de Solow ainda é a base para entender o problema do crescimento nos países de baixa renda – também com um bilhão de pessoas. Nenhuma dessas teorias é satisfatória, entretanto, para os cinco bilhões remanescentes, que vivem em economias de renda média. Ironicamente, como os próprios precursores do termo afirmam, a real armadilha do tema seria a ignorância sobre a natureza do crescimento econômico na maior parte do globo.

Pensar a armadilha da renda média sob a ótica do espaço-indústria pode lançar luz sobre a questão.

A variável de interesse do espaço-indústria é a densidade industrial, ou seja, o valor adicionado da indústria per capita. Essa variável captura a capacidade de uma sociedade de investir em capital físico e humano, garantir as necessidades de infraestrutura e P&D, reformar instituições e gerenciar esses recursos para fomentar o desenvolvimento industrial, espelhando, enfim, o nível de desenvolvimento de uma economia.

Os países iniciam suas jornadas de desenvolvimento industrial na região R1 da Figura 1, abaixo. Nessa região, a economia ainda é essencialmente rural, com baixas taxas de urbanização e alta participação da agricultura no PIB. À medida que o fenômeno de urbanização ocorre, cresce a demanda por produtos industriais básicos. A região R2 caracteriza, portanto, a fase de desenvolvimento em que a indústria de base, manufaturas de baixo valor adicionado e serviços tradicionais substituem a agricultura como principal vetor de produção da economia.

Ocorre que a expansão das indústrias básicas e leves é ditada por retornos decrescentes provenientes do processo de crescimento baseado em acumulação de capital. Ao mesmo tempo em que esse processo possibilita a transformação da economia de renda baixa para a média, sua contribuição marginal para o PIB esvai-se ao longo do processo de expansão industrial. Atinge-se um ponto de inflexão no espaço-indústria no qual o simples aumento da parcela da indústria no PIB não é capaz de ampliar a densidade industrial. Nesse momento, é comum registrar economias que começam processo de desindustrialização.

Para seguir se desenvolvendo, o país deve diversificar-se em favor de bens e serviços mais sofisticados. Ao invés de majoritariamente transformar insumos, a indústria deve passar a demandar serviços logísticos, financeiros, projetos de engenharia, marketing, e diversas outras atividades de apoio. A armadilha da renda média recai justamente na dificuldade em alterar a função da indústria na economia, que deverá se transformar não só no principal conector entre os setores econômicos, mas também em catalizador de serviços de alto valor adicionado.

Se a economia obtiver sucesso ao produzir essa nova dinâmica do desenvolvimento industrial, a armadilha da renda média será superada, alcançando-se as regiões R3-R4. Nesse momento, a indústria ainda desempenha função central na economia, mas o setor deixa de ser o principal gerador direto de valor adicionado, dando lugar aos serviços profissionais e comerciais. É comum haver redução da participação relativa da indústria no PIB, apesar do rápido crescimento da densidade industrial. Consolida-se uma relação simbiótica entre indústria e serviços, típica de modelos de crescimento endógeno, gerando bens que não seriam propriamente categorizados em nenhum desses setores.

Como mostra a Figura 2, Brasil, China e Estados Unidos são casos representativos das regiões de desenvolvimento industrial mencionadas acima. Nos últimos anos (2000-2014), nossa economia não superou a armadilha da renda média e está retornando da R2 para a R1. A indústria brasileira não conseguiu abraçar a função de catalizadora de serviços complexos no seu processo de desindustrialização, minando o crescimento da densidade industrial. Resta-nos imaginar maneiras de realizar um leapfrogging em uma próxima janela de oportunidade.

A potência asiática, situada na R2, aumentou a importância dos serviços profissionais e comerciais na sua economia, com ligeira desindustrialização, o que permitiu aumento vertiginoso da densidade. Entretanto, a China ainda terá de superar muitos desafios para completar seu processo de desenvolvimento. Os Estados Unidos seguem na R4 e são o melhor exemplo da relação simbiótica entre indústria e serviços, liderados por suas superestrelas. O país possui as sete empresas mais valiosas do mundo, sendo cinco delas pertencentes ao setor tecnológico: Apple, Google, Microsoft, Facebook e Amazon.

O desafio do desenvolvimento para economias de renda média não é trivial. Faltam a nós, economistas, ferramentas para compreender melhor a natureza do crescimento econômico nesse estágio de desenvolvimento. Refletir esse fenômeno sob a ótica do espaço-indústria não representará uma panaceia, mas poderá esclarecer alguns pontos que escapam à vista e, quem sabe, impedir que essa armadilha seja fatal.

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