Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Vanessa Santos (page 1 of 3)

A agenda do comércio eletrônico na OMC: para onde estamos caminhando?

O tema de e-commerce começou a ser discutido na OMC em 1998, a partir do estabelecimento de um Plano de Trabalho que consideraria o chamado “aspectos relacionados ao comércio no comércio eletrônico” (trade related aspects of electronic trade) ali definido como a produção, distribuição, marketing, venda ou entrega de bens e serviços por meios eletrônicos. A definição do escopo do trabalho parece uma redundância, mas foi a forma encontrada para se focar no tema de comércio em si, e não nos demais aspectos relacionados ao componente “eletrônico” do termo – e incorrer no risco de entrar no escopo de atuação de outras organizações, como a União Internacional de Telecomunicações (UIT). Um histórico sobre o tratamento do tema na OMC pode ser encontrado em Hees (2016) e Matos (2018).

Com exceção da moratória sobre transmissão eletrônica, e sua renovação a cada dois anos nas Reuniões Ministeriais da OMC, pouco progresso decorreu do Plano de Trabalho de 1998. Após 2016, todavia, houve intensificação nas discussões, com a circulação de propostas de trabalho, sugestão de temas que futuro acordo deveria contemplar. Essas discussões culminaram na decisão, tomada em janeiro de 2019, de se iniciar as negociações com o objetivo de desenhar regras globais em comercio eletrônico. Representantes de 76 membros da OMC – União Europeia e 48 outros países, incluindo a China, assinaram assim a Declaração Conjunta em Comércio Eletrônico, o documento plurilateral que lançou as negociações e que atesta o objetivo de chegar, de modo pragmático, transparente e aberto ao posicionamento de qualquer país, a um conjunto ambicioso de disciplinas em comércio eletrônico, que se coadune com as disciplinas já existentes na OMC e que leve em consideração a perspectiva do desenvolvimento, tal como os últimos acordos firmados no âmbito da Organização. Embora a iniciativa seja plurilateral, existe um claro objetivo de torná-la multilateral.

O pano de fundo das discussões

O lançamento das negociações plurilaterais insere-se em um contexto maior, de tentativa de manter a OMC como o lócus das discussões sobre novas regras internacionais. Por mais que a iniciativa sobre comércio eletrônico na organização seja bem-vinda, e que regras sobre os aspectos comerciais da economia digital sejam mais que desejáveis, há aqui também uma “luta” da OMC em demonstrar seu valor, papel e preponderância nos temas novos e urgentes do comércio. Num momento de tanto questionamento quanto ao papel da instituição – vide as discussões sobre reforma da OMC, do sistema de solução de controvérsias, entre tantas outras – um acordo que demonstre que os países ainda acreditam que este fórum tem sua validade na consolidação de regras multilaterais poderia contribuir para repaginar seu papel e demonstrar que a estrutura construída ainda consegue cumprir sua função.

Apesar de os 76 signatários representarem 90% do comércio global, esse grupo continua sendo minoria no total de membros da OMC. Para países que pressionam a instituição por avanço em questões pendentes, como subsídios à agricultura por países desenvolvidos, entrar nesse acordo seria abrir mão de toda uma agenda que ainda está pendente de resolução. O que se questiona, todavia, é se de fato ainda há como enfrentar essa “agenda perdida” do comércio, encabeçada por países como a Índia. A opinião que prevalece é a negativa.

Como todo acordo plurilateral firmado no âmbito da OMC, o grande benefício é “manter a roda dos acordos plurilaterais rodando”, em particular sobre temas novos, como foi o caso do Acordo sobre Tecnologia da Informação (ITA, da sigla em inglês), firmado em 1996 e expandido em 2015. A desvantagem da abordagem, por outro lado, é a perda de legitimidade desse tipo de acordo, em razão da baixa representatividade em termos de membros, em particular, dos menos desenvolvidos. Além disso, uma vez que o acordo é assinado, pode haver um comportamento de carona dos não signatários, que usufruirão dos benefícios desse tipo de acordo (como importação de equipamento de TI a alíquotas menores de importo de importação, no caso do ITA), sem ter que se comprometer com mudanças tarifárias ou regulatórias. Ou seja, é possível participar dos ganhos do acordo sem incorrer nos seus (supostos) custos.

O Brasil nas negociações em comércio eletrônico na OMC

Em conjunto, os documentos brasileiros[1] apresentados na OMC no âmbito das negociações em e-commerce demonstram os principais pontos que devem estar presentes em um futuro acordo, e destacam-se por uma abordagem competente e firme, numa tentativa bem estruturada de liderar o movimento de formação de posições. Trazem consensos para a discussão sem deixar de apresentar posições e de trazer à tona temas espinhosos, mas caros aos países em desenvolvimento, como concorrência, direito do autor e tributação.

O Brasil demonstra certo alinhamento à posição de países mais avançados ao utilizar o termo “comércio digital”, algo defendido amplamente pelos Estados Unidos e pelo Canadá, os quais buscam, dessa forma, um acordo que contemplem bens, serviços ou qualquer outro produto que circule por meios digitais. Utilizar o termo “comercio digital” pode ser uma estratégia negociadora de trazer o peso de países relevantes junto da posição brasileira. Todavia, na hora de definir o conceito de comércio digital, o faz de forma ampla e avança pouco em relação ao conceito de comércio eletrônico utilizado pela OMC desde 1998. Ou seja, traz para si países defensores desta guinada nas tratativas, como Estados Unidos e Canadá, mas não aponta uma definição que possa de fato deixar países em desenvolvimento mais confortáveis em tratar do assunto de comércio eletrônico em um acordo.

O documento produzido pelo Brasil é firme em endereçar pontos delicados. Por exemplo, deixa claro e explícito o direito a regular (right to regulate), isto é,a abertura para a introdução de novos regulamentos, e um espaço para consecução de de políticas públicas. O right to regulate já foi muito criticado como uma carta branca para utilização de políticas que sejam contrárias ao que se busca estabelecer em um acordo de comércio.

O Brasil também avança ao pautar concretamente o tema da tributação, e coloca que os países devem ter o direito de recolher tributos de plataformas ou demais fornecedores sobre a renda ou lucro gerado em seu território. Ao mesmo tempo, deixa em aberto a decisão pela moratória permanente em transmissão eletrônica, que fica atrelada a resolução sobre como tributar internamente o comércio digital. Essa posição diverge daquela adotada atualmente pelo Brasil em acordos bilaterais, nos quais tende a ser mais aberto a aceitar a moratória sobre transmissões eletrônicas. O Brasil tem assumido na OMC uma posição ativa, tanto na articulação de consensos como na proposição de temas sensíveis, que precisam ser enfrentados. As negociações bilaterais, como esperado, possuem dinâmica distinta – onde se costuma preponderar as questões tarifarias – tornando a posição em comércio eletrônico mais reativa e menos propositiva.

Destacam-se também a abordagem brasileira sobre o tema de copyright e a menção ao direito que o autor tem de obter informação sobre seu trabalho. Essa informação é amplamente detida pelas plataformas digitais, gerando uma assimetria de informação e um baixo poder dos autores para negociar melhores remunerações. Essa menção ressoa movimentos anteriores do Brasil, tanto no Conselho de TRIPS[2] da OMC em 2016 como na própria Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), sobre os desafios do copyright no ambiente digital. O que se busca, mais do que a criação de regras, parece ser a abertura de um espaço mais informal para discussão dessas questões.

O Brasil também busca enfrentar o tema da concorrência no ambiente digital, já debatido pelo blog, colocando sobre os países a responsabilidade de evitar o abuso do poder de mercado. Apesar do amplo benefício da economia de escala advinda da participação em uma plataforma, e dos ganhos ao consumidor (seja ele indivíduo, empresa ou governo) pelo acesso a serviços baratos ou gratuitos, há muitos estudos evidenciando ações deletérias das plataformas sobre a concorrência dentro e fora da plataforma. Restrição ao acesso da plataformas por fornecedores de outros países[3], falta de transparência quanto a publicidade e escolha de quais produtos serão apresentados primeiramente são algumas dessas ações, e decorre da clara vantagem que as plataformas possuem (advindas do efeito-rede e efeito-plataforma). Levanta-se, ademais, a dificuldade de entrada e de permanência de empresas e startups em nichos digitais, uma vez que plataformas grandes se movem na direção desses novos mercados e nele adentram com grande vantagem ao levarem rapidamente seus usuários para esses novos serviços. Aponta-se também os efeitos negativos das grandes plataformas sobre a inovação. Esses efeitos negativos sobre a capacidade das firmas de inovar poderia, ao menos em teoria, ser superiores os benefícios advindos dos baixos preços a consumidores, ensejando intervenção e regulação governamental.

Como os demais países estão se posicionando

A posição da União Europeia nas negociações em comércio eletrônico reflete bastante aquela já adotada em seus acordos bilaterais recentemente assinados ou em negociação. Em resumo, o país mostra que seu principal interesse é garantir que os princípios não discriminatórios que balizam os demais acordos no âmbito da OMC sejam aplicados também ao comércio digital. Como já possui um aquis regulatório bastante consolidado em diversas questões, como assinaturas e contratos eletrônicos, não discriminação entre bens e serviços transacionados fisicamente ou online, sua posição em negociações de e-commerce busca refletir esse status regulatório no ambiente multilateral bem como avançar em acesso a mercados. Países que possuem regulação já madura conseguem assim uma estratégia inside-out para regulações em comércio eletrônico. Já países no lado oposto – com poucos marcos regulatórios e políticas voltadas ao e-commerce – terão uma repercussão outside-in, ao menos que consigam firmar posição em questões macro que possibilitem a adoção de regulações e politicas no futuro.

Em relação ao fluxo de dados, a abordagem reflete novamente a maturidade da regulação doméstica em comércio-eletrônico. Aqui, fala-se que os países devem garantir o fluxo de dados para facilitar o comércio na era digital, uma abordagem bem mais conservadora que a americana, que advoga pela liberdade total nos fluxos de dados (salvaguardando os casos de segurança e demais exceções). Como já esperado, a União Europeia advoga que a proteção de dados pessoais e a privacidade são direitos fundamentais, e que os países podem adotar todas as salvaguardas que se fizerem necessárias para proteção desse direito, incluindo regras sobre a transferência de dados pessoais. Isso significa, em termos práticos, que a União Europeia não quer de forma alguma trazer esse tema para um acordo comercial, abordagem essa já consolidada nas negociais bilaterais do bloco. Nas palavras da Comissão Europeia: “a privacidade não é uma commodity, para ser negociada (em acordos)”, no âmbito das negociações com o Japão.

A União Europeia já mostrou que deseja utilizar as negociações em comércio eletrônico para revisar as disciplinas em serviços de telecomunicações, algo questionável tendo em vista que isso pode ensejar demandas similares em outras disciplinas de serviços, fazendo com que a negociação perca o foco – e mine a adesão de novos membros. Além disso, advoga que todos os países signatários de um futuro acordo em e-commerce também assinem o Acordo para Tecnologia da Informação (ITA), que reduz alíquotas de importação para centenas de produtos de informática, eletrônicos, e de telecomunicação. Ainda que se tratem de acordos de certa forma relacionados, já que o ITA facilita o acesso a mercados de produtos eletrônicos e de infraestrutura para conectividade, essa estratégia pode ser vista como extremamente impositiva.

A China decidiu participar do lançamento das negociações em Davos, surpreendendo muitos, tendo em vista a hesitação do país nas rodadas de negociação informal que aconteceram na OMC nos anos anteriores. O documento produzido pelo país em abril desse ano para subsidiar as discussões revela de forma contundente os objetivos do país nessa negociação.

Mais importante, o documento enfatizou que, mesmo sabendo que se trata de uma negociação ambiciosa, ela deve considerar de forma plena o direito a regular dos membros e objetivos legítimos de políticas públicas, tais como soberania da internet, segurança dos dados e proteção à privacidade. De acordo com o país, os membros devem respeitar as políticas promovidas pelos países para o desenvolvimento do comércio eletrônico, e o direito legítimo de adotar medidas regulatórias para atingir seus objetivos de política pública. O recado é bem claro: não haverá retrocesso quanto às políticas e regulamentos que o país colocou em vigor para desenvolvimento de sua rede de comércio eletrônico doméstica e global.

O documento também segue na direção oposta à posição americana (que discutiremos em maior profundidade em um próximo post) ao buscar que as discussões se restrinjam ao comércio internacional de bens habilitados pela internet, e em serviços complementares a essas transações, como os de pagamento e logística, enquanto o documento americano está focado em regulações que permitam o livre fluxo de dados e a liberdade em transações envolvendo o comércio de serviços.  Não por outro motivo, as principais propostas chinesas referem-se à facilitação do comércio eletrônico de bens, comércio sem papel, e assinaturas eletrônicas e ao papel da infraestrutura para a promoção do comércio de bens. O documento vai além, e advoga que discussões sobre regras em temas regulatórios mais complexos devem ficar de fora das negociações. Para a China, qualquer disciplina sobre fluxo de dados tem como pré-condição a discussão sobre segurança nacional. Ou seja, por parte da China, poucas concessões serão feitas dentro daquela que é a área de maior interesse dos Estados Unidos na negociação: a liberdade do fluxo de dados.

A China traz para as negociações o conceito de “soberania cibernética”, o qual foca no controle da informação e do conteúdo provido pela internet (Schia e Gjesvik, 2017), diferentemente do conceito mais conhecido de segurança cibernética, que está ligado a proteção da infraestrutura e dos processos na internet. Como colocado por Lindsay, Cheung & Reveron (2015), o objetivo é retirar qualquer influência indesejada do “espaço informacional” do país, e tentar trazer a governança da internet para os estados. Trata-se mais de um objetivo político de controlar as informações às quais os cidadãos tem acesso do que um interesse puramente mercadológico.

É preciso também atentar para o movimento anti-negociação existente na OMC, que dificultará sobremaneira a multilateralização do acordo e a entrada de players importantes no comércio eletrônico, como é o caso da Índia e da Rússia. A Índia é o país com oposição mais contundente a um acordo em e-commerce na OMC, pois defendem que o acordo retirará a capacidade dos países de tributarem empresas de tecnologia digital, e, em consequência,  as plataformas, uma importante fonte de receita, tendo em vista que as formas tradicionais de tributação (sobre bens ou lucro das empresas) vem decrescendo ao longo dos anos. A preocupação é mais forte especialmente em áreas como manufatura aditiva e impressão digital, tema pouquíssimo debatidos nos fóruns de comércio.  Além disso, o país opõe-se fortemente a provisões que impeçam que um país adote requerimentos de localização de dados. A postura do país no âmbito multilateral está em concordância com o que tem sido feito no âmbito interno: o país já criou diversos regulamentos que impactam diretamente a atuação de plataformas estrangeiras no país, e está atualmente elaborando sua política nacional para e-commerce, a qual regulará o uso de dados gerados por plataformas dentro da Índia e incluirá previsão que permita o país tributar transmissões eletrônicas.

Além da Índia, diversos outros países têm adotado regulações domésticas que impactam comércio digital e que têm sido classificadas como protecionistas. É o caso de restrições a movimentação de dados impostos por Rússia, Arábia Saudita, Vietnã, China, Quênia, Nigéria e Turquia. Apesar de a maioria desses países terem esse tipo de legislação apenas para alguns setores (como serviços de pagamentos e financeiros), países como Estados Unidos alegam que esse tipo de restrição prejudica uma série de serviços digitais ofertados por suas empresas. Algumas das nações citadas acima estão participando das discussões dedicadas a e-commerce na OMC, e parte delas provavelmente acabará retrocedendo em algumas das regulações adotadas domesticamente. Todavia, já se espera grande embate para inclusão de cláusulas e exceções que preservem o espaço para regulação de novas tecnologias.

Conclusões

Como se pode observar, o tema de comércio eletrônico ganhou relevância significativa na OMC, um reflexo tardio, já que o tema tem sido abordado em acordos bilaterais e regionais de comércio há pelo menos dez anos. Todavia, não é negligenciável o esforço feito por diversos membros em prol de um acordo multilateral, o que evidencia que a OMC segue com capacidade de se renovar e ser lócus relevante para discussão de temas modernos.

Os primeiros documentos circulados depois da assinatura da Declaração Conjunta em 2019 revelam posições que já eram conhecidas, e refletem parte do status quo das negociações bilaterais e regionais em e-commerce. Todavia, países como o Brasil tem conseguido expressar de forma consistente suas posições e pautar as discussões em relação a alguns temas.

É possível, em certa medida, prever quais os possíveis resultados em alguns temas, que já estão com debate mais avançado e que figuram em acordos comerciais há mais tempo. É o caso das disciplinas em assinaturas e contratos eletrônicos, facilitação do comércio, regulação anti-spam e direito do consumidor.  Todavia, muitos temas novos estão surgindo. Resta, portanto, acompanhar como as posições se aglutinarão em torno dos temas mais difíceis da agenda, como fluxo de dados, localização de servidores, compartilhamento de códigos-fonte, algoritmos e softwares, concorrência, entre outros.


[1] A presente análise foi feita com base nos dois últimos documentos circulados a pedido da delegação brasileira. O documento mais recente, circulado em 30/04/2019, ainda não está disponível para consulta. Todos os documentos citados nesse post bem como os demais produzidos pelos países podem ser encontrados no site da OMC.

[2] TRIPS é a sigla para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio.

[3] No caso da Amazon, por exemplo, sabe-se que apenas prestadores com residência nos Estados Unidos e Índia podem vender produtos na plataforma.

A relação entre o comércio eletrônico, a economia digital e os acordos de comércio

Enquanto a tensão aumenta nas negociações comerciais entre grandes potências globais, pautada pela discussão focada em tarifas de importação e no comércio de bens, mudanças estruturais na forma de se gerar valor nas economias, e sua repercussão real no comércio global, figuram como marginais na mesa de discussão.

Como já exposto anteriormente neste blog e por Arbache (2018), a transformação digital modificou e ainda modificará sobremaneira o funcionamento das economias em suas diversas esferas, entre elas, a do comércio internacional. A digitalização gera novas formas de produzir e de se transacionar bens e serviços, o que explica a nítida redução no comércio global de bens, e o crescimento no fluxo internacional de serviços e de dados.

A importância tanto do comércio de serviços como dos fluxos internacionais de dados para a geração de valor na era digital foi o que motivou economias avançadas a trazer os desafios regulatórios que enfrentam quando tentam operar em outros países para dentro das negociações comerciais. O caminho escolhido foi o de reativar as discussões já existentes sobre comércio eletrônico e repaginá-las, respondendo, dessa forma, à necessidade das empresas de navegarem por regulações domésticas muitas vezes inexistentes em setores novos, de superarem entraves para suas transações e de impedir que novas políticas e normativos refreiem seus objetivos de crescimento em novos mercados.

Antes de se entender a dinâmica das negociações em andamento em comércio eletrônico, é preciso entender alguns conceitos, que apresentaremos a seguir.

O que é comércio eletrônico no âmbito dos acordos comerciais?

Quando falamos de comércio eletrônico, o que imediatamente nos alcança o imaginário é um grande fluxo de pacotes viajando pelo país ou pelo mundo; sites e plataformas para a venda de mercadorias, de origem própria ou bens de terceiros, de produtos novos ou usados.

Essa face do comércio eletrônico que conseguimos enxergar corresponde a parcela considerável no boom no crescimento do comercio doméstico e internacional de bens, sendo um diferencial importante no faturamento e no desempenho de muitas micro e pequenas empresas. Também explica surgimento de importantes players e plataformas conectando os lados do mercado (da oferta e da demanda). Além disso, há um ganho claro para o consumidor, oriundo da maior variedade e oferta de bens a sua disposição.

O que essa ótica não contempla são três premissas fundamentais sobre o comércio eletrônico atualmente. O e-commerce:

  1. É muito mais um comércio de serviços do que de bens.
  2. É muito mais um comércio entre empresas do que entre consumidores e empresas.
  3. No mundo das negociações comerciais, é um debate sobre regulamentação da economia digital, e não (apenas) sobre pacotes transacionados globalmente.

Discutiremos cada uma dessas questões a seguir.

  • O e-commerce é muito mais um comércio de serviços

Com pouco esforço, conseguimos pensar em uma série de serviços, gratuitos ou pagos, convencionais ou modernos, que obtemos pela internet. As diversas compras associadas a viagens, como cotação e reserva de passagens, hospedagens, passeios e seguro viagem são serviços fornecidos via comércio eletrônico. Pensando um pouco mais, chegamos na ampla oferta de serviços via plataformas de música, filmes, seriados, games, entrega de mercadorias, delivery de refeições, compras de supermercado e farmácia, atividade física, serviços financeiros como cartão de crédito, entre diversos outros.

Indo um pouco além, chegamos a uma série de serviços digitais que hoje são basilares para a nossa interação na internet. É o caso dos serviços de nuvem, que estão na base do armazenamento de informações não apenas direta (via upload de fotos e documentos em uma nuvem paga ou gratuita), mas indiretamente. Hoje em dia nenhuma informação, seja ela trocada por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas ou aplicativos no geral, sai de um dispositivo para outro sem passar por uma nuvem. Invisível e fundamental também para esse mundo novo das transações digitais são os serviços de pagamentos online, que costumam envolver empresas terceiras, como é o caso daqueles feitos via Ebanx, por exemplo. O que parece uma simples transação entre comprador e plataforma é na verdade um serviço permeado por estritas regulamentações internacionais, que na verdade arrecada seu pagamento, seja ele via cartão ou boleto (modalidade esta que na verdade só existe no Brasil) e transfere para o site da compra. Com isso, a empresa brasileira Ebanx faz com que se consiga realizar uma compra na China com a facilidade de uma compra nacional.

Por fim, temos uma gama de serviços digitais gratuitos e que, por não envolverem transação eletrônica, ficam em tese de fora da definição mais usual de comércio eletrônico. São atividades cotidianas como pesquisas no Google, uso de mapas online, aplicativos gratuitos, redes sociais, entre uma infinidade de atividades. Na terceira parte deste post explicaremos que, diferente do que se acredita, esses aplicativos estão totalmente envolvidos nos debates sobre comércio eletrônico, que, como veremos, envolve muito mais do que a transação via plataforma, mas sim uma relação intrínseca com o fluxo de dados e com a economia digital.

Há tendência observada há décadas pelos economistas de que, com o aumento da renda média, o consumo das famílias tende a evoluir no sentido dos serviços, e não de bens. Aliando-se a isso a expansão da internet, tem-se então um aumento no consumo cada vez mais direcionado ao comércio eletrônico de serviços. Por fim, temos uma grande transformação na produção global, nas cadeias globais de valor, que hoje operam em rede e utilizam cada vez mais insumos de serviços e vendem cada vez mais serviços, pelo processo já descrito no blog de servicificação. Isso explica porque o comércio internacional de serviços cresce 60% mais rapidamente que o comércio de bens desde 2007, de acordo com o relatório da Mcksinsey. Também explica porque, em termos de valor adicionado, serviços já são 50% do valor de um bem exportado para a média dos países da OCDE.  

Isso não significa que o comércio eletrônico de bens não seja importante ou relevante do ponto de vista econômico. É por meio de plataformas como Mercado Livre e Alibaba que diversos micro e pequenos empreendedores adquirem, às vezes, a maior parte do seu faturamento, rompendo barreiras geográficas para atendimento ao consumidor, o qual ocorre de forma rápida, conveniente e personalizada. Não por outro motivo, toda a agenda importantíssima para destravar esse comércio precisa e deve ser atacada. Aqui entra a tradicional e tortuosa agenda da infraestrutura, logística e distribuição, aliada a agenda dura de tributação e de regulamentação de pagamentos online. Com as melhorias nas “condições de base” do comércio eletrônico, será possível observar ganhos não apenas para as empresas que se beneficiam dessa fonte de faturamento como também para a produtividade do setor, que é historicamente baixa, em linha com aquela registrada no setor de comércio e varejo, como já exposto pelo blog em diversas oportunidades.

Todavia, os grandes resultados econômicos em e-commerce atingidos por países como China não são atrelados apenas a existência de uma agenda facilitadora ou “habilitadora” da expansão do e-commerce (enabling environment, no jargão em inglês, referindo se a políticas de infraestrutura digital e conectividade, acesso a estrutura de TI, banda larga, entre outras) mas sim de uma política nacional de desenvolvimento, de inserção da produção chinesa na direção dos mercados globais. O que se depreende dessa e de outras iniciativas de sucesso em promover o e-commerce é a existência de uma estratégia sólida e de crescimento e de desenvolvimento econômico, e uma resposta consistente, implementada por meio de políticas públicas bem orientadas, sobre o papel do comércio eletrônico para atingir esses objetivos. Dito de outra forma: a promoção do e-commerce não é – e não deve ser – um fim em si, mas uma forma de ampliar a inserção doméstica e internacional dos distintos portes de empresa de forma a colocar esse “segmento” dentro de uma política macroeconômica maior, de ganhos de produtividade e escala das empresas de comércio, físico ou online.

  • O e-commerce é muito mais um comércio entre empresas do que entre consumidores e empresas.

Empresas são grandes consumidoras de serviços. Como já mostrado por Arbache (2014) e também por este blog, empresas dos mais diversos setores como manufatura, agricultura e serviços, consomem cada vez mais serviços como insumos, além de também produzirem serviços. Com a emergência da economia digital e o crescimento da servicificação, parte dessas aquisições de serviços são feitas por meio do comércio eletrônico. É o caso dos serviços de TI, marketing, serviços jurídicos, consultorias, armazenamento de dados, pós – venda, entre diversos outros. Nem todas as empresas compram de forma online todos esses serviços, mas a tendência trazida pela economia digital é, de fato, a digitalização cada vez maior de serviços e a criação de novos serviços, em operações entre empresas. O caso da Amazon é um bom exemplo: a empresa mais conhecida do mundo em e-commerce tem a maior parte do seu faturamento oriundo dos serviços de nuvem oferecidos, majoritariamente para… empresas.

Outro caso interessante são as compras de serviços de marketing. A velha contratação de empresas para definição de público-alvo e posterior campanha é somada o targeting ou focalização de determinados grupos de pessoas em redes sociais como o Instagram, que tem informação precisa e instantânea sobre quais pessoas estão à procura de determinados produtos, informação esta formada a partir da interação dos usuários com a plataforma. A simples visualização ou interação feita por milhares de pessoas o tempo todo gera um mapa da preferência de consumidores que é posteriormente vendido como marketing pelo Instagram para empresas que fazem comércio eletrônico.

Dito tudo isso, quando estamos discutindo o que precisa ser feito para alavancar o e-commerce, também estamos falando sobre como facilitar o acesso e a produção de serviços pelas empresas. Mais importante ainda, estamos discutindo o que pode ser feito para gerar inovações nesses serviços e capacidade nas empresas para que, a partir dos dados que possuem e dos serviços aos quais têm acesso, possam servicificar seus produtos e criar novos serviços.

  • O e-commerce, no mundo das negociações comerciais, é um debate sobre regulamentação da economia digital

As duas constatações apresentadas acima têm uma consequência – chave tanto no âmbito doméstico quanto internacional, que é a importância de se criar e se de manter regulação capaz de promover a inovação, o comércio e o crescimento econômico.

Parcela significativa do comércio eletrônico B2B descrito acima é internacional, isto é, feito a partir de operações entre (empresas) residentes e (empresas) não residentes de um país. A Unctad estimou que 90% do comércio eletrônico internacional ocorre entre empresas, o que corresponde a algo próximo a 26 bilhões de dólares. Não por outro motivo, o tema de e-commerce ganhou proeminência no âmbito dos acordos regionais de comércio, sendo hoje o motor de debates intensos na Organização Mundial do Comércio (OMC).

A simples leitura de um capítulo de comércio eletrônico em um acordo de comércio mostra que ele se trata muito mais de dados, regulação e serviços do que de bens. No grupo plurilateral da OMC que está atualmente discutindo o tema de e-commerce, lançado em janeiro de 2019, alguns documentos são emblemáticos sobre o que de fato está em discussão e em jogo: de um lado, países avançados buscam manter o status quo de suas empresas de tecnologia rompendo barreiras ao crescimento destas em mercados importantes. De outro, países que buscam manter seu espaço para políticas públicas e seu direito a regular tecnologias novas e conseguir de alguma forma usufruir dos benefícios de uma entrada mais qualificada na transformação digital pela qual passam as economias. Um maior detalhamento sobre as principais disciplinas em debate atualmente na OMC será alvo de post futuro.

O caminho que as discussões seguirão ainda não está claro. Foram definidos temas que o acordo deverá cobrir, como fluxo de dados, confiança no ambiente digital, localização de servidores, comércio cross-border de bens, segurança cibernética, proteção ao consumidor, contratos eletrônicos, assinaturas eletrônicas, restrição a possibilidade de cobrança de imposto de importação sobre transmissão eletrônica De forma geral, os temas foram influenciados pelos acordos bilaterais e regionais já fechados ou em recente negociação. Todavia, a dinâmica da negociação plurilateral com certeza será distinta, tendo em vista, por exemplo, o aceite da China de participar das discussões, e o documento apresentado pelo Brasil, que, entre outras questões, coloca em voga aspectos espinhosos, como concorrência na era digital e tributação de plataformas.

A participação da China deixa um grande ponto de interrogação, pois a abordagem do país a economia digital – com sua grande “muralha digital”, a dificuldade da penetração de players internacionais e grande controle sobre o fluxo de dados – demonstra que o país deverá prosseguir buscando exceções fortes que permitam a continuidade do controle atualmente exercido sobre as empresas e os dados que fluem entre usuários e plataformas. A decisão chinesa de entrar nas discussões passou provavelmente pelo debate entre os prós e contras de estar fora de um processo de decisão tão caro para a atual estratégia de desenvolvimento econômico chinês, imbrincada ao desenvolvimento de novas tecnologias e o usufruto do gigantesco volume de dados de indivíduos e empresas para alavancar esse objetivo. Estar fora significaria não participar da principal arena atual de rule making em comércio digital. Provavelmente estaremos olhando para exceções marcantes de soberania e segurança nacional num futuro acordo na OMC, o que, ao passo em que permitem um acordo de maior representatividade, podem acabar não alterando o status quo de baixo acesso de empresas estrangeiras ao mercado digital chinês. Todavia, garantirão uma arena mais livre para a atuação de plataformas de países desenvolvidos no restante do mundo, o que é algo não-negligenciável.

Conclusões

A maior parte dos países já entendeu que há uma mudança tecnológica ocorrendo tanto na forma de produzir como de comercializar bens e serviços. Diversas políticas foram implementadas ou estão sendo desenvolvidas na tentativa de gerar benefícios dessa digitalização para as economias.  Enquanto alguns países miram em desenvolver uma agricultura ou manufatura mais digitalizada, outros buscam promover o comércio eletrônico de bens, mas poucos de fato se mostram atentos à necessidade de promover políticas ativas para entrada mais qualificada e de usufruto dos benefícios de longo prazo que podem ser gerados pelo desenvolvimento digital. Não é automático que países ganharão mais por terem mais empresas, setores e indivíduos conectados: a digitalização não é um maná que cairá do céu e gerará novas possibilidades de negócios uma vez que as condições básicas (de infraestrutura e conectividade) estiverem implantadas. Os países claramente a frente na corrida digital tem não apenas um setor privado ávido por desenvolver e aplicar novas tecnologias, como um governo pavimentando a jornada, como é o caso da China com o Plano tornar o país uma referência em inteligência artificial até 2030, como a estratégia para I.A  de Donald Trump.

A saída, com certeza, envolve políticas e regulações que promovam o acesso a tecnologias digitais e que induzam o desenvolvimento de tecnologias digitais capazes de responder aos desafios do desenvolvimento econômico de cada país. Ou seja, é preciso promover a entrada dos agentes econômicos – cidadãos, empresas e governo – na era digital e abrir o caminho para que estes também sejam agentes dessa transformação digital, transformação essa que trabalhe em prol de uma agenda de desenvolvimento, redução de desigualdades e aumento de produtividade, no caso brasileiro. Mas, antes disso, é preciso ter um diagnóstico correto sobre quais as principais tendências na produção e no consumo que emergiram a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais, sobre quais tecnologias são mais importantes, sobre o papel dos dados nessa jornada e sobre quais os temas espinhosos que devem ser enfrentados para que os países possam encontrar seu espaço na arena digital.

Sobre o autor:

Vanessa Carvalho

É Analista de Comércio Exterior do Ministério da Economia e doutoranda em Economia na Universidade de Brasília.

A servicificação da manufatura: conceitos, evidências e implicações

Os serviços correspondem a mais de 2/3 da atividade econômica global, mas representam parcela pequena do comércio de serviços, quando medido da forma tradicional, com base em fluxos brutos. Quando olhamos para a base de comércio em valor agregado da OCDE/OMC (base TiVA), conseguimos uma visão mais informativa sobre a participação dos serviços no comércio global, a qual se eleva de 20% (em termos brutos) para 49%.

O que torna os valores acima tão distintos – e o que torna a base TiVA tão importante para aqueles que estudam serviços – é justamente a participação desse setor nas cadeias globais de valor, não apenas como uma “cola” capaz de integrar etapas de produção fragmentadas globalmente, mas como componente fundamental da formação de valor em cadeias globais.

Não é de hoje que sabemos que os serviços são atividades que criam valor, e que, por isso, merecem estudos que entendam a dinâmica desse setor. O que vamos explorar nesse post é a forma pela qual os serviços estão presentes na cadeia de valor da manufatura. Em particular, buscaremos explicar o fenômeno da servicificação, seus impactos nas cadeias globais de valor e as evidências desse processo. No próximo post, discutiremos as implicações da servicificação para políticas públicas, em particular, para a política comercial.

Entendendo a servicificação

Tal como definido pela Conselho Nacional de Comércio da Suécia, que publicado conteúdos sobre o tema desde 2010, servicificação é o processo pelo qual setores da economia, como manufatura e agricultura,[1] compram e produzem mais serviços que antes, e também vendem (e exportam) mais serviços. Isso leva a uma interconexão cada vez maior entre os demais setores e o de serviços, seja pelo uso de serviços como insumos, como atividades dentro das firmas ou pela venda de serviços de forma agregada (bundled) à bens. A figura abaixo, retirada de Miroudout e Cadesin (2017) ilustra essas três possibilidades.

Fonte: Miroudout e Cadesin (2017)

O aumento da dispersão geográfica das cadeias de fornecedores é um dos fatores que explica o crescimento da servicificação, pois a distribuição de uma cadeia de valor em etapas realizadas em diversos países também implicou no processo de outsourcing de diversos serviços. Isso decorre do papel, já bem conhecido, que as etapas de serviços como padronização, P&D, design, logística, pós-vendas, branding, entre outros, possuem no processo de produção de bens. Assim, a servicificação surge como uma forma de reduzir custos e ampliar a eficiência da produção em cadeias globais. Em essência, é uma estratégia para permanecer competitivo e ampliar lucros (Miroudout,2017). Além disso, esse processo também tem origem na ambição das empresas de aprofundar as relações com o consumidor, por meio do provimento de serviços relacionados aos produtos. Esse novo modelo de negócio contribui sobremaneira para a diferenciação dos produtos, para a fidelização dos clientes e para que se consiga adquirir vantagens competitivas pela segmentação de mercado.

Os primeiros estudos de caso sobre servicificação analisaram tanto cadeias da manufatura como da agricultura. Em ambas, o que se encontrou foram mais de quarenta serviços utilizados até se chegar a etapa final de entrega dos produtos (Conselho Nacional de Comércio, 2013). Os casos mais emblemáticos de empresas que viveram intensamente o processo de servicificação referem-se à Rolls Royce Aerospace e à IBM. A Rolls Royce, firma consolidada do setor de motores e turbinas de avião, visando melhorar seus produtos, investiu de forma sólida no levantamento de informações detalhadas sobre a eficiência de suas turbinas, passando pelo uso de sensoriamento, de grandes bases de dados e sistemas que possibilitassem a análise dos dados e das informações produzidas, e que fosse capaz de dar respostas objetivas sobre o desempenho do que era produzido. O resultado foi o modelo “Power by the Hour”, onde os clientes pagam pelo tempo de uso do motor. A turbina passou a ser a plataforma física por meio do qual a empresa oferece o serviço “empacotado” de monitoramento de desempenho, manutenção, reparo e prevenção de falhas (OCDE, 2017). Atualmente, 53% do faturamento da empresa advém de serviços. No caso da IBM, empresa criada e mantida por muito anos como produtora de hardware, hoje tem 59% de seu faturamento oriundo de serviços.

Servicificação e digitalização: conceitos mais que relacionados

A servicificação da manufatura tem relação próxima com as estratégias e modelos de negócios que surgiram a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais. Tais tecnologias transformaram serviços antes não comercializáveis em comercializáveis, possibilitando o uso mais intensivo de serviços em CGVs. Assim, parte do que medimos como conteúdo de serviços (outsourced ou insourced) é um deslocamento de recursos para tecnologias digitais em todos os estágios da produção (Miroudout e Cadesin, 2017). Um exemplo disso é o impacto da transformação digital para design e P&D: hoje, essas etapas dependem cada vez mais de softwares para modelagem, prototipagem e testes de produtos, adicionando-se a isso o impacto das impressoras 3D ligadas a esses softwares. Revolução importante também ocorreu nas etapas de marketing, vendas e pós-vendas, que hoje são um dos seguimentos mais intensivos em dados da cadeia de valor. É por meio da informação coletada dos consumidores que produtos são melhorados e customizados. Conforme colocou os autores supracitados, a servicificação e a digitalização estão entrelaçadas, sendo parte de uma transformação maior na forma como as firmas criam valor.

Evidências da servicificação das cadeias globais de valor

Serviços como insumos: o papel dos serviços na agregação de valor das exportações

Conforme já colocamos, a base TiVA é ferramenta poderosa para analisar a relação entre setores econômicos nos diversos países, sendo uma base fundamental para a compreensão sobre servicificação em CGVs. Ao analisar a decomposição do valor adicionado da exportação de manufaturas para 2011 (último ano disponível na base), observou-se que o valor adicionado dos serviços responde por 38% das exportações de manufatura em países desenvolvidos, e 32% nos países em desenvolvimento, valor bastante superior ao que se tinha em 1995, primeiro ano para o qual as informações estão disponíveis.

Serviços produzidos nas próprias firmas exportadoras

Sabendo que a servificação também é um processo que faz com que as firmas de setores como manufatura e agricultura produzam mais serviços dentro das mesmas (o chamado serviço in house). Essas atividades podem ser identificadas como sendo serviços, pois, se fossem terceirizadas, elas pertenceriam a segmentos de serviços. Todavia, a servicificação dentro das firmas e algo muito mais difícil de se investigar, tendo em vista que se tratam de informações sobre o processo produtivo das empresas, não presentes em estatísticas nacionais.  Miroudout e Cadesin (2017) buscaram pesquisas sobre força de trabalho e ocupação para evidenciar esse processo, e encontraram que, em média, 18% do valor adicionado das exportações da manufatura vem de serviços produzidos dentro das empresas. Quando se soma essa cifra ao valor adicionado dos serviços utilizados como insumos, o valor adicionado dos serviços às exportações de manufatura eleva-se de 38% para 53%. Para os países da OCDE, de 25% a 60% do emprego em firmas de manufatura estão em serviços como P&D, engenharia, transporte, logística, distribuição, TI, vendas e pós-vendas, gerenciamento e back-office.

Serviços empacotados a bens exportados

O estudo de Miroudout e Cadesin (2017) também conseguiu evidenciar como o setor de manufatura vende serviços empacotados a bens, algo também difícil de se medir utilizando as bases de dados sobre comércio, já que a exportação desses serviços é contabilizado como uma transação totalmente distinta da transação de exportação de um bem. Utilizando a base ORBIS, que contem microdados de firmas,  encontram que, em geral, as firmas de manufatura exportadoras estão envolvidas diretamente com a distribuição de seus produtos. Além disso, a exportação de serviços empacotados a bens responde à ambição das empresas de criar relacionamento direto com o cliente, e assim conseguir agregar mais valor aos produtos e gerar maior faturamento a partir dos serviços providos a esses clientes. Muitas firmas também atuam na etapa de transporte, em particular quando isso requer tecnologias e habilidades específicas.

Observa-se, ainda, que empresas dos mais variados seguimentos vêem, nos serviços, uma grande oportunidade de continuar o relacionamento com o cliente mesmo após a entrega do produto, e garantir o provimento de soluções e demanda recorrente pelo bem. Por exemplo, no caso de máquinas e outros equipamentos de transporte (como aeronaves),  o serviço de manutenção e reparo é um dos principais serviços providos. No caso de químicos e minerais, onde há grau elevado de especificidade para entrega desses produtos, as empresas do seguimento fornecem também os serviços de P&D e engenharia.

Implicações

Buscamos aqui apresentar as distintas formas pelas quais os serviços são combinados com os bens, no processo produtivo, para gerar valor. Como vimos, os serviços podem ser utilizados como insumos;  produzidos pela própria firma (in house); e serem vendidos empacotados a bens. Esse fenômeno, apesar de visto de modo mais forte nas empresas da manufatura dos países desenvolvidos, é um modelo também utilizado por diversas empresas de países emergentes. Ao olhar para a servicificação como um modelo de negócios que reduz custos e aumenta a vantagem competitiva das empresas, rapidamente vislumbramos o potencial que esse processo tem para as empresas e países que estão buscando maior engajamento em cadeias globais de valor. A servicificação permite não apenas otimizar a produção, aumentar ganhos advindos da especialização, mas também implica em maior diversificação do faturamento da empresa, além de ser um grande diferencial na relação com os compradores, que passam a ver na firma de manufatura um provedor de soluções customizadas, criando-se, assim, uma relação de longo prazo e novas possibilidades de geração de valor dentro das empresas.

Nesse sentido, políticas que busquem ampliar a participação em cadeias de valor, tanto downstream como upstream, precisam mostrar-se sintonizadas com a dinâmica de produção da manufatura, que hoje é muito mais complexa e envolve muito mais atores de serviços que antes. Nem todas as etapas de serviços podem ser fragmentadas globalmente. E, para que essa fragmentação de fato aconteça, uma rede de acordos precisa estar estabelecida de modo que as empresas possam aumentar a participação de serviços como intermediários mas também criar valor fornecendo serviços na mesma transação da venda de bens – e aqui há desafios grandes para a política comercial, que exploraremos no próximo post.

 

Referências:

Miroudout, S. (2017). The Servicification of Global Value Chains: Evidence and Policy Implications. UNCTAD Multi-  year Expert Meeting on Trade, Services and Development: Genebra.

Miroudot, S. and C. Cadestin (2017). Services In Global Value Chains: From Inputs to Value-Creating Activities. OECD Trade Policy Papers, No. 197, OECD Publishing, Paris

Conselho Nacional de Comércio, 2013. Just Add Services: a case study on servicification and the agri-food sector. National Board of Trade, Suécia.

OCDE (2017). OECD Digital Economy Outlook 2017, OECD Publishing, Paris.

[1] A definição mais precisa coloca a servicificação como o processo que ocorre em setores que não o de serviços, ie, os “non-services sectores”.

Workshop Economia Digital e Desenvolvimento Econômico

O Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e o BID realizarão o Workshop Economia Digital e Desenvolvimento Econômico no dia 11 de setembro, a partir das 9h. Acesse o site do Workshop e confira a programação completa.

Determinantes do engajamento nas negociações internacionais em comércio eletrônico

Como já apontado por este blog, no âmbito multilateral e plurilateral existem diversos acordos comerciais que já contemplam o tema do comércio eletrônico. Diferentemente do que ocorria há cerca de cinco anos, esse tema deixou de ser uma novidade nos acordos regionais, sendo proposto não apenas por países de renda mais elevada, mas, também, por países em desenvolvimento. O que se observa, todavia, é que o nível de engajamento em acordos de comércio eletrônico tem relação bastante próxima com a estratégia traçada por esses países para conquistar espaço na arena digital, que é o que se explora neste post.

A ideia geral do post é apresentada na tabela em anexo.

Há clara divisão de interesses nas negociações internacionais em e-commerce. Esses interesses estão relacionados à posição dos países no mapa econômico digital. Notoriamente, países que possuem empresas líderes no desenvolvimento, gerenciamento e distribuição de tecnologias digitais, os quais chamaremos de Developers of Digital Technologies – DDTs, destacam-se pelo seu engajamento e incentivo a  acordos que contemplem cláusulas fortes em comércio eletrônico. São países que têm incumbentes em diversos setores e nichos de atuação e cadeias de valor no setor digital já estabelecidas e com interesses já mapeados sobre os benefícios potenciais de acordos em e-commerce.

Em geral, os DDTs têm marcos regulatórios consolidados sobre questões fundamentais para o desenvolvimento digital e buscam ser referência regulatória e de padrões técnicos para os demais países. Suas empresas buscam maximizar os benefícios da gestão de plataformas e de tecnologias digitais pela disseminação do acesso e uso de seus serviços e têm retornos crescentes de escala advindos do uso de suas tecnologias e do efeito-rede e efeito-plataforma. Não por outro motivo, esses países  têm interesses fortemente ofensivos em comércio digital.

Já os países que chamamos de Users of Digital Technologies Countries – UDTs têm empresas que são, com exceções pontuais, se muito, majoritariamente usuárias e não desenvolvedoras, gerenciadoras e distribuidoras de commodities digitais. A consequência disto é um engajamento mais modesto em acordos internacionais e posições essencialmente reativas.

Os UDTs têm oportunidades de ganhos potenciais com acordos, pois maior acesso à tecnologias digitais, tais como computação em nuvem, inteligência artificial, big data, data analytics, sensores, robôs, impressoras 3D, entre outras, pode possibilitar melhorias de eficiência, desempenho, produtividade e competitividade de curto prazo. Essas tecnologias podem também beneficiar consumidores, que usufruirão de maior gama de serviços.

Todavia, há que se qualificar os benefícios que os UDTs podem usufruir em razão da adoção massificada de tecnologias digitais associados à “commoditização digital” (Arbache, 2018). Esse processo significa que ainda que as empresas tenham ganhos de eficiência e competitividade com a adoção de novas tecnologias digitais — os denominados benefícios de primeira ordem — esses ganhos tendem a diminuir e, eventualmente, a convergir para zero à medida que mais empresas adotam aquelas mesmas tecnologias. Já os benefícios associados ao desenvolvimento, gestão e distribuição de tecnologias — os denominados benefícios de segunda ordem —  são usufruídos apenas por poucas empresas e suas cadeias de produção. Em razão dos efeito-rede e efeito-plataforma, acordos internacionais liberalizantes de e-commerce criam enormes oportunidades de crescimento e lucros para as empresas dos DDTs.  

O confronto entre os benefícios de primeira e segunda ordem está no cerne do debate sobre a associação entre economia digital e desenvolvimento sustentável.  

Comparemos três casos de alto engajamento em acordos e portanto, de países que são ou buscam ser DDTs: Estados Unidos, países desenvolvidos do Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP, na sigla em inglês) e países da União Europeia. Apesar de diversas diferenças entre eles, os três grupos de países têm interesses ofensivos em comércio eletrônico. Buscam se posicionar como protagonistas da era digital, dentre outros, por meio de regras que limitem o espaço para desenvolvimento de regulamentações domésticas discriminatórias e protecionistas e até mesmo que gerem segurança ao ambiente de negócios online.

Considere o caso dos Estados Unidos. Não há dúvidas que o país exerce, hoje, liderança digital, sendo detentor das principais empresas de tecnologia e  sede das principais plataformas B2B, B2C e C2C. Suas big techs e respectivas plataformas capturam cada vez mais valor a partir da imensa capacidade de acesso a dados que as colocam em posição ímpar de desenvolver e fornecer soluções às demandas por novos serviços e novas aplicações. O país busca conter o que o próprio governo americano classifica como protecionismo digital, que é o levantamento de barreiras ao livre fluxo de dados entre fronteiras, vital para o modelo de negócios das big techs. Para além de acordos plurilaterais, a arena escolhida para isso é a OMC que, apesar de todos os impasses e críticas colocados pelos próprios Estados Unidos em relação ao multilateralismo, recebe forte pressão do país para iniciar discussões em formato de texto negociador e busca mandato negociador na Conferência Ministerial do órgão em 2019.

Japão, Austrália, Canadá, Cingapura, entre outros, seguem diretriz parecida: são países que têm o que oferecer em termos de plataformas e soluções digitais e que tomaram a frente do CPTPP. Buscam garantir a formação de regras para o comércio eletrônico que correspondam aos seus interesses de exercer influência e contrabalancear o avanço das titãs digitais americanas e chinesas.

A União Europeia tem um grupo de países com razoável grau de desenvolvimento em economia digital e em e-commerce, mas com poucas big techs e plataformas em nível global. Apesar disso, a UE tem avançado de forma consistente na promoção da economia digital no bloco, com o “mercado digital comum”, e na regulação sobre questões cruciais, como proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais. Com regulação forte e “in place”, o bloco garante um ambiente de negócios digital próspero que repercute em sua posição também avançada nas negociações bilaterais de e-commerce.

Já a China tem estratégia e objetivos claros quanto ao e-commerce e à economia digital e já são desenvolvedores, distribuidores e gestores de grandes plataformas globais de e-commerce. Ao mesmo tempo, a “Great Firewall of China” mantém o mercado doméstico praticamente fechado, o que restringe o fluxo de dados e os investimentos em serviços de nuvem cross border, dentre outros.

Os UDTs posicionam-se no outro lado do espectro e têm engajamento basicamente reativo em acordos que contemplam comércio eletrônico. Aqui temos os países africanos, a Índia (que está na “ponta final” desse espectro, já que não tem frentes negociadoras abertas em e-commerce) e países como Brasil, México, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Malásia, Vietnã e Indonésia.

É claro que há diferenças significativas entre esses países. No caso de Chile, Colômbia e Costa Rica, por exemplo, observa-se uma abordagem mais arrojada dentre os UDTs. No caso do Vietnã, Malásia e México, o que se vê é que esses países endossam a posição já aceita em acordos como o CPTPP, que é replicada nos seus acordos seguintes.  Buscam ganhos como hubs regionais de comércio e investimentos advindos de economias avançadas. É possível que esses países se beneficiem de ganhos de produtividade e de bem estar para o consumidor. Mas os ganhos estruturais são incertos, posto que não há razões para esperarmos que passarão da condição de UDTs para a de DDTs.

E o Brasil? O país parece se encaixar bem no perfil dos “strategy seekers”, que são países com grande mercado (classe média com relativo poder de compra e avidez por compras online) e infraestrutura de TIC suficiente para sustentar a expansão do e-commerce, com plataformas locais ou domésticas de e-commerce que se beneficiam da limitada penetração de plataformas globais em razão do ambiente problemático de negócios. Assim como a Argentina, o país busca ser usuário qualificado de e-commerce e ampliar o acesso à novas tecnologias. Todavia, não possui empresas e plataformas de peso que, de fato, façam comércio eletrônico em bens em nível internacional. Em serviços em geral, a atuação se limita a alguns nichos, como engenharia e TI.

As provisões em e-commerce devem ser vistas não como provisões regulatórias e adicionais aos demais capítulos já negociados mas, sim, como formadoras de um capítulo transversal capaz de alavancar o potencial de ganhos advindos de capítulos mais tradicionais, como bens, serviços e propriedade intelectual. A adoção cada vez mais generalizada de um capítulo que tem profunda relação com a estratégia que os países tem desenhado para avançar na era digital mostra o interesse de economias como os Estados Unidos, Japão, Canadá,  países da União Europeia e China em garantir que o comércio se manterá como peça-chave para esse avanço — não o comércio tradicional, mas o comércio de bens e serviços digitais, que hoje já explica grande parcela  dos fluxos de comércio global.

O que querem os países nas negociações de e-commerce?

O comércio digital tem crescido rapidamente no mundo todo. De acordo com a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), as vendas globais de bens e serviços pela internet alcançaram US$ 25,7 trilhões em 2016. Desse valor, 90% foram transações entre empresas (B2B). Como consequência, provisões sobre comércio digital cresceram substancialmente nos âmbitos dos acordos regionais de comércio com o objetivo de remover e evitar barreiras ao livre fluxo de dados e conter o surgimento do chamado “protecionismo digital” ou proteger e resguardar interesses nacionais associados à esta agenda.

Dado mais recente da Organização Mundial do Comércio mostra que 80 dos 305 acordos notificados à instituição têm provisões ou capítulos sobre o tema. Quando se olha apenas os acordos recentemente notificados, o que se vê é que a vasta maioria dos acordos já abarcam temas de e-commerce. Com os vários acordos ora em negociação bilateral e regionalmente, tudo indica que esse número ainda crescerá bastante nos próximos anos.

Em análise feita pela OMC focada em 63 acordos regionais com capítulos específicos sobre comércio eletrônico, entre eles o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CTPP), seriam os países desenvolvidos que estariam a “puxar” aquelas negociações. Estados Unidos, Cingapura, Austrália, Canadá e Coreia do Sul são os países que mais alavancaram o tema de e-commerce em ARCs. Muitos países em desenvolvimento hoje têm acordos com essas provisões à reboque da demanda de países desenvolvidos para fechar negociações.

Os temas que compõem os acordos variam bastante, não apenas em conteúdo, como, também, em profundidade dos compromissos. A maior parte inclui cláusulas de não-tributação de transmissão eletrônica, cooperação, proteção de dados pessoais e do consumidor. Em menor escala, mas também frequente, estão temas de aplicabilidade das regras da OMC ao comércio eletrônico, comércio sem papel, tratamento não-discriminatório de produtos digitais e autenticação eletrônica. Questões mais controversas, como localização de servidores e código-fonte, estão presentes apenas em acordos mais recentes. O formato desses acordos também varia — muitos têm capítulos separados para comércio digital, enquanto outros preferiram deixar o tema no capítulo de serviços.

Acordos ainda em negociação ilustram bem as posições dos países em relação ao tema de comércio digital. Na proposta apresentada na OMC ou nos textos em negociação com México e Chile, já é possível ver com clareza os pontos importantes na negociação para os europeus: a proibição da imposição de impostos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas e o banimento de procedimentos de autorização focada apenas em serviços online “por motivos protecionistas” (colocado como princípio de não-autorização prévia), e o aceite de contratos e assinaturas eletrônicas.  O bloco ainda negocia o tema com o Mercosul, e o capítulo de comercio eletrônico ainda requer alguma convergência e a definição de exceções à aplicação das provisões.

O que se vê nesse e em outros acordos recentes é reflexo do avanço da União Europeia na promoção da economia digital no bloco, como o “mercado digital comum”, e na regulação sobre várias questões cruciais para a economia digital, como a proteção de dados, fluxo de dados e segurança nas transações digitais (autenticação eletrônica, por exemplo).

Ao colocar a proteção de dados pessoais como “não negociável” em acordos de comércio, por se considerar um direito fundamental, a Comissão Europeia retira o tema de pauta das negociações bilaterais. A regulação sobre proteção de dados europeia (GDPR, na sigla em inglês), que entra em vigor dia 25 de maio, responde à demanda dos cidadãos europeus por mais transparência sobre quem tem seus dados, de onde eles vieram e com quem eles são compartilhados. Ao mesmo tempo, o bloco tem trabalhado em provisões para evitar medidas protecionistas sobre o fluxo de dados entre fronteiras, ao tempo que garantam a proteção e a privacidade dos dados no patamar colocado pelas novas regras no bloco.

Apesar de terem se retirado das negociações do Acordo Transpacífico (originalmente TPP e agora CTPP) como um dos primeiros atos oficiais da administração Donald Trump e de terem apresentado diversas críticas à OMC em relação a comércio eletrônico, os Estados Unidos vêm firmando posição naquela Organização e destacando que o comércio digital segue como essencial para a economia do país, o que está em linha com a condição de sediar muitas das maiores e mais influentes empresas de economia digital, incluindo plataformas de e-commerce.

A posição dos americanos na OMC seguiu em defesa do livre fluxo de informações e de transferência de dados entre fronteiras, não exigência de localização de servidores e proibição do bloqueio de conteúdo online. Advoga-se pela não tributação sobre transmissões eletrônicas, não-discriminação no tratamento de produtos digitais, proteção a código-fonte e não restrição à encriptação. Trata-se de um claro esforço para avançar as discussões sobre comércio eletrônico na Organização e reduzir as possibilidades de barreiras digitais aos fluxos de dados, algo vital para o atual modelo de negócios das empresas super-hegemônicas americanas de tecnologia digital.

Já no continente africano, o tema do comércio eletrônico é dominado por um pequeno grupo de países, entre eles Egito, África do Sul, Gana e Etiópia. A região tem baixíssima participação no comercio digital global (inferior a 1%) muito em virtude dos grandes desafios que a região enfrenta, como acesso à eletricidade, tecnologia da informação e comunicação (TIC), logística, baixo uso de métodos de pagamentos eletrônicos, pouco acesso a cartão de crédito, fraca penetração bancária e falta de conhecimento sobre TI e habilidades ligadas a e-commerce, tanto de empresas como de consumidores.

O tema de comércio eletrônico não está na mesa nos acordos que a região da África está negociando, como é o caso da Zona de Livre Comércio Continental (CFTA, na sigla em inglês). No âmbito multilateral, o Grupo Africano, que não é composto por todos os países do continente, durante as reuniões pré-Ministeriais de Buenos Aires, mostrou grande preocupação com as implicações de novas regras em e-commerce e com a potencial restrição que tais regras colocariam sobre o espaço para políticas industriais digitais voltadas ao desenvolvimento da região. Uma adoção de regras “prematuras” poderiam reduzir ainda mais, na visão do bloco, as possibilidades futuras de catching up de crescimento econômico e tecnológico.

A Índia também está entre os países com ressalvas quanto ao avanço nas negociações em e-commerce na OMC. O país tem tido forte expansão do mercado de comércio eletrônico e da penetração da internet e de smartphones e tem receio de que as novas regras multilaterais prejudiquem o crescimento das plataformas de e-commerce nacionais. No último documento circulado pelo país na OMC, posicionaram-se contra o avanço nas negociações de regras em comércio eletrônico, tal como o Grupo Africano. O país assinou apenas um acordo que cobre o tema de comércio eletrônico, provavelmente por demanda da contraparte cingapuriana.

Em lado oposto, não há região mais promissora no comércio eletrônico que o leste da Ásia. A região já tem alguns dos gigantes globais da internet e do e-commerce e ao menos 1 de cada 3 novos unicórnios são daquela região. A região tem um mercado digital pujante, com forte aumento anual no número de consumidores. A China, sozinha, é, hoje, o maior mercado de comércio eletrônico do mundo, respondendo por 40% das transações globais. Nessa condição, a região tem uma postura diferente da de outros países em desenvolvimento. Afinal, a região se posiciona para ser parte do mainstream da indústria global do e-commerce e da economia digital. Ainda que o tema não se reflita em números de acordos assinados, já é possível ver apontando no horizonte as demandas que o país tem para seguir avançando na provisão de bens e serviços digitais para os mais diversos mercados.

Já o Brasil segue negociando acordos com União Europeia, Chile, México, Índia, Canadá e Associação Europeia de Livre Comércio (EEFTA) e tem mandato negociador já aprovado para negociações com a Coreia do Sul e conversas ainda preliminares com Cingapura. O país segue com participação ativa nas negociações na OMC, seguindo o indicado na Declaração Ministerial Conjunta de Comércio Eletrônico. Com o crescimento do interesse de países desenvolvidos por provisões em comércio eletrônico, alguns desses acordos passam a repercutir aqueles anseios. Na condição de país essencialmente “usuário” das tecnologias digitais, o Brasil tem sido cauteloso nas negociações de forma a resguardar espaço de política. O país tem colocado na mesa a necessidade de associar o e-commerce a preocupações de desenvolvimento econômico. Afinal, tem ficado cada vez mais evidente a tendência de concentração do mercado de e-commerce em nível global em torno de um pequeno punhado de grandes plataformas, bem como a distinção entre os benefícios de se “usar” e-commerce e os benefícios de se “desenvolver, distribuir e gerenciar” plataformas de e-commerce, o que é prevalecente para alguns poucos países. De fato, já se identificam evidências de que o hiato entre esses dois grupos de benefícios poderá ser a fonte fundamental de aumento da desigualdade de renda entre países.

Pela análise dos acordos em andamento, já é possível ver convergência para alguns temas centrais, que devem acabar sendo os principais assuntos a terem resultados em um eventual acordo multilateral sobre o tema. A grande presença do comércio digital em acordos regionais e bilaterais é uma clara resposta à ânsia dos países em avançar na agenda antes que mais barreiras ao comércio digital e ao fluxo de dados sejam aprovadas em nível doméstico.

Os países que têm maior receio quanto ao avanço da economia digital e do poder das mega-empresas digitais sobre as suas economias muitas vezes têm dificuldades em colocar a sua posição sobre um tema cujo alcance ainda não está claro. Acordos de comércio apresentam inúmeras frentes de negociação, sendo difícil consolidar posição em economia digital frente às demandas prementes e bem mapeadas em bens,  investimentos, regras de origem e compras públicas, por exemplo.

Orquestrar todos os interesses é matéria difícil quando se tem maior conhecimento e tactibilidade nos efeitos das provisões para o comércio entre os potenciais parceiros em temas tradicionais. Todavia, cada vez mais, os países atentam-se para a importância de se olhar com cautela para o que os capítulos de comércio eletrônico contemplam, o que torna ainda mais importante o engajamento em fóruns multilaterais de forma a manter espaço suficiente para políticas públicas digitais que permitam aos países, em especial os em desenvolvimento, otimizar os benefícios da revolução digital.

Como a Black Friday alavancou o e-commerce no Brasil

A Black Friday tornou-se uma das mais importantes datas para o varejo nacional. Importada por diversos países como forma de estimular o comércio semanas antes do Natal, a Black Friday foi adotada há sete anos pelo varejo brasileiro. O último dia 24 de novembro revelou que o costume foi, finalmente, bem aceito pelo consumidor brasileiro, mas com diferenças importantes em relação ao que se observa nos demais países.

Apesar das diversas reportagens e imagens mostrando consumidores ávidos por descontos dados pelas grandes lojas físicas, a data foi muito mais importante para o comércio eletrônico, que se aproveitou do movimento para atrair o consumidor para vendas online. O resultado impressionou: nos dois principais dias de oferta, o faturamento chegou a 2,1 bilhões de reais. As lojas físicas temem, inclusive, um menor crescimento nas compras de final de ano devido à antecipação nas compras promovidas pela Black Friday, e já se discute uma antecipação da data para agosto no próximo ano.

Na Black Friday de 2017, pode-se observar com clareza o potencial do e-commerce no mercado brasileiro. O ticketdio de compras foi duas vezes superior à média mundial. Ainda, as vendas por meio do celular representaram parcela importante das vendas: quase um terço ocorreu via mobile, crescimento superior a 80% em relação a 2016. O varejo online, que já supera o físico em diversas categorias como eletrônicos, viagens e celulares, viu na data a chance de trazer novos consumidores para o mundo virtual.

O crescimento das vendas online na Black Friday demonstra também uma maior confiança por parte do consumidor brasileiro no comércio eletrônico, algo recorrentemente apontado como uma das principais barreiras ao crescimento desse mercado. As lojas online parecem, de forma geral, ter conseguido vencer o receio dos consumidores de estarem  realizando compras com falsos descontos. Isso não significa que a prática de “maquiagem de preços” não tenha ocorrido – o site Reclame Aqui registrou mais de cem reclamações por hora durante a mega oferta, a maior parte sobre propaganda enganosa.

O e-commerce no Brasil – vantagens, oportunidades e espaço para avanço

A Black Friday explorou algumas vantagens em relação ao comércio físico ainda pouco conhecidas pelo consumidor. É o caso, por exemplo, do direito de desistência, que existe apenas quando a compra é feita fora do estabelecimento, conforme coloca o Código de Defesa do Consumidor.  As empresas virtuais aliam a isso estratégias como a devolução sem pagamento de frete ou embalagem para reenvio, bastando apenas a comunicação à loja e a entrega do produto aos Correios.

Todavia, o avanço das vendas no comércio eletrônico é refreado por uma série de entraves, alguns estruturais, e com poucas possibilidades de melhoria no curto prazo. Um deles, já levantado por este blog, refere-se aos altos fretes – um dos maiores responsáveis pela desistência na hora de se fazer o pagamento. Calcula-se que lojas online perderam quase 12 bilhões de reais por conta tanto do alto frete como da demora na entrega. Essas dificuldades reduzem sobremaneira a compra de produtos de menor valor – muitas vezes o valor do frete é superior ao valor do produto –, o que torna a compra desvantajosa. Isto inibe o crescimento de nichos de mercado importantes, como é o caso do uso do e-commerce para compras recorrentes, como produtos de limpeza e alimentos. Esse mercado, por sinal, é um dos grandes responsáveis pelo crescimento nas vendas da Amazon, por exemplo, por meio do Amazon Prime. Uma forma de se mitigar esse problema é o Click and Collect, ainda pouco usado no Brasil.

O comércio eletrônico ainda tem muito a ganhar com as tecnologias digitais

Embora surfando na onda da Black Friday (e suas variantes, como Black Weekend, Black Week ou Cyber Monday), o comércio eletrônico ainda terá que vencer muitas fronteiras para avançar em mercados mais tradicionais do varejo, como moda, itens de compra cotidiana e recorrente, mantimentos, entre outros. E a economia digital tem muito a contribuir na busca de soluções. Inteligência artificial, IoT, big data, cloud computing, realidade aumentada são algumas das tecnologias que, em um curto período, virarão serviços à disposição das plataformas de e-commerce. Elas deverão contribuir para melhorar a experiência do consumo online, reduzir custos de infraestrutura de rede e para trazer para esse mercado tanto novos usuários, como os que já compram online, mas que ainda procuram as lojas físicas para a maior parte das compras.

No caso do Brasil, muitas são as tecnologias que podem superar as desvantagens existentes numa compra online. Uma delas é a falta de contato com o produto. O Arkit, ferramenta de realidade virtual da Apple, está sendo utilizado por empresas como Ikea para que o cliente possa avaliar, por meio de um app, se o móvel que se deseja comprar se encaixa no local onde ele será colocado. O uso da automação e de algoritmos leva a quase zero o custo marginal de se adicionar novas interações, o que permite às plataformas de e-commerce suportar milhares de usuários. Ainda, o comércio eletrônico é capaz, por meio da tecnologia de RFID, de contornar questões como a informação sobre disponibilidade do produto. A coleta de big data e a posterior análise permite a extração de informações valiosas sobre o perfil dos consumidores, que possibilitam melhorar o posicionamento da marca frente às demandas presentes e futuras de seus clientes.

O efeito-rede existe em diversos mercados, mas é ainda mais relevante para se entender o poder das plataformas digitais, entre elas, as de e-commerce. O benefício de se usar um produto ou serviço dentro de uma plataforma cresce exponencialmente conforme se aumenta o número de usuários. E quanto mais pessoas usam uma plataforma, mais atrativa ela se torna. É o que acontece com plataformas como Ebay, Mercado Livre e OLX, que só geram os benefícios esperados para os consumidores em função do efeito-rede que conseguiram criar.

Como também já exposto por este blog, as plataformas são, provavelmente, o modelo de negócios de maior valor na era digital. Juntos, o efeito-rede e plataforma reforçam o poder que gigantes do comércio eletrônico têm sobre o mercado – as empresas fazem de tudo para manter o usuário navegando em sua plataforma, ganhando na geração de uma imensa quantidade de dados, os quais fornecem informações que serão usadas para fornecer novos serviços – reforçando a predominância da plataforma.

A essa infinidade de dados alia-se o uso de ferramentas como machine learning e engenharia de dados, as quais alavancam o conhecimento sobre o usuário e reforçam o ciclo de preponderância das plataformas. Um exemplo claro é a Amazon Prime, que inclui serviço de compras, entrega rápida, delivery de restaurantes, leitura de livros, audiobooks, streaming de series e filmes, música, compra integrada com o dispositivo Alexa, serviços domésticos e de reparos, entre tantos outros.

O que fica de lição ao se observar o que acontece nos demais mercados e também no Brasil é que as lojas físicas não podem prescindir da presença online. Vide o exemplo da Toys”R”Us, uma das maiores vendedoras de artigos infantis, que entrou com pedido de falência em setembro deste ano. Atribui-se a isto a forte concorrência com o e-commerce: o mercado de brinquedos, diferentemente de vários outros, adequa-se bem às vendas online e ao público de pais millennials sem tempo para ir a lojas físicas e mais habituado a executar as mais diversas atividades na internet. A empresa tentou ser fornecedora exclusiva de brinquedos para a Amazon em 2000, a qual foi processada em 2004 por descumprir o contrato. Com isso, a Toys”R”Us perdeu a oportunidade de desenvolver a sua própria plataforma de e-commerce há mais tempo. E quando acordou, já era tarde demais.

Conclusão: ainda estamos no ‘Day One’

Jeff Bezos, CEO da Amazon, tem uma célebre frase que resume a filosofia da empresa: “this is Day One ”. Isso significa que um mundo novo ainda está por vir em relação ao comércio eletrônico, à internet e à economia digital. Há, assim, um longo caminho a ser percorrido, tanto por economias mais maduras, como também pelas emergentes, até que o comércio eletrônico seja capaz de prover a melhor experiência para o consumidor a um baixo custo.

Para o Brasil, além da necessidade de ser avançar nas questões estruturais ligadas a serviços de custos, como logística e entrega, é preciso também ser capaz de olhar para fora, buscar novos modelos de negócios, novos mercados e novos serviços capazes de agregar valor ao que se entrega. O comércio eletrônico está só começando no Brasil. Devemos aproveitar o momento para traçar estratégias de crescimento que incluam novos mercados e que se projetem sobre novos modelos de negócios. Não dá mais para seguir a rota do foco no mercado interno – e muito menos repetir os velhos erros das industrias tradicionais.

Comércio eletrônico: é preciso regulamentar?

O entendimento sobre o que é comércio eletrônico abrange mais do que a simples venda de bens pela internet. Apesar do varejo em lojas físicas ainda representar a maior parcela do comércio total, o e-commerce – tanto business-to-business (B2B) como business-to-consumer (B2C) – tem crescido muito nos últimos anos, especialmente na modalidade transfronteiriça. Relatório da empresa internacional de logística DHL aponta que, em 2020, esse mercado poderá passar de US$ 1 trilhão, representando 22% de todo o e-commerce mundial.

As implicações desse movimento para a economia são cada vez mais visíveis. Basta observar o valor de mercado e o crescimento projetado das vendas de empresas como Amazon e Alibaba, e o fortalecimento dos braços de compras de plataformas como Facebook e Google (Google Shopping) para compreender porque temas ligados ao comércio eletrônico estão ganhando cada vez mais espaço nas discussões internacionais de comércio.

A consolidação do mercado global de e-commerce está se tornando desafio crescente para empresas locais ou entrantes competirem com “superestrelas” como a Amazon. A lógica do winner-takes-all explica as aquisições e fusões defensivas de grandes varejistas. No fundo, é uma competição não mais por nichos de mercados, mas uma busca pela sobrevivência. Afinal, já há sinais de que as plataformas de fornecimento cuidarão de quase tudo que o consumidor precisa e deseja comprar. Como resultado, o único caminho para os varejistas locais, principalmente as lojas de médio e pequeno portes, é vender nessas megaplataformas ou marketplaces se subjugando às regras do jogo e imposições das plataformas (há algo ainda mais importante aqui, que é o fato de a plataforma capturar e usar todos os dados originados da relação entre o consumidor e o lojista – mas isto será objeto de outro post).

Apesar de paralisadas as negociações, o Tratado da Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês) cumpriu papel importante ao revelar que o e-commerce é uma das novas arenas de “luta” no comércio mundial. Basicamente, o TPP pretendeu determinar os rumos da economia digital ao definir regras e procedimentos, incluindo o comércio eletrônico de bens e serviços, e temas como padrões, regras e tarifas sobre produtos digitais, localização de servidores, códigos fonte, etc. – todos considerados como “barreiras” aos mercados dos gigantes digitais do e-commerce. Assim, o TPP teria consequências contundentes para os seus signatários e também para os não signatários, em particular para o espaço de formulação de políticas públicas para o setor de serviços e para o e-commerce. Apesar de estar atualmente paralisado, o TPP se tornou inspiração e ponto de partida para as novas negociações comerciais.

Para economias em desenvolvimento, a atenção a essas condições deve ser redobrada, pois a participação em acordos que tratam do comércio eletrônico sem um cuidadoso debate interno sobre onde queremos chegar e o que precisa ser feito poderá dificultar o desempenho do setor e até mesmo as perspectivas do crescimento econômico de médio e longo prazos. O caso do Chile é simbólico: o comércio de varejo do país já é dominado pelos gigantes globais do e-commerce.

A corrida de ocupação dos espaços do e-commerce já tem players bem sucedidos, mas com estratégias distintas. A China praticamente fechou o mercado de e-commerce ao funcionamento de empresas americanas, como o Google e o Facebook, e limitou a ação da Amazon a vendas de bens que ela dispõe em seus próprios armazéns, impedindo-a de exercitar o seu superpoderoso braço de marketplace. Com isso, a China pavimentou o caminho para o desenvolvimento de novos gigantes como o Alibaba, JD.com e Weibo, que hoje já têm projeção global e são, juntos, substancialmente maiores que a Amazon. A China percebeu a sua condição de latecomer num setor crítico e usou ferramentas protecionistas para desenvolver a sua indústria digital nascente. Para empresas estrangeiras que podem operar na China, todos os dados devem ser depositados em servidores lá sediados.

Já os EUA estão empenhados na promoção de ampla liberalização e desregulamentação do mercado digital global, já que, à exceção das chinesas, quase todas as principais plataformas digitais globais são americanas, bem como o são as gigantes do e-commerce com maior presença no ocidente.

Os europeus, cientes dos efeito-rede e efeito-plataforma no mundo digital e no e-commerce, e temendo os efeitos de seu atraso nessas tecnologias, também estão jogando pesado em suas negociações comerciais com regiões menos desenvolvidas em prol da liberalização dos mercados de serviços, inclusive do e-commerce, em favor das suas empresas. Talvez não sejam apenas a preocupação concorrencial e com o bem estar do consumidor que expliquem as recentes multas bilionárias para a Microsoft e Google impostas pelas autoridades de competição de Bruxelas.

EUA e China são dois modelos extremos. O Brasil não é um líder digital e, por isso, agendas ultra-liberalizantes ou ultra-protecionistas devem ser vistas com cautela. Mas o Brasil não pode se enclausurar e proteger a ineficiência, sob pena de repetir os conhecidos erros do passado que ajudaram a nos trazer aqui. Talvez o mais razoável seja desenvolver uma estratégia que leve os operadores internacionais da economia digital a estabelecerem bases operacionais no Brasil (com servidores e abertura de código fonte) e formarem clusters digitais nacionais com parceiros locais.

Nessa discussão, também será preciso levar em conta que o comércio de varejo é, de longe, o setor que mais emprega no Brasil, em especial pessoas com pouca qualificação, bem como um dos setores que mais recolhem ICMS. A eventual expansão do e-commerce internacional no país não será, portanto, neutra em efeitos sociais nem fiscais, incluindo ali os impactos nos recolhimentos e nos benefícios previdenciários.

Uma estratégia nacional para inserir o Brasil na economia digital global deveria incluir ações em ao menos três direções: regulamentação interna do comércio eletrônico; construção de “capabilities”; e inserção internacional.

A regulação interna do comércio eletrônico deve partir do pressuposto de que esse não é um mero canal de vendas remoto, pois as modernas tecnologias permitem experiências de compra e venda tão ou mais completas quanto às do mundo real. Isso traz implicações para os direitos do consumidor, direito econômico (defesa da concorrência, mais especificamente), tributação, entre outros. Além disso, o Marco Civil da Internet e toda a sua regulamentação devem ser pensados numa perspectiva de desenvolvimento econômico, para além das questões sobre democracia e liberdade de expressão. Até mesmo a infraestrutura de transportes e armazenamento e suas regras precisam se adaptar para comportarem uma maior demanda por entregas rápidas, com extensa capilaridade e com projeção internacional. Também é preciso simplificar leis e normas. Porém, algumas das iniciativas recentes requerem atenção. Exemplo disso é a lei – suspensa por liminar no STF – que obriga varejistas online a recolherem ICMS em dois estados em transações interestaduais.

A construção de capabilities é uma tema especialmente importante. Apesar da tendência de consolidação do varejo eletrônico, ainda existe possibilidade de crescimento do mercado, especialmente o de nichos. Análise feita pela FedEx aponta que os segmentos de varejo eletrônico de médio porte crescem mais rapidamente que o segmento de massa. Isso ocorre pela possibilidade de prestação de vendas online e serviços com maior customização e especialização. Obviamente, isso faz parte de uma cultura empresarial na qual a possibilidade de contribuição do governo está centrada numa política de ambiente de negócios e incentivos à inovação e ao capital humano que incorporem, desde a alfabetização, o contato e a aprendizagem de linguagens de programação, machine learning e tecnologias digitais.

Finalmente, a inserção internacional deve ser o farol que orienta os dois pilares anteriores. Para isso, o país precisa amadurecer rapidamente seus planos de abertura comercial, inclusive com vistas à conquista de mercados externos. Manter a economia fechada será um equívoco; abrir o mercado digital de forma apressada sem um plano estratégico será outro equívoco.

Mas que uma coisa fique clara: o Brasil está atrasado na agenda da economia digital, que é a verdadeira guerra dos tronos do século XXI. Embora o momento atual seja de reformas estruturais que estabilizem e reorganizem a economia, é preciso ter clareza do contexto e propor políticas públicas que pensem as fronteiras econômicas do futuro. O que não podemos é esperar que o dirigismo estatal ou que o mercado por si só apareçam com soluções que parem de pé neste complexo novo mundo. Elas simplesmente não aparecerão.

Redução no crescimento do comércio mundial – alguns comentários

O arrefecimento no crescimento do comércio global tornou-se preocupação recorrente para economistas e policy makers no mundo todo. A OMC prevê que o comércio de bens crescerá apenas 1,7% em 2016 – é a primeira vez em quinze anos que essa taxa será inferior a estimativa de crescimento do PIB mundial (gráfico da esquerda abaixo).

Alguns fatores são mais fortemente associados a esse quadro, como a redução do efeito-China sobre o comércio global,  a redução em tendências de offshoring e de expansão de cadeias globais de valor, mudanças na dinâmica da atividade econômica – de acordo com o FMI, cerca de 75% da redução no comércio poderiam ser explicados pelo baixo crescimento do investimento–, bem como uma nova onda de protecionismo, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. Em relação a este último fator, observa-se que a Europa tem buscado novas formas de ampliar o uso de medidas antidumping, enquanto o número de medidas restritivas ao comércio adotadas mundialmente tem crescido de forma sustentada (gráfico da direita).

Diversos organismos internacionais saíram em defesa do livre comércio: OCDE, OMC, FMI e Banco Mundial têm conduzido debates, eventos e estudos enfatizando a importância e os benefícios do livre comércio global e da globalização para o crescimento econômico. Ao mesmo tempo, o desenrolar dos acontecimentos de 2016 – Brexit, eleição nos Estados Unidos etc – arrefeceram sobremaneira as expectativas quanto ao avanço de mega-acordos de comercio, em particular no setor de serviços.

Fonte: OCDE

Alguns economistas argumentam que a redução na fragmentação da produção mundial seria um processo natural, reflexo de uma expansão vigorosa na década de 1990 que tenderia a perder momentum nas décadas seguintes. Ainda, argumenta-se que iniciativas como o Trade Facilitation Agreement e demais acordos de comércio de bens bilaterais e regionais em negociação poderiam alavancar as exportações de países em desenvolvimento.  O que esse tipo de argumentação não vislumbra é a mudança na estrutura do comércio mundial na direção do comércio de serviços e dos fluxos digitais.

Em relação a cadeias globais de valor (CGVs), muito se argumenta que ainda haveria espaço para ganhos pela entrada de países em desenvolvimento. Não se pode negar que toda a agenda de desburocratização do comércio de bens e de redução nos custos para exportação (entrando aqui toda a questão de eficiência portuária e logística) tem importante papel para melhorar a inserção e competitividade desses países no comércio mundial. Todavia, fica cada vez mais claro que a tendência em países que estão inseridos de forma mais qualificada em CGVs guarda cada vez mais ligação com serviços de agregação de valor e diferenciação de serviços – como P&D, design, marketing, pós-venda etc – muito mais do que as etapas de montagem de bens. Assim sendo, a agenda de custos que deve ser explorada para melhorar a inserção de países em desenvolvimento no comércio mundial não deveria avançar sem uma agenda mais estratégica em direção ao comércio ligado a serviços e à economia digital – estas, sim, fontes de geração de valor e riqueza e capazes de modificar estruturalmente a inserção no comércio global.

Em suma, ainda que não se possa negar que houve redução no crescimento do comércio de bens, e que se entenda o motivo de preocupação em relação a isso, dado que o crescimento do comércio sempre foi um fator responsável por explicar parte significativa do crescimento global e do desenvolvimento em países emergentes, o debate conduzido não tende a gerar propostas concretas de ação porque apenas tangencia toda a questão relacionada à transformação na natureza dos bens advinda de sua relação com os serviços, a economia digital e seus benefícios para a retomada de crescimento das exportações, da produtividade e da atividade econômica global. Aliar tais agendas à tendência de crescimento no papel dos serviços, da digitalização e da automação tenderá a fornecer melhores insumos a economias menos desenvolvidas sobre como tomar se beneficiar do comércio global em prol do desenvolvimento.

A economia digital e o agronegócio brasileiro

A economia digital, que há algum tempo vem transformando setores como serviços, indústria e comércio exterior, está gerando também uma revolução no agronegócio. As agtechs, empresas que desenvolvem tecnologias para o campo, promovem o uso de inovações com o objetivo de otimizar a produção de forma customizada e adaptada as necessidades de cada produtor. De acordo com a Boston Consulting Group (BCG), a rápida adoção dos diferentes serviços propostos por essas startups decorre das fortes evidências de custo-efetividade para os produtores.

Em relação ao desempenho do mercado, houve crescimento mundial no volume de investimentos em agtechs de 2010 a 2015 – nesse último ano os volumes chegaram a US$ 4,6 bilhões, segundo a AgFunder. Apesar disso, projeta-se pequena redução em 2016 em função do baixo desempenho do mercado de venture capital.

As tecnologias propostas incluem áreas como big data & analytics, segurança alimentar, rastreabilidade, biociência (como biopesticidas e bioestimulantes) robotização, automação, logística & distribuição e novos modelos de negócios, como mostra a pesquisa da BCG. O acesso e o uso de dados mais precisos, o processamento de imagens e o monitoramento das plantações, capazes de gerar insights valiosos sobre o desempenho da produção, estão entre as áreas mais promissoras para novos investimentos.

Áreas mais promissoras para investimentos em Agtechs, segundo a BCGagtech-rev-bcg

O Brasil já conta com uma leva consistente de agtechs, as quais têm conseguido atrair volumes crescentes de aportes nos últimos anos, como mostrado pela Istoé Dinheiro. É o caso da Agrosmart, startup que fornece monitoramento em tempo real, a partir de sensores no campo e por satélite, de diversas variáveis ambientais, possibilitando uma melhor tomada de decisão por parte dos agricultores.

Porque o fenômeno das agtechs é importante para o Brasil?

A revolução digital está chegando com força em diversos setores, e tenderá a gerar uma nova onda de investimentos em empresas e grandes benefícios em termos de uso ou geração de valor para seus distintos públicos-alvo, sejam eles consumidores ou empresas. Para uma economia como a brasileira, que possui a agricultura como um setor de grande dinamismo e responsável pela maior parcela da pauta de exportações, as agtechs podem contribuir sobremaneira para a geração de novas tecnologias, novos serviços e novas fontes de valor para o País.

Diversos posts anteriores já discutiram a importância do aumento da produtividade do setor de serviços, em função de seus efeitos positivos para a economia como um todo e para os demais setores da economia, que utilizam vários serviços nas etapas de produção, como é o caso da indústria. A formulação de políticas públicas para o setor de serviços perpasssa, portanto, duas questões essenciais: quais setores são elementos-chave para a elevação da produtividade e competitividade e quais possuem ligação com as vantagens comparativas dinâmicas e estáticas do País.

A melhoria dos serviços de custos forma uma importante agenda para resolução de entraves existentes há décadas pelo Brasil, como infraestrutura e logística. Todavia, conforme apontado por Arbache e Moreira (2015), são os serviços de agregação de valor os que mais contribuem para a elevação da produtividade na indústria, os quais também serão os protagonistas do desenvolvimento e crescimento econômico no futuro, a partir da demanda de uma indústria capaz de produzir bens de alto valor agregado. Raciocínio semelhante pode ser explorado para o setor de agricultura.

Conforme exposto em Arbache (2014) e também pelo blog, a industrialização das vantagens comparativas estáticas e dinâmicas apresenta-se como caminho já utilizado por outras economias, a qual destaca o papel do estímulo ao desenvolvimento de serviços ligados a setores em que o Brasil já possui vantagem comparativa, por meio de políticas que promovam a geração de conhecimento e de desenvolvimento tecnológico. Em relação à agricultura, destaca-se o papel dos serviços ligados à produção agropecuária, biodiversidade e florestas. Tais serviços poderiam contribuir para a ampliação da competitividade em indústrias intensivas em recursos naturais. É nesse contexto que o desenvolvimento das tecnologias pelas agtechs ganha relevância no debate sobre a elevação da produtividade da economia brasileira. A promoção de um ambiente capaz de estimular esse tipo de inovação contribuirá para a geração de serviços que consigam endereçar os problemas enfrentados pela indústria e pela agricultura, ao passo em que promovem serviços de agregação de valor no País, tão importantes para a geração de riqueza nas próximas décadas.

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