Economia de Serviços

um espaço para debate

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Cenário e perspectivas para o comércio de serviços no Brasil

Balanço de Pagamentos

O balanço de pagamentos (BP) de um país é o espelho contábil das transações entre seus residentes e não-residentes em um determinado período de tempo. Os resultados obtidos do BP possibilitam monitorar a magnitude e a direção do fluxo de recursos entre um determinado país e o restante do mundo (FEIJÓ et al., 2003).

Desconsiderando possíveis erros e omissões de mensuração, o BP pode ser dividido em três contas principais: (i) a conta capital; (ii) a conta financeira; e (iii) a conta corrente. Cada conta do BP é dividida entre receitas e despesas. As receitas são formadas pela soma de gastos de não-residentes no país do BP. Por outro lado, as despesas correspondem aos gastos dos residentes desse país no exterior.

O saldo de uma conta do BP consiste na subtração entre as suas receitas e despesas. Quando uma conta do BP apresenta saldo negativo, tem-se que a soma dos pagamentos vindos do exterior (por não-residentes) foi menor do que a soma dos pagamentos feitos para o exterior (por residentes). De maneira simplificada, no caso brasileiro, as receitas das contas do BP são mensuradas a partir do total de gastos no Brasil por estrangeiros; enquanto as despesas são representadas pelos gastos de brasileiros no exterior.

A mensuração do BP de cada país é padronizada conforme as regras dispostas no Manual de Balanço de Pagamentos e Investimento Internacional do Fundo Monetário Internacional (IMF, 2009). O BP brasileiro, por sua vez, tem o seu equilíbrio/saldo regulado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), sendo responsabilidade do Banco Central do Brasil (BCB) a compilação e publicação dos dados que o compõem[1].

Conta de serviços

A conta de serviços faz parte da conta corrente do BP. Para tal, compreende-se como “serviços” o conjunto das atividades que possam influenciar as condições de consumo ou comercialização de produtos ou ativos financeiros em um país (IMF, 2009). No caso brasileiro, esses serviços são divididos conforme as categorias listadas abaixo, na tabela 1.

Tabela 1 – Categorias, receitas, despesas e saldo da conta de serviços do BP brasileiro em 2017, em milhões de dólares.

Categorias Receitas Despesas Saldo
Aluguel de equipamentos $125,71 0,36% $16.963,68 24,83% -$16.837,97
Viagens $5.809,21 16,85% $19.001,63 27,81% -$13.192,42
Transportes $5.790,10 16,79% $10.765,30 15,76% -$4.975,20
Serviços de propriedade intelectual $642,16 1,86% $5.211,81 7,63% -$4.569,66
Telecomunicação, computação e informações $2.186,20 6,34% $3.859,36 5,65% -$1.673,16
Serviços governamentais $801,79 2,33% $2.035,92 2,98% -$1.234,13
Seguros $687,81 1,99% $1.358,43 1,99% -$670,61
Serviços culturais, pessoais e recreativos $313,08 0,91% $863,76 1,26% -$550,69
Serviços financeiros $679,07 1,97% $703,69 1,03% -$24,61
Serviços de manufatura sobre insumos físicos. $6,83 0,02% $1,65 0,00% $5,18
Construção $14,45 0,04% $1,44 0,00% $13,01
Serviços de manutenção e reparo $464,16 1,35% $206,38 0,30% $257,78
Outros serviços de negócio, inclusive arquitetura e engenharia $16.957,81 49,18% $7.355,76 10,77% $9.602,06
Total $34.478,39 100% $68.328,81 100% -$33.850,42

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a).

Observa-se que a conta de serviços brasileira de 2017 foi deficitária, registrando um montante de aproximadamente US$ -34 bilhões. De maneira simplificada, isso significa que o gasto com serviços por brasileiros no exterior superou o de estrangeiros no Brasil naquele ano. Portanto, podemos dizer que o país foi “importador de serviços” em 2017.

Atualmente, o Brasil é um dos maiores deficitários globais no setor de serviços (CNI, 2014; MDIC, 2018). As categorias da conta que mais contribuíram para esse déficit em 2017 foram as de aluguel de equipamentos, viagens, transportes e serviços de propriedade intelectual.

Contexto brasileiro

O histórico do BP brasileiro indica que o déficit da conta de serviços de 2017 não foi inédito na série de saldos do fluxo comercial dessa conta. Entre 1995 e 2004, o saldo em serviços se manteve em patamares próximos a US$ -5 bilhões. Nos 10 anos seguintes, registrou-se vertiginoso crescimento do déficit, aproximando-se de saldo de US$ -50 bilhões em 2014, conforme se observa no gráfico 1.

Gráfico 1 – Série histórica do saldo da conta de serviços do Brasil, por principais categorias, em milhões de dólares (2004-2017).

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a).

Entre 2005 e 2014, a categoria de viagens internacionais registrou o maior aumento na participação sobre o déficit de serviços no Brasil. Outra categoria que reforçou a negatividade da conta foi a de aluguel de equipamentos que, associada à dependência do setor de gás e petróleo de tecnologias estrangeiras, contabilizou déficits crescentes a partir de 2008 (CNI, 2014).

Cuiabano et al. (2013) estudaram a relevância das variações no câmbio e na renda para explicar o saldo decrescente da categoria “viagens” na conta de serviços brasileira até 2011. Conforme os autores, menores taxas de câmbio reais (fortalecimento da moeda nacional) tendem a reduzir o saldo da conta de serviços. Isso porque a valorização do real torna o gasto por brasileiros no exterior relativamente mais barato, o que incentiva a importação de serviços de outros países por parte do residente no Brasil. Ao mesmo tempo, o gasto em moeda estrangeira no Brasil se torna relativamente mais caro, um desincentivo às receitas da conta de serviços do país.

No que tange a variações na renda, aumentos da produção de um país tendem a incrementar gastos de seus residentes no exterior. Cuiabano et al. (2013) verificaram que a correlação entre acréscimos na renda doméstica e maiores déficits em viagens internacionais apresenta maior sensibilidade do que a de reduções na taxa de câmbio com o saldo dessa conta. Nesse sentido, espera-se que variações na renda possuam maior relação com mudanças no saldo da conta de serviços brasileira do que variações no câmbio; em módulo, a elasticidade-renda da demanda por serviços no Brasil é maior que a elasticidade-preço (câmbio).

Entre 2013 e 2016, a economia brasileira sofreu instabilidades que refletiram negativamente sobre a produção interna e a moeda nacional (recessão e desvalorização do real). Não obstante, o déficit da conta de serviços do país em 2016 foi aproximadamente um terço menor do que o déficit de 2013, reduzindo-se de patamares próximos a US$ -50 bilhões para cerca de US$ -30 bilhões.

Gráfico 2 – Saldo da conta de serviços, em milhões de US$, e variação do PIB brasileiros, em percentuais, entre 2009 e 2017.

Fonte: elaboração própria a partir de BCB (2018a) e IBGE (2018).

Do gráfico acima, também se verifica que a melhora dos indicadores de produção econômica em 2017 foi acompanhada de reversão da trajetória da curva do saldo da conta de serviços brasileira; com valor mais deficitário em relação ao ano de 2016.

No acumulado dos nove primeiros meses de 2017, registrou-se saldo de US$ -24.347 milhões na conta de serviços brasileira. No mesmo intervalo de 2018, o saldo da conta foi 1,9% menor, acumulando déficit de US$ -24.814 (BCB, 2018a). Como esperado, essa redução do saldo de serviços (aumento do déficit), acompanha expectativa de melhora dos indicadores de produção econômica: o acumulado do IBC-Br[2] registrou crescimento de 1,14% entre janeiro e setembro de 2018[3].

Perspectivas

Em setembro de 2017 foi criado o Grupo Técnico de Serviços (GT Serviços). Esse Grupo, alocado na Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (SE/Camex), busca promover a competitividade dos serviços brasileiros no exterior com o debate de políticas públicas para atender esse propósito (MDIC, 2018).

Nos últimos meses, a SE/Camex promoveu consulta pública para avaliação de proposta de Plano de Trabalho 2019/20 do GT Serviços. O plano compila uma série de medidas para desburocratizar o comércio de serviços no Brasil, com maior ênfase em simplificações tributárias a setores com alcance internacional[4]. Essa linha de atuação foi desenhada para reduzir as barreiras à participação brasileira no comércio de serviços, que são, hoje, de caráter essencialmente regulatório (PEREIRA, 2016).

Nesse sentido, segundo a Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem espaço para promover maior produtividade na prestação e no comércio de serviços, podendo, para tal, utilizar-se das recentes inovações tecnológicas em informação e em comunicação (OECD, 2017). A melhora do país no ranking do relatório Doing Business 2019, do Banco Mundial, relata que alcançamos melhorias necessárias, mas ainda insuficientes, para destravar o setor (e o comércio) de serviços no país (WB, 2018).

Diante da conjuntura das contas públicas e da possível reforma administrativa à qual o Ministério da Indústria, Serviços e Comércio Exterior (MDIC) está sujeito nos próximos meses, cabe acompanhar se permanecerão a estrutura, as diretrizes e a continuidade dos trabalhos do GT Serviços. No caso de continuidade da política de promoção da competitividade, o maior desafio do Grupo será superar os entraves institucionais que limitam o fluxo comercial de serviços pelo país.

Segundo as últimas publicações do Relatório de Mercado Focus, espera-se relativa estabilidade das taxas de câmbio e crescimento do PIB, em aproximadamente 2,5% a.a., até 2020 (BCB, 2018b). Como vimos, nessas condições e considerando elevada elasticidade-renda da demanda por serviços no Brasil, a tendência é que a retomada do crescimento amplie o déficit na conta de serviços brasileira (CNI, 2014). Portanto, tudo o mais constante, uma maior participação do país como importador de serviços é garantida.

Luis Guilherme A. Batista é professor voluntário na Universidade de Brasília (UnB), bolsista da Capes, mestrando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Gestão Pública pela AVM, e bacharel em Ciências Econômicas pela UnB. Foi Coordenador de Projetos e Gestão de Indicadores do Ministério da Cultura, e Assistente no Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Atua nas áreas de defesa comercial e da concorrência.

Referências

Banco Central do Brasil [BCB]. (2018a). Série histórica do Balanço de Pagamentos – 6ª edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição de Investimento Internacional (BPM6). Visualizado em 05 de novembro de 2018. Disponível em https://www.bcb.gov.br/htms/infecon/Seriehist_bpm6.asp.

BCB. (2018b). Focus – Relatório de Mercado. Visualizado em 14 de novembro de 2018. Disponível em https://www.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/readout/readout.asp.

Confederação Nacional da Indústria [CNI]. (2014). Serviços e Competitividade no Brasil, Brasília: CNI.

Cuiabano, S. M.; Bertussi, G. L.; Vasconcelos, E. B. X.; Machado, D. L. (2013). Saldo da Conta de Viagens Internacionais no Brasil: a Contribuição da Taxa de Câmbio Real Efetiva e da Renda. Revista Tempo do Mundo, v. 5, n. 1, pp. 89-108.

Feijó, C. A.; Ramos, R. L. O. [org.]. (2003). Contabilidade Social: a Nova Referência das Contas Nacionais do Brasil, Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª edição.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2018). PIB avança 1,0% em 2017 e fecha ano em R$ 6,6 trilhões. Visualizado em 13 de novembro de 2018. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/20166-pib-avanca-1-0-em-2017-e-fecha-ano-em-r-6-6-trilhoes.

International Monetary Fund [IMF]. (2009). Balance of Payments and International Investment Position Manual, sixth edition, Washington, D.C., USA.

Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços [MDIC]. (2018). Serviços. Visualizado em 04 de novembro de 2018. Disponível em http://www.camex.gov.br/servicos.

Organisation for Economic Co-operation and Development [OECD]. (2017). OECD Services Trade Restrictiveness Index (STRI): Brazil. Visualizado em 16 de novembro de 2018. Disponível em http://www.oecd.org/tad/services-trade/STRI_BRA.pdf.

Pereira, L. B. V. Além das barreiras ao comércio de mercadorias: os serviços. (2016). Conjuntura Econômica, v. 70, n. 5., pp. 62-65.

World Bank Group [WB]. (2018). Doing Business in Brazil. Visualizado em 16 de novembro de 2018. Disponível em http://www.doingbusiness.org/en/data/exploreeconomies/brazil.

  1. Cf. Lei 4.595/64.
  2. Como o PIB referente ao 3º trimestre de 2018 não havia sido disponibilizado até a redação deste texto, o autor se baseou no Índice de Atividade Econômica do Banco Central, IBC-Br, indicador que é comumente utilizado como uma prévia do PIB.
  3. Cf. noticiado pelo O Estado de São Paulo em 16/11/2018. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,previa-do-pib-tem-recuo-de-0-09-em-setembro-ante-agosto-aponta-bc,70002610124.
  4. A proposta de Plano de Trabalho está disponível no sítio eletrônico da Consulta Pública SE/Camex 02/2018: http://camex.gov.br/noticias-da-camex/2097-consulta-publica-se-camex-n-02-gt-servicos.

A servicificação da manufatura: conceitos, evidências e implicações

Os serviços correspondem a mais de 2/3 da atividade econômica global, mas representam parcela pequena do comércio de serviços, quando medido da forma tradicional, com base em fluxos brutos. Quando olhamos para a base de comércio em valor agregado da OCDE/OMC (base TiVA), conseguimos uma visão mais informativa sobre a participação dos serviços no comércio global, a qual se eleva de 20% (em termos brutos) para 49%.

O que torna os valores acima tão distintos – e o que torna a base TiVA tão importante para aqueles que estudam serviços – é justamente a participação desse setor nas cadeias globais de valor, não apenas como uma “cola” capaz de integrar etapas de produção fragmentadas globalmente, mas como componente fundamental da formação de valor em cadeias globais.

Não é de hoje que sabemos que os serviços são atividades que criam valor, e que, por isso, merecem estudos que entendam a dinâmica desse setor. O que vamos explorar nesse post é a forma pela qual os serviços estão presentes na cadeia de valor da manufatura. Em particular, buscaremos explicar o fenômeno da servicificação, seus impactos nas cadeias globais de valor e as evidências desse processo. No próximo post, discutiremos as implicações da servicificação para políticas públicas, em particular, para a política comercial.

Entendendo a servicificação

Tal como definido pela Conselho Nacional de Comércio da Suécia, que publicado conteúdos sobre o tema desde 2010, servicificação é o processo pelo qual setores da economia, como manufatura e agricultura,[1] compram e produzem mais serviços que antes, e também vendem (e exportam) mais serviços. Isso leva a uma interconexão cada vez maior entre os demais setores e o de serviços, seja pelo uso de serviços como insumos, como atividades dentro das firmas ou pela venda de serviços de forma agregada (bundled) à bens. A figura abaixo, retirada de Miroudout e Cadesin (2017) ilustra essas três possibilidades.

Fonte: Miroudout e Cadesin (2017)

O aumento da dispersão geográfica das cadeias de fornecedores é um dos fatores que explica o crescimento da servicificação, pois a distribuição de uma cadeia de valor em etapas realizadas em diversos países também implicou no processo de outsourcing de diversos serviços. Isso decorre do papel, já bem conhecido, que as etapas de serviços como padronização, P&D, design, logística, pós-vendas, branding, entre outros, possuem no processo de produção de bens. Assim, a servicificação surge como uma forma de reduzir custos e ampliar a eficiência da produção em cadeias globais. Em essência, é uma estratégia para permanecer competitivo e ampliar lucros (Miroudout,2017). Além disso, esse processo também tem origem na ambição das empresas de aprofundar as relações com o consumidor, por meio do provimento de serviços relacionados aos produtos. Esse novo modelo de negócio contribui sobremaneira para a diferenciação dos produtos, para a fidelização dos clientes e para que se consiga adquirir vantagens competitivas pela segmentação de mercado.

Os primeiros estudos de caso sobre servicificação analisaram tanto cadeias da manufatura como da agricultura. Em ambas, o que se encontrou foram mais de quarenta serviços utilizados até se chegar a etapa final de entrega dos produtos (Conselho Nacional de Comércio, 2013). Os casos mais emblemáticos de empresas que viveram intensamente o processo de servicificação referem-se à Rolls Royce Aerospace e à IBM. A Rolls Royce, firma consolidada do setor de motores e turbinas de avião, visando melhorar seus produtos, investiu de forma sólida no levantamento de informações detalhadas sobre a eficiência de suas turbinas, passando pelo uso de sensoriamento, de grandes bases de dados e sistemas que possibilitassem a análise dos dados e das informações produzidas, e que fosse capaz de dar respostas objetivas sobre o desempenho do que era produzido. O resultado foi o modelo “Power by the Hour”, onde os clientes pagam pelo tempo de uso do motor. A turbina passou a ser a plataforma física por meio do qual a empresa oferece o serviço “empacotado” de monitoramento de desempenho, manutenção, reparo e prevenção de falhas (OCDE, 2017). Atualmente, 53% do faturamento da empresa advém de serviços. No caso da IBM, empresa criada e mantida por muito anos como produtora de hardware, hoje tem 59% de seu faturamento oriundo de serviços.

Servicificação e digitalização: conceitos mais que relacionados

A servicificação da manufatura tem relação próxima com as estratégias e modelos de negócios que surgiram a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais. Tais tecnologias transformaram serviços antes não comercializáveis em comercializáveis, possibilitando o uso mais intensivo de serviços em CGVs. Assim, parte do que medimos como conteúdo de serviços (outsourced ou insourced) é um deslocamento de recursos para tecnologias digitais em todos os estágios da produção (Miroudout e Cadesin, 2017). Um exemplo disso é o impacto da transformação digital para design e P&D: hoje, essas etapas dependem cada vez mais de softwares para modelagem, prototipagem e testes de produtos, adicionando-se a isso o impacto das impressoras 3D ligadas a esses softwares. Revolução importante também ocorreu nas etapas de marketing, vendas e pós-vendas, que hoje são um dos seguimentos mais intensivos em dados da cadeia de valor. É por meio da informação coletada dos consumidores que produtos são melhorados e customizados. Conforme colocou os autores supracitados, a servicificação e a digitalização estão entrelaçadas, sendo parte de uma transformação maior na forma como as firmas criam valor.

Evidências da servicificação das cadeias globais de valor

Serviços como insumos: o papel dos serviços na agregação de valor das exportações

Conforme já colocamos, a base TiVA é ferramenta poderosa para analisar a relação entre setores econômicos nos diversos países, sendo uma base fundamental para a compreensão sobre servicificação em CGVs. Ao analisar a decomposição do valor adicionado da exportação de manufaturas para 2011 (último ano disponível na base), observou-se que o valor adicionado dos serviços responde por 38% das exportações de manufatura em países desenvolvidos, e 32% nos países em desenvolvimento, valor bastante superior ao que se tinha em 1995, primeiro ano para o qual as informações estão disponíveis.

Serviços produzidos nas próprias firmas exportadoras

Sabendo que a servificação também é um processo que faz com que as firmas de setores como manufatura e agricultura produzam mais serviços dentro das mesmas (o chamado serviço in house). Essas atividades podem ser identificadas como sendo serviços, pois, se fossem terceirizadas, elas pertenceriam a segmentos de serviços. Todavia, a servicificação dentro das firmas e algo muito mais difícil de se investigar, tendo em vista que se tratam de informações sobre o processo produtivo das empresas, não presentes em estatísticas nacionais.  Miroudout e Cadesin (2017) buscaram pesquisas sobre força de trabalho e ocupação para evidenciar esse processo, e encontraram que, em média, 18% do valor adicionado das exportações da manufatura vem de serviços produzidos dentro das empresas. Quando se soma essa cifra ao valor adicionado dos serviços utilizados como insumos, o valor adicionado dos serviços às exportações de manufatura eleva-se de 38% para 53%. Para os países da OCDE, de 25% a 60% do emprego em firmas de manufatura estão em serviços como P&D, engenharia, transporte, logística, distribuição, TI, vendas e pós-vendas, gerenciamento e back-office.

Serviços empacotados a bens exportados

O estudo de Miroudout e Cadesin (2017) também conseguiu evidenciar como o setor de manufatura vende serviços empacotados a bens, algo também difícil de se medir utilizando as bases de dados sobre comércio, já que a exportação desses serviços é contabilizado como uma transação totalmente distinta da transação de exportação de um bem. Utilizando a base ORBIS, que contem microdados de firmas,  encontram que, em geral, as firmas de manufatura exportadoras estão envolvidas diretamente com a distribuição de seus produtos. Além disso, a exportação de serviços empacotados a bens responde à ambição das empresas de criar relacionamento direto com o cliente, e assim conseguir agregar mais valor aos produtos e gerar maior faturamento a partir dos serviços providos a esses clientes. Muitas firmas também atuam na etapa de transporte, em particular quando isso requer tecnologias e habilidades específicas.

Observa-se, ainda, que empresas dos mais variados seguimentos vêem, nos serviços, uma grande oportunidade de continuar o relacionamento com o cliente mesmo após a entrega do produto, e garantir o provimento de soluções e demanda recorrente pelo bem. Por exemplo, no caso de máquinas e outros equipamentos de transporte (como aeronaves),  o serviço de manutenção e reparo é um dos principais serviços providos. No caso de químicos e minerais, onde há grau elevado de especificidade para entrega desses produtos, as empresas do seguimento fornecem também os serviços de P&D e engenharia.

Implicações

Buscamos aqui apresentar as distintas formas pelas quais os serviços são combinados com os bens, no processo produtivo, para gerar valor. Como vimos, os serviços podem ser utilizados como insumos;  produzidos pela própria firma (in house); e serem vendidos empacotados a bens. Esse fenômeno, apesar de visto de modo mais forte nas empresas da manufatura dos países desenvolvidos, é um modelo também utilizado por diversas empresas de países emergentes. Ao olhar para a servicificação como um modelo de negócios que reduz custos e aumenta a vantagem competitiva das empresas, rapidamente vislumbramos o potencial que esse processo tem para as empresas e países que estão buscando maior engajamento em cadeias globais de valor. A servicificação permite não apenas otimizar a produção, aumentar ganhos advindos da especialização, mas também implica em maior diversificação do faturamento da empresa, além de ser um grande diferencial na relação com os compradores, que passam a ver na firma de manufatura um provedor de soluções customizadas, criando-se, assim, uma relação de longo prazo e novas possibilidades de geração de valor dentro das empresas.

Nesse sentido, políticas que busquem ampliar a participação em cadeias de valor, tanto downstream como upstream, precisam mostrar-se sintonizadas com a dinâmica de produção da manufatura, que hoje é muito mais complexa e envolve muito mais atores de serviços que antes. Nem todas as etapas de serviços podem ser fragmentadas globalmente. E, para que essa fragmentação de fato aconteça, uma rede de acordos precisa estar estabelecida de modo que as empresas possam aumentar a participação de serviços como intermediários mas também criar valor fornecendo serviços na mesma transação da venda de bens – e aqui há desafios grandes para a política comercial, que exploraremos no próximo post.

 

Referências:

Miroudout, S. (2017). The Servicification of Global Value Chains: Evidence and Policy Implications. UNCTAD Multi-  year Expert Meeting on Trade, Services and Development: Genebra.

Miroudot, S. and C. Cadestin (2017). Services In Global Value Chains: From Inputs to Value-Creating Activities. OECD Trade Policy Papers, No. 197, OECD Publishing, Paris

Conselho Nacional de Comércio, 2013. Just Add Services: a case study on servicification and the agri-food sector. National Board of Trade, Suécia.

OCDE (2017). OECD Digital Economy Outlook 2017, OECD Publishing, Paris.

[1] A definição mais precisa coloca a servicificação como o processo que ocorre em setores que não o de serviços, ie, os “non-services sectores”.

Agenda para competitividade no setor de serviços

O Brasil é um grande importador de serviços e opera recorrentemente com um dos maiores déficits globais neste setor (Em 2016, o Brasil foi o 21º maior importador de serviços, segundo Banco Mundial).

Em 2017, as importações de serviço foram de US$ 42,9 bilhões. As exportações foram de US$ 29,8 bilhões (MDIC, 2018), resultando um saldo negativo de US$ 13,1 bilhões. O déficit na balança de serviços foi quase 50% menor do que o registrado em 2016, quando as importações superaram as exportações em US$ 25 bilhões. Em 2015, o déficit foi de US$ 26,7 bilhões e em 2014, de US$ 27,7 bilhões.

O principal mercado das exportações brasileiras em 2017 foi os Estados Unidos. As vendas ao país somaram mais da metade do total exportado ( quase 54%). Os principais serviços exportados foram aqueles relacionados ao setor financeiro (quase 33%), seguidos dos serviços profissionais (19,8%) e os da Tecnologia da Informação (7%)

A diminuição do déficit deu-se também pelo aumento das exportações (em 2016, as vendas externas totalizaram US$ 18,6 bi e, em 2017 US$ 29,8 bilhões). Número que até então tinha se mantido praticamente estável nos anos anteriores (em 2014, as vendas externas somaram US$ 20,8 bilhões; em 2015, US$ 18,9 bi.) Para que esta tendência de alta seja uma constante estável, é necessário políticas capazes de promover a competitividade do setor como um todo, sem negligenciar políticas setoriais necessárias dada às especificidades de cada setor.

No Brasil, o setor exportador de serviços não enfrenta apenas barreiras externas de acesso a mercados, na medida em que os entraves internos são também responsáveis por dificultar e, em alguns casos, tornar inviável as exportações de serviços.

Em relação às barreiras externas, é importante mencionar a necessidade de se negociar acordos comerciais. O Brasil está atualmente negociando acordos com disposições relacionadas a serviços com a União Europeia, EFTA, México, Coreia do Sul, Chile e Canadá. Novas negociações que estão prestes a se iniciar também incorporarão o tema; como com Cingapura. É necessário, portanto, que sejam identificados interesses ofensivos e defensivos no setor de serviços no Brasil durante as negociações, de forma a garantir que esses acordos espelhem a realidade da economia de serviços no Brasil.

Em relação às barreiras internas, o setor exportador enfrenta problemas relacionados à burocracia, à incidência de tributos e à falta de financiamento para viabilizar as operações de exportação. As dificuldades perpassam, por exemplo, pela falta de uma definição clara de exportação de serviços no ordenamento jurídico brasileiro, dificuldade de enquadrar algumas exportações de serviços em operações beneficiárias de financiamento e de garantias à exportação, assim como a incidência de tributos internos na exportação/importação, contrariamente às disposições constitucionais, as quais excluem da incidência dos impostos nas operações de exportação de serviços.

Hoje, a única disposição que traz uma definição de exportação de serviços é a Lei Complementar nº 116/2003, que dispõe sobre o Imposto Municipal sobre serviços (ISSQN). Segundo o dispositivo, o imposto não incide sobre as exportações de serviços para o exterior do País, a não ser que elas sejam desenvolvidas no país, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.

A definição trazida por este normativo acaba sendo utilizada como parâmetro e como referência por outros dispositivos. A resolução do Simples Nacional também traz esta mesma disposição e o fisco federal se utiliza desta definição em algumas soluções de consulta.

A referência à Lei Complementar n. 116/2003 não seria problema, caso a definição não restringisse a interpretação do que é considerado ou não como uma exportação de serviços. Assim, ao utilizar como parâmetro a definição da Lei Complementar n. 116, exportações de serviços acabam sendo tributadas em nível municipal e federal e algumas operações acabam não sendo enquadradas como exportação de serviços para fins de obtenção de financiamento e garantia ás exportações.

A cobrança de tributos fere frontalmente a disposição constitucional de que os municípios deverão excluir da incidência de tributos municipais as exportações de serviços para o exterior (art. 156, § 3º, II da CF).

É necessário, portanto, alterar a definição de exportação presente na Lei Complementar n. 116/03, pois ela trará ganhos não apenas em termos de isenção de ISS. Na verdade, os benefícios são ainda maiores, pois o ISSQN, ao deixar de ser cobrado, também deixaria de compreender a base de cálculos de outros tributos. Ainda, com uma definição de serviços mais clara, será possível desenvolver políticas para o setor de forma mais eficaz.

É necessário, portanto, revisar a definição trazida pela Lei Complementar n. 116/2003. A nova definição de serviços deve levar em consideração os compromissos assumidos no âmbito do Acordo Geral do Comércio de Serviços da OMC (GATS), na medida em que tanto o Modo 01 quanto o Modo 02 referem-se a serviços executados no Brasil em benefício de pessoas estabelecidas no exterior.

Faz-se necessário, neste sentido, imprimir, em um eventual conceito de exportação de serviços, a ideia de que o “ consumo, fruição, uso, aproveitamento” do serviço ocorra no exterior, independentemente se realizado ou não no Brasil. Assim, é necessário assegurar que, ainda que o serviço seja prestado no Brasil, ele poderá ser considerado uma exportação, na medida em que ele é “ consumido” no exterior. Essa premissa, vale ressaltar, também está de acordo com as diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O setor exportador de serviços necessita de políticas capazes de promover a competitividade dos serviços brasileiros no mercado global. Por conta disso, foi criado, no âmbito da Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior, o Grupo Técnico de Serviços (GT Serviços), com o objetivo de discutir e propor políticas públicas, mais especificamente de comércio exterior, para o setor de serviços. A ideia é abarcar questões internas de competitividade que impactam as exportações e importações de serviços.

As atividades do GT perpassam por iniciativas que vão desde a melhoria do ambiente de negócios, medidas de financiamento e garantias às exportações, economia de serviço e comércio eletrônico, facilitação do comércio de Serviços e reforço de coordenação governamental.

É premente necessidade de políticas que confiram maior estabilidade e previsibilidade para o setor empresarial. Essas dificuldades fazem com que empresas brasileiras busquem se estabelecer em países que fazem fronteira com o Brasil para aproveitar das facilidades trabalhistas e tributárias desses países.

Natasha Martins do Valle Miranda é analista de comércio exterior, atualmente exerce a  função de Assessora Técnica na Secretaria Executiva da Câmara de Comércio Exterior. Possui Mestrado em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP) e gradução em direito.

 

 

Comércio exterior de serviços e balança de pagamentos no Brasil

A figura 1 mostra o comércio de serviços no Brasil desde 1976. O saldo do comércio de serviços foi sistematicamente negativo no período e observam-se dois movimentos de mudança de patamar do déficit: um a partir do final dos anos 1980 e um segundo, mais intenso, a partir de 2004. Em ambos os casos, o aumento do déficit se explica majoritariamente pelo crescimento das importações, o que deu origem a uma espécie de “boca de jacaré”. Em 2014, o déficit chegou a nada menos que US$ 48 bilhões. Ao que parece, teria havido mudança estrutural no comércio de serviços.

De fato, a elasticidade do crescimento das importações de serviços com relação ao crescimento do PIB é de 2,28 para o período completo. Já a elasticidade do crescimento das exportações é de 1,11. Teste de mudança estrutural sugere quebra da série em 2004. Recalculamos as elasticidades para antes e depois daquele ano e encontramos 1,37 e 4,28, e 0,13 e 3,38, respectivamente, para importações e exportações.

Esses números sugerem, primeiro, que as importações de serviços são mais sensíveis à atividade econômica que as exportações; segundo, que, embora ambas as variáveis tenham se tornado substancialmente mais sensíveis à economia a partir de 2004, o coeficiente de importações é significativamente maior que o de exportações; e, terceiro, caso a economia volte a crescer à taxas similares à do produto potencial, que é da ordem de 2,5%, então, tudo o mais constante, observaremos considerável elevação do déficit da conta de serviços.[1]

A figura 2 mostra o saldo comercial total e, separadamente, os saldos comerciais das contas de bens e de serviços. Observa-se que a conta de serviços exerce elevada e crescente influência no saldo comercial total. Embora a corrente de comércio de serviços seja de apenas 1/5 da corrente de comércio de bens, o déficit da conta de serviços praticamente determina o saldo comercial total.

A figura 3 mostra decomposição do saldo comercial total em seus componentes —  os saldos comerciais de bens e de serviços. Conforme sugerido acima, os saldos comerciais no Brasil são “pautados” pelo desempenho da conta de comércio de serviços. Assim, anos com saldos comerciais totais mais modestos ou até negativos são anos com relativamente elevados déficits comerciais da conta de serviços, e vice-versa.

Déficit na conta de serviços não é, necessariamente, um problema. Afinal, pode-se estar importando insumos que elevam a competitividade e a produtividade. Porém, ainda assim, preocupações emergem quando a conta de serviços segue trajetória sistemática de crescimento do déficit, o que pode dar origem à um constrangimento estrutural das contas externas que, eventualmente, pode vir a se tornar um “freio” ao próprio crescimento econômico. Este poderá ser o caso do Brasil.

De fato, para além de elasticidades e de patamar de déficit comercial já elevado, há razões para se esperar aceleração do déficit da conta de serviços ao longo dos próximos anos e, dentre elas, estão as que seguem:

  1. Os serviços estão se tornando tradable e muitos serviços que tradicionalmente são providos localmente por empresas nacionais ou estrangeiras estão, e cada vez mais, sendo providos a partir de terceiros países. Ali incluem-se serviços de agregação de valor e diferenciação de produtos mas, também, serviços de custos. Essa mudança já está reescrevendo a geografia dos investimentos e do comércio do setor de serviços;
  2. Liderados pelos Estados Unidos, países ricos com fortes interesses ofensivos em serviços estão fazendo intensa pressão para a liberalização dos mercados de serviços e para a convergência técnica e regulatória do setor, que é, na prática, o fator mais determinante do comércio do setor ;
  3. Os preços relativos dos serviços, incluindo os com demanda mais inelástica, seguem trajetória de forte crescimento com relação a preços de manufaturas e de commodities, aumentando a parcela dos produtores, gestores e distribuidores de serviços no valor agregado, em detrimento dos compradores de serviços. A mudança de preços relativos se deve à fatores como concentração de mercados e imposição de padrões técnicos privados em serviços, que fomentam e garantem a formação de “quase-monopólios”;
  4. Devido à mudanças tecnológicas de produção e de gestão da produção, a parcela dos serviços, incluindo os digitais, na formação do valor adicionado de bens, commodities e outros serviços já é elevada, mas seguirá aumentando, beneficiando os produtores, distribuidores e gestores de serviços (pense na smile curve de cadeias globais de valor);
  5. O consumo B2C e B2B de serviços, incluindo os digitais, que já é elevado, deverá aumentar ainda mais ao longo dos próximos anos;
  6. O efeito-rede e o efeito-plataforma conferem enormes poderes para os desenvolvedores e gestores de plataformas e têm criado espaço para práticas discriminatórias que distorcem os mercados.

A ausência, no país, de políticas industriais, políticas de financiamento, políticas de investimentos e políticas de comércio exterior para o setor de serviços deverá aumentar a dependência de serviços importados e a fragilidade das contas externas. Assim, tudo o mais constante, o país terá que fazer enorme esforço exportador de bens e commodities para mitigar os crescentes déficits comerciais de serviços.

O tema é, certamente, complexo e, infelizmente, poucas pessoas se interessam pelo assunto. Mas o tempo não para e já passou da hora de colocarmos o setor de serviços nas agendas das políticas pública e privada.

  1. A mudança na trajetória das importações e das exportações de serviços a partir de 2014 se explica, ao menos em parte, pela recessão e pelo envolvimento de grandes empresas de engenharia brasileiras em problemas de governança, o que afetou consideravelmente as exportações de projetos e de outros serviços de engenharia.

A Desoneração Tributária da Exportação de Serviços e a Possibilidade de Eliminação de Resíduos da Cadeia

Um dos legados da famigerada greve dos caminhoneiros foi a divisão com a sociedade brasileira dos ônus da desoneração tributária do diesel. Ao afetar a meta de arrecadação e sendo pressionado para não aumentar a carga tributária, o governo federal deliberou cobrir o deficit provocado, pela redução ou eliminação, à toque de caixa, de diversos incentivos vigentes, como é o caso do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras -Reintegra.

O art. 21 da Lei nº 13.043/2014, com a disciplina do Decreto nº 9.393, de 30 de maio de 2018, reduziu a alíquota para os créditos do Reintegra de 2% para 0,1%, com vigência imediata, a despeito de a regulamentação anterior determinar que essa alíquota seria mantida até o final do exercício.

O Reintegra permite que empresas que exportam determinados produtos apurem crédito no valor de percentual fixado sobre a receita auferida na operação de exportação. A finalidade da restituição é a devolução de parte dos resíduos tributários da cadeia de produção de bens exportados, em consonância com o princípio de comércio internacional, de que não deverá haver a exportação de tributos. A Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 540/2011, convertida, posteriormente, na Lei nº 12.546/2011, discorreu sobre a necessidade de combater as dificuldades das empresas exportadoras brasileiras. Os resíduos tributários existentes na cadeia produtiva de bens manufaturados reduz a competitividade de exportações brasileiras, pois representam de 5% a 10% do custo do produto exportado, a depender de fatores tais como a extensão da cadeia produtiva.

O Reintegra não se aplica aos serviços, apenas a produtos manufaturados. Mas a discussão que veio à baila com as medidas compensatórias decorrentes da greve dos caminhoneiros, trazidos pelos contribuintes exportadores prejudicados, é a indispensabilidade da eliminação dos resíduos tributários das cadeias de bens exportados.

Note-se que se a cumulatividade tributária afeta as mercadorias exportadas, os serviços padecem de uma deficiência na estrutura de tributação muito maior, considerando que a tributação sobre os serviços brasileira não dispõe de técnicas para a eliminação dos resíduos tributários.

A base de cálculo do imposto sobre serviços -ISS é o preço bruto do serviço, com alíquotas máxima de 5%, não se permitindo a dedução de insumos empregados na prestação de serviços, nem o quanto pago nas operações anteriores, de acordo com suas normas gerais, determinadas pela Lei Complementar n. 116/2003. A única exceção é o caso de serviços de construção civil, em relação aos quais há a previsão de dedução do valor de materiais e o das subempreitadas já oneradas pelo imposto.[1]

Em regra, não há a possibilidade de dedução dos materiais empregados para a prestação dos serviços, que já são gravados pelo IPI e pelo ICMS, gerando dupla imposição econômica, situação que não ocorrerá em ordenamentos jurídicos que tributam de forma unificada mercadorias e serviços.

Uma justificativa possível para a estrutura cumulativa do ISS é o fato de sua alíquota ser relativamente baixa, aliada ao fato de sua competência ser disseminada entre 5570 competências tributárias municipais: não oneraria demasiadamente aos contribuintes, ao mesmo passo que não ofereceria maiores dificuldades de fiscalização às administrações tributárias, pela simplicidade de sua estruturação.

Entretanto, sob a perspectiva do comércio exterior, da dificuldade de quantificação da carga tributária, que dependerá da configuração da cadeia de serviços, decorre a violação do princípio da não-discriminação, em desfavor do contribuinte brasileiro, pois o importado será onerado de forma distinta do fornecido internamente, uma vez que não é possível precisar a carga tributária interna.

A despeito de a alíquota máxima do ISS ser relativamente baixa, o que poderia compensar as múltiplas incidências ao longo da cadeia, não promove a neutralidade, vetor a ser perseguido por uma política tributária eficiente. Um dos efeitos de uma tributação cumulativa é a verticalização da cadeia, concentrando-se os diversos prestadores de serviço por razões alheias à eficiência do mercado, mas apenas para fugir à tributação.

Poder-se-ia se argumentar que não é inerente aos serviços a cumulatividade, pois, em geral, esgotam-se em uma única prestação, com algumas exceções, como nas hipóteses serviços de administração de outros serviços. Classicamente, os serviços não se inseririam em uma cadeia, isto é, esgotavam-se em uma única relação jurídica.

Todavia, o perfil das formas de serviços tem se alterado substancialmente em virtude da evolução tecnológica, tornando-se muito mais complexas e atreladas a diversos prestadores. A tendência é que quanto mais sofisticado o serviço, maior será a cadeia de prestadores e maior será o número de subcontratações de serviços, como o caso de serviços de engenharia e de elaboração de softwares.

Acresça-se que, segundo Anita Kon, ao longo do processo de internacionalização produtiva, os serviços, que numa visão tradicional, eram entendidos como não comercializáveis internacionalmente (non tradable), devido à sua intangibilidade e em vista de sua pouca representatividade nas pautas de exportação, mudaram o seu status. As mudanças tecnológicas e a intensificação do processo de globalização produtiva e comercial, incrementaram o fluxo de serviços, especialmente nas áreas de transporte, consultoria, comunicações, de maneira que o seu mercado internacional ampliou-se consideravelmente.[2]

No Brasil, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), baseados no Sistema Integrado de Comércio Exterior de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que Produzam Variações no Patrimônio (Siscoserv), as exportações de serviços no Brasil representam pouco, se comparadas às de mercadorias, embora o setor terciário represente pouco mais de 70% (setenta por cento) do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB), como se depreende:

Dos serviços exportados, dentre os mais relevantes estão serviços profissionais, técnicos e gerenciais, de consultoria, financeiros :

A política tributária tem seu papel na contradição desses dados. A cumulatividade do ISS e a “quase-cumulatividade” do PIS e Cofins, incidente sobre a receita das prestações de serviços, que também oferece dificuldades para os contribuintes eliminarem a cumulatividade da cadeia dos bens exportados, são uma das faces desse problema.

Dificuldades adicionais serão encontradas pelos contribuintes para implementar a desoneração nas saídas voltadas às exportações, em virtude da própria dificuldade de aplicação da norma, pela divergência de intepretação pelas administrações tributárias de definições como as de “local de desenvolvimento” e “de consumo” dos serviços.

Todavia, esses obstáculos para desoneração dos serviços exportados, são inconstitucionais. Defende-se que o legislador constitucional optou pela adoção do princípio do destino na tributação das operações de comércio exterior, em detrimento do princípio da origem, como elemento de conexão determinante do exercício da competência tributária. O princípio do destino implica na desoneração da carga tributária nas saídas voltadas à exportação, além da restituição ou creditamento da carga tributária que incidiu na cadeia de produção e distribuição do bem, internamente.

Contrariamente ao que existe no imposto de renda, em que há uma disputa internacional sobre a aplicação do princípio da residência ou fonte, como critério de determinação de competência tributária, há um notável consenso no comércio internacional pela aplicação do princípio do destino, optando as economias mundiais por desonerar as exportações, enquanto que no local de consumo desses bens, recairá a carga tributária.

 

Conforme o saudoso jurista Ricardo Lobo Torres, o princípio do destino está intimamente conectado e harmonizado com o princípio da territorialidade, com a ideia de Justiça e com o princípio da capacidade contributiva, ao estabelecer que os tributos devam ficar no país onde foram consumidos os bens, sendo o vetor para se evitar a dupla tributação no comércio internacional[3]

Nas palavras do também saudoso professor Alberto Xavier[4]:

Os impostos de consumo sobre as transações são geralmente lançados no país do consumidor, revertendo em benefícios dos Estados nos quais são consumidos os bens sobre que incidem. Precisamente por isso, o país de origem, isto é, o país no qual o bem foi produzido, procede normalmente à restituição ou isenção do imposto no momento da exportação; e, por razões simétricas, o país do destino, onde o bem será consumido, institui um encargo compensatório sobre as mercadorias importadas, em ordem de colocá-las ao menos em pé de igualdade com os produtos nacionais.

A Constituição de 1988 adota claramente o princípio do destino no comércio internacional, pois determina que os tributos não incidirão na exportação dos bens. Em diversos dispositivos consolida-se essa opção do legislador constitucional, como o art. 153, §3o, III, que determina que o IPI “não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior”; o art. 155, §2o, X, ‘a’, com a redação da EC n. 42/2003, que determina que o ICMS não incidirá “sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”; o art. 156, §3o, II, que determina, para o ISS, que cabe à lei complementar “excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior”; o art.149, §2o, I, que determina que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico “não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação” (com a redação da EC n. 33/2001) e “incidirão também sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços” (com a redação da EC n. 42/2003).

Em um ambiente internacional cooperativo de tributação, a escolha pela eficiência econômica e por conseguinte, pelo princípio do destino é inequívoca, pois ao se permitir que um produtor não direcione o seu comportamento por força da tributação de insumos, determinando-se que a carga tributária recaia sobre o consumidor final, incrementa-se a produção e, assim, um governo pode assegurar que parte dessa produção excedente seja capturada pela tributação dos lucros, remanescendo o suficiente para o benefício dos consumidores.

E nesse ponto, retorna-se à ideia lançada no início do texto: o Reintegra, ao possibilitar a redução (não eliminação) dos resíduos tributários oriundos da tributação interna, não é um favor governamental, mas uma obrigação do legislador infraconstitucional. E mais: deve ser estendido aos serviços. Quanto ao ISS o art. 156, §3o, II da Constituição determina que a lei complementar deve excluir a incidência do ISS dos serviços exportados: não apenas a incidência do serviço exportados, como de sua cadeia.

Se no Brasil o princípio do destino tem matriz constitucional, a sua realização não é faculdade do Estado, sendo dever do legislador incluir as imunidades/isenções nas exportações e a constituição de técnicas que viabilizem o aproveitamento de créditos de saídas direcionadas à exportação, na proporção da carga tributária incidente internamente.

A tributação cumulativa traz prejuízos à alocação de recursos e à competitividade dos produtos nacionais, tanto no mercado externo como no doméstico, pois altera de forma incontrolável os preços relativos da economia. No comércio exterior, a realidade da cumulatividade prejudica a competividade das exportações brasileiras. Em relação ao custo dos bens exportados, é difícil a recuperação da carga tributária incidente sobre a cadeia de produção e comercialização, relativa aos insumos, bens de capital e à gestão de negócios.

E se essa discussão ainda necessita amadurecer no comércio exterior de mercadorias, no caso dos serviços, em que as mesmas premissas podem ser aplicadas, a discussão é incipiente.

A não-cumulatividade é técnica expressamente imposta constitucionalmente apenas para o IPI, o ICMS e mais recentemente, para o PIS e Cofins. Portanto, em princípio, não haveria a obrigação da municipalidade de instituir técnicas de implementação de não-cumulatividade para o ISS.

Não obstante, a cumulatividade da tributação dos serviços ofende a diversos preceitos constitucionais. Assim, como justificar que aquele que forneça serviços mais sofisticados e com maior peso econômico, seja mais gravemente tributado? Ademais, ao se estabelecer uma estrutura de tributação que verticalize a cadeia de produção, haverá não só ofensa à neutralidade, como aos vetores constitucionais da Ordem Econômica.

Essas são apenas algumas provocações que apontam para a estrutura anacrônica das técnicas de tributação sobre os serviços, que devem ser repensadas em um contexto econômico em que o setor terciário participa de forma crescente no PIB brasileiro.

  1. Observando-se que do projeto original da Lei Complementar n. 116/2003, foi vetada a possibilidade de dedução dos valores despendidos com terceiros pela prestação de serviços dos hospitais, laboratórios, clínicas, medicamentos, médicos, odontólogos e demais profissionais de saúde, por cooperativas médicas.
  2. KON, Anita. Nova Economia Política dos Serviços, p.53 et seq. São Paulo, Perspectiva, CNPq, 2015.
  3. TORRES, Ricardo Lobo.O Princípio da Não-Cumulatividade e o IVA no Direito Comparado. MARTINS, Ives Grandra da Silva (coord.). Série Pesquisa Tributárias, no 10, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 161.
  4. Direito Tributário Internacional, 2a ed. Coimbra: Edições Almedina, 2014, p.238-239

O setor de serviços tem papel diferenciado na redução da desigualdade de gênero?

A igualdade de gênero é, sem dúvida, um tema que ganhou espaço no debate de comércio internacional. O empoderamento feminino foi objeto de Declaração Ministerial Conjunta na 11ª Conferência Ministerial da OMC realizada em 2017 na Argentina, além de ser o Objetivo #5 da Agenda para Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, negociada em 2015. Ademais, iniciativas relacionadas à importância da participação das mulheres no comércio ganham força, como o #SheTrades do International Trade Center e a rede de GenderChampions das Nações Unidas. Alguns países, como o Canadá, já tomaram a decisão de incluir a questão de maneira horizontal em todos os seus acordos de comércio. No Brasil, o tema também ganhou força e espaços para discussão, como no blog WomenInsideTrade, por exemplo.

O setor de serviços aparece de maneira recorrente nessas discussões como um setor Gender Champion. O argumento é de que, além de ser um setor chave para o desenvolvimento econômico, o setor de serviços é responsável por uma alta parcela do emprego feminino, de maneira que o seu desenvolvimento poderia ter um importante papel na redução da desigualdade de gênero, tanto no comércio internacional, quanto no emprego da força de trabalho doméstica.

De fato, estatísticas indicam alto nível de emprego feminino no setor de serviços, que corresponde a quase 50% do emprego feminino global total[1]. Em economias avançadas, a porcentagem de mulheres trabalhando no setor de serviços chega a 85%. Em países em desenvolvimento, apesar de a maior parte das mulheres estarem empregadas no setor agrícola, a parcela de mulheres que trabalha no setor de serviços aumentou 7,6% entre 1992 e 2012, e tem tendência crescente[2].

Contudo, um olhar mais detalhado sobre esses dados mostra que as mulheres parecem ter uma participação concentrada em determinados subsetores, quando comparadas com os homens. A Figura 1 mostra que os setores “predominantemente femininos” são atacado e varejo, hotéis e restaurantes, educação, saúde e trabalho social. Esses subsetores são, usualmente, caracterizados por pagamentos baixos e arranjos informais de trabalho. A força de trabalho masculina, por outro lado, está mais concentrada em serviços relacionados às atividades de manufatura, construção, agricultura e transportes e comunicações, subsetores usualmente responsáveis pela maior geração de valor agregado e, consequentemente, maiores salários.

Figura 1 – Diferenças na média das participações em subsetores, por sexo (Masculino – Feminino)

Últimos dados disponíveis: 2000

Fonte: The Gender Dimension of Services.

 

Dessa forma, apesar de o setor de serviços de fato empregar mais mulheres que o setor industrial, os dados sugerem que o setor tende a perpetuar a desigualdade de gênero, no sentido de que a força de trabalho feminina está empregada majoritariamente em subsetores de menores salários, menor geração de valor agregado e arranjos de trabalho informais, enquanto os subsetores de alta geração de valor agregado e salários maiores continuam com força de trabalho majoritariamente masculina.

A maneira correta de combater a desigualdade de gênero reside no combate aos motivos que levam as mulheres a atuarem, tanto no setor industrial quanto no setor de serviços, em trabalhos com menor remuneração e menor geração de valor agregado.

Tomemos como exemplo a chegada iminente da Revolução Industrial 4.0. Como se sabe, a Revolução Industrial 4.0 é marcada pela automação da indústria, processos influenciados por inteligência artificial, internet das coisas e intenso fluxo de dados. É, portanto, válido afirmar que carreiras promissoras para o futuro estão relacionadas a tecnologia da informação e comunicação, ciência da computação e engenharia. Um combate eficaz à redução da desigualdade de gênero seria proporcionar a igualdade de participação feminina e masculina desde a formação, para que o resultado se configure no momento de emprego da força de trabalho.

Infelizmente, estatísticas sugerem o contrário. As figuras 2, 3 e 4 apresentam dados de obtenção de diploma em carreiras de humanas e artes (2), tecnologia da informação e comunicação (3) e engenharia, manufatura e construção (4).

Os dados mostram que no Brasil e nos países da OCDE, mais de 80% dos diplomas na área de tecnologia da informação e comunicação são concedidos a homens. Na área de engenharia, manufatura e construção, o valor é similar, atingindo 70%. Os diplomas concedidos às mulheres se concentram, sobretudo, na área de humanas e artes, em que aproximadamente 70% dos diplomas nos países da OCDE, e 60% no Brasil, são concedidos a pessoas do sexo feminino.

Figura 2. Diplomas concedidos a homens e mulheres em carreiras de humanas e artes, 2015

 

Figura 3.  Diplomas concedidos a homens e mulheres em carreiras de tecnologia da informação e comunicação, 2015

Figura 4. Diplomas concedidos a homens e mulheres em carreiras de engenharia, manufatura e construção, 2015

 

Fonte: OCDE

 

Iniciativas que trazem a questão da desigualdade de gênero para o centro do debate são importantes e merecem reconhecimento. É digno de destaque esse importante momento em que a igualdade de gênero tem a atenção dos países, de organismos internacionais e da mídia. É necessário, contudo, olhar a questão com uma lente ajustada para identificar os fatores que levam à desigualdade. Buscar incentivar setores, subsetores ou áreas do comércio que possuem maior participação feminina, sem o devido trabalho de avaliação, pode apenas perpetuar a desigualdade de gênero, sendo ineficaz ou tendo o efeito inverso do esperado.

[1] ILO. Global Employment Trends 2014. Geneva: International Labour Organization, 2014.

[2] ILO. Global Employment Trends for Women 2012. Geneva: International Labour Organization, 2012

O que querem os países nas negociações de e-commerce?

O comércio digital tem crescido rapidamente no mundo todo. De acordo com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as vendas globais de bens e serviços pela internet alcançaram US$ 25,7 trilhões em 2016. Desse valor, 90% foram transações entre empresas (B2B). Como consequência, provisões sobre comércio digital cresceram substancialmente nos âmbitos dos acordos regionais de comércio com o objetivo de remover e evitar barreiras ao livre fluxo de dados e conter o surgimento do chamado “protecionismo digital” ou proteger e resguardar interesses nacionais associados à esta agenda.

Dado mais recente da Organização Mundial do Comércio mostra que 80 dos 305 acordos notificados à instituição têm provisões ou capítulos sobre o tema. Quando se olha apenas os acordos recentemente notificados, o que se vê é que a vasta maioria dos acordos já abarcam temas de e-commerce. Com os vários acordos ora em negociação bilateral e regionalmente, tudo indica que esse número ainda crescerá bastante nos próximos anos.

Em análise feita pela OMC focada em 63 acordos regionais com capítulos específicos sobre comércio eletrônico, entre eles o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CTPP), seriam os países desenvolvidos que estariam a “puxar” aquelas negociações. Estados Unidos, Cingapura, Austrália, Canadá e Coreia do Sul são os países que mais alavancaram o tema de e-commerce em ARCs. Muitos países em desenvolvimento hoje têm acordos com essas provisões à reboque da demanda de países desenvolvidos para fechar negociações.

Os temas que compõem os acordos variam bastante, não apenas em conteúdo, como, também, em profundidade dos compromissos. A maior parte inclui cláusulas de não-tributação de transmissão eletrônica, cooperação, proteção de dados pessoais e do consumidor. Em menor escala, mas também frequente, estão temas de aplicabilidade das regras da OMC ao comércio eletrônico, comércio sem papel, tratamento não-discriminatório de produtos digitais e autenticação eletrônica. Questões mais controversas, como localização de servidores e código-fonte, estão presentes apenas em acordos mais recentes. O formato desses acordos também varia — muitos têm capítulos separados para comércio digital, enquanto outros preferiram deixar o tema no capítulo de serviços.

Acordos ainda em negociação ilustram bem as posições dos países em relação ao tema de comércio digital. Na proposta apresentada na OMC ou nos textos em negociação com México e Chile, já é possível ver com clareza os pontos importantes na negociação para os europeus: a proibição da imposição de impostos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e o banimento de procedimentos de autorização focada apenas em serviços online “por motivos protecionistas” (colocado como princípio de não-autorização prévia), e o aceite de contratos e assinaturas eletrônicas.  O bloco ainda negocia o tema com o Mercosul, e o capítulo de comercio eletrônico ainda requer alguma convergência e a definição de exceções à aplicação das provisões.

O que se vê nesse e em outros acordos recentes é reflexo do avanço da União Europeia na promoção da economia digital no bloco, como o “mercado digital comum”, e na regulação sobre várias questões cruciais para a economia digital, como a proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais (autenticação eletrônica, por exemplo).

Ao colocar a proteção de dados pessoais como “não negociável” em acordos de comércio, por se considerar um direito fundamental, a Comissão Europeia retira o tema de pauta das negociações bilaterais. A regulação sobre proteção de dados europeia (GDPR, na sigla em inglês), que entra em vigor dia 25 de maio, responde à demanda dos cidadãos europeus por mais transparência sobre quem tem seus dados, de onde eles vieram e com quem eles são compartilhados. Ao mesmo tempo, o bloco tem trabalhado em provisões para evitar medidas protecionistas sobre o fluxo de dados entre fronteiras, ao tempo que garantam a proteção e a privacidade dos dados no patamar colocado pelas novas regras no bloco.

Apesar de terem se retirado das negociações do Acordo Transpacífico (originalmente TPP e agora CTPP) como um dos primeiros atos oficiais da administração Donald Trump e de terem apresentado diversas críticas à OMC em relação a comércio eletrônico, os Estados Unidos vêm firmando posição naquela Organização e destacando que o comércio digital segue como essencial para a economia do país, o que está em linha com a condição de sediar muitas das maiores e mais influentes empresas de economia digital, incluindo plataformas de e-commerce.

A posição dos americanos na OMC seguiu em defesa do livre fluxo de informações e de transferência de dados entre fronteiras, não exigência de localização de servidores e proibição do bloqueio de conteúdo online. Advoga-se pela não tributação sobre transmissões eletrônicas, não-discriminação no tratamento de produtos digitais, proteção a código-fonte e não restrição à encriptação. Trata-se de um claro esforço para avançar as discussões sobre comércio eletrônico na Organização e reduzir as possibilidades de barreiras digitais aos fluxos de dados, algo vital para o atual modelo de negócios das empresas super-hegemônicas americanas de tecnologia digital.

Já no continente africano, o tema do comércio eletrônico é dominado por um pequeno grupo de países, entre eles Egito, África do Sul, Gana e Etiópia. A região tem baixíssima participação no comercio digital global (inferior a 1%) muito em virtude dos grandes desafios que a região enfrenta, como acesso à eletricidade, tecnologia da informação e comunicação (TIC), logística, baixo uso de métodos de pagamentos eletrônicos, pouco acesso a cartão de crédito, fraca penetração bancária e falta de conhecimento sobre TI e habilidades ligadas a e-commerce, tanto de empresas como de consumidores.

O tema de comércio eletrônico não está na mesa nos acordos que a região da África está negociando, como é o caso da Zona de Livre Comércio Continental (CFTA, na sigla em inglês). No âmbito multilateral, o Grupo Africano, que não é composto por todos os países do continente, durante as reuniões pré-Ministeriais de Buenos Aires, mostrou grande preocupação com as implicações de novas regras em e-commerce e com a potencial restrição que tais regras colocariam sobre o espaço para políticas industriais digitais voltadas ao desenvolvimento da região. Uma adoção de regras “prematuras” poderiam reduzir ainda mais, na visão do bloco, as possibilidades futuras de catching up de crescimento econômico e tecnológico.

A Índia também está entre os países com ressalvas quanto ao avanço nas negociações em e-commerce na OMC. O país tem tido forte expansão do mercado de comércio eletrônico e da penetração da internet e de smartphones e tem receio de que as novas regras multilaterais prejudiquem o crescimento das plataformas de e-commerce nacionais. No último documento circulado pelo país na OMC, posicionaram-se contra o avanço nas negociações de regras em comércio eletrônico, tal como o Grupo Africano. O país assinou apenas um acordo que cobre o tema de comércio eletrônico, provavelmente por demanda da contraparte cingapuriana.

Em lado oposto, não há região mais promissora no comércio eletrônico que o leste da Ásia. A região já tem alguns dos gigantes globais da internet e do e-commerce e ao menos 1 de cada 3 novos unicórnios são daquela região. A região tem um mercado digital pujante, com forte aumento anual no número de consumidores. A China, sozinha, é, hoje, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo, respondendo por 40% das transações globais. Nessa condição, a região tem uma postura diferente da de outros países em desenvolvimento. Afinal, a região se posiciona para ser parte do mainstream da indústria global do e-commerce e da economia digital. Ainda que o tema não se reflita em números de acordos assinados, já é possível ver apontando no horizonte as demandas que o país tem para seguir avançando na provisão de bens e serviços digitais para os mais diversos mercados.

Já o Brasil segue negociando acordos com União Europeia, Chile, México, Índia, Canadá e Associação Europeia de Livre Comércio (EEFTA) e tem mandato negociador já aprovado para negociações com a Coreia do Sul e conversas ainda preliminares com Cingapura. O país segue com participação ativa nas negociações na OMC, seguindo o indicado na Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico. Com o crescimento do interesse de países desenvolvidos por provisões em comércio eletrônico, alguns desses acordos passam a repercutir aqueles anseios. Na condição de país essencialmente “usuário” das tecnologias digitais, o Brasil tem sido cauteloso nas negociações de forma a resguardar espaço de política. O país tem colocado na mesa a necessidade de associar o e-commerce a preocupações de desenvolvimento econômico. Afinal, tem ficado cada vez mais evidente a tendência de concentração do mercado de e-commerce em nível global em torno de um pequeno punhado de grandes plataformas, bem como a distinção entre os benefícios de se “usar” e-commerce e os benefícios de se “desenvolver, distribuir e gerenciar” plataformas de e-commerce, o que é prevalecente para alguns poucos países. De fato, já se identificam evidências de que o hiato entre esses dois grupos de benefícios poderá ser a fonte fundamental de aumento da desigualdade de renda entre países.

Pela análise dos acordos em andamento, já é possível ver convergência para alguns temas centrais, que devem acabar sendo os principais assuntos a terem resultados em um eventual acordo multilateral sobre o tema. A grande presença do comércio digital em acordos regionais e bilaterais é uma clara resposta à ânsia dos países em avançar na agenda antes que mais barreiras ao comércio digital e ao fluxo de dados sejam aprovadas em nível doméstico.

Os países que têm maior receio quanto ao avanço da economia digital e do poder das mega-empresas digitais sobre as suas economias muitas vezes têm dificuldades em colocar a sua posição sobre um tema cujo alcance ainda não está claro. Acordos de comércio apresentam inúmeras frentes de negociação, sendo difícil consolidar posição em economia digital frente às demandas prementes e bem mapeadas em bens,  investimentos, regras de origem e compras públicas, por exemplo.

Orquestrar todos os interesses é matéria difícil quando se tem maior conhecimento e tactibilidade nos efeitos das provisões para o comércio entre os potenciais parceiros em temas tradicionais. Todavia, cada vez mais, os países atentam-se para a importância de se olhar com cautela para o que os capítulos de comércio eletrônico contemplam, o que torna ainda mais importante o engajamento em fóruns multilaterais de forma a manter espaço suficiente para políticas públicas digitais que permitam aos países, em especial os em desenvolvimento, otimizar os benefícios da revolução digital.

Migração e comércio de serviços

A oferta de serviços a serem transacionados no mercado internacional é – como de um modo geral ocorre com as mercadorias – fortemente determinada pelas vantagens comparativas de um país. Estas, por sua vez, em geral guardam relação com a disponibilidade de fatores de produção, embora possam ser alteradas ao longo do tempo por medidas de política. A existência de economias de escala em alguns setores ou a existência de estruturas concentradas de mercado são elementos que podem vir a influenciar o grau de especialização de uma economia, na sua inserção internacional.

No entanto, e à diferença do que ocorre com mercadorias, no comércio de serviços a relação de economias de escala com o desempenho exportador não é imediata nem assegurada.

Há casos, por exemplo – à diferença de empresas manufatureiras – em que as empresas produtoras de serviços de fato experimentaram desempenho decrescente, ao tentar se diversificar no mercado internacional. Isso pode ser devido (Capar, Kotabe (2003)) a que: i) diversos países mantêm controle estrito sobre o investimento em diversos setores de serviços, ii) os serviços ofertados por empresas transnacionais aos consumidores locais podem ter de sofrer um grau maior de adaptação do que o que se observa com produtos industrializados, dadas as diferenças linguísticas e culturais ou iii) diversos serviços requerem simultaneidade na produção e consumo, tornando necessário, portanto, que a empresa fornecedora mantenha um unidade local.

Além disso, os serviços frequentemente demandam trabalho específico que demanda habilidades específicas. Isso os torna menos suscetíveis de capturar economias de escala do que, por exemplo, a produção de manufaturas.

Essas peculiaridades da produção e comercialização de serviços, associadas à característica de que as barreiras ao seu comércio são predominantemente associadas a legislações e práticas internas de cada país, fazem com que as transações em serviços possam ser influenciadas por elementos como a migração de fatores produtivos e a produção em cadeias de valor.

Aqui não se trata de considerar os chamados “Modo 3” (presença comercial – oferta de serviços de parte de um profissional estabelecido em um país no território de outro país) ou “Modo 4” (presença de pessoas naturais – serviços ofertados por nacionais de um país no território de outro país) da Organização Mundial do Comércio, mas simplesmente o aumento da disponibilidade de oferta de indivíduos de outros países, que tomaram a decisão de migrar.

Suponha que os profissionais sejam pagos segundo sua produção marginal, num modelo com dois países. Isso pode ser representado como na figura a seguir. Os gráficos mostram a quantidade de trabalho no eixo horizontal e o produto marginal no eixo vertical.

Suponha que o País A tem um estoque inicial de 0LA e o País B um estoque de OLB. 0LA é claramente maior que OLB: o fator mão-de-obra é mais abundante no País A do que em B. O fator trabalho é mais barato em A. Isso é representado pelo nível de remuneração inicial em A, correspondente a wA, mais baixo do que o salário médio wB, pago aos trabalhadores no País B.
Suponha que não existam restrições à migração. A informação relativa a esse diferencial de remunerações motivará os trabalhadores do País A a migrarem para o País B.

À medida em que os trabalhadores migrem do País A para o País B, o número de trabalhadores no País A será reduzido para OL’ A < OLA, ao mesmo tempo em que haverá maior disponibilidade de trabalhadores no País B: sua força de trabalho aumentará de OLB para OL’ B.

Como resultado da menor disponibilidade de trabalhadores no País A, o fator trabalho se tornará mais caro e os ganhos com salário serão elevados de wA para w’ A. Pelo mesmo processo, e em sentido inverso, a maior disponibilidade de trabalhadores no País B tenderá a reduzir o nível de salário médio para w’ B.

É mais provável que nem w’ A nem w’ B sejam atingidos, uma vez que por hipótese não há restrições ao movimento de trabalhadores entre os dois países, e é razoável supor alguma reversão do processo migratório.

Em teoria, haverá algum ponto de equilíbrio intermediário, resultante do movimento em ambas direções. Isso é provável que ocorra quando o estoque de trabalhadores no País A atingir LAE no País A e LBE no País B. De ser assim, as remunerações médias dos trabalhadores em ambos os países tenderão ao nível de wAE no País, semelhante ao nível de wBE no País B.

E o que isso tem a ver com o comércio de serviços?

Mais uma vez, a teoria do comércio de mercadorias pode ajudar. A influência do processo migratório sobre a composição do comércio externo é o foco do chamado Teorema de Rybczynski.

Segundo essa formulação, um aumento exógeno na oferta de um fator de produção, por exemplo, mão-de-obra, numa dada economia, fará com que aumente a produção e a exportação dos produtos em cujo processo produtivo o fator trabalho é empregado de maneira mais intensiva, pelo simples fato de que esse fator terá se tornado mais barato. Essa economia desenvolverá (ou intensificará) vantagem comparativa em produtos intensivos em trabalho.

A mesma lógica se aplica, evidentemente, se em lugar de migração de trabalhadores ocorrer um aumento significativo no influxo de capital: a produção e as exportações do país se tornarão mais intensivas em capital.

Essa lógica pode ser adaptada a um movimento de número expressivo de trabalhadores, de tal modo que isso venha a afetar a estrutura produtiva da economia receptora. Da mesma forma, algo nessa mesma linha pode ser inferido para o caso de movimentos migratórios de trabalhadores com qualificação específica, como advogados ou engenheiros.

Um exemplo de migração com efeito sobre a prestação de serviços é o comércio de atletas. Em alguns países a seleção nacional, por exemplo, de futebol, é composta por indivíduos nascidos em outros países. Em alguns casos, tem sido a presença de jogadores estrangeiros que possibilitou alguns times a adquirirem dimensão internacional. Um exemplo da lógica de Rybczynski.
Trabalhadores migrantes podem substituir trabalhadores nativos no desempenho de atividades no exterior, por exemplo, gerando um efeito de redução de custos que pode contribuir para elevar a produtividade das empresas. Além disso, trabalhadores estrangeiros podem contribuir para reduzir custos comerciais, ao melhorar os fluxos de informação.

No que se refere especificamente à exportação de serviços, essa é uma atividade que pode demandar a superação de barreiras, como um melhor entendimento das idiossincrasias dos países de destino. Nesse sentido, os imigrantes provenientes desses países podem desempenhar um papel importante, ao contribuir para melhorar esse grau de conhecimento. A comercialização de serviços, ao demandar conhecimento do idioma e expressões locais, peculiaridades institucionais e práticas de outro país, pode se beneficiar de maneira expressiva da ajuda de migrantes.

Um estudo feito para o Reino Unido (Ottaviano/ Peri/ Wright (2015)) encontrou evidência empírica de que os imigrantes efetivamente ajudaram a reduzir custos, portanto a elevar a produtividade das empresas exportadoras. Ao proporcionarem conhecimento específico sobre seus países de origem, contribuíram para estimular exportações.

Segue-se, portanto, que o influxo de mão-de-obra numa economia estimula a exportação de serviços que são mais dependentes de custos do trabalho e de atributos específicos que podem ser proporcionados pelos migrantes.

Segundo o modelo de Rybczynski, é razoavelmente previsível que o país que absorve migrantes será beneficiado pela adaptação de sua pauta de exportações, e ganhará com a nova estrutura produtiva.

No caso das transações em serviços, isso se reflete nos menores custos para obter um conjunto de informações importantes para a comercialização. Num ambiente com dois países de tamanho distinto, isso significa que o país maior será mais provavelmente aquele que atrairá mão-de-obra, portanto tenderá a se beneficiar dos novos tipos de serviços que podem ser exportados.

Esta é uma dimensão adicional de análise que considera o diferencial de condições entre os países participantes do mercado internacional de serviços, e com isso enfatiza as diferenças no potencial de competitividade.

 

REFERÊNCIA

Ottaviano, G., Peri, G., Wright, G. (2015), Immigration, Trade and Productivity in Services: Evidence from UK Firms, NBER Working Paper # 21200, May

O Novo Trans-Pacific Partnership (TPP)

Após anos de negociações, o TPP experimentou dramático colapso com a saída dos Estados Unidos do acordo logo após a posse do Presidente Trump. Mas como Fênix, o mais ambicioso acordo de comércio jamais negociado está renascendo das cinzas e deverá ser finalizado nos próximos meses. Agora, como CPTPP (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership). O acordo também tem sido chamado de TPP 11 em razão de seus 11, e não mais 12 membros originais.

O TPP 11 representa 15% da economia global e inclui economias importantes como Japão, Canadá, Austrália e México. Outros países já indicaram interesse de se juntar ao grupo, como Coreia do Sul, Taiwan, Tailândia, Indonésia e Filipinas. Estimativas do PIIE indicam que, com a entrada desses países, haverá ganho anual de comércio de US$ 500 bilhões, valor até maior que o esperado com os países do acordo original. Isto aconteceria em razão da criação de novas cadeias de valor na Ásia associadas a Japão, Coreia do Sul e Taiwan, que ainda não têm acordos de livre comércio entre si e outros membros.

Sob a liderança do Japão, oficiais dos governos envolvidos no acordo original, à exceção dos americanos, negociaram um texto-base. O texto, ainda não divulgado para o público, não está fechado, mas os “core elements” já teriam sido definidos, quais sejam, remover apenas temporariamente pontos polêmicos com o compromisso de seu eventual restabelecimento mais para frente e manter quase intacto o acordo original.

Ainda que haja reservas a muitos pontos que teriam sido duramente defendidos pelos Estados Unidos na TPP, notadamente nas áreas de propriedade intelectual, serviços e economia digital, a principal razão das alterações minimalistas seria a de criar as condições para atrair aquele país de volta para o acordo.

Em razão da ampla e inconteste competitividade das empresas americanas nas áreas de serviços e economia digital, há consenso entre analistas e diplomatas de que o retorno dos Estados Unidos ao acordo seja apenas questão de tempo.

Do texto original de 622 páginas (fora anexos), o atual teria 584 páginas. Dos 29 capítulos, 17 tiveram nenhuma ou quase nenhuma mudança. Os demais tiveram apenas alterações pequenas, à exceção do capítulo de propriedade intelectual. Os compromissos originais de desgravação e acesso a mercados de bens e serviços, listas negativas, investimentos, movimento temporário de pessoas de negócios, compras públicas e empresas públicas, por exemplo, foram todos mantidos. Capítulos cruciais como os de comércio eletrônico, economia digital, serviços em geral, serviços financeiros, coerência regulatória, regras de origem, barreiras técnicas ao comércio, competição e temas sanitários e fitossanitários foram mantidos praticamente na sua totalidade.  Em serviços, manteve-se até mesmo o controverso requerimento de limitação de presença local; em economia digital, manteve-se até o não requerimento de se sediar dados do país no próprio país, a despeito das já reconhecidas potenciais consequências para segurança e privacidade.

Ainda que minimalistas, houve mudanças que merecem destaque, incluindo as que seguem.

  • Encomendas expressas – preservou-se espaço de competição para empresas públicas de serviços postais.
  • Mecanismo de disputa Estado-investidor – aumentaram-se os espaços para governos promoverem alterações legais e regulatórias de interesse público.
  • Investimentos – removeram-se da cobertura do acordo os chamados acordos de investimentos e autorização de investimentos, modalidades tipicamente associadas a investimentos nos setores de óleo, mineração e outras commodities.
  • Propriedade intelectual – este foi o capítulo que passou por maiores alterações. Foram removidas ou alteradas provisões de proteção a patentes biológicas (o lobby farmacêutico americano teria sido o principal responsável pela rejeição do TPP pelo Presidente Trump), testes de dados de patentes, novos meios de proteção a tecnologias da informação, incluindo medidas de proteção tecnológica (TPMs), direitos de informação, sinais criptografados de TV a cabo e satélite e portos seguros para provedores de serviços de internet, e reduziu-se o período de copyrights de 70 para 50 anos.

Ao promover a convergência regulatória em serviços e em economia digital e remover barreiras para o comércio de serviços e de dados, o CPTPP será o primeiro acordo de comércio a favorecer o livre trânsito de dados entre fronteiras.

Embora possa haver benefícios imediatos com a ampla liberalização daqueles setores, é preciso levar em conta que serviços e economia digital se tornarão  a mais importante fronteira de crescimento econômico e de geração de empregos e a face mais fundamental das relações econômicas entre países no século XXI. É a globalização 2.0, com amplas repercussões para o crescimento de países emergentes e para as perspectivas deles superarem a armadilha da renda média.

É preciso também levar em conta as assimetrias e as muitas repercussões dos efeito-rede e plataforma e as consequências da crescente consolidação de mercados em torno de algumas poucas grandes e poderosas empresas dos setores de serviços e economia digital, as superestrelas. A questão, portanto, é menos a de se e mais a de como se engajar nessas liberalizações.

Dada a abrangência de escopo das disciplinas envolvidas, a CPTPP deverá inspirar outros acordos. Na verdade, o acordo já é visto como um benchmark para futuras negociações comerciais e elementos do acordo Mercosul-EU, por exemplo, já se inspiram no TPP.

Novas rodadas de negociações acontecerão nas próximas semanas para remover obstáculos ainda remanescentes e detalhar procedimentos associados aos próximos passos. Há um acordo de assinatura do documento já no primeiro trimestre de 2018. O CPTPP entrará em funcionamento após a ratificação por pelo menos seis países. Espera-se que até o final de 2018 o acordo já esteja operacional.

Serviços de logística e competitividade

Um dos argumentos mais populares para se explicar a baixa competitividade da economia brasileira é a infraestrutura defasada. De fato, a infraestrutura brasileira tem sido apontada como um dos principais obstáculos para a baixa competitividade das empresas. O indicador de competitividade do Fórum Econômico Mundial aponta o Brasil na 77ª posição dentre 140 países. No caso específico de indicadores de serviços de logística, o relatório mostra o Brasil na 111ª posição em infraestrutura de rodovias; 114ª posição em portos; e 93ª posição em transporte ferroviário. O relatório Doing Business do Banco Mundial mostra que a infraestrutura deficiente é um dos maiores empecilhos para se fazer negócios no Brasil.

As evidências empíricas sugerem que um dos principais problemas é o baixo investimento no setor. McKinsey (2013) mostra que enquanto o Brasil investe 2,2% do PIB em infraestrutura, os países em desenvolvimento investem, em média, 5,1% e a China 8,5%.  Mussolini e Teles (2010) mostram evidências de que uma das causas da baixa produtividade total dos fatores no Brasil desde a década de 1970 é o baixo investimento público em infraestrutura.

Todos os setores padecem da infraestrutura deficiente. Porém, os impactos diferem. De um lado, serviços de logística têm grandes impactos nas atividades com cadeias de produção mais longas e que requerem muita articulação e movimentação de cargas – este é o caso de muitos segmentos industriais. De outro lado, serviços de logística são importantes para atividades commoditizadas, como soja e ferro gusa, cuja competitividade é muito dependente de custos baixos.

Arbache (2014) mostra que as despesas com transportes e fretes respondem por 16% do total de serviços intermediários consumidos pela indústria manufatureira, o terceiro maior item, ficando atrás somente de serviços financeiros e serviços industriais e de manutenção prestados por terceiros. Despesas com transportes e fretes no Brasil perfazem quase o dobro do que se observa internacionalmente a partir de matrizes de insumo-produto comparáveis.

São múltiplas as explicações dos elevados gastos com serviços de logística. Uma são as condições deficientes das infraestruturas, que elevam os custos operacionais das transportadoras e armadores. Mas há outras razões que também contribuem, incluindo a elevada carga tributária de 24% incidente sobre os serviços de transporte e a estrutura de mercado que, de um lado, é oligopolizada, quando se tratam de serviços mais sofisticados e, de outro, pulverizada, quando se tratam de serviços de cargas gerais.

De fato, Arbache (2015) mostra que as firmas de transporte rodoviário de cargas têm, em média, apenas 5,3 funcionários, sendo que 51,6% das firmas têm entre 0 e 2 funcionários, e que o setor é dominado por microempresas ou negócios individuais com pouco ou nenhum acesso a crédito e tecnologia. O setor de logística também padece de regulamentações que dificultam a competição em diversos segmentos do setor, o que reduz o espaço para inovações e aumento da eficiência.

Como resultado da limitação de oferta de infraestrutura e das características do setor de serviços de logística, os preços dos serviços são elevados, inflando a sua participação no consumo intermediário dos demais setores – no período 2007-2013, o custo do transporte de carga subiu pelo menos 50% mais que a inflação oficial.

Banco Mundial (2017) destaca que as deficiências de infraestrutura também se explicam pela baixa capacidade institucional e de planejamento, dificuldades de alocação de recursos orçamentários e problemas de execução e implementação de projetos.

A esta altura, como não é possível dar conta do enorme estoque de investimentos em infraestrutura não realizados no passado, será preciso priorizar. E a priorização deverá se basear tanto no modelo de intervenção pública no setor como nos objetivos econômicos e sociais que se quer atingir. A intervenção também deverá levar em conta a identificação dos maiores beneficiários diretos da infraestrutura e a capacidade deles pagarem pelos serviços (problema de ganhos públicos vs privados), de tal forma que haja uso mais eficiente dos recursos públicos e da participação privada na oferta e na operação.

A despeito da elevada importância, os serviços de logística servem primordialmente para reduzir custos e não para agregar valor e diferenciar produtos. Por isto, a melhoria desses serviços não deve ser vista como panaceia, mas sim como um dos requisitos para qualificar o país para entrar na competição global, e não para ganhar a competição.

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