Economia de Serviços

um espaço para debate

Author: Lorena Giuberti

Economia digital e defesa da concorrência: desafios e tendências

As tecnologias digitais mudaram a economia de diferentes maneiras, estimulando o desenvolvimento de mercados disruptivos e processos competitivos extremamente dinâmicos. A geração, processamento e uso de dados tornaram-se uma característica de extrema importância na economia, na medida em que estamos hoje constantemente conectados a dispositivos móveis on-line[1].

Os dados pessoais, que incluem informações detalhadas sobre os comportamentos e interesses dos indivíduos, se tornaram ativos extremamente valiosos no mercado digital. O acesso e a propriedade desses ativos influenciam diretamente as estruturas de mercado. Isso porque esses dados são atualmente propriedade exclusiva das empresas que fornecem a infra-estrutura para produzi-los, tornando-se uma fonte de receita e aquisição de poder de mercado.

Cria-se assim um ambiente favorável para uma concentração e  consolidação sem precedentes de poder econômico na mão de poucas organizações, tornando de certa forma ultrapassada a euforia inicial acerca do potencial da Internet como instrumento de nivelamento de oportunidades e de criação de organizações mais equitativas e cooperativas.

Um dos desafios levantados por esse novo panorama ​​é o papel a ser desempenhado pelas políticas antitruste para garantir níveis adequados de competição e o incentivo à inovação. A concentração do poder de mercado deve ser vista como uma característica inerente às indústrias de alta tecnologia? Os elevados lucros obtidos pelas empresas “superstars” devem ser considerados necessários para estimular a inovação e compensar altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento — e temporários — em linha com a “destruição criativa” de Schumpeter, que garantiria uma concorrência sistêmica?

Essas e outras questões estão desafiando as autoridades regulatórias ao redor do mundo, que vêm intervindo de maneiras diversas sobre as condutas empresariais nos mercados digitais. O tema também tem sido crescentemente debatido na academia e em fóruns globais de formulação de políticas públicas, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Estamos longe de obter respostas concretas sobre como lidar com as questões concorrenciais impostas pelas tecnologias digitais, mas uma hipótese é que as metodologias e teorias tradicionais utilizadas para identificar e mensurar o poder de mercado subestimam o poder econômico das “superstars” digitais. Nesse novo panorama, as análises antitruste merecem maior reflexão. Por exemplo, com a crescente ausência de transações monetárias para o fornecimento de serviços, torna-se cada mais difícil a utilização de metodologias baseadas no faturamento com vendas para definir o poder de mercado. Ademais, é cada vez mais complexa a aferição do mercado relevante. A título de ilustração, os investimentos da Google em carros autônomos apontam a empresa como concorrente em um mercado relevante e mais amplo do que o segmento de serviços on-line. Ademais, ao se realizar o controle de fusões, é fundamental que se avalie a competição potencial do mercado. Nesse sentido, o preço de compra pode indicar que um agente incumbente está buscando eliminar um potencial competidor – o que explicaria a elevada disposição a pagar do Facebook para comprar uma empresa sem aparente fonte receita, como o WhatsApp.

Nesse contexto, a definição de um aparato regulatório sobre a propriedade dos dados também desempenha hoje um papel mais importante que em ambientes econômicos anteriores. Isso porque as vantagens oferecidas pela exclusividade da detenção de dados tenderiam a reforçar a dominância no mercado e dificultar a entrada de novos concorrentes, ao longo do tempo[2].

Uma das sugestões regulatórias nesse sentido envolve a definição de um padrão legal que aumente a transparência dos dados, permitindo que os indivíduos saibam quais informações as empresas detêm, para quais fins são utilizados e a receita gerada pelo seu processamento. Isso diminuiria o controle informacional das grandes empresas, incentivando a contestabilidade e uma distribuição mais equitativa dos benefícios decorrentes da chamada data-driven economy.

O debate apresentado talvez tenha surgido com um certo atraso, dadas as várias operações de fusão e aquisição no setor da economia digital realizadas sem que houvesse uma percepção mais clara sobre os possíveis efeitos oriundos desses movimentos de concentração. Será interessante acompanhar o desenvolvimento de políticas regulatórias nesse setor, agora que tais efeitos já são apontados por diferentes análises, inclusive por autoridades de defesa da concorrência.

[1] SCHWAB, K., The Fourth Industrial Revolution, 2016

[2] ERZACHI, Ariel; STUCKER, Maurice E., Virtual Competition: The Promisse and Perfils of The Algorithm-Driven Economy, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2016.

Economia de compartilhamento ou de sobras?

O recente entusiasmo sobre o avanço de economia do compartilhamento, como refletido nos livros de Botsman e Rogers (2010), Sundararajan (2016) e Gransky (2014) deve-se em grande parte pela expectativa de que esse novo modelo de negócios traria impactos econômicos positivos. Economia do compartilhamento, colaborativa, mesh são termos que vêm sendo invocados para explicar recentes modelos de negócios que permitiriam o aproveitamento mais eficiente e racional de ativos subutilizados, por meio da intermediação direta entre indivíduos em plataformas digitais (BOTSMAN; ROGERS, 2010; GRANSKY, 2014; SUNDARARAJAN, 2016).

Segundo esses autores, essas plataformas promoveriam uma distribuição de renda mais equitativa e sustentável, ao reduzir não somente o custo de acesso a produtos e serviços como também a demanda pela posse de ativos. No entanto, como vem sendo discutido neste blog, e em recentes artigos científicos (FRENKEN; SCHOR, 2017), os alegados benefícios da economia do compartilhamento são muito mais complexos do que inicialmente se assume. Forças de mercado atuantes em indústrias com alta tecnologia da informação – como efeitos-rede, maior capacidade de personalização de preços e produtos, custos de substituição e melhor informação para incumbentes (VARIAN, 2001) – sugerem que existe um movimento não somente de consolidação de mercados, como também da renda global.

Como notado por Varian e Shapiro ainda em 1999, estruturas de mercado com alta tecnologia estão sujeitas a efeitos rede positivos e tendem a exibir crescimento explosivo: à medida que a base instalada de usuários cresce, mais usuários consideram que adotar uma determinada plataforma vale a pena. PARKER; VAN ALSTYNE; CHOUDARY, 2016). Assim, uma vez que uma plataforma atinge uma “massa crítica” de usuários e se estabelece no mercado, pode ser extremamente difícil para outras empresas concorrerem (VARIAN, 2001). Além disso, os custos de substituição de uma plataforma para uma nova passam a ser extremamente altos, o que acaba deixando os consumidores “locked-in[1].

Ainda, a vantagem competitiva de plataformas já estabelecidas é fortalecida pela apropriação das informações produzidas pelos usuários. Nesse contexto, à medida que as plataformas vão crescendo e expandindo seus clientes, os padrões e as preferências de cada usuário tornam-se progressivamente conhecidos, o que as permite oferecer serviços cada vez mais customizados e as tornar indispensáveis (VARIAN, 2001). Essa expansão permite que seus algoritmos sejam continuamente aperfeiçoados, tonando a vantagem competitiva cada vez maior.

Como consequência, plataformas já estabelecidas passam a desfrutar de lucros tão elevados que podem rapidamente capturar novos mercados comprando concorrentes, expandindo sua atuação para segmentos diferentes (SCHWAB, 2016; WORLD BANK, 2016) e impondo barreiras a novos entrantes, o que tem contribuído para a consolidação de mercados. Esse movimento é observado inclusive na economia do compartilhamento. O Airbnb, por exemplo, pretende evoluir de uma plataforma de acomodações residenciais para uma empresa de viagens abrangente, fornecendo serviços de turismo customizados, conforme mostrou matéria recente da Economist.

Há, ainda, a preocupação que o avanço da tecnologia e das vantagens competitivas intensifique a desigualdade na distribuição de renda em nível global. Como demonstrado abaixo, a distribuição da renda pode ser bem representada pela “curva sorriso”, que tende a ficar mais menos achatada ao longo do tempo.  Os criadores das plataformas, que desenvolvem atividades na ponta da curva – e em grande maioria estão localizados em países de renda alta – tendem a captar uma parte cada vez maior do valor produzido, enquanto os usuários das plataformas tendem a adquirir apenas uma fração pequena do valor, por oferecerem, em geral, serviços “de massa”, dificilmente diferenciáveis.  Não surpreendentemente, o termo compartilhamento de sobras já vem sendo utilizado para enfatizar o fenômeno de captura da maior parte dos benefícios gerados pelas plataformas por elas próprias.

Figura – Distribuição de Valor nas Cadeias de Produção ao longo do tempo  

 Fonte: Adaptado de Interconnect Economies Benefiting from Global Value Chains. OCDE, 2013

Sob essa perspectiva, são crescentes os desafios econômicos advindos do avanço do modelo de negócios de plataformas digitais associadas à economia colaborativa.  Na ausência de uma reflexão econômica e jurídica mais consistente sobre as falhas de mercado das plataformas associadas a economia do compartilhamento, elas têm se aproveitado de lacunas regulatórias para expandir sua atuação, como já vem sendo discutido por Frazão.

Fica clara a necessidade de avanço na compreensão da multiplicidade dos impactos da economia do compartilhamento para construção de uma arquitetura regulatória que evite o abuso de poder de mercado por parte das empresas criadoras das grandes plataformas. Não menos importante é que políticas públicas de incentivo à criação e ao desenvolvimento de empresas inovadoras sejam parte das prioridades da agenda governamental, criando condições para que o país se aproprie de benefícios cada vez maiores da economia digital.

[1]Tal situação é analisada em Varian (2001), em modelo simples de “lock-in”.

Lorena Giuberti Coutinho é Analista de Comércio Exterior do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). É mestranda no curso de Economia da Universidade de Brasília – UnB, com Especialização em Defesa Comercial pelo Ibmec e graduada em Economia pela UnB. Participa atualmente de intercâmbio profissional no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Washington, DC.

Referências Bibliográficas

BOTSMAN, R.; ROGERS, R. What’s mine is yours. 2010.

FRENKEN, K.; SCHOR, J. Putting the sharing economy into perspective. Environmental Innovation and Societal Transitions, v. 23, p. 3–10, 2017. Elsevier B.V.

GRANSKY, L. The mesh – why the future of business is sharing. 2014.

PARKER, G. G.; ALSTYNE, M. W. VAN; CHOUDARY, S. P. Platform revolution: How Networked Markets Are Transforming the Economy–And How to Make Them Work for You. 2016.

SCHWAB, K. The Fourth Industrial Revolution. 2016.

SUNDARARAJAN, A. The Sharing Economy – The End of Employment and the Rise of Crowd–Based Capitalism. 2016.

VARIAN, H. Economics of Information Technology. Working paper, n. July 2001, p. 1–53, 2001.

WORLD BANK. World Development Report 2016: Digital Dividends. 2016.