Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Paulo Ávila

Cidades Inteligentes

O desenvolvimento das cidades se dá pelo acúmulo no espaço dos resultados sucessivos decorrentes de múltiplos e heterogêneos agentes que interagem entre si e com o seu meio. Nessas interações, indivíduos e empresas decidem estrategicamente suas ações mediando suas expectativas de pay-off com o conjunto de informações que os mesmos extraem do contexto onde estão inseridos.

Tais informações podem ser referentes às características e comportamentos dos demais agentes, à disponibilidade de recursos e as condições para acessá-los visando o alcance dos resultados desejados, às instituições (formais e informais) que regulam as relações sociais e econômicas da sociedade, às restrições impostas pelo meio físico (natural e construído), às forças políticas que atuam no ambiente, etc. Todas esses pedaços de informação se juntam formando um todo que configura um determinado espaço.

Uma característica dos agentes é que nas suas múltiplas rodadas de interação eles aprendem com a experiência, adquirem novas informações e modificam e adaptam suas estratégias e suas ações, o que produzirá cumulativamente no espaço novos resultados e novas informações, as quais, por sua vez, deverão ser processadas pelos agentes. Assim, na medida em que as cidades crescem, mais complexo se torna o ambiente, como nas regiões metropolitanas, ficando cada vez mais difícil o conhecimento e o processamento de todas as informações que o ambiente está constantemente produzindo.

Considerando a limitada capacidade do ser humano para processar quantidades gigantescas de informação, esse processamento é muito difícil também para aqueles que atuam no planejamento e na gestão das cidades, haja visto que elas podem evoluir tais como organismos vivos, muitas vezes sofrendo mutações no meio do caminho e mudando o curso do que foi planejado. Informação incompleta e planejamento baseado em tendências do passado que não necessariamente irão continuar no futuro muitas vezes produzem políticas públicas insuficientes ou inócuas para garantir um desenvolvimento urbano sustentável. Mudanças repentinas de rumo, em geral, não são bem aceitas pelos planejadores.

Ferramentas e sistemas digitalizados já são utilizados há algum tempo para tentar lidar com as informações relativas ao espaço urbano, cruzando dados georreferenciados, sobrepondo mapas, localizando infraestruturas, etc.; de modo a orientar a tomada de decisão no planejamento e na gestão das cidades. No entanto, as novas tecnologias digitais (internet das coisas, computação em nuvem, conectividade entre equipamentos, big data, inteligência artificial, internet de alta velocidade, etc.), tem oferecido um novo conjunto de soluções para lidar com a dinâmica da vida nas cidades, manejando um conjunto crescente de informações e elevando a um novo patamar o planejamento das cidades e a gestão na prestação de serviços públicos.

Por exemplo, o monitoramento em tempo real de atividades nas áreas públicas, de funcionamento de serviços públicos e o cruzamento simultâneo de informações de diversas fontes em bases territoriais oferecem a oportunidade para que o gestor público responda com mais agilidade a eventos fortuitos, tomando decisões mais seguras e rápidas.

Essas mudanças caracterizam, grosso modo, o surgimento das Cidades Inteligentes (Smart Cities) que, basicamente, podem ser descritas como cidades nas quais o aumento da capacidade de integração de dados e processamento de informações nos processos de planejamento e gestão das políticas públicas permitidas pelas tecnologias digitais, aumenta a eficiência e a eficácia na prestação de serviços à população e promove um desenvolvimento urbano mais sustentável. Certamente, o foco não é no uso da tecnologia em si, mas na utilidade que o seu uso gera para o cidadão, ao permitir que o poder público atenda as diversas demandas da sociedade com a utilização mais racional e eficiente dos recursos disponíveis, resultando na melhoria da qualidade de vida urbana.

O conceito de Cidades Inteligentes envolve mais elementos do que o simples uso de tecnologias digitais, desde que incorpora também noções de desenvolvimento sustentável, criatividade e inovação, cooperação e engajamento coletivo, participação social, parcerias público-privadas, difusão de conhecimento e co-criação em redes, novas abordagens de ensino e aprendizagem, ganhos de produtividade, clusters tecnológicos integrando indústrias e universidades, transparência e políticas de dados abertos, start-ups, etc. Por trás disso tudo está a organização do espaço físico e virtual tendo o conhecimento e o fluxo de informações como fatores de integração.

A incorporação de ferramentas tecnológicas digitais que permitem a utilização cada vez mais intensa das informações produzidas no dia-a-dia da vida urbana para atacar os principais problemas das cidades já é uma realidade em vários países, e cada vez mais intensa no Brasil.

No mercado já existem tecnologias digitais para transportes e mobilidade urbana, mitigação de congestionamentos com informação de tráfego e navegação em tempo real, semaforização inteligente, cobrança eletrônica de pedágios, sistemas de compartilhamento de veículos, geração de energia renovável e eficiência energética, iluminação pública inteligente, sistemas inteligentes e automatizados de distribuição de energia, abastecimento de água, detecção de perdas e furtos do sistema de abastecimento de água, monitoramento da qualidade da água, monitoramento digital do descarte de lixo, otimização de rotas e coleta seletiva de resíduos sólidos, resiliência e segurança em espaços públicos, mapeamento de crime em tempo real, detecção sonora de disparos de armas de fogo, sistemas avançados de vigilância e reconhecimento facial, sistemas de alertas de emergência de eventos climáticos extremos, aplicativos de alerta pessoais e domésticos, engajamento comunitário e participação social, monitoramento ambiental (temperatura, emissão e redução de gases, umidade relativa, precipitação), dentre outras soluções.

A promoção das cidades inteligentes no Brasil tem crescido atraindo diversos players para o desenvolvimento de soluções para as cidades, o que exige mais investimentos na melhoria da infraestrutura de telecomunicações e internet de alta velocidade no país. Exige também, novas estruturas organizacionais e de governança no setor público. Pouco adiantará soluções tecnológicas integradas se ainda estiverem atreladas a ideias e instituições obsoletas, como a lógica organizacional hierárquica baseada em processos verticais excessivamente formais e burocratizados. Organizações constituídas de unidades autônomas organizadas em redes, adotando processos horizontais, mais ágeis e flexíveis, e soluções integradas por meio do compartilhamento de informações podem garantir melhores resultados na utilização das novas tecnologias digitais.

Cada vez mais o crescimento econômico estará atrelado ao acesso e utilização de informações nos processos produtivos. Indivíduos, empresas e o próprio setor público tomarão suas decisões a partir do processamento de uma quantidade quase infinita de informações o que demanda, além da mencionada melhoria da infraestrutura de IC, investimentos em capacitação.

A capacitação de pessoas já é estratégica, considerando o conhecimento necessário para utilização das novas tecnologias digitais, como utilizar as informações produzidas, a mão-de-obra disponível mais e mais envelhecida e o desaparecimento de algumas profissões com o surgimento de outras novas. Isso será fundamental para não ampliar ainda mais as desigualdades sociais, em especial nas áreas urbanizadas onde a maior parte do PIB é produzida e onde se encontra grande parte da pobreza, comprometendo o próprio desenvolvimento do país. A implementação de cidades inteligentes, no seu conceito mais amplo, será um imperativo cada vez mais forte para a atração de investimentos e mão-de-obra qualificada, para garantir uma maior qualidade de vida nas cidades e para a promoção do desenvolvimento sustentável.

Paulo Ávila é arquiteto e mestre em planejamento urbano pela Universidade de Brasília. Atua profissionalmente na área de planejamento urbano e regional, com ênfase em aspectos econômicos do espaço urbano. Foi professor no Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade Católica de Brasília. Atualmente é Analista de Infraestrutura lotado na Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) do Ministério das Cidades onde coordena o Programa Nacional de Capacitação das Cidades.

As cidades no contexto da transformação digital

No cenário de mudança da sociedade para a era da informação, duas forças estão em ação induzindo mudanças estruturais na economia, com potenciais efeitos espaciais. O rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e o uso de informação nos processos produtivos estão transformando o mercado de trabalho, os modelos de produção e de negócios. Também, o declínio do crescimento demográfico impactará o crescimento econômico no futuro. Nesse contexto, cabe a pergunta sobre qual o papel do espaço na nova produção do século XXI e o seu impacto no desenvolvimento de cidades, regiões e países.

No fim do século XIX, o progresso tecnológico e a queda dos custos de distância – transportes de bens, informação e interpessoal – intensificou o comércio inter-regional e mundial e também a fragmentação da produção no espaço. Associados ao crescimento demográfico e à abundante oferta de mão de obra, esses fatores induziram o desenvolvimento de grandes cidades e regiões, aproveitando os ganhos de eficiência na produção, nos transportes, nos mercados de trabalho e no intercâmbio de informações, dando forma ao desenvolvimento da sociedade industrial que adquire feições mundiais no século XX.

No século XXI, novas tecnologias de comunicação e processamento de informações e a criação de novos produtos digitais estão redesenhando os sistemas produtivos e a natureza das atividades econômicas. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que existem duas tendências de transformação da produção causadas pelas tecnologias digitais: (i) custos decrescentes a partir da sua maior difusão e utilização, e (ii) combinação de diferentes tecnologias da informação e comunicação (TIC) e sua convergência com outras tecnologias.

Nos países avançados, a produção industrial tem se tornado mais complexa, adaptada a um número reduzido de trabalhadores de alta qualificação onde o setor de serviços, especialmente os serviços digitais, adquire mais importância. Hoje interessa não mais o produto em si, mas a solução – ou serviço – a ele integrado. Estamos passando de uma sociedade industrial para uma sociedade informacional, de um consumo em massa de produtos padronizados para um consumo de produtos customizados.

Junto à transformação digital da economia outra questão que se apresenta é a do baixo crescimento demográfico. O crescimento econômico a partir de 1960 em 56 países que sustentaram uma taxa de pelo menos 6% durante uma década ou mais foi acompanhado por um crescimento da força de trabalho – população acima de 15 anos – de 2,7% ao ano. No entanto, observa-se uma queda cada vez mais acentuada do crescimento demográfico na Europa, Japão, Estados Unidos e também nas economias emergentes, indicando um maior envelhecimento da população mundial com potenciais reflexos para o crescimento no longo prazo da força de trabalho mais jovem, do consumo e das cidades.

Gráfico 1 – População mundial (em azul) e seu crescimento (em vermelho), 1750-2100

Fonte: Max Roser and Esteban Ortiz-Ospina (2017) – ‘World Population Growth’. Publicado online em OurWorldInData.org.

Em setores da Indústria 4.0, na qual os processos produtivos são intensivos no fluxo de informações e conhecimento, a proximidade física a matérias primas, oferta abundante de mão-de-obra ou mercados consumidores podem perder importância como forças de aglomeração, pois insumos e produtos podem ser transportados por via remota a custos próximos a zero. Isso implica que empresas e trabalhadores poderiam se dispersar no espaço, buscando áreas com mais amenidades e dotadas de infraestrutura adequada, longe dos grandes centros urbanos congestionados, com alto custo de moradia, poluição e alta criminalidade.

Contudo, na nova economia, as tecnologias digitais e a informação são os fatores críticos para a produtividade e a competição das empresas – devido à sua rápida obsolescência. Mesmo contando com a comunicação remota, empresas e trabalhadores tenderiam a se localizar uns próximos aos outros devido à maior interação física potencializada nas aglomerações, por exemplo, junto a universidades e centros de pesquisa. Devido à demografia e à natureza da economia digital, no entanto, provavelmente, não haverá, no futuro, condições para a formação de cidades muito grandes.

Na medida em que cidades menores podem não oferecer toda a gama de serviços demandados por trabalhadores e empresas tecnológicas, que necessitam de escala para se viabilizarem – serviços financeiros, empresariais (design, marketing, consultorias especializadas, etc.), cultura e lazer –, a proximidade aos grandes centros urbanos ainda será importante.

Embora essas tendências possam sugerir que a formação de grandes cidades poderá perder força nas sociedades informacionais, os sistemas urbanos continuarão a atuar com força no progresso tecnológico e no desenvolvimento das inovações, mas agora sob uma nova ordem. Cidades hiperconectadas e integradas a uma produção centrada em serviços digitais e no intercâmbio de conhecimento estabelecerão uma dinâmica própria, formando redes globais de relacionamentos sem uma coordenação centralizada. Este é um cenário possível. Assim, não é irreal pensar em cidades como entidades discretas que competem e colaboram entre si, independentemente dos Estados a que pertencem.

Paulo C. Avila é Mestre em Planejamento Urbano pela Universidade de Brasília. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Brasília. Atualmente é Coordenador do Programa Nacional de Capacitação das Cidades, do Ministério das Cidades.