Economia de Serviços

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O Boeing Dreamliner e os riscos da descentralização da produção

A partir da década de 80, empresas multinacionais, com o objetivo de cortar custos e ganhar mais eficiência, passaram a decentralizar fortemente sua produção.[1] Uma empresa como a Nike, por exemplo, passou a concentrar as suas atividades de pesquisa, design, marketing, etc, na sua sede, nos Estados Unidos, enquanto que a fabricação e montagem dos produtos passaram a ser feitas em países em desenvolvimento, onde custos como os trabalhistas e tributários costumam ser mais atrativos.

A ideia por trás desse movimento era, além de economizar custos, obter ganhos com a especialização. Se no começo do século XX uma empresa como a Ford produzia desde a borracha dos pneus até a montagem final dos automóveis, no fim do século XX as empresas perceberam que algumas partes do processo de produção poderiam ser terceirizadas para empresas mais especializadas na parte específica do processo, seja ela a produção dos pneus ou a assessoria legal.

Dado esse contexto e o ambiente extremamente competitivo do mercado, a Boeing resolveu aplicar ao extremo esse conceito de descentralização da produção. Nascia a experiência produtiva do Boeing 787 Dreamliner. Segundo a empresa, o Dreamliner seria duplamente revolucionário: seria o primeiro avião comercial feito majoritariamente de fibra de carbono, o que o tornaria consideravelmente mais leve e econômico; e seria produzido de maneira “parceirizada”, em um modelo no qual os principais elos da cadeia de produção seriam “sócios” da Boeing, e não meros fornecedores.

Com o intuito de reduzir seu risco e tirar proveito de empresas especializadas, a Boeing decidiu fabricar o avião utilizando um “modelo de parceria global”, no qual algo entre 70% e 80% da produção seria terceirizada para empresas de ponta em diversos países[2] (TANG & ZIMMERMAN, 2009; MCKINSEY, 2012).

Em processos produtivos anteriores, a Boeing fazia todo o detalhamento das partes da aeronave, fabricava algumas delas internamente e encomendava outras dos seus fornecedores. Estes produziam-nas exatamente como desenhado pela Boeing que, por fim, montava o avião na sua fábrica. O Dreamliner, por sua vez, foi desenhado de maneira modular. Nesse sistema, grandes partes poderiam ser produzidas de forma independente e depois acopladas à aeronave (KOTHA & SRIKANTH, 2013).

Nesse modelo, a Boeing se limitava a determinar índices de performance que as partes deveriam atingir e os “parceiros” seriam responsáveis por todo o processo de pesquisa e desenvolvimento, financiamento, detalhamento do design, compra de matérias-primas e demais ferramentas necessárias para atingir a performance desejada pela Boeing. Esses parceiros estratégicos – cerca de 50 – gerenciariam suas próprias cadeias de fornecedores. Isso facilitaria e aceleraria a produção, pois os parceiros trabalhariam simultaneamente, e o processo de montagem teria seu tempo reduzido de 30 para 3 dias (TANG & ZIMMERMAN, 2009).

Figura 1 – Principais parceiros da Boeing na fabricação do Dreamliner, por país da empresa e parte da aeronave.

Fonte: Nolan e Kotha (2005), com base em dados da Boeing

Desde o início, o Dreamliner foi um sucesso de encomendas. Porém, no processo de produção, tamanha desverticalização começou a causar problemas. Atrasos e problemas diversos com os parceiros responsáveis pelos módulos da aeronave e seus fornecedores postergaram o lançamento do Dreamliner diversas vezes. O avião, que deveria fazer seu primeiro voo em agosto de 2007, acabou por fazê-lo somente em outubro de 2011 (FERREIRA, 2012).

Os atrasos ocorreram por motivos diversos: a empresa que produzia um software não conseguia programá-lo corretamente para o sistema de controle de voo produzido por outra companhia; algumas das partes, feitas por empresas distintas, não se encaixavam corretamente umas nas outras; alguns dos parceiros não conseguiam lidar com a maior independência e tiveram problemas com suas próprias cadeias de fornecedores. Para acelerar o processo, a Boeing acabou por comprar alguns desses parceiros e a acompanhar mais de perto os demais membros da cadeia, efetivamente “reverticalizando” parte da produção (FERREIRA, 2012; KOTHA & SRIKANTH, 2013).

Como se não bastassem os diversos problemas na produção, após ser lançado, o Dreamliner apresentou sérios defeitos, como vazamentos de combustível, incêndios e problemas diversos com baterias, turbinas, fuselagem, sistema elétrico e trem de pouso. Com tantos problemas, o Dreamliner ficou proibido de voar em todo o mundo por três meses em 2013. Esta foi a primeira vez desde 1979 que a FAA (órgão americano que regula e fiscaliza o mercado aéreo no país) proibiu um avião comercial de voar em todo o território norte-americano.

A bateria, principal fonte de problemas pós-lançamento e causa central da proibição de voo em 2013, foi encomendada pela Boeing a um de seus parceiros, a empresa francesa Thales. Esta, por sua vez, terceirizou o desenvolvimento e a produção da bateria para a empresa japonesa GS Yuasa. Já o carregador da bateria foi encomendado pela Thales à empresa americana Securaplane. Por fim, o sistema que monitora a bateria foi fabricado pela empresa japonesa Kanto. O distanciamento e o pouco controle da Boeing no processo de produção da bateria pode ter contribuído para as falhas.

No fundo, a história do Dreamliner é um exemplo dos riscos da descentralização excessiva. Por mais que o modelo totalmente verticalizado seja menos factível, eficiente ou desejável, o modelo excessivamente descentralizado também parece apresentar problemas, em especial no que concerne a dificuldades de coordenação.

Além disso, o Dreamliner é um exemplo claro de como a performance de uma empresa é afetada e, em certa medida, depende da performance de seus fornecedores e demais empresas com as quais ela interage. Assim, por mais eficiente e produtiva que seja uma empresa internamente, ela sempre dependerá parcialmente da performance de outras empresas.[3]

Não por acaso, algumas grandes multinacionais têm revisto seu modelo de produção nos últimos anos. A GE, por exemplo, retornou algumas linhas de produção da China para os EUA (muito antes de Trump ser eleito) por perceber que manter seus centros de pesquisa próximos à linha de produção é vantajoso para observar mais claramente erros, possibilidades de melhoria e adaptação às mudanças nas preferências do mercado. Além disso, em um mundo em que a diferenciação tem se tornado cada vez mais relevante para a competitividade, custos trabalhistas e tributários, por exemplo, estão perdendo importância.

Esse caso é importante para o Brasil, primeiramente porque aqui, também, a descentralização da produção é elevada e cresce e o aumento do consumo de serviços no processo de produção da indústria é parcialmente explicado por isto. Mas o caso é especialmente relevante porque a economia brasileira é desigual em diversos aspectos, inclusive na performance das empresas (MOREIRA, 2014; PORCILE & CATELA, 2012). Segundo dados da CEPAL & OCDE (2012), em média, no Brasil, microempresas têm produtividade do trabalho 10 vezes menor do que a de grandes empresas.

Com tamanha heterogeneidade de produtividade, mesmo as empresas de melhor performance podem estar sendo negativamente afetadas pelos elos menos produtivos de suas cadeias. Em suma, o aumento da produtividade brasileira passará, cada vez mais, por enfrentar a questão da heterogeneidade de performance de nossas empresas.

 

[1] Este post é baseado em um capítulo da dissertação do autor, “Descentralização da produção e produtividade no Brasil” (MOREIRA, 2015). An English version of this post can be found here.

[2] O nível de terceirização da produção dos aviões Boeing 737, modelo anterior ao Dreamliner, variava entre 35% e 55% (TANG & ZIMMERMAN, 2009).

[3] Essa hipótese é explorada por Moreira (2015).

 

Referências bibliográficas

CEPAL; OCDE. Perspectivas económicas de América Latina 2013 – Políticas de PYMES para el cambio estrutural. Santiago de Chile, 2012.

FERREIRA, M. J. B. Competências empresariais e políticas governamentais de apoio ao desenvolvimento aeroespacial: caso dos EUA. ABDI. Campinas-SP, 2012.

KOTHA, S.; SRIKANTH, K. Managing a global partnership model: lessons from the Boeing 787 ‘Dreamliner’ Program. Global Strategy Journal, vol. 3 (1), p. 41-66, fev. 2013.

MCKINSEY. Manufacturing the future: the next era of growth and innovation. Nov, 2012.

MOREIRA, R. F. C. A disparidade da produtividade das empresas brasileiras: possíveis determinantes, seu impacto nas cadeias de valor e na economia. In: SANTOS, C. A. (Org.). Pequenos Negócios: Desafios e Perspectivas – Encadeamento Produtivo. vol. 6, p. 52-67. Sebrae. Brasília-DF, 2014.

MOREIRA, R.F.C. Descentralização da produção e produtividade no Brasil. 2015. 103f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

NOLAN, R. L.; KOTHA, S. Boeing 787: The Dreamliner. Harvard Business School Compilation 305-101. Boston, abril de 2005.

PORCILE, G.; CATELA, E. Y. A. S. Heterogeneidade estrutural na produtividade das firmas brasileiras: uma análise para o período 2000-2008. Anais do XL Encontro Nacional de Economia. ANPEC, 2012.

TANG, C. S.; ZIMMERMAN, J. D. Managing new product development and supply chain risks: the Boeing 787 case. Supply Chain Forum – an International Journal. v. 10, n. 2, 2009.

 

A contradição entre o discurso protecionista e a ascensão da economia digital

A teoria normativa da política comercial sugere que as barreiras ao comércio internacional devem ser idealmente inexistentes. Conceitos-chave, como o modelo ricardiano de vantagens comparativas e o modelo Heckscher-Ohlin da dotação relativa dos fatores de produção, defendem que a ausência dessas barreiras evita distorções e permite alocação de fatores produtivos da maneira mais eficiente possível. Em conformidade com esses preceitos, as principais economias do mundo optaram pela gradual redução de tarifas internacionais nas rodadas de negociação do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), posteriormente substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Essa redução de tarifas foi um dos fatores que contribuiu para intensificar a globalização econômica, expandir a atividade industrial para novas fronteiras geográficas e, consequentemente, fragmentar as cadeias produtivas e dinamizar a economia mundial. Durante seis décadas, entre 1945 e 2005, o intercâmbio global de bens e o fluxo de investimentos estrangeiros cresceu de forma espetacular, a taxas superiores ao crescimento das economias, e favoreceu a retirada de milhões de pessoas da pobreza.

Com o desencadeamento da crise dos subprimes, em 2008, esse crescimento do fluxo de bens, no entanto, foi interrompido. Conforme estimativas da OMC, o comércio mundial apenas cresceu 1,7% em 2016, inferior à expansão econômica global (2,2%), e o quinto ano seguido em que o fluxo de bens cresceu abaixo de 3%. Como agravante, o plebiscito a favor do “Brexit”, a recente retirada dos Estados Unidos da Parceria Transpacífico (TPP) por decreto presidencial e as ameaças de políticas protecionistas pelo presidente Donald Trump sugerem crescente hostilidade à globalização e o fim do paradigma de produção fragmentada em cadeias globais de valor. Embora esses prenúncios pareçam bastante desalentadores, é provável que a redução no dinamismo do comércio global apenas expresse parte das tendências e das alterações na economia global.

Enquanto o intercâmbio de bens entre os países vem perdendo vigor, diversas mudanças nos padrões de consumo têm aumentado a relevância do comércio de serviços e de produtos tecnológicos intensivos em serviços, que requerem fatores como softwares, design, marcas para agregarem valor, a exemplo de smartphones. De acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essas transformações significam que, por valor adicionado, os serviços já representam mais de 50% do comércio, com tendência crescente na próxima década. Essa provável maior importância dos serviços deve ser reforçada pela ascensão da economia digital, que está criando oportunidades para novos modelos de negócios.

Segundo um estudo da consultoria McKinsey, entre 2005 e 2014 o fluxo global de dados cresceu 45 vezes. Com a expansão da infraestrutura de conectividade e do modelo de código aberto de software, além de menores custos de computadores e de tecnologias relacionadas, esse fluxo deve aumentar em mais nove vezes até 2021.

Fontes: TeleGeography, Global Bandwidth Forecast Service, McKinsey Global Institute analysis

Embora esse acelerado crescimento do fluxo de dados tenha suscitado preocupações em relação ao risco de “protecionismo digital”, o controle do fluxo global de dados e do intercâmbio de serviços pela economia digital é mais difícil de ser implementado. Diferentemente do caso das teorias clássicas de comércio e das propostas de taxação de importações de bens e componentes, o estabelecimento de impedimentos ao comércio digital, inclusive de medidas de censura e de regulamentação dos direitos de privacidade, é uma questão bem mais complexa. Visto que dados podem ser gerados, armazenados e acessados em qualquer lugar, políticas de protecionismo que empregam uma visão fundamentada em termos de território e fronteira nacional, como as barreiras econômicas sugeridas pela administração Trump, tendem a ser menos eficazes.

São justamente as tendências da economia digital e as considerações no que se refere ao protecionismo que levaram 12 países do Pacífico a negociarem novas normas de comércio de serviços e padrões para o fluxo internacional de dados com vistas a alcançarem vantagens competitivas. Apesar de os Estados Unidos, surpreendentemente, terem renunciado à possibilidade de cimentarem seu domínio mundial na economia digital, os demais Estados-parte parecem ter reconhecido a oportunidade de seguir adiante com a TPP. Uma possível continuidade do TPP permitirá que economias dependentes de exportações, como o Japão e a Austrália, dinamizem seu comércio em um momento em que o intercâmbio de bens apresenta seu pior desempenho em décadas. Também proporcionará a opção de que outros países da região, a exemplo da China e da Coreia do Sul, se juntem ao acordo e de que os Estados Unidos, eventualmente, voltem a ser parte do acordo.

Daniel Köhler Leite é bacharelado em Economia na Universidade de Munique, mestrando em Economia na UnB e secretário executivo do Gabinete da Embaixada dos Emirados Árabes Unidos em Brasília.

Acordos de comércio de serviços de fato liberalizam o mercado?

A importância crescente do setor de serviços na participação do PIB e na criação de emprego é uma das grandes tendências da economia mundial. Não surpreendentemente, acordos comerciais de serviços também têm ganhado um aumento expressivo de importância e interesse por parte dos países. Esses acordos buscam a expansão do comércio de serviços e do desenvolvimento econômico por meio da progressiva liberalização comercial. No entanto, uma questão que a princípio parece tautológica, permeia toda essa discussão: os acordos comerciais de serviços de fato promovem a liberalização do mercado de serviços?

O GATS, criado em 1995 durante a Rodada Uruguai, estabeleceu muitas bases sobre as quais hoje são negociados os acordos internacionais de comércio de serviços: a classificação em 4 modos de prestação; o reconhecimento de 12 categorias de setores e 155 subsetores; e as cláusulas de não discriminação: tratamento nacional[1] e acesso a mercados[2]. As negociações do GATS tiveram êxito no estabelecimento da estrutura e dos princípios do Acordo.

Diante da paralisação da Rodada Doha, os países, em especial os desenvolvidos, têm aumentado o nível de importância de acordos regionais em suas políticas comerciais. De acordo com a OMC, em 2011 já haviam sido notificados 87 acordos regionais com compromissos em serviços. Ademais, há os que ainda não estão em vigor, dentre os quais merecem destaque o TPP (que ontem teve sua continuidade posta em dúvida, por conta de decisão dos EUA de sair das negociações), a Aliança do Pacífico e o TiSA.

Alguns trabalhos acadêmicos têm sido feitos com o intuito de analisar se houve liberalização de mercado nas negociações do GATS e de acordos regionais/preferenciais de serviços. Hoekman (1996) fez um esforço empírico e calculou índices que representariam a liberalização de fato de países da União Europeia no GATS. A sua conclusão foi de que a Rodada Uruguai não entregou nenhuma liberalização do setor de serviços[3], apesar de ter gerado algum benefício associado ao travamento das condições de acesso a mercado.

Com relação aos acordos regionais/preferenciais, Sauvé e Shingal (2011) e Mattoo e Sauvé (2010) chegam a conclusões similares: ao invés da entrega de liberalização do setor de serviços, o benefício gerado por esses acordos decorre principalmente do travamento do marco regulatório existente no país. O que de fato os acordos regionais/preferenciais têm logrado em atingir além do GATS é uma consolidação mais atualizada do marco regulatório dos países, decorrente de recentes reformas unilaterais promovidas.

Dada a importância do setor de serviços, por que os acordos comerciais, tanto o GATS quanto os acordos regionais/preferenciais, falham em entregar a liberalização de mercado a que se propõem? A explicação reside em uma característica intrínseca dos serviços: enquanto na negociação de acordos de comércio de bens a moeda de troca são tarifas de importação, em negociações de acordos de comércio de serviços a moeda de troca é a regulação doméstica.

Não obstante, muitos economistas acreditam que acordos de serviços liberalizam o mercado de serviços. Argumentam que, ao ficar de fora dessa nova grande rede de acordos regionais/preferenciais de liberalização do setor de serviços, o Brasil estaria perdendo um grande potencial de inserção no comércio internacional. Na teoria, esse argumento parece fazer sentido: assim como é possível estabelecer diferentes alíquotas do imposto de importação para produtos de origens distintas, por que não seria possível também estabelecer diferentes exigências com relação a prestadores de serviços de acordo com sua origem?

No entanto, quando se pensa na aplicabilidade prática desse argumento, percebe-se como seria difícil (ou até mesmo impraticável) a liberalização do mercado de serviços para apenas algumas origens. Para discriminar prestadores de serviços conforme a origem, seria necessário fazê-lo em sua regulamentação nacional. Tomemos como exemplo a participação de capital estrangeiro em companhias aéreas, hoje em no máximo 20% no Brasil, estabelecido por Lei Ordinária nº 7.565, de 1986. Um eventual compromisso de liberalização do setor aéreo brasileiro em acordo preferencial de serviços exigiria modificação do texto dessa Lei Ordinária. E esse seria apenas um dos muitos compromissos feitos pelo Brasil no acordo. Imaginemos quantos mais compromissos seriam feitos e que gerariam necessidade de alteração da legislação nacional, algumas restrições ainda mais difíceis de mudar, como as constitucionais de propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora (artigo 222 da CF) e de participação de empresas de capital estrangeiro na assistência à saúde (artigo 199 da CF).

A partir do argumento acima se percebe a dificuldade em se liberalizar o mercado de serviços a partir de acordos comerciais, em especial bilaterais/preferenciais. É nesse sentido que a maior parte dos países que fizeram importantes liberalizações no seu setor de serviços o fizeram unilateralmente[4].

Contudo, se por um lado acordos de serviços não liberalizam o mercado de serviços, por outro lado há importantes benefícios que decorrem da negociação desses acordos. Três benefícios imediatos decorrem da assinatura de um acordo de serviços.

O primeiro é o travamento (lock-in) do marco regulatório daquele país. Isto quer dizer que, a partir do momento da assinatura do acordo, aquele país não poderá adotar medidas mais discriminatórias com prestadores de serviços estrangeiros do que aquelas já existentes e inscritas em suas listas. O segundo é o ganho de transparência e segurança jurídica que decorre da adoção de listas negativas. A consolidação do marco regulatório dos países em uma lista padronizada em muito facilita a vida de prestadores de serviços e investidores estrangeiros. Um terceiro benefício que decorre da negociação de um acordo de serviços advém da adoção de um “marco geral”, que estabelece padrões internacionais de conduta para os participantes, além de servir como um “guarda-chuva” para potenciais acordos posteriores de cooperação, facilitação, reconhecimento mútuo, etc.

O Brasil, por exemplo, atualmente ainda negocia acordos de serviços em listas positivas. Um importante próximo passo seria a adoção de listas negativas para negociação, visto que essas são dotadas de maior transparência e segurança jurídica. Ademais, a elaboração da lista negativa brasileira seria uma boa oportunidade para o governo, em contato com seus órgãos reguladores e setor privado, rever todo o seu marco regulatório doméstico, podendo identificar possíveis oportunidades e pontos para liberalização unilateral. Afinal, por que não negociar?

 

*Este post é baseado em texto da mesma autora, publicado no site Brasil, Economia e Governo, que pode ser acessado aqui.

Daniela Ferreira de Matos é Mestre em Economia pela Unb e Analista de Comércio Exterior no Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC).

Referências

Francois, Joseph, and Bernard Hoekman. “Services trade and policy.” Journal of Economic Literature 48.3 (2010): 642-692.

Hoekman, Bernard. “Assessing the general agreement on trade in services.” The Uruguay Round and the developing countries 996.1 (1996): 89-90.

Mattoo, Aaditya and Pierre Sauvé. “The Preferential Liberalization of Services Trade”, NCCR Working Paper No 2010/13 (May), Bern: World Trade Institute. (2010), http://www.nccr-trade.org/publication/the-preferential-liberalization-of-services-trade-lessons-from-practice/

Sauvé, Pierre and Shingal Anirudh. “Reflections on the Preferential Liberalization of Services Trade”. World Trade Institute. (2011), https://mpra.ub.uni-muenchen.de/32816/

[1] Tratamento nacional: um compromisso em tratamento nacional implica que um membro não pode adotar medidas discriminatórias que beneficiem prestadores de serviços domésticos frente aos estrangeiros.

[2] Acesso a mercados: o compromisso de acesso a mercados está relacionado a um compromisso de não criar certos tipos de medidas que dificultem ou impeçam o acesso de um prestador de serviço estrangeiro ao mercado doméstico. Os tipos de medidas que os países se comprometem a não adotar estão listadas no inciso 2 do Artigo XVI do GATS.

[3] Aqui é importante deixar clara a exceção de países que aderiram tardiamente a OMC (latecomers). Esses países tiveram que assumir compromissos determinados pelos países integrantes, de maneira que de fato fizeram compromissos de liberalização.

[4] Uma importante exceção à essa regra é a Costa Rica, que aproveitou a assinatura de acordo comercial de serviços para comover o seu congresso e implementar importantes iniciativas liberalizantes no setor de serviços. Maiores detalhes desse caso podem ficar para um próximo post.

Brasil e Peru – novas perspectivas para o comércio bilateral de serviços

Embora seja comum aos governos que os consensos sobre a gestão econômica e a política comercial não sejam alcançados com a velocidade necessária à implementação de políticas públicas, a realidade da economia do conhecimento e do crescente peso dos serviços na economia mundial impõem que o Brasil acelere o debate acerca dessas importantes questões para delinear suas políticas e estratégias de inserção internacional. É fato que a atual tendência do comércio mundial é mais complexa, orientada muito mais pelas barreiras não tarifárias e regulatórias aos negócios, e menos pelas tarifas aplicadas pelos países no intercâmbio de bens simplesmente.

Diante disso, Brasil e Peru iniciaram conversas com o objetivo de aprofundar suas relações econômico-comerciais, que resultaram no Acordo de Ampliação Econômico-Comercial entre os dois países, considerado “o mais amplo acordo temático bilateral já concluído pelo Brasil”, contendo compromissos em matéria de investimentos, serviços e compras governamentais. Para além das complementaridades industriais a serem exploradas entre as duas economias, que já dispõem de acordo tarifário abrangente (Acordo de Complementação Econômica nº 58, da ALADI), o novo acordo estabelece e consolida as regras que potencializarão e balizarão os negócios entre Brasil e Peru, criando novas oportunidades de integração, facilitando investimentos recíprocos e diversificando a natureza do comércio bilateral, etc.

O setor de serviços é importante para ambos os países, correspondendo a 62,3% do Produto Interno Bruto peruano (2015), tendo essa participação apresentado crescimento contínuo desde 2001. No Brasil, a participação dos serviços no PIB é de 72%, embora a economia do setor venha apresentando queda desde 2015, por conta da crise pela qual o país tem passado.

 

Em particular, o capítulo 3 do acordo, que versa sobre os compromissos referentes ao comércio de serviços, incluiu disposições normativas em matéria de Tratamento de Nação Mais Favorecida, Tratamento Nacional, Acesso a Mercados, Regulamentação Doméstica, entre outros, que são compatíveis com aquelas que constam no Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e em outros acordos de Serviços dos quais o Brasil faz parte, revelando certo conservadorismo nesse aspecto.

A Lista de Compromissos Específicos (cobertura) do Brasil apresenta as condições aplicáveis à atuação de prestadores peruanos no mercado brasileiro, os quais não excedem os compromissos já firmados pelo Brasil com os parceiros do MERCOSUL e representam consolidação parcial dos marcos regulatórios vigentes para quaisquer prestadores estrangeiros. A Lista de Compromissos do Peru, no entanto, representa uma maior abertura relativa aos compromissos consolidados pelo Peru no GATS, estendendo, a prestadores brasileiros, acesso e condições de tratamento similares àqueles concedidos pelo Peru, em acordos recentes, a empresas dos países da Aliança do Pacífico e da Parceria Transpacífico (TPP). Assim, as ofertas brasileira e peruana abrangem setores importantes da atividade econômica para os dois países, como, por exemplo, os serviços de Arquitetura, Engenharia e Construção e de Tecnologia da Informação.

Além disso, o acordo aponta para novos desdobramentos, uma vez que prevê negociações futuras entre as duas partes para incluir disciplinas e aprofundar compromissos, inclusive em serviços financeiros, telecomunicações e comércio eletrônico, setores não contemplados neste momento. O Capítulo de Serviços do acordo com o Peru inova, ainda, ao prever futuras negociações em formato de listas negativas, contrastando com as negociações anteriores do Brasil, que seguiram o formato GATS, com listas positivas de compromissos. A partir deste acordo, o país se aproxima dos formatos dos principais acordos internacionais recentemente celebrados em matéria de Serviços.

Ainda que seus benefícios econômicos não se concretizem de imediato, o Acordo de Ampliação Econômico-Comercial entre o Brasil e o Peru reposiciona a relação entre os dois países na região, dando-lhe novo relevo. É importante, ainda, registrar a importância do Acordo como marco na política comercial brasileira recente, inaugurando um caminho de maior abertura e de integração com outros países da região como Chile, Colômbia e México, além dos países do próprio Mercosul, e permitindo maior dinamismo econômico na região, com potenciais efeitos de aumento de produtividade, competitividade e desenvolvimento.

José Carlos Cavalcanti de Araujo Filho é Especialista em Relações Internacionais pela UnB e Coordenador-Geral de Comércio Exterior na Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. 

Redução no crescimento do comércio mundial – alguns comentários

O arrefecimento no crescimento do comércio global tornou-se preocupação recorrente para economistas e policy makers no mundo todo. A OMC prevê que o comércio de bens crescerá apenas 1,7% em 2016 – é a primeira vez em quinze anos que essa taxa será inferior a estimativa de crescimento do PIB mundial (gráfico da esquerda abaixo).

Alguns fatores são mais fortemente associados a esse quadro, como a redução do efeito-China sobre o comércio global,  a redução em tendências de offshoring e de expansão de cadeias globais de valor, mudanças na dinâmica da atividade econômica – de acordo com o FMI, cerca de 75% da redução no comércio poderiam ser explicados pelo baixo crescimento do investimento–, bem como uma nova onda de protecionismo, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. Em relação a este último fator, observa-se que a Europa tem buscado novas formas de ampliar o uso de medidas antidumping, enquanto o número de medidas restritivas ao comércio adotadas mundialmente tem crescido de forma sustentada (gráfico da direita).

Diversos organismos internacionais saíram em defesa do livre comércio: OCDE, OMC, FMI e Banco Mundial têm conduzido debates, eventos e estudos enfatizando a importância e os benefícios do livre comércio global e da globalização para o crescimento econômico. Ao mesmo tempo, o desenrolar dos acontecimentos de 2016 – Brexit, eleição nos Estados Unidos etc – arrefeceram sobremaneira as expectativas quanto ao avanço de mega-acordos de comercio, em particular no setor de serviços.

Fonte: OCDE

Alguns economistas argumentam que a redução na fragmentação da produção mundial seria um processo natural, reflexo de uma expansão vigorosa na década de 1990 que tenderia a perder momentum nas décadas seguintes. Ainda, argumenta-se que iniciativas como o Trade Facilitation Agreement e demais acordos de comércio de bens bilaterais e regionais em negociação poderiam alavancar as exportações de países em desenvolvimento.  O que esse tipo de argumentação não vislumbra é a mudança na estrutura do comércio mundial na direção do comércio de serviços e dos fluxos digitais.

Em relação a cadeias globais de valor (CGVs), muito se argumenta que ainda haveria espaço para ganhos pela entrada de países em desenvolvimento. Não se pode negar que toda a agenda de desburocratização do comércio de bens e de redução nos custos para exportação (entrando aqui toda a questão de eficiência portuária e logística) tem importante papel para melhorar a inserção e competitividade desses países no comércio mundial. Todavia, fica cada vez mais claro que a tendência em países que estão inseridos de forma mais qualificada em CGVs guarda cada vez mais ligação com serviços de agregação de valor e diferenciação de serviços – como P&D, design, marketing, pós-venda etc – muito mais do que as etapas de montagem de bens. Assim sendo, a agenda de custos que deve ser explorada para melhorar a inserção de países em desenvolvimento no comércio mundial não deveria avançar sem uma agenda mais estratégica em direção ao comércio ligado a serviços e à economia digital – estas, sim, fontes de geração de valor e riqueza e capazes de modificar estruturalmente a inserção no comércio global.

Em suma, ainda que não se possa negar que houve redução no crescimento do comércio de bens, e que se entenda o motivo de preocupação em relação a isso, dado que o crescimento do comércio sempre foi um fator responsável por explicar parte significativa do crescimento global e do desenvolvimento em países emergentes, o debate conduzido não tende a gerar propostas concretas de ação porque apenas tangencia toda a questão relacionada à transformação na natureza dos bens advinda de sua relação com os serviços, a economia digital e seus benefícios para a retomada de crescimento das exportações, da produtividade e da atividade econômica global. Aliar tais agendas à tendência de crescimento no papel dos serviços, da digitalização e da automação tenderá a fornecer melhores insumos a economias menos desenvolvidas sobre como tomar se beneficiar do comércio global em prol do desenvolvimento.

Por que é importante financiar as exportações de serviços?

O setor de serviços no Brasil corresponde atualmente a mais de 70% do produto interno bruto.  Em 2014, o setor foi responsável por 73,4% dos empregos formais do país, de acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Como já exposto em diversas ocasiões pelo blog, o setor de serviços tem papel transversal na economia, afetando a competitividade do setor industrial, tendo em vista sua forte demanda por serviços nas etapas de produção, e também da agricultura. Os serviços também já são componente importante no valor adicionado das exportações, conforme dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE.

Atualmente o Brasil está negociando uma série de acordos no setor de serviços com países como Peru, Chile e México, bem como com União Europeia. Também tem se engajado em acordos específicos sobre comércio eletrônico, serviços financeiros e compras públicas de bens e serviços, além dos Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFIs) com diversos países. Tais acordos viabilizarão, portanto, uma inserção mais facilitada do Brasil no comércio de serviços, ampliando a transparência internacional do setor e o entendimento sobre sua regulação.

Como já explorado pelo blog, a balança comercial de serviços é historicamente deficitária. Em 2015, o déficit da conta de serviços atingiu US$ 35,9 bilhões de acordo com dados do Banco Central.  O Brasil possui uma das balanças de serviços mais deficitárias na comparação mundial, segundo a OCDE. De acordo com dados apresentados Arbache (2015), cada 1% de expansão do PIB vem acompanhado de aumento de 1,11% das exportações e 1,25% das importações. Assim sendo, há uma clara tendência de deterioração na balança de serviços, conforme análise do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços.

Gráfico – Evolução da Balança de Comércio Exterior de Serviços (US$ bilhões)

balanca-servicos

Fonte: Banco Central do Brasil.

Atualmente, o componente de serviços é chave para alavancar a competitividade dos produtos manufaturados para uso doméstico e para exportação. Uma maior exposição do setor de serviços brasileiro à competição internacional geraria, portanto, ganhos de eficiência e de qualidade ao setor, com consequente impacto nos setores industriais que demandam esses serviços.

A busca pela maior integração brasileira ao comércio exterior e às cadeias globais de valor passa pelo fortalecimento do setor de serviços. De acordo com a Organização Mundial do Comércio, o Brasil responde por apenas 0,7% das exportações mundiais de serviços, ocupando a 32ª posição neste ranking. O comércio de serviços também é pequeno quando se considera o tamanho da economia brasileira: a proporção exportação de serviços/PIB é de 1,9%. A exportação de serviços, em particular aqueles de maior valor agregado, representam uma inserção brasileira mais qualificada nas cadeias globais de valor, tendo em vista que serviços de maior valor agregado são as etapas que, de fato, geram valor na produção de bens.

Existem dois principais mecanismos de apoio a exportação de serviços no Brasil:

  1. Programa de Financiamento às Exportações – PROEX: principal instrumento do Governo Federal de apoio às exportações de bens e serviços, voltado principalmente às micro e pequenas empresas. É ofertado nas modalidades de financiamento e equalização.
  2. BNDES Exim: financia a produção de bens e de serviços brasileiros destinados à exportação e sua comercialização no exterior.

Caso o Brasil almeje se inserir de forma mais qualificada no comércio internacional, explorando cada vez mais o potencial do mercado internacional de serviços, será necessário o aumento na participação do setor nos instrumentos de financiamento, com maior adequação as suas necessidades, tendo em vista que a maior parte dos volumes de financiamento por ambos os instrumentos destinam-se à exportação de bens, e não de serviços.

Os dados expostos acima demonstram, portanto, uma ampla necessidade de se apoiar o comércio de serviços brasileiro, no sentido de aumentar a produtividade do setor de serviços, garantir maior competitividade para os bens produzidos nacionalmente, qualificar a integração às cadeias globais de valor e reduzir o déficit da balança comercial de serviços.

O fim dos Bancos?

Em post anterior, exploramos o surgimento das fintechs e mostramos como essas empresas exploram avanços digitais para ganhar espaço no tradicional, caro e burocrático sistema bancário. Mas até que ponto essas startups conseguirão progredir nesse mercado tão consolidado?

As fintechs já se mostraram capazes tanto de realizar operações tradicionalmente feitas por bancos e agentes financeiros como de responder à demanda dos clientes por um atendimento mais rápido, barato e de melhor qualidade. O cliente ganha pela ampliação na oferta (já que não fica preso à prestação de serviços apenas pelo banco do qual é correntista) e pela prestação de serviços mais personalizados – as fintechs são campeãs no uso de big data, o que as possibilita entender e antever as reais necessidades de seus clientes.

Vejamos a Transfewise, por exemplo, fundada pelos estonianos Taavet Hinrikus e Kristo Käärmann. O serviço é descrito como um peer to peer lending, ou empréstimo ponto a ponto. Suponha que Antônio queira transferir recursos do Brasil para a Inglaterra, enquanto James deseja transferir recursos da Inglaterra para o Brasil. O aplicativo realiza duas transações nacionais ao invés de realizar duas transações internacionais da seguinte forma: ele retira o dinheiro da conta de Antônio no Brasil e transfere para a conta que James quer acessar no Brasil. Ao mesmo tempo, o app retira dinheiro da conta de James, na Inglaterra, e transfere para a conta que Antônio que acessar, naquele mesmo país. O serviço chega a ser 90% mais barato que o cobrado por bancos. Tal como no mercado de transferências internacionais, muitos custos de operações financeiras, antes vistos como impossíveis de serem superados, conseguem ser reduzidos por meio de soluções inovadoras.

O mais interessante é que as instituições financeiras, que possuem décadas de conhecimento sobre o mercado, poderiam ter atravessado essa fronteira tecnológica há muitos anos. Apesar de o sistema bancário ter evoluído bastante no sentido de atender à demanda por maior agilidade nas transações (como é o caso do internet banking), os bancos não se mostraram tão ativos na melhoria da interação digital com o cliente ou no oferecimento de alternativas e serviços mais baratos para transações usuais. E pouquíssimos deles são, de fato, bancos digitais. Ao invés de se mostrarem capazes de inovar na prestação dos serviços pelo avanço das ferramentas digitais, seguiram pelas formas tradicionais – e caras – de prover serviços financeiros. O resultado? Estão enfrentando a concorrência avassaladora de startups num mercado antes visto como oligopolizado e com grandes barreiras à entrada.

O mercado para as fintechs é, de fato, enorme, quando se pensa na infinidade de serviços financeiros existentes e nas taxas pagas por cada tipo de transação que se realiza em bancos – empréstimos, seguros, compra de câmbio, transferências internacionais etc. Hoje, as pessoas relutam muito menos em confiar seu dinheiro e seus dados a grandes plataformas de tecnologia. Se há cinco anos apenas 1% das pessoas confiava nessas empresas, essa taxa hoje chega a 20%, o que é um crescimento significante, de acordo com o Relatório The Future of Finance. O mesmo relatório aponta que um grupo relevante da população pesquisada espera fazer todas as suas atividades financeiras por meio de uma fintech no futuro.

Houve, nos últimos anos, crescimento significativo no volume de transações feitas por empresas de tecnologia, como é o caso da startup Sofi, que hoje atua não só em financiamentos estudantis como imobiliários nos Estados Unidos. Todavia, as fintechs ainda movimentam um volume pequeno em relação ao total  de recursos existentes no sistema financeiro. Além disso, ainda que essas empresas ampliem participação em transações habituais, esse dinheiro ainda é movimentado pela entrada e saída de recursos armazenados em bancos. Ou seja, por mais que tenhamos muitos players novos no mercado, isso não necessariamente significa uma desbancarização, ou eliminação dos bancos.

Apesar da crescente confiança em aplicativos para realizações de operações pontuais ou diárias de baixo porte, ainda é difícil imaginar clientes depositando milhares de reais em startups. A questão que fica é: os bancos conseguirão se manter como bastiões dos recursos, ou apenas como uma infraestrutura sobre a qual as fintechs atuarão? Também é possível que as fintechs acompanhem a tendência do setor de tecnologia, com a emergência de uma plataforma que domine o mercado financeiro digital (como é o caso da Google, Facebook, Amazon e Uber nos demais setores) e que passe a oferecer uma cartela de serviços, num modelo quase-banco (ou de banco digital). O difícil é prever se isso decorrerá do surgimento de um novo player no mercado ou de algum movimento de consolidação entre as empresas já existentes.

Créditos da imagem: banknxt.com

AliExpress, Spotify e os novos intermediadores

Em muitos mercados, o número de intermediadores tem diminuído. Antigamente, se um consumidor precisasse de uma peça importada específica para o seu computador, ele teria que buscar em lojas especializadas, que, por sua vez, teriam que importar a peça de fornecedores no exterior, caso não a tivessem em estoque. Nos dias de hoje, esse mesmo consumidor pode comprar quase que diretamente dos produtores, por meio de sites como o AliExpress ou eBay.

Atualmente, grande parte dos aplicativos e sites de sucesso se baseiam em aproximar prestadores e compradores de serviços – em muitos casos, compradores também são prestadores e vice-versa. Em geral, aplicativos como o AirBnB ou mesmo sites como o Estante Virtual, nascem da percepção de uma falha de mercado.

Pense no exemplo da Estante Virtual, plataforma que reúne milhares de sebos espalhados pelo país. Antes, se um consumidor procurasse um livro fora de circulação, ele limitaria sua busca a lojas de livros usados locais. Caso encontrasse em uma dessas lojas, provavelmente não saberia se está pagando caro ou barato, pois estaria limitado às opções locais.

O site aumenta a concorrência entre sebos, já que o consumidor acessa o catálogo de lojas de todo o país. Adicionalmente, o serviço amplia de forma considerável o mercado para os sebos. Uma loja de livros usados no interior do Paraná pode, pelo Estante Virtual, vender seus livros para um cliente no Nordeste – algo impensável há 20 anos.

Portanto, o maior valor do site é agir como um intermediador, que informa tanto o preço quanto a qualidade do serviço ou bem prestado, por meio de avaliação de usuários. Esse processo, que se repete em diversos mercados, traz importantes ganhos de eficiência e de bem-estar. O consumidor passa a ter acesso a uma maior diversidade de bens e serviços, normalmente a preços mais baixos, por conta da menor assimetria de informação e maior concorrência.

Tal transformação acaba por diminuir o mercado de intermediários locais e, portanto, muda consideravelmente a estrutura de diversos setores. Um exemplo disso são os serviços de streaming de músicas, como o Spotify ou o Deezer. Até recentemente, um artista que não tivesse uma gravadora e distribuidora dificilmente conseguiria ser ouvido para além de sua região.

Uma grande gravadora era necessária não apenas para que o artista tivesse acesso a equipamentos de última geração, mas principalmente para que a sua obra fosse gravada em um meio físico (disco, fita, CD, etc) e fosse distribuída para lojas e estações de rádio. Nos dias de hoje, um músico ou uma banda pode gravar seu disco em casa e, por meio de distribuidores independentes, inserir sua música nessas plataformas que contam com milhões de ouvintes do mundo todo e seguem crescendo[1]. Os custos da intermediação são consideravelmente mais baixos, dado que há maior concorrência e os serviços são menos complexos do que antes.

Movimento similar está ocorrendo no mercado editorial. A Amazon, responsável por 74% do mercado norte-americano de e-books (ver gráfico abaixo), permite que um autor publique e venda seus livros em formato digital por meio do seu serviço Kindle Direct Publishing, com o escritor recebendo até 70% do preço em royalties.

Apesar dos ganhos para consumidores e empresas já discutidos, esses novos serviços também levantam algumas questões. Se por um lado eles aumentam a competição para o consumidor final, parece estar havendo uma concentração nos mercados de intermediários. Num futuro próximo, é possível que artistas e escritores sejam praticamente obrigados a publicar suas músicas no Spotify ou seus livros na Amazon, sob o risco de não terem audiência fora dessas plataformas.

Com isso, esses novos intermediários virariam quase monopsônios (compradores únicos) e teriam poder excessivo para determinar quanto um autor ou artista “mereceria”. Já há diversos artistas no Brasil e no resto do mundo se queixando das divisões de lucros dos serviços de streaming. Essa pode ser a primeira de muitas batalhas, em diversos mercados.

Gráfico 1 – Participação no total de ebooks vendidos no mercado americano em 2015

[1] Alternativamente, o artista pode simplesmente disponibilizar sua música em seu site, como muitos já o fazem.

Os serviços e a baixa participação brasileira nas cadeias globais de valor

Normalmente, quando se fala de comércio exterior, pensa-se apenas nas exportações e importações diretas. Porém, com a maior integração do comércio mundial, fragmentação da produção e o desenvolvimento de complexas cadeias globais de valor, percebe-se a necessidade de olhar para outros indicadores para melhor compreender o comércio entre países.

A notícia boa é que, apesar de ainda ser um movimento incipiente, a disponibilidade de dados sobre comércio exterior dentro de cadeias produtivas tem aumentado. A base TiVA (Trade in Value Added), construída e mantida pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC), é uma importante iniciativa nesse sentido.

Por meio da TiVA, é possível ver o quanto cada país adiciona valor nos produtos e serviços finais exportados por outro país. Por exemplo: iPhones são desenhados nos EUA, montados na China e depois distribuídos para o restante do mundo (incluindo os EUA). Digamos que uma montadora chinesa venda o iPhone para o restante do mundo por US$ 200. Suponha que essa montadora tenha comprado US$ 150 em peças e serviços do resto do mundo no processo. Na contabilização convencional, não seria possível saber que esses US$ 150 importados foram utilizados para exportar US$ 200. Pelo método utilizado no TiVA, seria possível saber que, apesar de ter exportado US$ 200, a China contribuiu com apenas US$ 50 do valor. Além disso, seria possível saber quanto cada país contribuiu para que a China exportasse os US$ 200 em um produto final e quanto disso são serviços.

Há uma literatura que aponta que existe uma correlação positiva entre o consumo de serviços como insumos na produção de bens exportados e intensidade exportadora (ver, por exemplo, Berlingieri 2015 e Francois e Woerz 2007). Isso se daria tanto como estratégia de redução de custos, principalmente por meio de serviços voltados para facilitar o processo exportador, quanto como estratégia para agregação de valor aos produtos – com serviços como pesquisa e desenvolvimento, marketing, software etc.

Ao olharmos os dados do Brasil na TiVA, dois fatos ficam claros:

  • as exportações brasileiras apresentam baixa adição de valor de outros países (ver Gráfico 1) e
  • o país exporta – direta e indiretamente – serviços em uma proporção próxima da média da OCDE, mas se utiliza pouco de serviços importados (ver Gráfico 2).

Esses dois fatos indicam que o Brasil é pouco integrado às cadeias globais de valor. Para retomar o crescimento, será necessário ao país se tornar mais competitivo internacionalmente e se integrar mais à economia global. O caminho não será fácil, mas reconhecer a necessidade disso será um passo importante naquela direção.

Gráfico 1 – Percentual de valor adicionado por outros países no total das exportações, por país – 2008, 2009 e 2011 (quadro à direita mostra a evolução do Brasil)

Gráfico 2 – Participação de serviços direta e indireta no total de exportações, por país, 2011.

SNA service export share” representa a exportação direta de serviços. O azul escuro representa a participação do valor adicionado de serviços nacionais no total das exportações de um país. O azul claro, a participação do valor adicionado de serviços importados no total de exportações de um país. A linha mostra a média dos países da OCDE.

TISA: Uma Oportunidade para Ampliar o Comércio Internacional de Serviços?

Em um post anterior havíamos comentado a necessidade de atualizar os acordos de comércio de serviços e as dificuldades para se contabilizar as implicações para os países que podem aderir ao TISA (Trade in Services Agreement), principalmente em decorrência do sigilo dos termos do acordo.

O Governo dos Estados Unidos pretende, ainda em 2015, avançar com o TISA e, para tanto, incluiu essas negociações na Agenda de Comércio do presidente. No dia 22 de Outubro, o Fórum Europeu de Serviços (ESF) se reuniu em Washington para tratar de uma declaração comum que, em suma, destaca que nas últimas semanas de 2015 será possível examinar oportunidades significativas de negociações de serviços direcionadas a modernização das regras relacionadas a serviços em nível regional, multilateral e plurilateral (como o TISA), com a finalidade de dar passos em favor do crescimento econômico, geração de empregos e as escolhas do consumidor.

Isso sugere que os países chamados pela União Europeia de “bons amigos dos Serviços” já estão se movimentando em relação ao TISA. Esses países, participantes do TISA, não se resumem a um grupo fechado de membros da OMC e, sim, a união de todos os países que sentiram a necessidade de avançar nas negociações relacionadas aos serviços. Eles representam uma mistura de países desenvolvidos e países em desenvolvimento que respondem por cerca de dois terços do comércio global de serviços.

As cadeias globais de valor e as tendências do comércio de serviços fazem surgir questionamentos como: o que perderão os países que ficarem fora do TISA? Vale a pena resistir ao acordo e tentar estimular os serviços internos ou é melhor ceder antes que o país acabe excluído dos acordos internacionais?

Wikileaks divulgou uma série de documentos a respeito das negociações do TISA sugerindo que o acordo pretende influenciar as leis comerciais locais, restringindo a autonomia dos governos, que terão seus projetos de leis controlados e precisarão de autorização para serem aprovados. Entretanto, os EUA e a União Europeia divulgaram um comunicado conjunto afirmando que nenhum acordo comercial exige que os governos privatizem seus serviços e que não vão impedi-los de atuar em áreas como educação, saúde, água e serviço social.

De acordo com esse documento divulgado, os países deverão abrir mão de algumas políticas nacionalistas, e inclusive o Brasil poderá ser afetado, já que uma das propostas do acordo veda a “transferência ou acesso de código-fonte de software como condição à prestação de serviços em seu território”, que é justamente o que o Ministério do Planejamento está tentando incluir na regulamentação sobre compras públicas de tecnologias de informação e comunicação.

A decisão de entrar ou não no TISA representa um trade-off  para os países em desenvolvimento: não aderir ao acordo implica em perder a oportunidade de influenciar e negociar em condições mais favoráveis. Não entrar pode levar a um arrependimento futuro e, quando os países resolverem aderir, podem ter perdido o timing e estar muito atrasados, seja tecnologicamente ou produtivamente em relação aos demais países participantes. Porém, entrar desde já implica que terão que praticamente renunciar ao desenvolvimento de vários setores de serviços que serão fonte fundamental de geração de riqueza no século XXI.

Analisemos o Brasil, que é um grande importador de serviços. A ampliação de serviços tecnológicos em nível doméstico, que representa parte significativa das importações, demandaria recursos humanos qualificados e condições para se fazer negócios que não temos no momento. Uma primeira reação mais pragmática seria, então, a de participar de acordos como o TISA. Porém, a decisão de entrar ou não necessita ser cuidadosamente examinada.

Para que possa valer a pena participar de um acordo de comércio de serviços, seja TISA ou qualquer outro com pauta similar, é necessário agir de forma estratégica, pensando nos benefícios e custos que se pode obter. Para tanto, é preciso:

  1. disposição por parte das autoridades para que o acordo beneficie a todos os participantes envolvidos;
  2. que sejam formuladas políticas domésticas para que o resultado das negociações seja eficiente e possa atingir os objetivos econômicos desejados para o país;
  3. que os países discutam as barreiras comerciais por eles enfrentadas nos diversos setores, e também que sejam esclarecidos quais os setores em que há maior pressão de demanda e qual a capacidade de oferta interna desses setores. Isso permitiria verificar se há excesso de demanda interna em algum setor que, eventualmente, não tem oferta nacional correspondente.
  4. observar que o momento da negociação também é um ponto muito importante, pois é preciso que o negociador seja devidamente qualificado e informado sobre os melindres do assunto;
  5. transparência à população a respeito das negociações também deve ser considerada, pois não é possível que países negociem os interesses públicos sem que o próprio público saiba quais decisões estão sendo tomadas, dificultando a avaliação dos resultados do acordo, se foi de fato benéfico ou não.

Por fim, vale uma ressalva: a maior parte do comércio internacional dos serviços já se encontra nas mãos daqueles que negociam o TISA e esse montante pode aumentar ainda mais, fator que deve ser notado, pois exige, a cada dia que se passa, mais atenção dos países não participantes, como o Brasil. O debate sobre o tema não pode ser deixado de lado, bem como um estudo mais aprofundado sobre as suas consequências.

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